Dá-me para isto ultimamente: pergunto aos meus amigos "Andas feliz? És feliz?", e não é por causa da crise ou da merda da política ou dos bandalhos que estão no Governo. Nada disso - quero que essa corja de Lisboa se foda, refoda e contrafoda. Aos meus amigos pergunto acerca do coração, dos afectos, do casamento, do divórcio, da mulher, da namorada, da mulher e das namoradas, dos filhos, dos netos, dos irmãos, dos pais, dos sogros, da saúde, da fé, da filosofia, da poesia, de Deus, dos sonhos, da vida. Falo de bondade, de amor, de compaixão, de vinho. "És feliz? Andas feliz?", é o que pergunto, exactamente da mesma maneira que pergunto em casa, à mesa, se a comidinha está a saber bem.
A vida para ter algum jeito também deve saber bem, não é? Pelo menos é o que eu acho, pratico e digo aos meus amigos, dinheiro à parte e emprego também, que só fazem falta a quem tem. A nós, não - o País já deu baixa de nós, de mim e dos meus amigos. Estamos muito bem assim com isto que nos deixaram em comum: somos tesos encartados, desempregados por conta própria, cidadãos fora de prazo, viva Portugal! Os meus amigos interessam-me muito e por isso é que são sem aspas. Os meus amigos sabem que eu cozinho e são meia dúzia deles. Percebem o que eu quero dizer quando lhes pergunto se as fanecas eram mesmo assim e nem mais nem menos e se os rojões estão prontos para as olimpíadas. Percebem e respondem com grande selectividade (a selectividade e as retroescavadoras com luzinhas são cá coisas do forno interno). Eram e estão, as fanecas e os rojões. Mas se lhes pergunto directamente "És feliz, Natal?", os meus amigos limitam-se a balbuciar um "Mais ou menos" que até parece da minha família.
Vou mandar passar aos meus amigos os competentes atestados de Bombas, esses sublimados militantes do vai-se andando. Eu desarrisco-me.
sábado, 30 de novembro de 2013
Pragmatismo à portuguesa
Ele: - Presente de Natal porreiro era um emprego, isso é que era.
Ela: - Não queres antes um par de meias?
Ela: - Não queres antes um par de meias?
sexta-feira, 29 de novembro de 2013
Lições de História 5: Egas Moniz
Egas Moniz sempre gostou de fazer a cabeça dos outros. Começou com o
pequeno Afonso Henriques e deu-se mal. Depois generalizou e deram-lhe um
Nobel. Ultimamente querem tirar-lho, por causa do abuso.
(Egas Moniz, o médico e político, o neurocirurgião radical que nos deu o filme "Voando Sobre Um Ninho de Cucos" - um dos melhores da história do cinema -, nasceu faz hoje 139 anos. Morreu em 1955.)
(Egas Moniz, o médico e político, o neurocirurgião radical que nos deu o filme "Voando Sobre Um Ninho de Cucos" - um dos melhores da história do cinema -, nasceu faz hoje 139 anos. Morreu em 1955.)
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quinta-feira, 28 de novembro de 2013
Guerra Colonial na Associação dos Jornalistas
A Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto (AJHLP) acolhe esta noite, a partir das 21 horas, um debate-tertúlia subordinado ao tema "Guerra Colonial em Prosa/Poesia/Documentário". Os intervenientes convidados são Jorge Ribeiro, Vergílio Alberto Vieira e Nuno F. Santos, com a moderação a cargo de Joana Afonso, do Núcleo do Norte da Associação José Afonso.
A sessão tem entrada livre e destina-se não só aos veteranos da guerra mas a todos os interessados por esta fase da história recente de Portugal em África. A sede da AJHLP é no n.º 140 da portuense Rua Rodrigues Sampaio, esquina com a Rua do Bonjardim.
