Foto Hernâni Von Doellinger |
domingo, 30 de junho de 2013
sábado, 29 de junho de 2013
O beijo de narciso no sinal-da-cruz
Comendador Santos da Cunha |
Quem viu o Sporting-Braga na TVI deve ter reparado: depois de apitar para dar início ao jogo, o árbitro Marco Ferreira benzeu-se. Fez o sinal-da-cruz, versão resumida, "Em nome do Pai", mão direita na testa, "do Filho", mão no peito ou barriga, "e do Espírito", mão no ombro esquerdo, "Santo. Amém", mão no ombro direito. Tudo mais ou menos como manda a Santa Madre Igreja. Mas depois acrescentou-lhe o beijinho na mão propriamente dita, em seu nome pessoal, numa espécie de auto-adoração canonicamente desautorizada, para não lhe chamar outra coisa. Coisa feia.
São os árbitros, são os jogadores, são os treinadores. Não passam sem a chupadelazinha no dedo, que - perdoem-me que lhes diga - vale tanto no Céu como a entrada em campo com o pé direito. Deus está realmente à coca, mas vê pouco futebol e também é Pai do pé esquerdo.
E não é só no futebol. Nas nossas igrejas, com cada vez menos fregueses, esta entorse litúrgica vem passando de geração em geração e os fiéis de hoje até acreditam que foi sempre assim, que é assim. Mas não é: o beijo em mão própria está a mais, não faz parte do sinal-da-cruz.
Eu acho que sei como é que isto tudo começou. No tempo em que a missa era em latim e o povo, que já se via à rasca para perceber o português, aproveitava para ir rezando terços atrás de terços enquanto o padre, de costas voltadas para o mundo, se ocupava naqueles Dominus vobiscum que eram lá um assunto entre ele e o pobre do sacristão, que ajudava o melhor que sabia sem saber muito bem a quê.
Parece que ainda ouço. (As igrejas ecoam, sabiam?) O terço era sonoramente ciciado por mulheres enfiadas em bigodes e lenços pretos, bzzz, bzzz, bzzz, num cochicho ao despique remetido directamente a Nosso Senhor, embora devesse levar Nossa Senhora no endereço. O comendador Santos da Cunha, que era governador civil de Braga e ia a Fafe aos casamentos e funerais dos ricos do regime, também fazia bzzz, bzzz, bzzz, mas com voz de trombone, de terço na mão ostensiva, durante a missa inteira, e já ela era praticamente toda em português. E se o senhor comendador fazia e fazia que se soubesse é porque era a Bem da Nação - naquele tempo não havia dúvidas a esse respeito.
Ora bem. No fim da reza, e independentemente do que o padre estivesse a fazer lá à frente e do ponto em que a missa fosse, as pessoas benziam-se e beijavam respeitosamente o crucifixo do terço, que levavam aos lábios entre o dedo polegar e o indicador. Beijavam a cruz, não a mão, fiz-me explicar? Mas estão a ver a confusão que dali saiu? E por falar em Braga: narcisismos, só se meterem bacalhau, está bem?
(Ando a descobrir umas fotos, e a cortá-las e a puxá-las para que me sirvam - defeito que trago do velho ofício. São documentos interessantes e vão dar-me pano para mangas. António Maria Santos da Cunha (1911-1972) foi presidente da Câmara de Braga durante 12 anos, governador civil do distrito e deputado à Assembleia Nacional. Ia muito a Fafe e era amigo do Mendes Ribeiro da Fábrica do Ferro e de outros figurões locais. Santos da Cunha tem um monumento na Cidade dos Arcebispos, mas não tem retratos no Google. Encontrei um e acrescento este, cuja estreiteza não faz justiça à largura do homem. A fotografia de onde o recortei foi feita em Fafe. E o texto ali em acima foi escrito e publicado, originalmente, no dia 13 de Maio de 2012.)
Há bar e mar, como dizia o poeta
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sexta-feira, 28 de junho de 2013
A visita da Veneranda Figura 5
As visitas da Veneranda Figura ao Portugal corno manso eram, não raro, momentos de alto fervor nacionalista e profunda reflexão cultural. Sua Excelência o Senhor Presidente da República - ou o Padeiro, na versão abreviada - tinha o condão da palavra certa. Humanista dos sete costados, enciclopedista dado a calendário, geografia e contas de somar, Américo Tomás abria a boca para espirrar e saíam-lhe pérolas, orações de sapiência. Num país de troca-tintas e fala-barato de nascimento, o rigor e o donaire na afirmação são a superlativa herança que o marido de Dona Gertrudes fez o obséquio de nos deixar.
Por exemplos:
1. "Hoje visitei todos os pavilhões, se não contar com os que não visitei".
2. "É uma terra [Manteigas] bem interessante, porque, estando numa cova, está a mais de 700 metros de altitude".
3. "Comemora-se hoje em todo o país uma promulgação do despacho número cem, a que foi dado esse número não por acaso mas porque ele vem na sequência de outros noventa e nove anteriores promulgados".
4. "Neste almoço ouvi vários discursos, que o governador civil intitulou de simples brindes. Peço desculpa, mas foram autênticos discursos".
5. "Eu prolongo no tempo esse anseio de Vossa Excelência e permito-me dizer que o meu anseio é maior ainda. Ele consiste em que, mesmo para além da morte, nós possamos viver eternamente na terra portuguesa, porque se nós, para além da morte vivermos sempre sobre a terra portuguesa, isso significa que Portugal será eterno, como eterno é o sono da morte".
6. "Hoje tivemos um dia sumamente positivo: de manhã assistimos à santa missa e de tarde inaugurámos o monumento ao bombeiro".
7. "Pedi desculpa ao Senhor Engenheiro Machado Vaz por fazer essa rectificação. Mas não havia razão para o fazer porque, na realidade, o Senhor Engenheiro Machado Vaz referiu-se à altura do início do funcionamento dessa barragem e eu referi-me, afinal, à data da inauguração oficial. Ambas as datas estavam certas. E eu peço, agora, desculpa de ter pedido desculpa da outra vez ao Senhor Engenheiro Machado Vaz".
8. "A minha boa vontade não tem felizmente limites. Só uma coisa não poderei fazer: o impossível. E tenho verdadeiramente pena de ele não estar ao meu alcance".
9. "O Senhor Professor Oliveira Salazar, ao longo de mais de trinta anos, é uma vida inteiramente sacrificada em proveito do País, e, desconhecendo completamente todos os prazeres da vida, é um homem excepcional que não aparece, infelizmente, ao menos, uma vez em cada século, mas aparece raramente ao longo de todos os séculos".
10. "Esta é a primeira vez que estou cá desde a última vez que cá estive".
Tomás era o circo e mais nada. O Presidente da República nunca encontrou palavras de jeito para falar ao Portugal dos pequeninos. Ele não as sabia e ninguém lhas ensinou. Isto é: estamos na mesma.
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Quando os Tonys eram de Matos
Foto Hernâni Von Doellinger |
Os lisboetas vão regressar amanhã às suas raízes mais profundas. Às berças. Aos campos do Minho, de Trás-os-Montes, das Beiras, do Alentejo ou dos Algarves de onde partiram há duas ou três gerações, de cajado ao ombro e saca com a merenda. Quer-se dizer: embora o ignorem, os lisboetas são tão parolos como os outros parolos todos. Lisboa já não diferencia. Faz cada vez mais parte do resto que é paisagem neste país que não existe.
