quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Berardo, o bom filho da mãe

A modéstia do caloteiro
Chamavam-lhe caloteiro e outros elogios bem merecidos. Ele dizia, fino como um alho: - Cumpro apenas o meu dever...

Olhemos para Joe Berardo, esse bom filho da mãe. Berardo fez-se milionário sob o alto patrocínio da Caixa Geral de Depósitos. Sei isto de fonte segura: foi o próprio Berardo quem mo contou, uma vez há muito tempo. A sua primeira poupança foi uma conta que a mãe lhe abriu na Caixa, em 1962, na Madeira, com dois mil escudos, teria ele então 18 anos. Dois contos, dez euros ao preço actual, uma semente. Uma conta que se manteve aberta e que nunca parou de crescer. Um casamento frutuoso, posto que de conveniência. O saldo de Berardo na Caixa já ia aqui atrasado em mais de 280 milhões de euros, realmente uma fortuna, mas de dívida. Joe Berardo devia ao banco público mais de 280 milhões de euros, que se soubesse até àquele então, na sequência de empréstimos manhosos que lhe deram de mão beijada e que ele agora não consegue ou não lhe apetece pagar. À banca portuguesa em geral, o comendador Berardo deve quase mil milhões de euros. Uma batelada de massa de que eu nem faço ideia. E tudo começou com apenas dois contos, abençoados pela santa mãe, meu rico filho! Parece ilusionismo, número de circo. É por isso que ele se ri tanto e faz pouco do País. Ele é o homem que conseguiu dar o golpe do baú... à Caixa.
Por outro lado, dou valor ao Berardo. Ele deve aqueles camiões, navios e aviões todos cheios de dinheiro - só assim é que eu me oriento -, ri-se olimpicamente e é um homem rico. Eu não devo um cêntimo a ninguém, rio-me a prestações e sou um homem pobre. Isto é. Quem me dera ser filho do mãe... do Berardo, porque Caixa nós também já tínhamos em Fafe. No Largo, à beira da Sonap.

(Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

A arte de cuspir no prato

Foto Hernâni Von Doellinger

Saudações inimigas?
Escrevi aí a uma ungida criatura, assunto sério, melindroso, e, no final, mandei-lhe um "grande abraço". A criatura despachou-me às três pancadas e, no final, mandou-me, para a troca, "saudações amigas". Saudações amigas? Mas, Senhor Bispo, o que raio são saudações amigas? Evidentemente serão o contrário de saudações inimigas, mas o que são saudações inimigas? Abraço, eu sei: o abraço é sólido, palpável, vê-se, sente-se, dá-se, recebe-se, aperta-nos, aproxima-nos, humaniza-nos, igualiza-nos. Agora, saudações amigas? Isso traz água no bico...