A sessão tem entrada livre e destina-se não só aos veteranos da guerra mas a todos os interessados por esta fase da história recente de Portugal em África. A sede da AJHLP é no n.º 140 da portuense Rua Rodrigues Sampaio, esquina com a Rua do Bonjardim.
Os amantes
Sempre gostei da palavra "amantes". Desde pequenino. Claro que nesse tempo os amantes eram um senhor numa Florett que se encontrava com uma senhora, já fora da vila, e depois iam os dois para uma quelha fazer o que tinha de ser feito. O senhor e a senhora eram casados, mas não reciprocamente. Naquele tempo não era obrigatório o uso do capacete. A senhora às vezes tinha filhos que não eram parecidos com o pai.
Eram amantes, estavam amantizados. Toda a gente da terra sabia. Fafe ainda hoje é uma terra pequena. Cochichava-se, mexericava-se, emprenhava-se pelos ouvidos. Num misto de recriminação e inveja, os amantizados eram olhados de esguelha, havia quem mudasse de passeio, quem baixasse os olhos, quem deixasse de salvar. Isto era com as as mulheres. Às amantes, a religião chamava-lhes adúlteras. Com eles, parecia que havia uma espécie de respeito, de admiração. Aos homens, o povo chamava-lhes pinantes.
Mas o que havia sobretudo era muita dor de... cotovelo.
As mulheres falavam com orgulho no "meu amante" e batiam no peito, nos peitos, com toda a força do corpo, sem vergonha e sem vergonhas, reclamando o que lhes pertencia a troco do que davam. Os homens faziam de conta. Os cornos não eram os últimos a saber. Se calhar eram os primeiros. Só podia dar para o torto. E dava.
Lembro-me muito bem, de uma vez, no Santo: houve uma espera, pancadaria da velha entre mulher legítima e a outra, na disputa por um lingrinhas que se ria como um perdido e era feio como um calhau. Parecia as festas do concelho, eram girândolas de sapatos, brincos e cabelos pelo ar, orelhas esgaçadas, saias arregaçadas, blusas esventradas, recíprocas recomendações de higiene íntima guinchadas (parecia nos altifalantes do Baptista) com indicações precisas sobre os locais do corpo que precisavam de arejo, mais arranhões e bofetadas, encontrões e apalpões, tropeções e tudo ao molho, tudo a aproveitar, tudo a aplaudir.
Foi mesmo assim, palavra de honra. A amásia deu parte de fraca e deixou-se ficar no chão. Espumava por todos os lados. O rosto passava-lhe do vermelho ao verde, que até parecia um semáforo. Nós ainda não sabíamos o que era um semáforo, mas era aquilo. A ofendida batia no ar e falava ao mesmo tempo – "A badalhoca enche-o de gemadas para ele não lhe sair de cima". Perante o argumento, à outra deu-lhe o fanico, cheia de vergonha e ranho.
Acorreu o senhor Zé Manco, que tinha um tasco-mercearia, A Primorosa, e muito jeito para dar injecções. Para além disso, o molageiro gostava também de pôr a mãozinha no sopeirame local. "É afastar, faz favor, é dar espaço, para ela respirar", dizia o senhor Zé Manco nos seus domínios, abrindo de vez a blusa da amantizada, baixando-lhe um quase nada o sutiã e expondo um quase tudo de uns seios brancos como a neve, coisa linda de se ver. Depois, uma caneca de água fresca cabeça abaixo da desmaiada, "para a mulher espertar". E a mulher espertou.
E eu fiquei ali a gostar ainda mais da palavra "amantes".
Por essa altura, Janis Joplin berrava desalmadamente por um Mercedes Benz. Eu só pedia muito baixinho a Deus Nosso Senhor que me desse uma Florett. E, se não fosse abuso, muitas gemadas, que a minha mãe só me dava quando eu passava de classe, que era uma vez por ano.
(Escrito e publicado no dia 18 de Junho de 2011. Estou nas limpezas e arrumações de fim de ano.)