Vai ser servido aos lisboetas, amanhã, um megapiquenique a que o analfabetismo chama "Mega Pic Nic". Um arraial dos antigos que promete recriar, em plena Avenida da Liberdade, o "espírito do campo", o "ambiente de uma grande quinta", com o objectivo - acrescentam os organizadores - de "chamar a atenção dos portugueses para a importância do apoio à produção nacional".
Os lisboetas, que são parolos mas não se lembram, vão poder (re)aprender, por exemplo, que o leite não nasce em pacotes, que as galinhas estão vivas antes de estarem mortas (a senhora dona Lili Caneças poderá explicar o fenómeno), que os ovos só podem ser produzidos com aquele feitio ou que o bife não é um animal, pelo menos um animal completo.
O anúncio televisivo do evento promete tudo isto e muito mais. Garante uma espécie de circo rural onde não vão faltar as vacas e os cavalos, os patos e os gansos, as ovelhas e os porcos, os frangos do Roberto e até
macacos de imitação. Exactamente. Está o trânsito todo escangalhado no Porto e em Matosinhos, este fim-de-semana, por causa das corridas de carrinhos do menino Rui Rio, e logo Lisboa resolve também semear o caos no seu centro mais central. (A parolice é mesmo assim, contagia, multiplica-se. Lisboa sofre de um acelerado processo de parolização.)
Nada, no entanto, que desmobilize os lisboetas, tenho a certeza. Lá estarão amanhã, milhares e milhares deles, entusiasmados até mais não com a novidade, fresquinha e ao vivo, das cores, dos sabores e dos aromas do campo. Mas sobretudo o que eles vão é ao cheiro do concerto do Tony Carreira. À borla. Tony Carreira apresentado aos lisboetas como "o melhor da música portuguesa"...
Ora bem. Honra lhe seja, Tony Carreira é um profissionalão, provavelmente o melhor do seu ofício, mas não é "o melhor da música portuguesa". Entendamo-nos: por mais multidões que congregue, por mais corações que despedace, Tony Carreira é apenas um cantor romântico com imeeeeeenso sucesso. Mas a música portuguesa é... outra coisa.
Apesar de tudo, que diferente era Lisboa no tempo em que os Tonys eram de Matos...
_
Texto escrito e publicado no dia 17 de Junho de 2011. E repetido no dia 10 de Maio de 2012. Sempre Tony, sempre actual. Já agora: descubra o actual que há em si. (Ver e ouvir)
quinta-feira, 27 de junho de 2013
As minhas férias 2
Soubemos hoje. As únicas pessoas que eu e a minha mulher conhecemos que nunca foram ao Brasil somos nós. Mas já está resolvido. Para a semana, se Deus quiser, vamos outra vez à Póvoa.
quarta-feira, 26 de junho de 2013
Guimarães Rosa
De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de dificel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso...
"Grande Sertão: Veredas", Guimarães Rosa
(João Guimarães Rosa nasceu no dia 27 de Junho de 1908. Morreu em 1967.)
"Grande Sertão: Veredas", Guimarães Rosa
(João Guimarães Rosa nasceu no dia 27 de Junho de 1908. Morreu em 1967.)
Os senhores doutores presidentes
Para mal dos nossos pecados, temos o Cavaco Silva, o Passos Coelho e a Assunção Esteves. Temos o Ramalho Eanes, o Soares e o Sampaio. O Vítor Gaspar, o Portas, o Aguiar-Branco, o Miguel Macedo, a Paula Teixeira da Cruz, o Marques Guedes, o Poiares Maduro, o Álvaro, a Cristas, o Paulo Macedo, o Crato e o Mota Soares. Temos o Seguro, o Sócrates, o Jerónimo, o Louçã, o Rebelo de Sousa, o Marques Mendes e a Manuela Ferreira Leite. Pessoas.
Depois, nas câmaras municipais, temos, por exemplo, o Dr. Guilherme Pinto e o Dr. José Ribeiro. Doutores. Sempre quis saber a especialidade clínica dos presidentes assim ou, vá lá, pelo menos o assunto da tese de doutoramento: e não sei.
(Escrito a partir do desabafo de uma certa e determinada pessoa. Obrigado.)
Depois, nas câmaras municipais, temos, por exemplo, o Dr. Guilherme Pinto e o Dr. José Ribeiro. Doutores. Sempre quis saber a especialidade clínica dos presidentes assim ou, vá lá, pelo menos o assunto da tese de doutoramento: e não sei.
(Escrito a partir do desabafo de uma certa e determinada pessoa. Obrigado.)
terça-feira, 25 de junho de 2013
Descolonização de Angola no NorteShopping
A jornalista Alexandra Marques estará amanhã na Fnac do NorteShopping, Matosinhos, com o seu livro "Segredos da Descolonização de Angola". A partir das 18 horas, com apresentação do embaixador Seixas da Costa.
Sabença, senhor abade!
Cónego Leite de Araújo |
No tempo em que havia padres em Portugal, Fafe tinha um senhor abade. Uma vez por semana, o nosso senhor abade descia a minha rua de terra e tílias para ir dizer missa na capela de ricos da Casa do Santo Velho, e a minha mãe mandava-me ir ter com ele para lhe pedir sabença. Eu interrompia os deveres da escola primária e ia a correr, todo contente. Fazia fila atrás dos outros miúdos todos e, quando chegava a minha vez, lá dizia, com o respeito que me fora ensinado, "Sabença, senhor abade!", beijando a mão branca que me era estendida. O senhor abade fazia-me uma pequena festa na cabeça, com a mão que tinha de vago, e respondia-me "Deus te abençoe, meu filho", que era o que eu queria ouvir. O senhor abade seguia o seu caminho e eu tornava a casa num sino. Acreditam que aquilo é das coisas mais felizes da minha infância?
O senhor abade cheirava bem, a tabaco e perfume. Andava sempre de batina e, no Inverno, usava uma capa negra revoante que parecia de filme de espadachins. Com o correr dos anos, o senhor abade subiu a senhor arcipreste, pendurou a sotaina e começou a sair à rua de fato preto e cabeção de gola alta, passou a cumprimentar-me de mãozada e fizeram-no senhor cónego, uma desfeita, no meu modesto ponto de vista. Cónego Leite de Araújo. Era um homem elegante, distinto, culto, bom e pobre. Dava. E tinha um sorriso. Era um ser humano com defeitos e extraordinário. E foi meu amigo. Não sei se Fafe tem a contabilidade em dia com a sua memória.
No tempo em que havia padres em Portugal, o senhor abade de Fafe tinha consigo ao serviço da paróquia, para além do padre Adélio que ensaiava o orfeão, dois jovens coadjutores, palavra que eu não sabia dizer mas que me fazia rir, porque imaginava que, com um título assim, aqueles dois eram padres de acender e apagar. Tanto quanto sei agora, apagaram-se quase todos os que por lá passaram. Apagaram-se como padres, quer-se dizer. Tiveram muitos filhos, foram muito felizes e casaram, geralmente por esta ordem. Em todo o caso, a esses já eu não beijava a mão, mas pedia sabença. Tínhamos isso combinado. E eu ganhava o "Deus te abençoe" que me dava tanto jeito.