Trabalhar no meu jornal era obra desenganada. As pessoas que contactávamos para fazermos as "notícias" sabiam que, se falassem, fosse do que fosse, tudo o que nos dissessem podia ser usado contra elas. E geralmente era. Nem que lhes telefonássemos apenas para perguntar as horas, havia de sair dali cagada da grossa. Nós depois ligávamos a ventoinha. Estupidamente, cuspíamos no prato em que comíamos. O 24horas era assim, fugia-lhe o pé para a escandaleira. Se não houvesse sangue, os meus chefes tratavam disso. Para os mais distraídos perceberem: estais a ver como são agora todos os jornais e quase todas as televisões? Pronto, o meu jornal é que começou. O 24horas é a bíblia do "jornalismo" que hoje se faz em Portugal. O 24horas chama-se actualmente Correio da Manhã, Jornal de Notícias, Sábado, Observador, Diário de Notícias, Sol, Record, A Bola, O Jogo, às vezes até Público e assim sucessivamente.
Portanto tínhamos muito poucas "fontes". As pessoas minimamente informadas fugiam de conversar connosco como o diabo foge da cruz. Umas tinham vergonha na cara ou medo e outras desprezavam-nos simplesmente. Umas e outras sabiam que as nossas perguntas tinham quase sempre volta de foda. Se desse jeito, pedíamos a A para falar de B, para a seguir metermos A e B no mesmo saco e malharmos nos dois como se fossem um só. O jornal escolhia os seus alvos e gastava a pólvora toda (seca, por norma) enquanto a coisa vendesse. Mas é preciso que se diga: isto de eleger "inimigos" e disparar até cair para o lado foi uma herança recebida de Paulo Portas, do tempo em que o ex-vice-primeiro-ministro era director do semanário Independente e fazia a vida negra ao Cavaco primeiro-ministro e respectivos ajudantes no Governo. Portas é que inventou esta receita de sucesso e gabava-se disso. O seu a seu dono.
No meu jornal, Lisboa encarregava-se de fechar as portas às quais nos mandava depois bater, aqui do Porto. Levávamos quase sempre com a porta no nariz. As pessoas respondiam-nos torto, muito torto, era o pão-nosso de cada dia. Uma vez calhou-me o Sócrates, nas vésperas de ganhar as primeiras eleições, e foi do bom e do bonito. Lembrais-vos do génio do gajo? Tendes presente o feitio da criatura? O seu amor aos jornalistas? Pois é. Foi uma discussão das antigas, uma bonita história que já contei aqui. Evidentemente levei com muitos outros malcriados, mas é gente que nem merece que lhes diga os nomes.
Claro que a grosseria não era geral. Havia também pessoas que muito simplesmente se recusavam a falar-nos mas sem baixarem o nível. O bom do Raul Solnado (1929-2009), Luís Represas, o actor José Pedro Gomes, são dos que me lembro agora que escrevo. Nenhum dos três me conhecia, mas, depois de me ouvirem educadamente, foram igualmente atenciosos na nega. Disseram-me: "Desculpe, Hernâni, não é nada de pessoal consigo, portanto ligue-me quando estiver noutro jornal. Então conversaremos do que quiser". Agradeci sinceramente a franqueza e a urbanidade. E pedi desculpa eu. Eu sabia que eles tinham razões.
Era vida difícil. Num jornal que precisava da "opinião" dos "famosos" sobre tudo e sobre nada. A propósito da nudez de Marisa Cruz num filme ou por causa do Fidel Castro que passou a pasta ao irmão. A minha sorte é que acabava sempre por encontrar uma alma caridosa que me ajudava a ganhar o dia. Gente que sabia o que era o 24horas mas que, fosse por que razão fosse, nunca me deixou ficar pendurado: gente como Marcelo Rebelo de Sousa, o comentador, e o bom Júlio Magalhães, jornalista e cara da TV, sempre disponível, sempre decente e generoso, os empresários e portistas Pôncio Monteiro (1940-2010), Manuel Serrão e Rui Moreira, os estilistas Miguel Vieira, Katty Xiomara, Luísa Pinto e Gio Rodrigues, os juízes Rui Rangel e Eurico Reis, o fiscalista Saldanha Sanches (1944-2010), Valentim Loureiro (o meu cromo da sorte), Júlio Isidro e Joaquim Letria, que também eram da casa, Tozé Brito, Luís Filipe Barros, José Cid, o humorista Nilton, Octávio Machado, Francisco José Viegas, Manuel Luís Goucha, José Carlos Malato, Jorge Gabriel, Hélio Loureiro, Paulo Teixeira Pinto e mais uns poucos de que injustamente me estou a esquecer. Dou-lhes, a todos, um grande abraço. Eram sempre os mesmos e a minha tábua de salvação. O meu piquete de emergência.
Cada qual lá teria os seus motivos. Alguns, tenho a certeza, era mesmo uma questão de bondade. Fiquei agradecido a todos. De vez em quando pago-lhes aqui nos meus blogues com umas ripeiradas. É este maldito 24horismo que não há maneira de me passar...

(Nova versão, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Ó filha, se mo desses!...

Era uma senhora de idade, e quando digo senhora de idade quero dizer uma senhora um bocadinho mais velha do que eu, que também sou um senhor de idade. A senhora estava aflita no multibanco, à boca da rua, uma das mais frequentadas do centro de Matosinhos: pretendia consultar o movimento da conta, a opção não se encontrava disponível, a máquina não dava talões, ela queria vir embora mas não sabia o que fazer para reaver o cartão, que continuava enfiado lá nas profundezas da ranhura. A senhora pediu ajuda a quem passava e uma alma caridosa mandou-a carregar na "tecla vermelha", ela carregou, nervosa, atabalhoada, enganou-se, tornou a carregar e enquanto isso já a máquina lhe solicitava, em alta voz, feminina e maviosa, "Por favor, retire o seu cartão!", solicitou uma, solicitou duas vezes, "Por favor, retire o seu cartão!", impaciente, acusadora, e a senhora, de cabeça perdida, respondeu-lhe no mesmo tom, em desespero de causa - Ó filha, se mo desses!...

P.S. - O Multibanco, que é uma invenção portuguesa, começou a funcionar no dia 2 de Setembro de 1985. Faz hoje 40 anos.

