segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A problemática da telha. De vidro.

                                                                                        Foto Hernâni Von Doellinger

Na minha terra, telha diz-se têlha. Sou de Fafe. Na terra onde moro, que também é minha por usucapião, telha diz-se telha. Moro em Matosinhos e gosto. A doutora Edite Estrela, quando tinha a televisiva mania da gramática, chamava talha à telha e eu não gostava. Mas compreende-se a confusão linguística que lhe enrodilha a cabeça: a senhora nasceu em Carrazeda de Ansiães, foi presidente da Câmara de Sintra e, diz ela, é actualmente a "deputada mais famosa do Parlamento Europeu". O Parlamento Europeu, não é que interesse mas aqui fica, tem sede ainda que tremida em Estrasburgo, França. Em França, telha diz-se, por exemplo, tuile. A França é muito famosa por causa do René Artois e da telha francesa.
Quer-se dizer: telha é efectivamente assunto vário, pano para mangas e com delicadas implicações internacionais. Uma verdadeira problemática, como dizemos os inteligentes de hoje em dia.

Ora portanto: a Câmara de Matosinhos decidiu dar mais cinco meses para as obras de requalificação da Casa de Chá de Siza Vieira. Cinco meses, porque não há telhas que sirvam. Vão decerto ser feitas de encomenda, e está bem. Não critico nem comento - quem sou eu para elaborar sobre telhas, iabadubidubidubidubidom, ou deliberações autárquicas que obviamente não alcanço? Registo apenas. Limito-me à concomitância da telhal problemática. Dão-nos música, que mais queremos?

Vida de cão 26

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 29 de dezembro de 2013

Augusto Fera

Voz do sangue

Eu sou fuso da mão que fia linho.
Eu sou corda da voz que diz oubisto.
Eu sou roupa de ver a Jasus Cristo.
Eu sou malga de sopas de bô binho.

Danço o vira que espana todo o Minho.
Amo a tia que talha do ar ao quisto.
Bufo ao resto de cântaro com misto
De ervas e sal ardendo em chão maninho.

Eu mesmo acendo rama de oliveira
Quando Jesus me ralha no trovão
Que sobre as minhas telhas tumultua.

Se eu for a sepultar na Cumieira,
Gostava que descessem o caixão
Até ficar mesmo ao nível da rua.

"Cruz de Chumbo e Outros Poemas", Augusto Fera

(Augusto Ferreira, que usava o pseudónimo literário de Augusto Fera, nasceu no dia 29 de Dezembro de 1939. Morreu em 2012.)

Gaivotas agudas porém analfabetas

Foto Hernâni Von Doellinger

Alves Redol

Não era por seu gosto que o funeral se encaminhava para o cemitério de Aldebarã. Nem todos os mortos merecem a mesma sepultura, essa é que é a verdade, por muito que doa aos vivos. Na morte não somos não, não somos todos iguais. Nem sequer perante Deus, tinha a certeza. Se Deus não dorme...
A terra daquele cemitério era sua, como a aldeia e tudo o que lhe ficava à volta. E ali era ele quem mandava, não precisara de o lembrar à filha. Já marcara o lugar para o genro - seria metido num dos jazigos da família, no dos aparentados ao pé das mulheres, das crianças e dos homens; de certos homens que disso pouco mais tinham do que o corpo. De cova aberta no chão, bem funda, só os que davam à terra o que ela merecia. Tradição herdada do avô, não seria ele quem iria traí-la, porque ali estava, sozinho podia dizê-lo, desde os quinze anos, de dentes cerrados e corpo jogado para diante na mesma luta sem quartel.
Sabia que lhe cumpria vencer; não desconhecia os inimigos, mas sentia os pés firmes no chão que pisava. Tinha de os pôr firmes, bem assentes: Ah! sim, abdicara de muita coisa que um jovem pode desejar quando lhe levam o pão à boca! Arcara com horas terríveis e amargas, bebera muitas lágrimas, sem deixar verter uma só, desde o dia em que o pai entrara ao portão da quinta, pronto a morrer, às costas do Manel Fandango, sem queixa que se lhe ouvisse do corpo esfrangalhado.
Matara-o uma égua de pêlo-rato, desenfreada, ao atirar com ele de encontro a uma oliveira, na fúria dum galope. Exactamente em Janeiro, a 13 de Janeiro, às cinco e vinte e cinco da tarde. Há vinte e nove anos que era ele, pois, o chefe da casa. E, enquanto assim fosse, naquele talhão mais alto do cemitério, donde se viam chãs aleziriadas e a veia do Tejo, só entrariam patrões e criados, sem distinção de coval, quando o quinhão oferecido por eles à terra merecesse que esta os guardasse. Esses, sim, ficariam todos iguais na morte, quase de ombro com ombro no sossego eterno, em campa rasa. Menos de um palmo de terra a marcar, em lomba, a linha do esquife, uma cruz de madeira, uma legenda simples, mais aprimorada para o servo afeiçoado do que para o senhor. E os vivos que lhe dessem améns no coração.
"Essa é a única e boa maneira de o homem se alongar para além da morte", concluía Diogo Relvas, sempre que alguém lhe falava do panteão da casa.
Agora caminhava logo atrás da urna com o corpo de Rui Portela Araújo, seu genro. Seguia-a de cabeça erguida, quase arrogante, como se buscasse no céu, lá longe, algum sinal desejado para adivinhar o que se seguiria àquela semana trágica.
A corrida ao dinheiro prosseguia, alucinada. Lutava-se, a murro, por moedas de oiro à porta dos banqueiros ou por um lugar nas bichas das tesourarias. Todos queriam receber e ninguém pensava em pagar. Num golpe de melodrama, o Freitas dos Cereais - quem não conhecia o Freitinhas? - metera uma bala na cabeça, à porta do gabinete do director de certo banco que lhe recusara o pagamento dum cheque, por falta de numerário na caixa despejada. Fraco de sangue, embora até ali sobranceiro por causa dos seus interesses nos caminhos-de-ferro e na finança, o genro viera morrer-lhe a casa, numa fuga espantada, quando os depositantes fizeram a primeira corrida à caixa do banco de que era director e accionista. Graças a Deus, duas vezes graças, por ter exigido separação de bens em troca do consentimento para que a Emília Adelaide casasse aos dezassete anos. E agora aos vinte era viúva, uma menina ainda. Que mais lhe estaria guardado com dois filhos nascidos e outro no ventre? Poderia ele protegê-los?! Não diria dos azares da fortuna, mas das baldas de sangue dos Araújos, valdevinos e soberbos.
Era nisso que pensava agora.