No tempo em que havia padres em Portugal, não havia Paula Bobone, graças a Deus. Por isso o beija-mão era uma coisa, por assim dizer, pouco higiénica. Porque o beijo era mesmo beijo e não a mariquice do beijo de faz de conta, a "simulação de beijo" recomendada pela etiqueta da treta. Eu pedia sabença com beija-mão também ao meu avô e à minha avó da Bomba e ao meu avô e à minha avó de Basto, gente de trabalho que tinha as mãos como calhava quando eu lá esparramava o reverencial ósculo. Sim, seria talvez pouco higiénico, mas era verdadeiro. E ainda cá estou.
Durante toda a minha vida pedi sabença. Ao meu pai, à minha mãe, ao meu padrinho, à minha madrinha, aos meus tios e às minhas tias. Até às tias chegadas à família por casamento, que no princípio achavam aquilo um bocado estranho, mas que depois se habituaram e creio que gostam. Aos poucos fui desfazendo a corruptela, passei pela "sabênção" até chegar ao que peço há anos: "a sua bênção". É verdade, continuo a pedir a bênção à minha mãe e aos meus tios e tias, alguns apenas um pouco mais velhos do que eu. E não é só por respeito ou porque me ensinaram em pequenino. Eu acredito nas bênçãos. Por falar nisso: sabença, senhor abade!
(Escrevi e publiquei este texto, pela primeira vez, no dia 26 de Outubro de 2011. Desenrasquei agora esta foto, tinha de lhe dar uso.)
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segunda-feira, 24 de junho de 2013
Os mortos vivos
Diz-me o meu amigo: "Eh pá, que tétrico, só publicas textos de escritores mortos". "Mas mortos vivos", digo eu. É o que está a dar, não é?
Matosinhos cheira mal
domingo, 23 de junho de 2013
Joaquim Manuel de Macedo
Ter a ventura de receber o braço de uma moça bonita e a quem se ama, apreciar sobre si o doce contato de uma bem torneada mão, que tantas noites se tem sonhado beijar; roçar às vezes com o cotovelo um lugar sagrado, voluptuoso e palpitante; sentir sob sua face perfumado bafo que se esvaiu dentre os lábios virginais e nacarados, cujo sorrir se considera um favor do céu; o apanhar o leque que escapa da mão que estremeceu, tudo isso... mas para que divagações? Que mancebo há aí, de dezesseis anos por diante, que não tenha experimentado esses doces enleios, tão leves para a reflexão e tão graves e apreciáveis para a imaginação de quem ama? Pois bem, Augusto os está gozando neste momento; mas, porque só a ele é isto de grande intimidade, e convém dizer apenas o que absolutamente se faz preciso, pode-se, sem inconveniente, abreviar toda a história de duas boas horas, dizendo-se: almoçaram e chegou a hora da lição.
"A Moreninha", Joaquim Manuel de Macedo
(Joaquim Manuel de Macedo nasceu no dia 24 de Junho de 1820. Morreu em 1882.)
"A Moreninha", Joaquim Manuel de Macedo
(Joaquim Manuel de Macedo nasceu no dia 24 de Junho de 1820. Morreu em 1882.)
sábado, 22 de junho de 2013
sexta-feira, 21 de junho de 2013
A Fome Apátrida das Aves
Francisco Duarte Mangas tem livro novo. São os poemas outra vez. "A Fome Apátrida das Aves" - com prefácio de Manuel Gusmão e apresentação de José Manuel Mendes, na próxima quinta-feira, 27 de Junho, às 18 horas, no Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, número 27 da portuense Rua de Ferreira Borges.
"A Fome Apátrida das Aves", livro novo, ideia antiga, continuada, é o que suspeito. Em "Brévia", de 2005, Francisco Duarte Mangas escreveu: A fome apátrida das aves deixou marca nos dióspiros. O meu filho dorme, o repouso cicatriza a ferida. Brévia, observo a brévia submersa na manhã. Abro a navalha de enxertia: de um só golpe, degolo o cavalo. Já não tenho quarenta anos, digo. A palavra, como a nossa vida, é inexorável substância de aluvião. As árvores e as aves, portanto. Brévia. E há dias, no seu blogue Diário de Link, antecipando a obra a estrear: Por não saber alcançar os ramos mais altos abraçado ao tronco, como faziam os meus amigos de infância, destros e corajosos, trouxe as árvores a pastar na escrita. Desamarradas da terra, as árvores voam. Chegam depois as aves, a cabra, os meus gatos e outros bichos. De repente, deparo: o tempo, as marcas do tempo: abro o portão de uma remota brévia, procuro repouso, água fresca, palavras como perdigueiros cheios de melancolia. Uma sebe de muitos anos separa o poema distante do mais recente. Pouco importa. Nasci, para que conste, numa aldeia cingida por serranias. Um dos montes tem este nome: Marouço. Os fabulosos pastores de tempos antigos, quando o mundo era movido a tracção animal, diziam ouvir do cume dessa serra, a muitas léguas de lonjura, os murmúrios do mar. Confere!
Francisco Duarte Mangas nasceu em Rossas, Vieira do Minho, e vive em Árvore, Vila do Conde. Estudou História e foi professor. É jornalista. Gosta de cuidar de glicínias e exercita nos limoeiros, camélias, magnólias, cerejeiras e outras árvores a antiga arte dos enxertadores. Gasta ainda algum tempo a iludir trutas, nos rios de montanha. Pratica a amizade. É autor de mais de duas dezenas de obras nos domínios da ficção, poesia e literatura infanto-juvenil, algumas das quais estão traduzidas em várias línguas. O seu primeiro livro, "Diário de Link", foi distinguido com o Prémio Carlos de Oliveira, por unanimidade, num júri constituído por José Saramago, Nuno Júdice e Francisco Belard.
"A Fome Apátrida das Aves", livro novo, ideia antiga, continuada, é o que suspeito. Em "Brévia", de 2005, Francisco Duarte Mangas escreveu: A fome apátrida das aves deixou marca nos dióspiros. O meu filho dorme, o repouso cicatriza a ferida. Brévia, observo a brévia submersa na manhã. Abro a navalha de enxertia: de um só golpe, degolo o cavalo. Já não tenho quarenta anos, digo. A palavra, como a nossa vida, é inexorável substância de aluvião. As árvores e as aves, portanto. Brévia. E há dias, no seu blogue Diário de Link, antecipando a obra a estrear: Por não saber alcançar os ramos mais altos abraçado ao tronco, como faziam os meus amigos de infância, destros e corajosos, trouxe as árvores a pastar na escrita. Desamarradas da terra, as árvores voam. Chegam depois as aves, a cabra, os meus gatos e outros bichos. De repente, deparo: o tempo, as marcas do tempo: abro o portão de uma remota brévia, procuro repouso, água fresca, palavras como perdigueiros cheios de melancolia. Uma sebe de muitos anos separa o poema distante do mais recente. Pouco importa. Nasci, para que conste, numa aldeia cingida por serranias. Um dos montes tem este nome: Marouço. Os fabulosos pastores de tempos antigos, quando o mundo era movido a tracção animal, diziam ouvir do cume dessa serra, a muitas léguas de lonjura, os murmúrios do mar. Confere!