Acampado no multibanco

Sabeis aquele senhor que vai à vossa frente ao multibanco e paga a água e paga a luz e paga o gás e paga o telefone e paga a tv cabo e paga a prestação do colchão ortopédico e paga a consulta do cardiologista e paga o IUC e paga o IMI e paga o IRS e paga o seguro do carro e paga o lar da sogra e paga o infantário dos netos, que são seis, todos em infantários diferentes, e paga o condomínio dos filhos, que são quatro, todos em condomínios diferentes, e procura nos bolsos e mete nos bolsos e não tem bolsos que cheguem e está sempre a enganar-se e a anular e a recomeçar as operações? Sabeis? Calhou-me um desses hoje, e estou aqui fraquinho, fraquinho, fraquinho. Na próxima que eu precise mesmo de ir ao multibanco, levo cadeira e lanche.

P.S. - O Multibanco, que é uma invenção portuguesa, começou a funcionar no dia 2 de Setembro de 1985. Faz hoje 40 anos.

Então és tu, minha porca?!...

Meia dose de xenofobia
A chinesinha descia a rua em direcção à praia, e levava o cão pela trela. Achei aquilo tão esquisito! Como se eu levasse a passear um frango de churrasco...

Todos os santos dias, não sei se por promessa, havia um canídeo que, com vossa licença, cagava ao portão da minha sogra. Todos os santos dias. Ficava ali aquele montinho de merda, com vossa licença, às vezes dois ou três montinhos de merda, com vossa licença, ou quatro ou cinco, passeio adiante e organizados em filinha pirilau, porque o alegado canídeo devia ser animal para comer à tripa-forra e evacuava, com vossa licença, geometricamente organizado e por ordem alfabética.
A minha sogra, que me dirigia uma certa osga, cismava que era eu, para lhe fazer desfeita não sei de quê. E não foi fácil convencê-la de que aqueles saralhotos, com vossa licença, eram evidentemente souveniers de canídeo. E eu sou balança.
Uma vez quase apanhei o infractor com as calças na mão: a merda, com vossa licença, ainda a fumegar, mas o canídeo já a descer o fim da rua com a dona pela trela, e, dissesse eu o que dissesse, estaria a falar para a central. Calei-me, portanto.
Portanto, calei-me, mas pus-me à tabela, agarrei-me ao Excel, recolhi e cruzei informações, fiz um horário e aqui atrasado apanhei-os em flagrante. À horinha, nem mais cedo nem mais tarde, como diria o meu querido tio Zé da Bomba, abri de rompante o portão e lá estava a acontecer à minha frente: merda ao vivo, como eu previa e com vossa licença.
Fiz a cara de nojo que trazia ensaiada há mais de um ano, e disse:
- Então és tu, minha porca?!...
- Não é uma cadela, é um cão... - empertigou-se-me a dona, histericamente professoral.
- Mas eu não estava a falar para o canídeo, minha senhora... - disse eu, e fechei outra vez o portão, antes que ela percebesse.

(Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Uma mulher de barba rija

Idade Média
A Idade Média, ao contrário do que o próprio nome parece indicar, foram duas: a Baixa Idade Média e a Alta Idade Média. Diferenciam-se, evidentemente, pela altura.

Era a chamada mulher de barba rija. Feia, grande, cabelos espetados, seis dedos em cada mão e forte como um cavalo, sem ofensa para os presentes. E o nome, Brites de Almeida, também lhe ficava de modo, tal como um certo comportamento masculino e o bigode de que ninguém fala mas que certamente. Assim seria a Padeira de Aljubarrota, segundo a tradição popular, porém já se sabe: quem conta um conto acrescenta um ponto, e dessarte nasce o mito.
Esta padeira realmente nunca existiu. Ainda assim, a lenda liga-a à Batalha de Aljubarrota e ao massacre que se lhe teria seguido, mas que também nunca aconteceu. Brites seria a líder de um grupo de populares, tipo claque de futebol, que perseguiu os castelhanos em fuga. Brites emboscou-se, fez-lhes espera, aos desgraçados dos espanhóis, e matou com as próprias mãos uns tantos, se por acaso fosse verdade e o Benfica tivesse claques.
Nessa noite de 14 de Agosto de 1385, a padeira chegou a casa tarde e a más horas, talvez com os copos, como de costume, ou pelo menos maldisposta, e descobriu sete espanhóis escondidos no forno onde cozia o pão às sextas-feiras. Ela percebeu logo que eles eram espanhóis porque diziam muito "qué rico!", "vale, vale!", "qué tal, qué tal?" e outros nomeadamentes. Sem pestanejar, ou ainda que pestanejando derivado à farinha que andava pelo ar, Brites pegou na pá e bateu-lhes até os matar bem mortos, um atrás do outro, à medida que os infelizes iam saindo do forno gritando "olés" e tocando castanholas. Foi muito bem feito, dizem os nacionalistas, e desde esse dia glorioso e imaginário nunca mais ninguém viu a padeira em Portugal.

(Nova versão, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)