"Barranco de Cegos", Alves Redol

(Alves Redol nasceu no dia 29 de Dezembro de 1911. Morreu em 1969.)

sábado, 28 de dezembro de 2013

Vida de cão 25

Foto Hernâni Von Doellinger

Inglês de Sousa

Fora bem reles a existência até aquela data - a data da carta - digna de ser marcada com uma pedra branca, como se marcam os dias felizes da vida, segundo ouvira ao professor Aníbal ao jantar de casamento do infeliz Joaquim Feliciano. Pai não conhecera, fora-lhe mãe uma lavadeira, tristemente ligada a um sargento do corpo policial de Manaus, desordeiro e bêbado. Macário crescera entre os repelões da mãe e as sovas formidáveis com que o mimoseava o sargento para se vingar do marinheiro da taverna, farto de lhe fiar a pinga. Poucas vezes conseguira satisfazer a fome, senão graças à generosidade de algum freguês em cuja casa entrava a serviço de condução da roupa lavada; porque na casinha da lavadeira o pirarucu era pouco e mau, a farinha rara, os frutos luxo dos ricos, o pão extravagância de fidalgos de apetite gasto ou de doutores barrigudos e vadios. O estômago do rapaz era exigente, afeiçoara-se facilmente às gulodices das casas abastadas, onde entrava de cesto à cabeça, lançando compridos olhos para a mesa de jantar ou para o armário dos doces, até a senhora, entre um credo! e duas cruzes! tinhoso! lhe mandar dar alguma coisa, para que não aguasse a comida. O duplo tormento da fome e das pancadas exasperava o Macário, mas, à falta de energia, não lhe dava mais remédios do que suspiros, gritos e lágrimas. A sua devota Nossa Senhora do Carmo veio, porém, em seu auxílio.
Uma tarde, a mãe, ocupada em conter os ímpetos destruidores do amante, fatais à louça e à mobília, mandara-o levar um cesto de roupa lavada ao Seminário, e cobrar a conta do senhor reitor.
Nesse dia, a bebedeira do sargento ameaçara trovoada grossa, e ao jantar das duas horas faltara a farinha d’água, e o pirarucu fora comido triste e só, sem gosto e às carreiras.
Macário, faminto e assustado, batera à porta do Seminário, uma grande casa séria e limpa, cheia de janelas com vidraças e de meninos alegres, brincando o esconde-esconde no vasto quintal inculto; e esse espetáculo aumentara-lhe a tristeza, ao ponto de o fazer chorar.

"O Missionário", Inglês de Sousa

(Inglês de Sousa nasceu no dia 28 de Dezembro de 1853. Morreu em 1918.)

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

As Turicas e as Grilas, as minhas velhas senhoras

Eu também fui preso antes do 25 de Abril. Sim, no meu tempo de estudante, em pleno turbilhão da crise académica de 1969. Andava na quinta classe e ia para a Escola da Feira Velha quando fui detido pelo polícia, preso pelo cachaço. E o crime? Achei um bocado de giz no chão e escrevi "Senhoras Donas Grilas" na parede da casa das Grilas propriamente ditas. Há horas do diabo e o cívico estava lá, pontual e flagrante, mesmo atrás das minhas costas. Apanhei um susto que ainda hoje tremo. E digo isto sem peneiras: ia-me borrando todo.
A história precisa de ser melhor contada, não precisa? Vamos lá então ver se sei. E por partes.

Primeiro, para que nos situemos, é essencial não confundir as Grilas com as Turicas, erro crasso e muito comum entre os especialistas. As Grilas eram mesmo ao lado do prédio do Café Chinês, que então se construía. Irmãs, velhas no meu critério de criança, solteironas, desgrenhadas, professoras e misteriosas. Raramente vistas na rua, espreitavam apenas à porta, que tinha um portão baixinho em ferro forjado, e quando meteram o telefone em casa ligaram ao meu avô a perguntar se o telefone dos Bombeiros "também tocava em português" como o delas. Eu morava ali à beira, no Santo, e as senhoras até gostavam de mim. Mesmo depois da tratantada, que felizmente nunca lhes chegou aos ouvidos. Sabiam que eu era filho da "viúva da Bomba" e isso valia muito. Quando eu passava, as Grilas diziam-me sempre qualquer coisa simpática, só com a guedelha grisalha e o nariz de fora, e uma vez deram-me um santinho. Obviamente não mereciam a traição que lhes fiz.
Isto as Grilas. Agora as Turicas, na mesma Rua Monsenhor Vieira de Castro e do mesmo lado, mas depois do cruzamento dos tascos do Paredes e do Zé Manco, nem 50 metros de distância entre umas e outras, e daí a lamentável confusão. As Turicas eram também irmãs. Pequeninas e idosas, resmungonas e prendadas para os mais delicados lavores, faziam renda de bilros sentadas num banquinho junto às portadas que davam para a rua. Tinham uma loja mais antiga do que elas e que cheirava a um mofo muito bom. Vendiam botões e tafetás, fitas de nastro, fechos, linhas, lãs, chitas, agulhas e flanelas. Vendiam também vinho ao garrafão nas traseiras do estabelecimento. As boas senhoras tinham uma "criadita" que abria a porta a quem ia comprar vinho. E a miúda tinha umas mamas. A minha mãe mandou-me ao vinho e eu pedi à rapariga se me deixava apalpar-lhe as mamas. Ela não deixou e eu apalpei. As mamas eram de papel e foi um desgosto.

Que se segue: o prédio do Café Chinês estava a ser construído e as Grilas, que já lá moravam resvés, queixavam-se das obras e dos operários. Queixavam-se do barulho e da insegurança, de tudo e de nada. Barafustavam que a casa ia abaixo. Era berraria o dia inteiro, guinchos de um lado e palavrões do outro, que até foi preciso chamar a Polícia. A Polícia veio e ficou. Dias e dias. Um agente sempre a rondar e a deitar os olhos ao conflito durante as horas de expediente, não fosse a coisa passar a vias de facto.
Ora, foi exactamente o desprezo por este pequeno pormenor que me tramou. Quando o toco de giz me apareceu aos pés a tentar-me e eu não resisti a apanhá-lo e a sarrabiscar "Senhoras Donas Grilas" na parede das ditas, palavras não eram escritas e já estava a ser levantado por um potente garibalde (cá está) que me agarrou em tenaz pelo cachaço e perguntou - O que é que o senhor está a fazer?
Olhei para trás e o garibalde era um polícia. O senhor era eu mais os meus onze anos, o que me fez desconfiar que estava metido em caso sério. Com o giz na mão e a última perninha do "s" final ainda a fumegar, respondi - Nada.
Ainda hoje acho que respondi com grande categoria.
E o polícia - Onde é que o senhor mora? E eu, que não queria a minha mãe metida na ocorrência, até porque era melhor para mim - Moro longe. E ele - Então, vamos para a esquadra.
(Para a esquadra? Mais polícias? Isso é que não me dá jeito, pensei, rápido como um fósforo, derivado ao que se ouvia dizer. Porque a Polícia daquele tempo.... bem, a Polícia daquele tempo vestia uma farda de terilene cinzento, que era a cor da Autoridade e do País. Os carteiros também vestiam de cinzento, mas em cotim. A outra diferença é que os carteiros eram nossos amigos.)
E eu - Enganei-me, senhor polícia, desculpe, moro já aqui no Santo.
O polícia deixou-me finalmente aterrar, empurrou-me para casa, ainda com a tenaz no meu cachaço, o João do Zé Manco viu, veio a correr acudir por mim e foi à frente avisar a minha mãe de que eu não tinha feito mal nenhum. Fiquei a dever uma ao João. Dessa vez a minha mãe não me bateu. E ainda agora me diz que, para além da cunha do João, levou em devida conta o facto de eu ter escrito "Senhoras Donas Grilas" e não "Grilas" simplesmente. Para a minha mãe, respeito e educação acima de tudo.
Fui condenado a limpar a parede com um pano molhado, cumpri pena e segui para a escola, de coração a mil e tremente como varas verdes. As varas verdes eram também uma especialidade da minha mãe. Livrei-me de boa.

(Texto escrito e publicado no dia 20 de Fevereiro de 2013, então com o título "Fui preso por causa das Grilas". Conto falar qualquer dia das minhas duas Milinhas: a extraordinária Milinha Vaqueiro e a querida Milinha Modista.)