Francisco Duarte Mangas nasceu em Rossas, Vieira do Minho, e vive em Árvore, Vila do Conde. Estudou História e foi professor. É jornalista. Gosta de cuidar de glicínias e exercita nos limoeiros, camélias, magnólias, cerejeiras e outras árvores a antiga arte dos enxertadores. Gasta ainda algum tempo a iludir trutas, nos rios de montanha. Pratica a amizade. É autor de mais de duas dezenas de obras nos domínios da ficção, poesia e literatura infanto-juvenil, algumas das quais estão traduzidas em várias línguas. O seu primeiro livro, "Diário de Link", foi distinguido com o Prémio Carlos de Oliveira, por unanimidade, num júri constituído por José Saramago, Nuno Júdice e Francisco Belard.
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Machado de Assis
Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.
Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me argúam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: - amor da glória.
Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a coisa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição.
Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto.
"Memórias Póstumas de Brás Cubas", Machado de Assis
(Machado de Assis nasceu no dia 21 de Junho de 1839. Morreu em 1908.)
Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me argúam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: - amor da glória.
Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a coisa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição.
Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto.
"Memórias Póstumas de Brás Cubas", Machado de Assis
(Machado de Assis nasceu no dia 21 de Junho de 1839. Morreu em 1908.)
quinta-feira, 20 de junho de 2013
Homens extraordinários
1. Aqueles tipos que dizem "Nunca me arrependo daquilo que fiz".
2. Os políticos que respondem "O meu maior defeito? Sou muito exigente e perfeccionista, é um defeito que eu tenho".
3. Artistas que não sabem desenhar uma jarra e fazem exposições de pintura, e vendem.
4. Vendedores de banha da cobra que não sabem escrever e publicam best-sellers.
5. Nuno Cardoso, candidato à Câmara do Porto, porque as "pessoas" lhe pediram muito.
2. Os políticos que respondem "O meu maior defeito? Sou muito exigente e perfeccionista, é um defeito que eu tenho".
3. Artistas que não sabem desenhar uma jarra e fazem exposições de pintura, e vendem.
4. Vendedores de banha da cobra que não sabem escrever e publicam best-sellers.
5. Nuno Cardoso, candidato à Câmara do Porto, porque as "pessoas" lhe pediram muito.
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terça-feira, 18 de junho de 2013
Festas do Mártir S. Sebastião 2013
Foto Hernâni Von Doellinger |
Têm o título que merecem: Grandiosas Festas ao Mártir S. Sebastião. E são, na verdade, a Festa dos Pescadores de Matosinhos ou, mais famosas ainda, as festas da minha rua. Ocupam os dias 12, 13 e 14 do próximo mês de Julho, com tenda montada na Lota do Pescado, como manda a tradição. Ver o programa aqui.
Remédio santo
Eu tinha um problema. Enfiava-me no guarda-fatos a comer nozes, o que me provocava imensas aftas. Fui ao médico. Mandou-me comprar um baú e tenho andado muito bem.
segunda-feira, 17 de junho de 2013
domingo, 16 de junho de 2013
Dante Milano
Salmo perdido
Creio num deus moderno,
Um deus sem piedade,
Um deus moderno, deus de guerra e não de paz.
Deus dos que matam, não dos que morrem,
Dos vitoriosos, não dos vencidos.
Deus da glória profana e dos falsos profetas.
O mundo não é mais a paisagem antiga,
A paisagem sagrada.
Cidades vertiginosas, edifícios a pique,
Torres, pontes, mastros, luzes, fios, apitos, sinais.
Sonhamos tanto que o mundo não nos reconhece mais,
As aves, os montes, as nuvens não nos reconhecem mais,
Deus não nos reconhece mais.
Dante Milano
(Dante Milano nasceu no dia 16 de Junho de 1899. Morreu em 1991.)
Creio num deus moderno,
Um deus sem piedade,
Um deus moderno, deus de guerra e não de paz.
Deus dos que matam, não dos que morrem,
Dos vitoriosos, não dos vencidos.
Deus da glória profana e dos falsos profetas.
O mundo não é mais a paisagem antiga,
A paisagem sagrada.
Cidades vertiginosas, edifícios a pique,
Torres, pontes, mastros, luzes, fios, apitos, sinais.
Sonhamos tanto que o mundo não nos reconhece mais,
As aves, os montes, as nuvens não nos reconhecem mais,
Deus não nos reconhece mais.
Dante Milano
(Dante Milano nasceu no dia 16 de Junho de 1899. Morreu em 1991.)
sábado, 15 de junho de 2013
sexta-feira, 14 de junho de 2013
quarta-feira, 12 de junho de 2013
Fernando Pessoa
Para ser grande, sê inteiro: nada
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
"Odes", Ricardo Reis
(Fernando Pessoa nasceu no dia 13 de Junho de 1888. Morreu em 1935.)
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
"Odes", Ricardo Reis
(Fernando Pessoa nasceu no dia 13 de Junho de 1888. Morreu em 1935.)
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Feira Medieval de Fafe
terça-feira, 11 de junho de 2013
segunda-feira, 10 de junho de 2013
Histórias de cónegos
1.
Há coisa de quarenta anos, os cónegos não eram uma classe respeitada por aí além, mesmo ou principalmente no interior da Igreja. Naquele tempo, cónegos eram anedotas, contadas por padres que não eram cónegos. Inveja? Sei lá eu. Parece que o tique vinha de trás e atiravam a culpa ao Eça.
Os cónegos que então conheci afiguravam-se-me criaturas patuscas, isso é certo. Geralmente baixinhos, barrigudos e corados, sebentos às vezes. Os cónegos eram uns cromos, caricaturas deles próprios. Também não sei se ficaram assim depois e por causa de terem ido para cónegos ou se aqueles é que eram os critérios de selecção.
Uma vez, um padre recém-ordenado, mestre e amigo, ensinou-me que a classe dos cónegos se dividia em três categorias: "os cónegos de merda, a merda de cónegos e os cónegos a sério" - que seriam os da sé propriamente dita, eventualmente os cónegos com cargo no cabido.
Como é agora com os cónegos, desconheço. Mas acredito nisto: quarenta anos não dão para nada na Igreja instituição, não dão sequer para meter a chave à porta - quanto mais para puxar o autoclismo.
2.
O Secónego era uma sumidade arqueológica. Um sábio. Sabia das lendas, da História, das pedras, das palavras, dos nomes e dos sítios, dos livros. Sabia das origens todas. Sabia. Estão a ver o José Hermano Saraiva na televisão? Pronto, o Secónego era a mesma coisa, mas sem televisão e a sério. Ainda por cima, tinha piada fina. O Secónego comprazia-se em explicar aos seus alunos porque é que a terra de cada um se chamava como se chamava e porque é que uns eram Silva e outros eram Lopes. Explicou-me porque é que Fafe é Fafe e eu expliquei-lhe que não tenho culpa de ser Von Doellinger.
Quando me chegou às mãos, o Secónego já era um sábio intermitente, com apagões. Era um homem precocemente envelhecido e debilitado. De vez em quando desligava e isso fazia-me uma enorme impressão. Lembro-me que nessas alturas me apetecia chorar. Que injustiça para uma cabeça assim. Filhadaputice que ele não merecia, era o que eu achava e depois ia confessar-me, porque achar filhadaputice, fosse de que espécie fosse, era pecado no seminário.