(Escrito e publicado no dia 18 de Junho de 2011. Estou nas limpezas e arrumações de fim de ano.)
quarta-feira, 27 de novembro de 2013
Muitíssimos parabenzíssimos
Foto Hernâni Von Doellinger |
O Leixões Sport Clube faz amanhã 106 anos. É Matosinhos que está em festa. Programa das comemorações e mais informação, aqui.
Soares dos Passos
Num álbum
Do sofrimento o arcanjo lamentoso
Sobre a face do mundo estende o braço:
Um diadema ofertava, e pavoroso:
"Para o que mais sofreu!" gritou no espaço.
Eis logo imensa turba se atropela,
Todos querem ganhar a prenda infausta;
Mas nenhum dos que chegam por obtê-la
Mostrava a taça da amargura exausta.
"Afastai-vos!" lhes brada o génio esquivo,
"Nenhum tocou do sofrimento a meta:
"Tu, só tu mereceste o prémio altivo;
"Ergue a fronte, coroa-te, poeta!"
"Poesias", Soares dos Passos
(Soares dos Passos nasceu no dia 27 de Novembro de 1826. Morreu em 1860.)
terça-feira, 26 de novembro de 2013
Os amigos do Pina
Os amigos de Manuel António Pina fundaram o Clube dos Amigos à Espera do Pina. Outros amigos de Manuel António Pina fundaram o Círculo Literário e Artístico Manuel António Pina. Sinceramente acho que o Pina não merecia tanto. Quero dizer: não merecia tanta vaidade e inveja, tanta sede de aparecer. O Pina de certeza que não sabia que tinha tantos amigos. Que fartura! Duas-colectividades-duas em nome do Pina, no Porto que ainda outro dia deixou morrer a Fundação Eugénio de Andrade.
Mas o Pina é grande. Chega para todos: para os compinchas de verdade e para os simpatizantes, curiosos, atrevidos e outros aproveitadores. Eu sou um simples admirador de Manuel António Pina, só lhe conhecia a voz da televisão e da rádio, e parece que o estou a ouvir dizer: - Sirvam-se.
Mas o Pina é grande. Chega para todos: para os compinchas de verdade e para os simpatizantes, curiosos, atrevidos e outros aproveitadores. Eu sou um simples admirador de Manuel António Pina, só lhe conhecia a voz da televisão e da rádio, e parece que o estou a ouvir dizer: - Sirvam-se.
Mário Lago
O dono da bola
Quando o Juca concordava,
a garotada tomava
conta da rua e armava
o campo de futebol.
Juca era o dono da bola,
Juca era o dono do jogo.
Fazia o que bem entendia
e quando alguém discutia
o Juca guardava a bola.
Ninguém brigava com o Juca,
Juca era o dono da bola.
Na hora de escolher o time,
era o Juca quem primeiro dizia
os meninos que queria
pro time dele.
Se o capitão do outro time
discordava,
o jogo nem começava,
o Juca guardava a bola.
Ninguém brigava com o Juca,
Juca era o dono da bola.
A garotada corria
de um lado para o outro.
Dribla daqui, chuta pra lá,
passa para ali, cabeceia prá cá...
Juca ficava sentado
o tempo todo. Mas, na hora
de fazer gol, se mexia.
Corria e gritava:
"Passa que quem faz gol sou eu".
E se o outro não passava
ou se chutava e marcava
o gol que o Juca esperava,
o Juca guardava a bola.
Ninguém brigava com o Juca,
Juca era o dono da bola.
Todo gol que o outro time
fazia era anulado.
Ou tinha sido com a mão
ou impedido. Anulado.
O Juca dava rasteira,
canelada, cabeçada,
aleijava a garotada
e o juiz não marcava nada.
O tranco mais delicado
dado no Juca era pênalti.
E quando alguém discordava...
o Juca guardava a bola.