Pescador crepuscular

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Filinto Elísio

Nasci - logo a meus pais custou dinheiro

Nasci - logo a meus pais custou dinheiro
o baptismo, que Deus nos dá de graça.
Tive uso de razão - perdi a graça -
dei-me ao rol - chegou a Páscoa - dei dinheiro.

Quis casar com uma moça - mais dinheiro.
Brinquei com ela - não brinquei de graça:
que aos nove meses me custou a graça
para o Mergulhador capa e dinheiro.

Morreu minha mulher - não lhe achei graça
e menos graça no arbitral dinheiro
da oferta; que o prior não vai de graça.

Se o ser cristão requer sempre dinheiro,
como cumprem com dar graças de graça
os que as graças nos vendem por dinheiro?

"Obras Completas", Filinto Elísio

(Francisco Manuel do Nascimento, que usava o pseudónimo de Filinto Elísio, nasceu no dia 23 de Dezembro de 1734. Morreu em 1819.)

Vida de cão 24

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 22 de dezembro de 2013

Álvaro Cunqueiro

A dama que ía no branco cabalo

A dama que ía no branco cabalo
levaba un pano de seda bordado
Na verde fror
as letras van de amor!

O cabaleiro do cabalo negro
levaba unha fita colléndolle o pelo
Na verde fror
as letras van de amor!

No meio do río cambiaron as vistas,
el para o pano i ela prá fita.
Na verde fror
as letras van de amor!

As vistas lles viron no río cambiar
e o pano e a fita por se namorar.
Na verde fror
as letras van de amor:
Con amor vivirás!


"Dona do Corpo Delgado", Álvaro Cunqueiro

(Álvaro Cunqueiro nasceu no dia 22 de Dezembro de 1911. Morreu em 1981.)

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Alexandre O'Neill

A história da moral

Você tem-me cavalgado,
seu safado!
Você tem-me cavalgado,
mas nem por isso me pôs 
a pensar como você.

Que uma coisa pensa o cavalo;
outra quem está a montá-lo.

"De Ombro na Ombreira", Alexandre O'Neill

(Alexandre O'Neill nasceu no dia 19 de Dezembro de 1924. Morreu em 1986.)

Lugares-comuns 121

                                                                                      Foto Hernâni Von Doellinger

Vitorino Nemésio

Retrato

Cruel como os Assírios,
Lânguido como os Persas,
Entre estrelas e círios
Cristão só nas conversas.

Árabe no sossego,
Africano no ardor;
No corpo, Grego, Grego!
Homem, seja onde for.

Romano na ambição,
Oriental no ardil
Latino na paixão,
Europeu por subtil:

Homem sou, homem só
(Pascal: "nem anjo nem bruto"):
Cristãmente, do pó
Me levante impoluto.

"Nem Toda a Noite a Vida", Vitorino Nemésio

(Vitorino Nemésio nasceu no dia 19 de Dezembro de 1901. Morreu em 1978.)

Vida de cão 23

                                                              Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Uma língua que apodrece

"A minha pátria é a língua portuguesa", escreveu o nosso Fernando Pessoa. "A Pátria não é a raça, não é o meio, não é o conjunto dos aparelhos econômicos e políticos: é o idioma criado ou herdado pelo povo. Um povo só começa a perder a sua independência, a sua existência autônoma, quando começa a perder o amor do idioma natal. A morte de uma nação começa pelo apodrecimento da língua", escreveu Olavo Bilac, o brasileiro.
Bilac (1865-1918) e Pessoa (1888-1935). Não quero saber aqui quem é ovo ou quem é galinha, nem me interessa de momento o acordo ortográfico como assunto. Lembrei-me foi dos professores doutores da mula ruça, traidores à pátria, que enchem a boca de "periúdos", de "interésses", de "rúbricas", de "perzeveranças", de "mediúcres". Enchem a boca e apodrecem a língua. Apodrecem a língua e matam a nação.

Lugares-comuns 120

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Afrânio Peixoto

Pétala caída

Pétala caída
Que torna de novo ao ramo:
Uma borboleta!


"Missangas - Poesia e Folklore", Afrânio Peixoto

(Afrânio Peixoto nasceu no dia 17 de Dezembro de 1876. Morreu em 1947.)

O meu Minho 18

Foto Hernâni Von Doellinger

Erico Veríssimo

Pouco antes das nove horas dessa mesma manhã alguns automóveis pararam à frente do cemitério e deles apearam as autoridades municipais e uma meia dúzia de homens desses em geral designados pelos jornais como "pessoas gradas". Tanto as autoridades como os médicos do departamento de higiene local tinham as cabeças cobertas por máscaras contra gases lacrimogêneos. Aproximaram-se dos sete caixões e examinaram os defuntos, um a um. O Mendes - facilmente reconhecível pela sua altura, apesar da máscara, tomava notas numa caderneta. Os médicos fizeram um exame perfunctório nos cadáveres, reconfirmaram-lhes os óbitos, e ordenaram fossem todos sepultados sem tardança.
Postos ao corrente dos últimos acontecimentos, as quatro filhas e os quatro genros de Quitéria Campolargo haviam chegado a tempo para a cerimônia do sepultamento da anciã. Não houve discursos. O Pe. Gerôncio sussurrou uma breve oração ao pé do féretro. Os familiares da defunta receberam novos abraços de pêsames à frente do suntuoso mausoléu de mármore dos Campolargos. Um amigo da família - sujeito proverbialmente curioso - chamou à parte o genro veterinário e, numa espécie de corredor entre dois túmulos de alvenaria, manteve com ele um breve diálogo:
- É verdade mesmo, nosso amigo, que D. Quitéria atirou as suas mais belas jóias no vaso sanitário e puxou a corrente?
- É verdade - confirmou o genro - mas por sorte nossa o cano entupiu e conseguimos recuperar o broche, o colar, os brincos e a pulseira. Infelizmente perdemos o anel com o solitário...
- Logo a jóia de maior valor! - lamentou o amigo da família, sacudindo a cabeça, penalizado. - E dizer-se que essa preciosidade se foi Uruguai abaixo, misturada com todas as porcarias da população de Antares. ... É uma ironia da sorte.
- O que é que vai se fazer? - suspirou o veterinário.
- Mas não perca a esperança, meu caro. Deus é grande. Contrate um escafandrista para mergulhar perto dos canos de despejo da cidade. A jóia é pesada, pode ter ficado cravada na areia do fundo do rio. Pense nisso. Contrate um escafandrista e confie na Providência Divina.

"Incidente em Antares", Erico Veríssimo

(Erico Veríssimo nasceu no dia 17 de Dezembro de 1905. Morreu em 1975.)

Vida de cão 22

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Olavo Bilac

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto…


E conversamos toda a noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.


Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"


E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."


"Via Láctea", Olavo Bilac

(Olavo Bilac nasceu no dia 16 de Dezembro de 1865. Morreu em 1918.)

A ver navios 14

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 15 de dezembro de 2013

Selfie, a palavra do ano

Quitério tinha dez anos quando fez a sua primeira selfie. Gostou. Depois foi à igreja e confessou-se.