Por falar em filhadaputice (e vão três), havia umas "brincadeiras" institucionalizadas para as aulas do Secónego. E os coninhas, que, borrados de medo, só respiravam pelas orelhas frente aos outros professores, pintavam a manta com o Secónego, numa coragem cobarde que ainda hoje me mete nojo. Eu também não era nenhum santo - e certamente por isso (e por achar filhadaputices a torto e a direito) é que me mandaram dar uma volta -, mas, para mim, as aulas do Secónego eram sagradas. Eram as únicas em que eu não mijava fora do penico. Por pena. Quem me dera que tivesse sido por respeito.
Um dia o Secónego desligou-se o interruptor em plena aula. De repente ficou ali, sentado à secretária, olhando o nada, obviamente esquecido de nós e dele, e dizia apenas "Leia, menino", apontando para ninguém. E nós lemos, mandei eu, e mandei também chamar quem o tirasse dali. Lemos: três ou quatro de nós, uns atrás dos outros, passando a Selecta de mão em mão, Vaiamos, irmana, vaiamos dormir nas ribas do lago, u eu andar vi a las aves meu amigo. E lemos a cantiga até ao fim e voltámos ao princípio, uma e outra vez, numa lengalenga interminável, e tanto fazia quem lesse, eram as minhas ordens, porque eu sentia que o som das nossas vozes apaziguava a alma cansada e ausente do velho professor. E isso era preciso.
Depois levaram-no.
3. O Secónego tinha uma casa creio que à borda da estrada que sobe da cidade de Braga para o Bom Jesus. Padres mais novos diziam-lhe, no gozo: "Ó Secónego, que pena, quem por ali passa de carro só vê o cume da sua casa". E ele: "Pois, mas isso é à ida, menino. À vinda nem o cume vê".
Há coisa de quarenta anos, os cónegos não eram uma classe respeitada por aí além, mesmo ou principalmente no interior da Igreja. Naquele tempo, cónegos eram anedotas, contadas por padres que não eram cónegos. Inveja? Sei lá eu. Parece que o tique vinha de trás e atiravam a culpa ao Eça.
Os cónegos que então conheci afiguravam-se-me criaturas patuscas, isso é certo. Geralmente baixinhos, barrigudos e corados, sebentos às vezes. Os cónegos eram uns cromos, caricaturas deles próprios. Também não sei se ficaram assim depois e por causa de terem ido para cónegos ou se aqueles é que eram os critérios de selecção.
Uma vez, um padre recém-ordenado, mestre e amigo, ensinou-me que a classe dos cónegos se dividia em três categorias: "os cónegos de merda, a merda de cónegos e os cónegos a sério" - que seriam os da sé propriamente dita, eventualmente os cónegos com cargo no cabido.
Como é agora com os cónegos, desconheço. Mas acredito nisto: quarenta anos não dão para nada na Igreja instituição, não dão sequer para meter a chave à porta - quanto mais para puxar o autoclismo.
2.
O Secónego era uma sumidade arqueológica. Um sábio. Sabia das lendas, da História, das pedras, das palavras, dos nomes e dos sítios, dos livros. Sabia das origens todas. Sabia. Estão a ver o José Hermano Saraiva na televisão? Pronto, o Secónego era a mesma coisa, mas sem televisão e a sério. Ainda por cima, tinha piada fina. O Secónego comprazia-se em explicar aos seus alunos porque é que a terra de cada um se chamava como se chamava e porque é que uns eram Silva e outros eram Lopes. Explicou-me porque é que Fafe é Fafe e eu expliquei-lhe que não tenho culpa de ser Von Doellinger.
Quando me chegou às mãos, o Secónego já era um sábio intermitente, com apagões. Era um homem precocemente envelhecido e debilitado. De vez em quando desligava e isso fazia-me uma enorme impressão. Lembro-me que nessas alturas me apetecia chorar. Que injustiça para uma cabeça assim. Filhadaputice que ele não merecia, era o que eu achava e depois ia confessar-me, porque achar filhadaputice, fosse de que espécie fosse, era pecado no seminário.
Por falar em filhadaputice (e vão três), havia umas "brincadeiras" institucionalizadas para as aulas do Secónego. E os coninhas, que, borrados de medo, só respiravam pelas orelhas frente aos outros professores, pintavam a manta com o Secónego, numa coragem cobarde que ainda hoje me mete nojo. Eu também não era nenhum santo - e certamente por isso (e por achar filhadaputices a torto e a direito) é que me mandaram dar uma volta -, mas, para mim, as aulas do Secónego eram sagradas. Eram as únicas em que eu não mijava fora do penico. Por pena. Quem me dera que tivesse sido por respeito.
Um dia o Secónego desligou-se o interruptor em plena aula. De repente ficou ali, sentado à secretária, olhando o nada, obviamente esquecido de nós e dele, e dizia apenas "Leia, menino", apontando para ninguém. E nós lemos, mandei eu, e mandei também chamar quem o tirasse dali. Lemos: três ou quatro de nós, uns atrás dos outros, passando a Selecta de mão em mão, Vaiamos, irmana, vaiamos dormir nas ribas do lago, u eu andar vi a las aves meu amigo. E lemos a cantiga até ao fim e voltámos ao princípio, uma e outra vez, numa lengalenga interminável, e tanto fazia quem lesse, eram as minhas ordens, porque eu sentia que o som das nossas vozes apaziguava a alma cansada e ausente do velho professor. E isso era preciso.
Depois levaram-no.
3. O Secónego tinha uma casa creio que à borda da estrada que sobe da cidade de Braga para o Bom Jesus. Padres mais novos diziam-lhe, no gozo: "Ó Secónego, que pena, quem por ali passa de carro só vê o cume da sua casa". E ele: "Pois, mas isso é à ida, menino. À vinda nem o cume vê".
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domingo, 9 de junho de 2013
Corino de Andrade, génio e farto de "chatices"
Uma vez tive a sorte de falar com o Dr. Corino de Andrade. Mário Corino da Costa Andrade (1906-2005) foi médico, investigador e humanista, uma das figuras de proa da neurologia portuguesa do século XX. Foi o cientista que descobriu a paramiloidose, ou doença dos pezinhos, identificada nos meios académicos e clínicos, a nível mundial, como doença de Andrade ou Corino-Andrade. Fundou, com Nuno Grande, o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, da Universidade do Porto.
Corino de Andrade tinha então uns belíssimos 87 anos, em impecável estado de conservação e conversação. Estava farto de "chatices", isso sim. Incomodavam-no a paráfrase, a elaboração escusada, as repetições. "A gente deve reduzir ao mínimo o que tem para dizer, e dizer só as coisas fundamentais, ou que assim nos pareçam, e que possam ajuntar qualquer coisa ao já dito", explicou-me.
Aliciaram-no para que escrevesse as suas memórias. Recusou, era "uma chatice". A lisonja, a ele, batia-lhe com o nariz na porta. Disse-me: "Não quero homenagem nenhuma, Deus me livre! Eu tenho horror, uma espécie de alergia urticária contra as homenagens. É uma chatice. O excesso de homenagens em Portugal é um mau sintoma".