Ninguém brigava com o Juca,
Juca era o dono da bola.
Um dia, o Alfredinho achou
que aquilo era desaforo.
Driblou o primeiro, driblou o segundo,
driblou o terceiro, o quarto...
O Juca xingou a mãe dele.
Ele meteu a mão no Juca
(a garotada ficou espantada).
O Juca avançou pra ele,
ele tornou a dar no Juca
(a garotada ficou animada).
O Juca avançou outra vez.
Ele então jogou o Juca no chão
(a garotada foi toda em cima do Juca).
Quando Alfredinho voltou pra casa
o pai estava se queixando
que o dinheiro que ganhava
não chegava
pra alugar outra casa
ao menos com mais um quarto
pra botar seus nove filhos;
para comprar mais comida,
feijão pra seus nove filhos;
para comprar umas roupas
pra vestir seus nove filhos;
- Papai, por que o dinheiro
que você ganha não chega?
- É pouco.
- Por que é pouco?
- Porque o patrão paga pouco.
- Papai, por que vocês
não pedem mais ao patrão?
- O patrão despede a gente
e a gente fica sem pão.
- Por que o patrão despede?
- Porque ele é o dono das fábricas,
porque ele é dono das máquinas.
- Papai, por que vocês
não fazem com ele
o mesmo que nós fizemos com o Juca?
- Quem é o Juca?
- Juca era o dono da bola.
- Que foi que vocês fizeram?
- Tomámos a bola dele.
"O Povo Escreve a História nas Paredes", Mário Lago
(Mário Lago nasceu no dia 26 de Novembro de 1911. Morreu em 2002.)
Quando o Juca concordava,
a garotada tomava
conta da rua e armava
o campo de futebol.
Juca era o dono da bola,
Juca era o dono do jogo.
Fazia o que bem entendia
e quando alguém discutia
o Juca guardava a bola.
Ninguém brigava com o Juca,
Juca era o dono da bola.
Na hora de escolher o time,
era o Juca quem primeiro dizia
os meninos que queria
pro time dele.
Se o capitão do outro time
discordava,
o jogo nem começava,
o Juca guardava a bola.
Ninguém brigava com o Juca,
Juca era o dono da bola.
A garotada corria
de um lado para o outro.
Dribla daqui, chuta pra lá,
passa para ali, cabeceia prá cá...
Juca ficava sentado
o tempo todo. Mas, na hora
de fazer gol, se mexia.
Corria e gritava:
"Passa que quem faz gol sou eu".
E se o outro não passava
ou se chutava e marcava
o gol que o Juca esperava,
o Juca guardava a bola.
Ninguém brigava com o Juca,
Juca era o dono da bola.
Todo gol que o outro time
fazia era anulado.
Ou tinha sido com a mão
ou impedido. Anulado.
O Juca dava rasteira,
canelada, cabeçada,
aleijava a garotada
e o juiz não marcava nada.
O tranco mais delicado
dado no Juca era pênalti.
E quando alguém discordava...
o Juca guardava a bola.
Ninguém brigava com o Juca,
Juca era o dono da bola.
Um dia, o Alfredinho achou
que aquilo era desaforo.
Driblou o primeiro, driblou o segundo,
driblou o terceiro, o quarto...
O Juca xingou a mãe dele.
Ele meteu a mão no Juca
(a garotada ficou espantada).
O Juca avançou pra ele,
ele tornou a dar no Juca
(a garotada ficou animada).
O Juca avançou outra vez.
Ele então jogou o Juca no chão
(a garotada foi toda em cima do Juca).
Quando Alfredinho voltou pra casa
o pai estava se queixando
que o dinheiro que ganhava
não chegava
pra alugar outra casa
ao menos com mais um quarto
pra botar seus nove filhos;
para comprar mais comida,
feijão pra seus nove filhos;
para comprar umas roupas
pra vestir seus nove filhos;
- Papai, por que o dinheiro
que você ganha não chega?