Estádio do mar

Foto Hernâni Von Doellinger

Mais vale mal acompanhado

Serafim d'Eiteiro tinha uma loja de fazendas em Cima da Arcada, por baixo do Club, e era homem de voz grave e piada fina. Frequentava a sala das traseiras do Peludo, onde, após almoço, se jogavam umas bilharadas iglantónicas. Aquilo era coisa constada, só para artistas diplomados e até metia apostas a dinheiro, reunindo sempre uma pequena multidão de espectadores dados ao palpite e a gozar o parceiro. Em Fafe era assim.
E uma vez foi de mais. Eu era puto e estava lá. Um dos jogadores, desgraçadamente em dia não e alvo único e reiterado da chacota geral, perdeu de repente as estribeiras e, varando com os olhos a plateia ali à roda, atirou, cheio de raiva e perdigotos: Ide todos para o caralho! Todos...
Mas nisto encarou o respeitável comerciante, pessoa de outra idade e estatuto, e resolveu abrir uma honrosa excepção: Todos, não. Faz favor de desculpar, senhor Serafim, não é para si - corrigiu o bilharista azarado e despeitado porém atencioso, botando giz no taco.
Sentado logo à entrada depois do degrau, no canto por baixo do velho rádio dos relatos domingueiros, Serafim d'Eiteiro disfarçou um sorriso maroto atrás do fumo do cigarro sem filtro e respondeu naquela maneira vagarenta de falar que dava ares de sabedoria - Muito obrigado pela deferência, mas aqui sozinho é que não fico. Se o amigo não leva a mal, eu também vou.

O ministro dos Negócios Estrangeiros foi à Alemanha dizer que está "muito orgulhoso" com a "postura dos portugueses" perante a crise. Um elogio que, naquela boca, é um insulto. E eu estou como o Serafim d'Eiteiro. Não quero que Paulo Portas tenha orgulho em mim. Dispenso. Não aceito a consideração de Portas. A falsa consideração de Portas, jogador da política, incomoda-me, faz-me comichão, deve ser do giz. Recuso a deferência. E, se estou lá, exijo ser imediatamente retirado da lista dos portugueses com postura deste ministro impostor.

(Texto escrito e publicado no dia 19 de Setembro de 2012, por toleima política. Tinha o título de "Desarrisquem-me da lista do Portas". Mas façam-me o favor: desleiam o último parágrafo, o Portas não merece, o Portas não interessa para nada. O senhor Serafim d' Eiteiro é que sim, merece e interessa. Por isso torno a ele. A história é verdadeira, uma de muitas do figurão. O apelido "d'Eiteiro" seria uma corruptela de "do Outeiro". Lugar do Outeiro, Antime, donde creio que era este ilustríssimo fafense. Serafim do Outeiro igual a Serafim d'Eiteiro, assim terá decidido o povo, na sua indesmentível sabedoria.)

Também está bem

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 14 de dezembro de 2013

Quando o Sporting deu 7-1 ao Benfica

Catorze de Dezembro de 1986. Há 27 anos, em Alvalade o velho, num épico jogo de futebol: Sporting 7 - Benfica 1. Ainda hoje há quem garanta que, a haver um vencedor, era o Benfica.

Quero denunciar o meu pai


Quero fazer uma denúncia: o meu pai era benfiquista e morreu quando eu tinha 10 anos. Estão a ver a peça? Não sei se a Felícia Cabrita vai pegar no caso, mas justificava-se. Porque não se faz. Há que tempos que eu sou mais velho do que o meu pai, e acho mal. E o meu pai ainda me faz falta e tenho essa razão de queixa. E às vezes sinto-me órfão e já não tenho idade para isso. Na minha ideia, a Polícia Judiciária também devia fazer alguma coisa.
O meu pai era portanto benfiquista e penso que só isso é mais do que suficiente para abrir um processo. Era benfiquista e levava-me a ver os treinos do Fafe no Campo da Granja que também já não existe. Uma vez levou-me às Festas Gualterianas a Guimarães, fomos a um tasco e eu pedi-lhe para comer feijão com tripas, que nunca tinha provado, e gostei que eu sei lá. Se calhar por isso é que ainda hoje gosto tanto e faço tão bem. Outra vez trouxe-me de presente uma pistola Luger de brincar, pesada e igualzinha às dos nazis dos filmes, e gostei que eu sei lá. Não sei o que me deu na cabeça, mas cresci e não gosto de armas.
Para além de benfiquista - repito, benfiquista -, o meu pai era também novo, bonito e bom, mas suponho que isso não interesse para o processo, e era operário, músico, bombeiro e jogador de dominó. Contava-se que no dominó, jogado na mesa do canto direito para quem entrava na sala das traseiras do café Peludo, o meu pai até escondia pedras na boca para enganar parceiros e ganhar mais uns tostões para casa. Eu ia chamá-lo, bem ensaiado pela minha mãe para que ele não ficasse mal perante os amigos. "A mãe manda dizer que a comida está pronta", era o que eu dizia, uma e só uma vez, e ficava ao lado dele todo contente à espera.
É preciso que se note: o meu pai, também conhecido como Lando Bomba ou Lando da Bomba, não era só dominó. Nas festas onde a Banda de Revelhe ia tocar, o meu pai, que tocava saxofone, tinha também sociedade com o homem da roleta de feira, artesanal e viciada. Nos intervalos dos concertos, fartava-se de ganhar canivetes, cintos, saca-rolhas, tesouras, baralhos de cartas e gaitas de beiços. O meu pai era o engodo. "Mais uma para o senhor músico. Está em dia de sorte, o raisparta o músico!", gritava o homem da roleta, feitos um com o outro, a chamar o povo. No final, o meu pai devolvia tudo a troco de umas coroas ou de mais uma navalha para oferecer.
Calhava-me, de vez em quando, levar o almoço do meu pai à fábrica. Estando sol, o meu pai e outros operários comiam num terreno muito jeitoso para o efeito, a caminho do rio. Do Comporte. Sentávamo-nos numas pedras e eu adorava estar ali com o meu pai aquela meia hora. Era como se fosse um piquenique, mas eu ainda não conhecia a palavra.
O meu pai gostava muito de fazer rir a minha mãe e, de malandrice, lia-lhe o jornal metendo as expressões "pelo cu acima" e "pelo cu abaixo" entre as palavras das notícias. Se fosse hoje, ficava, por exemplo, assim: "Merkel, pelo cu acima, e Sarkozy, pelo cu abaixo, discutiram, pelo cu acima, propostas, pelo cu abaixo, para a cimeira, pelo cu acima, europeia, pelo cu abaixo". Eu e os meus irmãos, que arranjávamos sempre maneira de ouvir, escangalhávamo-nos a rir. A minha mãe repreendia o meu pai, tentava tirar-lhe o jornal das mãos, e nós ainda nos ríamos mais. Éramos pobres, mas tínhamos o riso. Éramos remediadamente felizes.
O meu pai foi para França e escrevia-nos cartas numa letra muito perfeitinha em papel quadriculado que nós líamos à nossa mãe. Nós também íamos para França, mas não tivemos tempo. O meu pai morreu, acredito que de saudades, numa véspera de Natal. No dia seguinte nasceu o Menino Jesus, disseram-me que de propósito para tomar conta na minha mãe, de mim e dos meus três irmãos. Que Deus me perdoe, mas o velhote, que nunca pôde ser, também nos teria dado um grande jeito.

(Texto escrito e publicado pela primeira vez no dia 6 de Dezembro de 2011)

Lugares-comuns 119

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

O pãozinho do Senhor

Foto Tarrenego!