Entusiasmado pelo singularidade daquele encontro, não segurei em mim que não fizesse uma das perguntas mais estúpidas da minha vida: "Mas o senhor doutor deve estar orgulhoso por ter descoberto uma doença, por ver o seu nome ligado a essa doença, não é?"
"Não, meu caro senhor, não é", atalhou mansamente o Dr. Corino de Andrade, com a paciência dos sábios, para imediatamente me martelar pelo chão abaixo, como quem não quer a coisa: "Seria um orgulho muito grande ter o meu nome ligado a uma cura, isso era, mas tê-lo ligado a uma doença... essa é que é a maior chatice".
O Dr. Corino era diferente, não era?
(Corino de Andrade nasceu no dia 10 de Junho de 1906 e morreu seis dias depois de ter completado 99 anos. Escrevi e publiquei este texto a 7 de Julho de 2011; republiquei-o a 5 de Abril de 2012.)
Corino de Andrade tinha então uns belíssimos 87 anos, em impecável estado de conservação e conversação. Estava farto de "chatices", isso sim. Incomodavam-no a paráfrase, a elaboração escusada, as repetições. "A gente deve reduzir ao mínimo o que tem para dizer, e dizer só as coisas fundamentais, ou que assim nos pareçam, e que possam ajuntar qualquer coisa ao já dito", explicou-me.
Aliciaram-no para que escrevesse as suas memórias. Recusou, era "uma chatice". A lisonja, a ele, batia-lhe com o nariz na porta. Disse-me: "Não quero homenagem nenhuma, Deus me livre! Eu tenho horror, uma espécie de alergia urticária contra as homenagens. É uma chatice. O excesso de homenagens em Portugal é um mau sintoma".
Entusiasmado pelo singularidade daquele encontro, não segurei em mim que não fizesse uma das perguntas mais estúpidas da minha vida: "Mas o senhor doutor deve estar orgulhoso por ter descoberto uma doença, por ver o seu nome ligado a essa doença, não é?"
"Não, meu caro senhor, não é", atalhou mansamente o Dr. Corino de Andrade, com a paciência dos sábios, para imediatamente me martelar pelo chão abaixo, como quem não quer a coisa: "Seria um orgulho muito grande ter o meu nome ligado a uma cura, isso era, mas tê-lo ligado a uma doença... essa é que é a maior chatice".
O Dr. Corino era diferente, não era?
(Corino de Andrade nasceu no dia 10 de Junho de 1906 e morreu seis dias depois de ter completado 99 anos. Escrevi e publiquei este texto a 7 de Julho de 2011; republiquei-o a 5 de Abril de 2012.)
sábado, 8 de junho de 2013
José Gomes Ferreira
Panfleto contra a paisagem/X
(Futuro: este poema foi cortado pela Censura
na revista "Vértice" de Coimbra. Acontecia isto no
tempo do tiranete Salazar)
Apaga-te, lua!
- lâmpada dos lírios e dos cães.
Não finjas de alma
esta realidade violenta
que me dói até às raízes.
Não pintes de mistério
estas bocas de fome
onde só há metafísicas de pão negro.
Não abras asas
na planície das pedras
de fogo apodrecido.
Apaga-te lua!
Peço-te que te apagues!
Para os tímidos poderem amar-se à vontade na sombra sem olhos,
para os humilhados de botas rotas cantarem serenatas às castelãs de carne invisível,
para as feias se entregarem nuas e abertas ao sexo da noite,
para os trémulos morrerem heróicos em barricadas de imaginação,
para os famintos devorarem com volúpia de vergonha o pão verde dos caixotes,
para os cegos dizerem: "Não vemos porque não há luar!",
para os mendigos sonharem em voz alta que são reis a arrastar mantos negros,
para os escorraçados saírem dos canos lôbregos,
e forrarem o mundo de luz própria como as estrelas,
para os ladrões velhinhos arrombarem as caixas das esmolas
onde só os pobres deitaram moedas falsas,
para os visionários mergulharem as mãos na noite
em busca de outra lua sem vincos de caveira,
para as mães das caves convencerem os filhos: "Moramos num palácio às escuras"...
Ouviste, lua?
Apaga-te!
- lâmpada dos cães e dos poetas magros.
José Gomes Ferreira
(José Gomes Ferreira nasceu no dia 9 de Junho de 1900. Morreu em 1985.)
(Futuro: este poema foi cortado pela Censura
na revista "Vértice" de Coimbra. Acontecia isto no
tempo do tiranete Salazar)
Apaga-te, lua!
- lâmpada dos lírios e dos cães.
Não finjas de alma
esta realidade violenta
que me dói até às raízes.
Não pintes de mistério
estas bocas de fome
onde só há metafísicas de pão negro.
Não abras asas
na planície das pedras
de fogo apodrecido.
Apaga-te lua!
Peço-te que te apagues!
Para os tímidos poderem amar-se à vontade na sombra sem olhos,
para os humilhados de botas rotas cantarem serenatas às castelãs de carne invisível,
para as feias se entregarem nuas e abertas ao sexo da noite,
para os trémulos morrerem heróicos em barricadas de imaginação,
para os famintos devorarem com volúpia de vergonha o pão verde dos caixotes,
para os cegos dizerem: "Não vemos porque não há luar!",
para os mendigos sonharem em voz alta que são reis a arrastar mantos negros,
para os escorraçados saírem dos canos lôbregos,
e forrarem o mundo de luz própria como as estrelas,
para os ladrões velhinhos arrombarem as caixas das esmolas
onde só os pobres deitaram moedas falsas,
para os visionários mergulharem as mãos na noite
em busca de outra lua sem vincos de caveira,
para as mães das caves convencerem os filhos: "Moramos num palácio às escuras"...
Ouviste, lua?
Apaga-te!
- lâmpada dos cães e dos poetas magros.
José Gomes Ferreira
(José Gomes Ferreira nasceu no dia 9 de Junho de 1900. Morreu em 1985.)
sexta-feira, 7 de junho de 2013
quinta-feira, 6 de junho de 2013
Cachicha abaixo, cachicha acima
Não sei quem é esta rapaziada. Só se alguém me contasse de quem são filhos, se calhar de quem são netos, estão a ver?, mas isso não me interessa para nada. Quero dizer é: gosto desta coisa a que eles chamam "Blues à Fafe". Porque sim e por certas e determinadas razões. Boa malha!
P.S. - 1. Dei com o vídeo no Blog Montelongo. 2. A rapaziada chama-se ThePende. 3. "Cachicha" é - mais do que eventual regionalismo minhoto - um entranhado localismo fafense. E quer dizer, com toda a catromância e consoante a situação: "ui, que nojo!", "foda-se, tinha nojo!" ou, muito simplesmente, "borrava a minha cara com merda".
quarta-feira, 5 de junho de 2013
Gomes Leal
Pregões matinais
Passo às vezes na cama um dia inteiro
De papo para o ar, como um madraço...
Fumando qual filósofo ou palhaço,
- Sem mulher... sem cuidados... sem dinheiro!
É de manhã então que me é fagueiro
Ouvir trinar no cristalino espaço
Um pregão mais macio que um regaço,
Que se esvai a carpir... como um boieiro...