- É pouco.
- Por que é pouco?
- Porque o patrão paga pouco.
- Papai, por que vocês
não pedem mais ao patrão?
- O patrão despede a gente
e a gente fica sem pão.
- Por que o patrão despede?
- Porque ele é o dono das fábricas,
porque ele é dono das máquinas.
- Papai, por que vocês
não fazem com ele
o mesmo que nós fizemos com o Juca?
- Quem é o Juca?
- Juca era o dono da bola.
- Que foi que vocês fizeram?
- Tomámos a bola dele.
"O Povo Escreve a História nas Paredes", Mário Lago
(Mário Lago nasceu no dia 26 de Novembro de 1911. Morreu em 2002.)
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segunda-feira, 25 de novembro de 2013
Jornalistas 2
Eça de Queirós
Portugal está a atravessar a pior crise
Que fazer? Que esperar? Portugal tem atravessado crises igualmente más: - mas nelas nunca nos faltaram nem homens de valor e carácter, nem dinheiro ou crédito. Hoje crédito não temos, dinheiro também não - pelo menos o Estado não tem: - e homens não os há, ou os raros que há são postos na sombra pela política. De sorte que esta crise me parece a pior - e sem cura.
"Correspondência (1891)", Eça de Queirós
A única crítica é a gargalhada
A única crítica é a gargalhada! Nós bem o sabemos: a gargalhada nem é um raciocínio, nem um sentimento; não cria nada, destrói tudo, não responde por coisa alguma. E no entanto é o único comentário do mundo político em Portugal. Um Governo decreta? gargalhada. Reprime? gargalhada. Cai? gargalhada. E sempre esta política, liberal ou opressiva, terá em redor dela, sobre ela, envolvendo-a como a palpitação de asas de uma ave monstruosa, sempre, perpetuamente, vibrante, e cruel - a gargalhada! Política querida, sê o que quiseres, toma todas as atitudes, pensa, ensina, discute, oprime - nós riremos. A tua atmosfera é de chalaça.
"Uma Campanha Alegre", Eça de Queirós
(Eça de Queirós nasceu no dia 25 de Novembro de 1845. Morreu em 1900.)
Que fazer? Que esperar? Portugal tem atravessado crises igualmente más: - mas nelas nunca nos faltaram nem homens de valor e carácter, nem dinheiro ou crédito. Hoje crédito não temos, dinheiro também não - pelo menos o Estado não tem: - e homens não os há, ou os raros que há são postos na sombra pela política. De sorte que esta crise me parece a pior - e sem cura.
"Correspondência (1891)", Eça de Queirós
A única crítica é a gargalhada
A única crítica é a gargalhada! Nós bem o sabemos: a gargalhada nem é um raciocínio, nem um sentimento; não cria nada, destrói tudo, não responde por coisa alguma. E no entanto é o único comentário do mundo político em Portugal. Um Governo decreta? gargalhada. Reprime? gargalhada. Cai? gargalhada. E sempre esta política, liberal ou opressiva, terá em redor dela, sobre ela, envolvendo-a como a palpitação de asas de uma ave monstruosa, sempre, perpetuamente, vibrante, e cruel - a gargalhada! Política querida, sê o que quiseres, toma todas as atitudes, pensa, ensina, discute, oprime - nós riremos. A tua atmosfera é de chalaça.
"Uma Campanha Alegre", Eça de Queirós
(Eça de Queirós nasceu no dia 25 de Novembro de 1845. Morreu em 1900.)
domingo, 24 de novembro de 2013
António Gedeão
Pedra filosofal
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
"Movimento Perpétuo", António Gedeão
(Rómulo de Carvalho, que usava o pseudónimo literário de António Gedeão, nasceu no dia 24 de Novembro de 1906. Morreu em 1997.)