Vi num programa de televisão, daqueles que temperam o turismo com gastronomia, que na Turquia há um respeito muito grande pelo pão. Um respeito tão grande que bocado que cai ao chão não vai para o lixo. É apanhado, guardado e comido na refeição seguinte. Não sei se é bem assim, mas foi assim contado. E eu gostei do que ouvi, falou-me à memória.
Desconheço que influências culturais trocaram entre si Portugal e o Império Otomano, e se essas influências foram tão longe que chegaram a Passos, Cabeceiras de Basto, à casa da minha avó. Sei é que foi neste fim de mundo que eu também aprendi a reverência pelo pão.
Na Casa do Carreiro comia-se na cozinha, à volta da lareira. Os adultos sentavam-se em compridos preguiceiros, apetrechados com uma conveniente tábua-mesa de levantar e baixar, e os miúdos ajeitávamo-nos em pequenos bancos de três pernas, os mochos, obra de carpintaria simples e doméstica. Os cães também tomavam posição, anorécticos involuntários, à espera dos ossos que não havia. Levavam espinhas de bacalhau de quarto e era um pau.
O chão da cozinha era mesmo chão, uma terra negra do fumo e da fuligem, dos anos de uso e das águas entornadas, que lhe davam uma consistência de cimento. Sim, as águas dos potes ferventes ou da banca de lavar louça (atenção, uma banca de madeira), quando já desnecessárias, eram ali mesmo esparramadas, voltando a reunir-se, acho que me estou a lembrar bem, numa espécie de rego que as levava finalmente até lá fora, até ao carreiro que dava o nome à casa. O chão da cozinha descaía para o lado do carreiro. E tudo ajudava à limpeza. Depois era só esperar que secasse um pouco e varrer com uma vassoura de giestas.
Era neste chão que eu às vezes deixava cair o meu naco de pão, quase sempre um bom pedaço de côdea, que era do que eu mais gostava. A minha avó, mansamente, para que o meu avô não se zangasse comigo, dizia apenas:
- Apanha o pão. É pãozinho do Senhor. Dá-lhe um beijinho e já o podes comer...
E eu beijava o pão e comia-o, com todo o respeito, como se estivesse na igreja a comungar.

Em Fafe, a minha mãe insistia nestes ensinamentos. Dizia-nos, a mim e aos meus irmãos, que o chão não sujava, que o beijo purificava, que não se podia estragar pão, era pecado, porque havia muita gente com fome. E se o pão ficava intragável e tinha mesmo que ir para o lixo, só depois de um beijinho de adeus, porque, exactamente, era pãozinho do Senhor.
Em minha casa também não se estraga pão, não se estraga nada. E, se se estraga, quem fica estragado sou eu.

Não sei de onde veio esta ideia antiga, se estará mesmo ligada à fé, à religiosidade popular, ao pão que é o corpo de Cristo. Acredito mais que era sobretudo a pobreza a defender-se, consciente da importância do pão na mesa, o pão que, ontem como hoje, era a única fartura, a última fronteira para a fome. O respeito pelo pão era o respeito pela fome. E ninguém respeita tanto a fome como os pobres.

(Texto escrito e publicado no dia 15 de Setembro de 2011)

Lugares-comuns 118

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

O Menino Jesus morreu sozinho. Tinha 84 anos.

Morreu o Menino Jesus. Tinha 84 anos. O corpo foi encontrado ontem, rodeado de solidão e lixo, na casa onde resolveu fechar-se ninguém sabe dizer-me há quanto tempo. As autoridades sanitárias, que não têm culpa do nome que lhes puseram nem da gramática que lhes deram, suspeitam que o óbito terá ocorrido há pelo menos cinco dias. Azar do caraças: dois dias a mais. Ao terceiro safou-se o Outro.
Estão a ver? Estão a ver aquele senhor esquisito e careca que vestia sempre um casaco de cabedal preto quase até aos pés, tipo Gestapo, Deus lhe perdoe, pasta na mão e calças zangadas com os sapatos? O que apanhava, em Nevogilde, o autocarro que vai do Castelo do Queijo até à Baixa? Estão a ver? Exactamente: era esse o Menino Jesus, que também ninguém sabe dizer-me porque se chamava assim, só se fosse por ser um bocado extraordinário como o Outro.
O Menino Jesus foi engenheiro e solteiro. Viveu sempre com a mãe, mas a mãe morreu antes dele e isso fez-lhe diferença. São tragédias a que raramente ligamos, porque, adultos como somos, achamos que as mães só fazem falta às criancinhas criancinhas, erro crasso. Quando passou a viver sozinho, há mais de vinte anos, o Menino Jesus preferiu desviver até ao fim. Ali mesmo, num dos largos mais ruralmente nobres da cidade do Porto, zona de ricos.
Sou pobre, mas passo lá quase todos os dias. Vi uma vez uma equipa da polícia a bater-lhe à porta. A PSP e a GNR andam a fazer um trabalho inestimável de identificação e encaminhamento dos idosos que moram sós e em risco. Acredito que têm salvo muitas vidas e só peço que se lembrem de mim se chegar a minha vez. Mas sei que a porta do Menino Jesus nunca se abriu.
O Menino Jesus morreu sozinho. E não devia. Não por ser Menino Jesus e "rico", mas porque ninguém deve morrer sozinho. Já basta o que basta. E tenho de confessar que não sei se o Menino Jesus tinha exactamente 84 anos. Os jornais de mais logo darão a idade certa do homem, porque às vezes falam verdade nas notícias pequenas. Ou então morreu apenas mais um octogenário.

(Texto escrito e publicado originalmente no dia 9 de Maio de 2012)

O cão, o mar e o golfista de praia

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Fim do Império no Porto

O jornalista Jaime Froufe Andrade vai amanhã à Messe de Oficiais do Porto, na Praça da Batalha, falar sobre o seu livro "Não sabes como vais morrer", histórias de guerra de um alferes ranger em Moçambique, contadas na primeira pessoa. A apresentação da obra serve de pretexto à tertúlia "Fim do Império no Porto", que começa pelas 15 horas.

Os pobres

Foto Hernâni Von Doellinger

Ser pobre é fodido. Mas, para quem não sabe o que é a pobreza, "pobre" é apenas título de jornal, cinco caracteres sem pessoas dentro. Pessoas de pele e osso. O Público diz que os "pobres passam a ter acesso a refeições take away em 950 cantinas em todo o país". Vejam bem o que se escreve em Portugal e já vamos no século vinte e um, o tal que nem deveria existir se houvesse respeito pelas profecias: os "pobres" têm outra vez direito à senhazinha da sopa dos ditos. Se os pobres morrerem de fome é porque não deram o nome. Ou então porque não sabem o que quer dizer take away. Problema deles. Os pobres não são leitores do Público.