De manhã é que passa a leiteirinha,
Com seu pregão chilrado de andorinha,
Passam varinas de gargantas sãs...
E ao escutar tais cantantes semifusas,
Eu creio que oiço ao longe as frescas Musas,
- A vender uvas e a pregoar maçãs.
Gomes Leal
(Gomes Leal nasceu no dia 6 de Junho de 1848. Morreu em 1921.)
Passo às vezes na cama um dia inteiro
De papo para o ar, como um madraço...
Fumando qual filósofo ou palhaço,
- Sem mulher... sem cuidados... sem dinheiro!
É de manhã então que me é fagueiro
Ouvir trinar no cristalino espaço
Um pregão mais macio que um regaço,
Que se esvai a carpir... como um boieiro...
De manhã é que passa a leiteirinha,
Com seu pregão chilrado de andorinha,
Passam varinas de gargantas sãs...
E ao escutar tais cantantes semifusas,
Eu creio que oiço ao longe as frescas Musas,
- A vender uvas e a pregoar maçãs.
Gomes Leal
(Gomes Leal nasceu no dia 6 de Junho de 1848. Morreu em 1921.)
terça-feira, 4 de junho de 2013
Pedro Nava
A cozinha mineira, pouco abundante nos pratos de sal, que ficam nas variações em torno do porco, do toucinho, da couve, do feijão, do fubá e da farinha - é de uma riqueza extraordinária em matéria de sobrepastos. Hoje tudo mudou e minguou. Mas lembro-me bem da mesa de minha avó materna, em Juiz de Fora, onde a Inhá Luísa, da cabeceira, podia olhar a ponta dos meninos e das compoteiras, de que havia, ao jantar, umas quatro ou cinco repletas de doce. Menos, era penúria.
E que doces... Os de coco e todas as variedades, como a cocada preta e a cocada branca, a cocada ralada ou em fita, a açucarada no tacho, a seca ao sol. Baba-de-moça, quindim, pudim de coco. Compota de goiaba branca ou vermelha, como orelhas em calda. De pêssego maduro ou verde cujo caroço era como um espadarte no céu-da-boca. De abacaxi, cor de ouro; de figo, cor de musgo; de banana, cor de granada; de laranja, de cidra, de jaca, de ameixa, de marmelo, de manga, de cajá-mirim, jenipapo, turanja. De carambola, derramando estrelas nos pratos. De mamão maduro, de mamão verde - cortado em tiras ou passado na raspa. Tudo isto podia apresentar-se cristalizado - seco por fora, macio por dentro e tendo um núcleo de açúcar quase líquido.
Mais. Abóbora, batata roxa, batata doce em pasta vidrada ou pasta seca. Calda grossa de jamelão, amora, framboesa, araçá, abricó, pequiá, jaboticaba. Canjica de milho-verde tremendo como seio de moça e geléia de mocotó rebolando como bunda de negra. Mocotó batido, em espuma que se solidifica - para comer frio. Pamonha na palha - para comer quente, queimando os dedos. Melado. Tudo isto variando de casa para casa, segundo os segredos de suas donas e as invenções de suas negras - se desdobrando em outros pratos, se multiplicando em novos. Dos aristocráticos, com receitas pedindo logo de saída trinta e seis gemas, aos populares, como o cuscuz (só fubá, só açúcar, só vapor d'água e tempo certo) e como a "plasta" de São João del Rei (só fubá, só rapadura, só amendoim e ponto exato) - que tem esse nome pelo seu aspecto de bosta de boi, do emplastro que forma no tabuleiro quando cai da colher de pau.
E a abóbora da noite de São João? Era aberta por cima, esvaziada dos fiapos e caroços, cheia de rapadura partida, novamente tampada, embrulhada em folhas de bananeira e enterrada a dois palmos de fundo, debaixo das grandes fogueiras. Aí ficava duas, três horas e quando saía dessa moqueada, tinha cheiro de cana queimada e gosto ainda mais profundo que o das castanhas. Comia-se no fim das festas de junho bebendo crambambali e cantando até cair ao pé das brasas que morriam. O crambambali é bebida sagrada - um quentão legitimamente centro de Minas. A receita? Uma travessa cheia de pinga, rodelas de limão, lascas de canela e rapadura. Toca-se fogo na cachaça e deixa-se esquentar bastante. Apagar, coar e servir em canequinhas de gomo de bambu.
"Baú de Ossos", Pedro Nava
(Pedro Nava nasceu no dia 5 de Junho de 1903. Morreu em 1984.)
Angola toma conta do JN, do DN e da TSF
Parece que Joaquim Oliveira vendeu os jornais a Angola. E depois? Qual é o escândalo? O que é que Portugal perde com a passagem do Jornal de Notícias e do buraco do Diário de Notícias para as mãos de um grupo angolano? Perde independência? Isenção? Credibilidade? Transparência? Rigor? Qualidade? Profissionalismo? Competência? Seriedade? Memória? Deontologia? Dignidade? Referência? Jornalismo? Não se perde o que não há. Talvez se percam empregos. Mas estou em condições de assegurar que isso já aconteceu outras vezes, mesmo antes da chegada dos angolanos.
Uma vez, o estado-maior da Controlinveste descia no elevador do Edifício JN do Porto e eu também. Entrei a meio caminho para ir a casa comer a sopa. Era ir num pé e vir no outro. Disse boa tarde, mas ninguém me ligou. Aquela gente não ouve, não vê nem pensa para além do umbigo de cada qual. Iam todos entretidos na galhofa, preparando mais uma leva de despedimentos. A maior de todas. Eram os filhos do Joaquim, acolitados por um ou dois administradores anónimos limitados e pelo director de publicações, João Marcelino. E era exactamente Marcelino o animador de serviço, exibindo a capa do Diário de Notícias daquele dia. Dizia o também director do DN - "O que é preciso é isto: mete-se aqui este vermelhinho e está o assunto resolvido, é só vender".
João Marcelino referia-se à foto do Benfica que dominava a primeira página do DN. E (deixemo-nos de hipocrisias) não estava a dizer nenhuma asneira. Haja Benfica! O Diário de Notícias tem finalmente quem o compre.
(Texto escrito e publicado em 19 de Outubro de 2012, então sob o título O que é preciso é Benfica. Confirma-se.)
Uma vez, o estado-maior da Controlinveste descia no elevador do Edifício JN do Porto e eu também. Entrei a meio caminho para ir a casa comer a sopa. Era ir num pé e vir no outro. Disse boa tarde, mas ninguém me ligou. Aquela gente não ouve, não vê nem pensa para além do umbigo de cada qual. Iam todos entretidos na galhofa, preparando mais uma leva de despedimentos. A maior de todas. Eram os filhos do Joaquim, acolitados por um ou dois administradores anónimos limitados e pelo director de publicações, João Marcelino. E era exactamente Marcelino o animador de serviço, exibindo a capa do Diário de Notícias daquele dia. Dizia o também director do DN - "O que é preciso é isto: mete-se aqui este vermelhinho e está o assunto resolvido, é só vender".
João Marcelino referia-se à foto do Benfica que dominava a primeira página do DN. E (deixemo-nos de hipocrisias) não estava a dizer nenhuma asneira. Haja Benfica! O Diário de Notícias tem finalmente quem o compre.