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
"Movimento Perpétuo", António Gedeão
(Rómulo de Carvalho, que usava o pseudónimo literário de António Gedeão, nasceu no dia 24 de Novembro de 1906. Morreu em 1997.)
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sábado, 23 de novembro de 2013
O fim do mundo em Guimarães
Foto Hernâni Von Doellinger |
Houve um tempo em que Fafe era o fim do mundo. Tenho testemunhas. Gente que se metia no comboio em Ouagadougou ou em Anchorage, vamos um supor, às tantas desprecatava-se, passava pelas brasas e quando acordava desaguara em Fafe, porque o mundo acabava ali, numa parede à frente do nariz, rés-do-chão da Rua do Retiro. Era o fim da linha. Ou o princípio. Saía-se do comboio, subia-se a rampa até ao Zé da Menina, respirava-se fundo, olhava-se para o Largo e fazia-se vida. Se forem num instante a Fafe, ainda vão encontrar quem conte como fez.
Depois Fafe desistiu do comboio e queixou-se muito quando lho "tiraram".
Hoje o fim do mundo é em Guimarães. É lá que está o muro. Para além dali, nada. É um fim do mundo indoor, asmático e com luzinhas, uma boa merda à beira do nosso fim do mundo antigo, que era outra categoria - ao ar livre, com cheiro a alfádega e só saúde.
O mundo está, portanto, mais pequeno. Isto é científico. Mingou 14 quilómetros. Daria jeito para que nos aconchegássemos um bocadinho, trocássemos olás de boca, para que nos abraçássemos se fosse o caso, e no entanto apartamo-nos cada vez mais uns dos outros, de cabeças enfiadas em caixinhas de cores com teclas.
Ia-me esquecendo: a outra conclusão a tirar, e igualmente científica, é que Fafe já não é deste mundo.
Jornalistas
terça-feira, 19 de novembro de 2013
Leandro Gomes de Barros
Vou narrar agora um fato
Que há cinco séculos se deu
De um grande capitalista
Do continente europeu
Fortuna como aquela
Ainda não apareceu
Pedro Cem era o mais rico
Que nasceu em Portugal
Sua fama enchia o mundo
Seu nome andava em geral
Não casou-se com rainha
Por não ter sangue real
Em prédios, dinheiro e bens
Era o mais rico que havia
Nunca deveu a ninguém
Todo mundo lhe devia
Balanço em sua fortuna
Querendo dar não podia
Em cada rua ele tinha
Cem casas para alugar
Tinha cem botes no porto
E cem navios no mar
Cem lanchas e cem barcaças
Tudo isso a navegar
Tinha cem fábricas de vinho
E cem alfaiatarias
Cem depósitos de fazenda
Cem moinhos, cem padarias
E tinha dentro do mar
Cem currais de pescaria
Em cada país do mundo
Possuía cem sobrados
Em cada banco ele tinha
Cem contos depositados
Ocupavam mensalmente
Dezesseis mil empregados
Diz a história onde li
O todo desse passado
Que Pedro Cem nunca deu
Uma esmola a um desgraçado
Não olhava para um pobre
Nem falava com criado
[...]
"A Vida de Pedro Cem", Leandro Gomes de Barros
(Leandro Gomes de Barros nasceu no dia 19 de Novembro de 1865. Morreu em 1918.)
Que há cinco séculos se deu
De um grande capitalista
Do continente europeu
Fortuna como aquela
Ainda não apareceu
Pedro Cem era o mais rico
Que nasceu em Portugal
Sua fama enchia o mundo
Seu nome andava em geral
Não casou-se com rainha
Por não ter sangue real
Em prédios, dinheiro e bens
Era o mais rico que havia
Nunca deveu a ninguém
Todo mundo lhe devia
Balanço em sua fortuna
Querendo dar não podia
Em cada rua ele tinha
Cem casas para alugar
Tinha cem botes no porto
E cem navios no mar
Cem lanchas e cem barcaças
Tudo isso a navegar
Tinha cem fábricas de vinho
E cem alfaiatarias
Cem depósitos de fazenda
Cem moinhos, cem padarias
E tinha dentro do mar
Cem currais de pescaria
Em cada país do mundo
Possuía cem sobrados
Em cada banco ele tinha
Cem contos depositados
Ocupavam mensalmente
Dezesseis mil empregados
Diz a história onde li
O todo desse passado
Que Pedro Cem nunca deu
Uma esmola a um desgraçado
Não olhava para um pobre
Nem falava com criado
[...]