Havia o clero, havia a nobreza e havia o povo. E isto estava muito bem percebido. Depois apareceu a burguesia, que meteu um bocado de nojo, amantizando-se com o clero, com a nobreza e com o povo, consoante, porque a burguesia é muito dada a certas e determinadas promiscuidades. E a seguir, mas isto já foi um a seguir que demorou muito tempo e ainda está a doer, veio o proletariado, lá do fundo do fundo do clero, da nobreza, do povo e da burguesia que estava distraída a chá e torradas. E do sarro dos pés do proletariado, tipo cogumelos, renasceram os pobres, que aqui atrasado eram uns desgraçados que em dias certos batiam à porta da nossa casa, em Fafe, a pedirem "uma esmolinha, por alma de quem lá tem". Porque nós éramos pobres, mas menos pobres do que eles.
O Público titula que "pobres passam a ter acesso a refeições take away em 950 cantinas em todo o país". Os pobres. Nós. Os que, hoje em dia, não somos nem clero, nem nobreza, nem burguesia, nem povo, nem sequer proletariado, nem jornalistas. Nem somos os pobres que damos esmola. Somos os pobres que a pedimos. Somos outra vez os pobres de papel passado e, isto sim é notícia, vítimas do insulto patarata que também já esbordou da política para o alegado jornalismo.
Eu sou pobre e estou aqui, deste lado. A rapaziada que escreve as tolices que a mandam escrever e os tituladores que acham que são mais finos do que os outros, essa é gente que não sabe de que lado está. Um destes dias cortam-lhes as respectivas comissões de serviço de três meses, escravidão, recibo verde, pouca vergonha e pouca conversa. Talvez então a rapaziada e os tituladores pataratas percebam que afinal somos todos do mesmo: portugueses, pobres, na fila da sopa, apesar de uma vez na vida termos sido serralheiro especializado ou jornalista simpatizante.

(Texto escrito e publicado no dia 16 de Fevereiro de 2012)

História, memória e património de Fafe


O livro "Fafe - História, Memória e Património" é lançado depois de amanhã, sexta-feira, dia 13 de Dezembro, pelas 21h30, no auditório da Biblioteca Municipal de Fafe. Trata-se de um trabalho conjunto de Daniel Bastos e José Pedro Fernandes (fotografia), com tradução de Paulo Teixeira e prefácio do fotógrafo francês Gérald Bloncourt.
Com chancela da Converso, a obra, em edição trilingue (português, francês e inglês), será apresentada pelo arquitecto e urbanista brasileiro Renato Gama-Rosa.
Segundo Daniel Bastos, "o livro, que constitui um cartão-de-visita para todos os que queiram conhecer e visitar o concelho de Fafe, procura transmitir uma imagem global e fundamentada da evolução do território das origens à actualidade, através de um enquadramento histórico assente numa centena de fotografias originais a preto e branco."

O meu Minho 17

                                                                                     Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Párias de cartão passado

Foto Hernâni Von Doellinger

O novo Governo é uma boa alma. Quer ajudar os pobres. E porque gosta muito de ajudar, é preciso que os pobres continuem pobres, se possível ainda mais pobres, e que peçam a esmolinha, e que digam muito obrigado, e que dêem graças a Deus.

O mesmo Governo que se prepara para cortar a direito nos direitos sociais dos mais desfavorecidos e nos direitos adquiridos e fundamentais dos trabalhadores e dos trabalhadores em situação de desemprego, esse mesmo Governo – o Governo de Passos Coelho e de Paulo Portas – proclama, de mãos postas e cabeça levemente inclinada, que a sua prioridade é dar às famílias "alimentação, vestuário e medicamentos".
Quer-se dizer: roubam-nos o que é nosso e depois devolvem-no-lo, já usado e gasto, em suaves prestações de caridade. Uma mão lava a outra? Não. Uma mão não lava a outra, entendamo-nos. É hipocrisia pura e simples, política de enganadores, filhadaputismo da pior espécie.
Não sei, ainda não se sabe, como vai ser distribuído este bodo aos pobres. Mas uma coisa o Governo PSD/CDS tem como certa: o País precisa de se organizar. Há que actualizar os ficheiros, é preciso identificar e cadastrar os verdadeiros pobres, os que vão ter direito à coisa, para que não haja misturas, para acabar de vez com os aproveitadores. Cada macaco no seu galho.
Aviso ao público: boa ideia será trazer sempre no bolso o atestado de pobreza. As autoridades podem aparecer a qualquer momento, em qualquer esquina. Os novos párias devem legalizar-se, serão párias de cartão passado.
Sei muito bem como tudo isto já funcionou em Portugal. Antes do 25 de Abril de 1974, lembram-se? E era desde os bancos da escola – da Escola Primária – que se aprendia, na carne, e com a crueldade própria daquela idade, a diferença entre ricos e pobres. A diferença entre os que tinham tudo e os que não tinham nada. A diferença entre a pasta de cabedal e a sacola de pano. A diferença entre os que escreviam em cadernos e os que ainda usavam a lousa. A diferença entre os meninos ricos que nunca apanhavam do professor e os miúdos pobres que levavam pancada de criar bicho. A diferença entre o sapatinho de verniz e as chancas ou o pé descalço. A diferença entre os que traziam lanchinho com pãezinhos com manteiga e marmelada e os que pediam a senha para ir comer uma sopinha. Pediam.
Exactamente: a sopa e a senha. Naquele tempo – no tempo em que os rapazes não se misturavam com as raparigas e os ricos também não se misturavam com os pobres –, as escolas não tinham cantina e havia muita fome. Havia uma espécie de cozinha, às vezes num edifício anexo ou próximo, e ali servia-se uma sopa. Assim era na minha Escola Conde Ferreira, em Fafe.
Para terem direito à sopa, os miúdos pobres pediam todos os dias uma senha, que era um pequeno quadrado de papel com um carimbo e um sarrabisco. O novo Governo deverá copiar daqui para os dias de hoje: um carimbo na testa de todos os pobres, dos pobres pobres, para que o aparelho do Estado saiba imediata e inequivocamente quem pode comer a sopa.
Claro que já então havia quem tivesse vergonha de ser pobre, quem tivesse vergonha de ser apontado publicamente como pobre, e preferia passar fome. Eu sei que não falta por aí quem sustente que fome é um conceito muito relativo, mas eu acho que é cada vez mais uma realidade copulativa. E só peço ao Governo de Passos Coelho e Paulo Portas que, quando chegar a minha vez, quando me vierem entregar a minha dose de "alimentação, vestuário e medicamentos", façam o favor de me deixar também os caixotes. É que as noites estão cada vez mais frias.

(Texto escrito e publicado no dia 29 de Junho de 2011. Como se fosse hoje. Apenas com uma pequena diferença: as famílias têm ainda menos que comer e vestir e deixaram de tomar remédios.)

Hoje vim de smart

Foto Hernâni Von Doellinger

Clarice Lispector

Da mesa onde me atardava porque tinha tempo, eu olhava em torno enquanto os dedos arredondavam o miolo de pão. O mundo era um lugar. Que me servia para viver: no mundo eu podia colar uma bolinha de miolo na outra, bastava justapô-las, e, sem mesmo forçar, bastava pressioná-las o suficiente para que uma superfície se unisse a outra superfície, e assim com prazer eu ia formando uma pirâmide curiosa que me satisfazia: um triângulo reto feito de formas redondas, uma forma que é feita de suas formas opostas. Se isso me tinha um sentido, o miolo de pão e meus dedos provavelmente sabiam.
O apartamento me reflete. É no último andar, o que é considerado uma elegância. Pessoas de meu ambiente procuram morar na chamada "cobertura". É bem mais que uma elegância. É um verdadeiro prazer: de lá domina-se uma cidade. Quando essa elegância se vulgarizar, eu, sem sequer saber por que, me mudarei para outra elegância? Talvez. Como eu, o apartamento tem penumbras e luzes úmidas, nada aqui é brusco: um aposento precede e promete o outro. Da minha sala de jantar eu via as misturas de sombras que preludiavam o living. Tudo aqui é a réplica elegante, irônica e espirituosa de uma vida que nunca existiu em parte alguma: minha casa é uma criação apenas artística.
 