(Texto escrito e publicado em 19 de Outubro de 2012, então sob o título O que é preciso é Benfica. Confirma-se.)
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segunda-feira, 3 de junho de 2013
Feira Mostra de Paredes de Coura
No próximo fim de semana - 7, 8 e 9 de Junho -, vigésima edição da Feira Mostra de Produtos Regionais do Alto Minho, no centro da vila de Paredes de Coura. Ver programa aqui.
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José Lins do Rego
A velha Sinhazinha não gostava de ninguém. Tinha umas preferências temporárias por certas pessoas a quem passava a fazer gentilezas com presentes e generosidades. Isto somente para fazer raiva aos outros. Depois mudava. E vivia assim, de uns para outros, sem que ninguém gostasse dela e sem gostar direito de ninguém. De mim nunca se aproximou. E eu mesmo fugia, sempre que podia, da sua proximidade. Mas a propósito de nada, lá vinha com beliscões e cocorotes. Trancava na despensa as frutas, andava com a chave do guarda-comidas no cós da saia, para contrariar as nossas gulodices e fazer raiva à gente adulta da casa. A tia Maria roubava para nós os sapotis e as mangas que a velha deixava em montão apodrecer.
O meu ódio por ela crescia dia a dia. Numa ocasião, quando eu jogava o pião na calçada, o brinquedo foi cair em cima do seu pé. A velha levantou-se como uma fúria direita a mim, e com o seu chinelo de couro encheu-me o corpo de palmadas terríveis. Bateu-me como se desse num cachorro, trincando os dentes de raiva. E se não fosse a tia Maria, que me acudiu, ela ter-me-ia despedaçado. Eu nunca tinha apanhado. Minha mãe, quando queria repreender-me por qualquer malfeito, punha-me de castigo em pé ou sentado num lugar. Esta surra fora a primeira da minha vida. Chorei como um desenganado a tarde inteira, mais de vergonha que pelas pancadas. Não houve agrado que me fizesse calar. E quando a negra Luísa, passando, me disse baixinho: "Ela só faz isto porque você não tem mãe", parece que a minha dor chegou ao extremo, porque foi quando chorei de verdade.
O meu ódio por ela crescia dia a dia. Numa ocasião, quando eu jogava o pião na calçada, o brinquedo foi cair em cima do seu pé. A velha levantou-se como uma fúria direita a mim, e com o seu chinelo de couro encheu-me o corpo de palmadas terríveis. Bateu-me como se desse num cachorro, trincando os dentes de raiva. E se não fosse a tia Maria, que me acudiu, ela ter-me-ia despedaçado. Eu nunca tinha apanhado. Minha mãe, quando queria repreender-me por qualquer malfeito, punha-me de castigo em pé ou sentado num lugar. Esta surra fora a primeira da minha vida. Chorei como um desenganado a tarde inteira, mais de vergonha que pelas pancadas. Não houve agrado que me fizesse calar. E quando a negra Luísa, passando, me disse baixinho: "Ela só faz isto porque você não tem mãe", parece que a minha dor chegou ao extremo, porque foi quando chorei de verdade.
"Menino de Engenho", José Lins do Rego
(José Lins do Rego nasceu no dia 3 de Junho de 1901. Morreu em 1957.)
domingo, 2 de junho de 2013
O homem e o cão (e vice-versa)
Todas as manhãs o homem e o cão passeiam pela praia, naquela incerta linha de sobe e desce onde o mar enrola na areia e acaba Portugal. Par pândego, haviam de ver. O homem atira a bola de ténis e o cão, dez-réis de cão, rasteirinho e de raça que não sei, corre e salta, como uma bala, como uma mola, abocanhando-a, à bola, ainda no ar. Cão danado para a brincadeira. E habilidoso. "Bem, muito bem, espectáculo", diz o homem. E o cão regressa e larga a bola, e corre e salta à volta do homem, e ladra no verdadeiro ladrar que não morde, e abana o rabo, abana, que quer dizer "Obrigado, estou muito contente, mais, quero mais", e põe a língua de fora, que quer dizer "Ainda havemos de fazer isto ao contrário".
Um quadro enternecedor. Homem e cão, numa simbiose perfeita. O amigo dos animais e o melhor amigo do homem. Fossem eles polícias, o homem e o cão da bola de ténis, e estaríamos na presença de um binómio exemplar e definitivo. Decerto já viram nas notícias: binómio é um polícia e um cão que são colegas de trabalho. Já um carteiro e um cão são um perónio. Um perónio partido e o fundilho das calças esgaçado.
Todas as manhãs, portanto. Eu também por ali ando comigo pela trela e por isso é que sei o que estou a contar. Ontem desatei a rir com o raio do cão, que realmente tem jeito, parece do circo o lingrinhas. (Não é que isto interesse, mas fez-me lembrar o Kelvin, o outro brinca-na-areia, e se calhar por isso é que me ri). Entre uma acrobacia e outra, o cão tendia a enfiar-se na água, coisa de cão certamente, e o homem dizia "Sai daí, Rex, anda cá, Rex, já vais levar, Rex", nem de propósito Rex, eu seja cão se estou a inventar. O homem, que tomara nota do meu riso, resolveu pôr-me ao corrente, "É todos os dias a mesma merda, ele gosta, o caralho do cão mete-se no mar e eu depois é que tenho de lhe dar banho, secar e escovar, trabalho filho da puta, olha, lá vai ele outra vez, ó corno!, fode-me sempre..."
O cão resolveu apanhar a última, mas sem boca. Estava-se a armar para mim. Dominou a bola com o peito e, sem deixar cair, rematou em grande estilo e foi golo, palavra de honra que foi golo. Depois colocou o açaime ao homem e levou-o para casa.
Um quadro enternecedor. Homem e cão, numa simbiose perfeita. O amigo dos animais e o melhor amigo do homem. Fossem eles polícias, o homem e o cão da bola de ténis, e estaríamos na presença de um binómio exemplar e definitivo. Decerto já viram nas notícias: binómio é um polícia e um cão que são colegas de trabalho. Já um carteiro e um cão são um perónio. Um perónio partido e o fundilho das calças esgaçado.
Todas as manhãs, portanto. Eu também por ali ando comigo pela trela e por isso é que sei o que estou a contar. Ontem desatei a rir com o raio do cão, que realmente tem jeito, parece do circo o lingrinhas. (Não é que isto interesse, mas fez-me lembrar o Kelvin, o outro brinca-na-areia, e se calhar por isso é que me ri). Entre uma acrobacia e outra, o cão tendia a enfiar-se na água, coisa de cão certamente, e o homem dizia "Sai daí, Rex, anda cá, Rex, já vais levar, Rex", nem de propósito Rex, eu seja cão se estou a inventar. O homem, que tomara nota do meu riso, resolveu pôr-me ao corrente, "É todos os dias a mesma merda, ele gosta, o caralho do cão mete-se no mar e eu depois é que tenho de lhe dar banho, secar e escovar, trabalho filho da puta, olha, lá vai ele outra vez, ó corno!, fode-me sempre..."
O cão resolveu apanhar a última, mas sem boca. Estava-se a armar para mim. Dominou a bola com o peito e, sem deixar cair, rematou em grande estilo e foi golo, palavra de honra que foi golo. Depois colocou o açaime ao homem e levou-o para casa.
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