Tudo aqui se refere na verdade a uma vida que se fosse real não me serviria. O que decalca ela, então? Real, eu não a entenderia, mas gosto da duplicata e a entendo. A cópia é sempre bonita. O ambiente de pessoas semi-artísticas e artísticas em que vivo deveria, no entanto, me fazer desvalorizar as cópias: mas sempre pareci preferir a paródia, ela me servia. Decalcar uma vida provavelmente me dava - ou dá ainda? até que ponto se rebentou a harmonia de meu passado? - decalcar uma vida provavelmente me dava segurança exatamente por essa vida não ser minha: ela não me era uma responsabilidade.

"A Paixão Segundo G. H.", Clarice Lispector

(Clarice Lispector nasceu no dia 10 de Dezembro de 1920. Morreu em 1977.)

Já gastámos as palavras

Na próxima sexta-feira, 13 de Dezembro, dia em que comemora o seu 65.º aniversário, o Teatro Universitário do Porto (TUP) estreia "Já Gastámos as Palavras", um espectáculo de teatro-dança dirigido por Victor Hugo Pontes. Mais informação, aqui.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O Minho cheira a Natal

Foto Hernâni Von Doellinger

O Minho cheira, sabiam? O Alentejo e Trás-os-Montes decerto também cheiram, as Beiras e o Ribatejo lá terão os seus aromas, mas a mim o que me interessa é o Minho. E por estes dias o Minho cheira a Natal. Ao Natal antigo. Os últimos lavradores do Minho fazem fogueiras nos campos como fizeram os seus pais e os pais dos seus pais, queimando folhas secas e gravetos velhos, emprestando ao ar um perfume doce de lareira. Dá vontade de abrir a janela do carro. E abre-se, apesar do frio. Entra a memória: a avó a aquecer o vinho na infusa fanada, metendo lá dentro uma maçã acabada de assar no borralho, os malabarismos a toque de caixa do testo da velha chocolateira a esbordar de café que era cevada, a garrafa de aguardente do avô que bastava aliviar-lhe a rolha para logo curar constipações e até unhas encravadas. E a canela. Sim, as queimadas agrícolas de Dezembro, no Minho, são temperadas com canela. Que ninguém me diga o contrário.
Depois há o fumo. Que acinzenta o verde que cresce ao abandono e as leiras lavradas e cada vez mais raras, mas não entristece. O fumo aconchega-nos. Por causa do fumo, o céu é mais baixo, estamos mais perto do Céu, estamos mais perto uns dos outros, e apetece-nos inspirar a plenos pulmões a ver se conseguimos guardar este fumo e este cheio para o resto do ano, para o resto da vida. Foi assim na quinta-feira, primeiro dia do mês.
Tornei ao Minho. A um sítio que visito agora muito raramente, porque cotão no bolso não paga contas. E volto lá, quando posso, não porque a cozinha seja superlativa (embora continue de uma honestidade a toda a prova), mas porque me afeiçoei àquela gente para quem nós somos também amigos. Fazem-nos sempre uma grande festa, a mim e à minha mulher, cobrem-nos de mimos e só lamentam que as nossas visitas sejam tão espaçadas. Nós também.
A surpresa foi que, no cafezinho ao lado, à porta do qual, depois do almoço, gosto de sentar-me para fumar a minha cachimbada e beber o meu CRF em balão previamente aquecido, enquanto descanso os olhos e a alma nas serranias que não digo e me deito a adivinhar os desenhos das nuvens, também havia saudades. E ali só dizemos bom dia e boa tarde. E obrigado e até à próxima. Mas dizemos.
O certo é que dois clientes, gente da terra - um dos seus 40 anos, outro já da terceira idade -, fizeram questão de vir ter connosco, inesperadamente, primeiro um e depois o outro, para nos dizerem que a nossa falta tinha sido notada: "Já cá não vêm há muito! Têm que aparecer mais vezes! Gostamos de os ter cá"...
Não sei se é do cheiro do Minho. Não sei se é do fumo. Mas este povo é bom. É bom como não há. E não merece os patifes que o estão a empobrecer.

(Texto escrito e publicado pela primeira vez no dia 3 de Dezembro de 2011. A fotografia é muito posterior. Inicio hoje a revisita a uma série de "textos de Natal". E ficamos já combinados: os textos são de Natal apenas porque têm lá algures a palavra Natal ou, regra geral, nem isso. São de Natal porque me apetece.)

José Rodrigues Miguéis

Ponho-me a olhar a Avenida cá de cima, da minha água-furtada e meu refúgio, e digo-lhe, seu Apolinário: tudo isto levou uma grande volta. Antigamente vivia-se aqui como num céu aberto. Nem faz ideia. Onde isso vai, parece que não, os dias passam devagar, mas os anos vão-se depressa. A gente só dá por isso quando já não há remédio.
Foi nos começos da República, e eu, de calção, com os sapatos nas poças da chuva, travava os primeiros corpo a corpo com a gramática latina e o verbo Amar. A Avenida era então novinha em folha, como o regime. Começava lá em baixo, num boqueirão sinistro, um rio de lama onde às vezes havia inundações e gritos, entre ribanceiras e prédios esguios, e ia-se perder ao alto, nas quintas e azinhagas. As casas, modestas e limpinhas, tinham fachadas de azulejo de mau gosto, outras eram pintadas a cor. Havia as "terras", lotes vagos de barro viscoso onde a gente ia "reinar", e as carroças se atolavam até aos eixos, com muitas pragas dos carroceiros. As árvores eram frágeis e verdes, de mocidade e esperança. Que sossego o desses dias agitados! Isto não era Avenida, era a Rua do Lá-Vai-Um. O mundo acabava-se ali no redondel da praça: um muro decrépito e, para além dele, era a poesia, o silêncio, o bucolismo e a Perna-de-Pau. As noites uma paz. A brisa trazia lá de cima um cheiro fresco de húmus, de estrumes, de águas e verduras. As meninas pensativas, cheias de Júlio Dinis e pescadinha frita, dedilhavam pianos langues, aguitarrados, com as janelas escancaradas, ou então escutavam pelas sacadas, em roupas leves, a voz dos Tenórios empregados em escritórios, gemendo o Fado nas ruas:

                             Ó pálida madrugada,
                             já tenho saudades tuas...

O luar encharcava a noite, entrava em cascata pelas janelas, vinha ter connosco à cama. As luzes eram raras e mortiças, de gás incandescente. Pairava no ar um resto de Cesário, e muito José Duro e amargo. Noite morta, pelas dez, passava o varino dos jornais, descalço, anelante da maratona em que vinha desde a Baixa, apregoando A Capital - e a voz dele tinha um tal desgarramento de mundo perdido, que eu, na minha cama fria de impúbere, a seguir-lhe em mente os passos, sentia um aperto na garganta e uma irresistível vontade de chorar.

"Saudades para a Dona Genciana", em "Léah e Outras Histórias", José Rodrigues Miguéis

(José Rodrigues Miguéis nasceu no dia 9 de Dezembro de 1901. Morreu em 1980.)

domingo, 8 de dezembro de 2013

A dieta mediterrânica e outras tretas

Foto Hernâni Von Doellinger

Dieta mediterrânica é cá em casa. Eu é que sei, mas, já estou habituado, ninguém me perguntou nada. A chamada dieta mediterrânica passou outro dia a Património Imaterial da Humanidade. Gosto da pomposidade das maiúsculas e gosto da palavra "Imaterial", porque, pensando bem, é uma palavra que, não sendo sólida nem líquida, resvala sorrateiramente para o domínio do "Gasoso" - o que confere.
Mas lá está: a UNESCO decidiu e está decidido. Agora, diz o jornal, a dieta mediterrânica tem de ser "estudada, inventariada, divulgada, protegida". Agora? Não percebo. Então essa parte não foi feita antes? Se a alegada dieta mediterrânica não estava devidamente "estudada, inventariada, divulgada, protegida", o que caralho é que a UNESCO passou a Património Imaterial da Humanidade? Um palpite? Pfff...

Florbela Espanca

In memoriam

Na cidade de Assis, Il Poverello
Santo, três vezes santo, andou pregando
Que o sol, a terra, a flor, o rocio brando,
Da pobreza o tristíssimo flagelo,


Tudo quanto há de vil, quanto há de belo,
Tudo era nosso irmão! - E assim sonhando,
Pelas estradas da Umbria foi forjando
Da cadeia do amor o maior elo!


"Olha o nosso irmão Sol, nossa irmã Água…"
Ah! Poverello! Em mim, essa lição
Perdeu-se como vela em mar de mágoa


Batida por furiosos vendavais!
- Eu fui na vida a irmã de um só Irmão,
E já não sou a irmã de ninguém mais!


"A Mensageira das Violetas", Florbela Espanca

(Florbela Espanca nasceu no dia 8 de Dezembro de 1894. Morreu em 1930.)

Lugares-comuns 117

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 7 de dezembro de 2013

Soledade Summavielle

Esperança

Uma pequena frase bastaria,
clareava o dia mais sombrio.
Um vago gesto, um doce gesto apenas,
afastaria o medo e o próprio frio...
Mas se uma voz se ergueu, levou-a o vento
quando passava tão precipitado
que lhe mudou o rumo e o destino,
ninguém se lembra já de a ter escutado.
O esperado gesto não chegou...
Sentem-se todos sós, fraternidade
há-de ser sempre a rútila promessa
e uma palavra vã a Humanidade?
Não pode ser, irmãos, acreditai,
tem de chegar a nova Primavera...
Fitai a estrela, abri o peito ao sonho,
mesmo que seja longa a vossa espera.

"Tumulto", Soledade Summavielle

(Soledade Summavielle nasceu no dia 7 de Dezembro de 1907. Morreu em 2000.)

Lugares-comuns 116

Foto Hernâni Von Doellinger

Ary dos Santos

Soneto presente

Não me digam mais nada   senão morro
aqui   neste lugar   dentro de mim
a terra de onde venho é onde moro
o lugar de que sou é estar aqui.

Não me digam mais nada senão falo
e eu não posso dizer   eu estou de pé.
De pé como um poeta ou um cavalo
de pé como quem deve estar quem é.

Aqui ninguém me diz quando me vendo
a não ser os que eu amo   os que eu entendo
os que podem ser tanto como eu.

Aqui ninguém me põe a pata em cima
porque é de baixo que me vem acima
a força do lugar que for o meu.
 

"Resumo", J. C. Ary dos Santos

(Ary dos Santos nasceu no dia 7 de Dezembro de 1936. Morreu em 1984.)

Vida de cão 21

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Quaresma: requiem por um quase craque

Foto blogue OS CARROS DOS JOGADORES DE FUTEBOL

O jogador de futebol Ricardo Quaresma, 29 anos, bateu ontem num polícia. Foi detido e vai hoje a tribunal. Há cerca de três semanas, Quaresma foi acusado de "urinar nos balneários" e "exibir os genitais" a uma funcionária do Besiktas, clube turco com o qual mantém contrato. Quaresma não está inscrito para jogar e treina à parte. É uma guerra que já vem da época passada. Quaresma não joga e dá pontapés na vida.
Ricardo Quaresma é um produto da excelentíssima escola do Sporting. Passou pelo Barcelona sem que se tivesse notado e regressou ao nosso país ainda a tempo de se fazer jogador a sério e decisivo no FC Porto, onde, em quatro épocas, ganhou três campeonatos, uma Taça de Portugal, uma Supertaça e uma Taça Intercontinental. Foi Futebolista Português do Ano em 2005 e 2006 e Personalidade Portuguesa do Ano em 2007. Brilhou. Brilhou tanto que o estrangeiro voltou a chamar por ele - mas a partir daqui a sua carreira foi sempre a descer (embora até pudesse parecer que era sempre a subir). Falhou no Inter de José Mourinho, falhou no Chelsea de Luiz Felipe Scolari, falhou novamente em Milão e depois rumou à Turquia e é o que se sabe. Recebido em apoteose em Istambul, teve um início empolgante nos campos turcos, para logo se embrulhar numa série de conflitos internos que lhe foram apagando a aura. Nos jornais, as notícias sobre Quaresma continuavam a sair nas secções erradas.
Quaresma prometeu muito. Há quem diga que prometeu tanto como Cristiano Ronaldo, e parece-me que essa comparação (em que ele sempre acreditou) é que lhe terá sido fatal. Eu ainda acredito em Ricardo Quaresma. A verdade é que o Mustang tem quase tudo para ser um verdadeiro craque da bola: tatuagens, brincos e anéis, cortes de cabelo idiotas, muito dinheiro, gajas boas, grandes carros e alguns comportamentos geralmente imperdoáveis em pessoas que não sejam jogadores de futebol. O que lhe falta, então? Talvez juízo. E já tem idadinha.

(Texto escrito e publicado no dia 15 de Novembro de 2012)

Urbano Tavares Rodrigues 2

Disse-te um dia

Disse-te um dia
que havia de dar-te uma estrela
tão real como os sonhos
do rio Guadalquivir
e o perfume adolescente
do teu corpo
a ondular na aurora de Sevilha
Não foste comigo a Barcelona
ver as pesadas corolas e os mosaicos
de La Pedrera
mas espera-me no aeroporto
de nunca antes
o rumor febril dos teu olhos
onde aprendi
que o tempo não existe
Mas a vida pode ser
também mágoa escura
bem sabes
Por isso te prendo
as mãos sobre as ancas
para não fugirmos mais um do outro
e bebo todo o sol e afinal o tempo
nos teus lábios.

"Horas de Vidro", Urbano Tavares Rodrigues

(Urbano Tavares Rodrigues nasceu no dia 6 de Dezembro de 1923. Morreu este ano, em Agosto.)

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Obrigado

Foto LEON NEAL/AFP

Janelas de pressão

Foto Hernâni Von Doellinger

No dia em que lhe roubaram o emprego, disseram-lhe: "Se calhar até foi bom, vais ver. Por cada porta que se fecha, há sempre uma janela que se abre". E de facto. Há cinco anos que Leonilde lá está, de braços cruzados no peitoril, a contar natais e a ver a vida passar. Manda currículos, rega os vasos e tem uma almofadinha de croché para não magoar os cotovelos escanzelados pela fome.

Vida de cão 20

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

O maior desastre marítimo na costa portuguesa

Foi com Matosinhos à vista, na noite de 1 para 2 de Dezembro de 1947. Quatro traineiras naufragaram entre a Aguda e Leixões. Morreram 152 pescadores. Ficaram 71 viúvas e mais de 100 órfãos. Todos os anos, a homenagem e a saudade. Flores e dor. Respeito. In memoriam.

                                                                                      Foto Hernâni Von Doellinger

Um conto de Natal

geralmente era uma seca. Já um conto de réis eram mil escudos. Uma pipa de massa naquele tempo, é preciso que se note.

Vida de cão 19

Hernâni Von Doellinger