"A Vida de Pedro Cem", Leandro Gomes de Barros
(Leandro Gomes de Barros nasceu no dia 19 de Novembro de 1865. Morreu em 1918.)
domingo, 17 de novembro de 2013
Rachel de Queiroz
Depois de se benzer e de beijar duas vezes a medalhinha de São José, Dona Inácia concluiu: "Dignai-vos ouvir nossas súplicas, ó casticismo esposo da Virgem Maria, e alcançai o que rogamos. Amém." Vendo a avó sair do quarto do santuário, Conceição, que fazia a trança sentada numa rede ao canto da sala, interpelou-a:
- E isto chove, hein, Mãe Nácia? Já chegou o fim do mês... Nem por você fazer tanta novena...
Dona Inácia levantou para o telhado os olhos confiantes:
- Tenho fé em São José que ainda chove! Tem-se visto inverno começar até em abril.
Na grande mesa de jantar onde se esticava, engomada, uma toalha de xadrez vermelho, duas xícaras e um bule, sob o abafador bordado, anunciavam a ceia.
- Você não vem tomar o seu café de leite, Conceição? A moça ultimou a trança, levantou-se e pôs-se a cear, calada, abstraída.
A velha ainda falou em alguma coisa, bebeu um gole de café e foi fumar no quarto.
A bênção, Mãe Nácia! - E Conceição, com o farol de querosene pendendo do braço, passou diante do quarto da avó e entrou no seu, ao fim do corredor.
Colocou a luz sobre uma mesinha, bem junto da cama - a velha cama de casal da fazenda -,e pôs-se um tempo à janela, olhando o céu. E ao fechá-la, porque soprava um vento frio que lhe arrepiava os braços, ia dizendo:
- Eh! a lua limpa, sem lagoa! Chove não!...
Foi à estante. Procurou, bocejando, um livro. Escolheu uns quatro ou cinco, que pôs na mesa, junto ao farol. Aqueles livros - uns cem, no máximo - eram velhos companheiros que ela escolhia ao acaso, para lhes saborear um pedaço aqui, outro além, no decorrer da noite. Deitou-se vestida, desapertando a roupa para estar à vontade.
Pegou no primeiro livro que a mão alcançou, fez um monte de travesseiros ao canto da cama, perto da luz, e, fincando o cotovelo neles, abriu à toa o volume.
Era uma velha história polaca, um romance de Sienkiewicz, contando casos de heroísmos, rebeliões e guerrilhas. Conceição o folheou devagar, relendo trechos conhecidos, cenas amorosas, duelos, episódios de campanha. Largou-o, tomou os outros - um volume de versos, um romance francês de Coulevain.
E, ao repô-los na mesa, lastimava-se:
- Está muito pobre, essa estante! já sei quase tudo decorado!
- E isto chove, hein, Mãe Nácia? Já chegou o fim do mês... Nem por você fazer tanta novena...
Dona Inácia levantou para o telhado os olhos confiantes:
- Tenho fé em São José que ainda chove! Tem-se visto inverno começar até em abril.
Na grande mesa de jantar onde se esticava, engomada, uma toalha de xadrez vermelho, duas xícaras e um bule, sob o abafador bordado, anunciavam a ceia.
- Você não vem tomar o seu café de leite, Conceição? A moça ultimou a trança, levantou-se e pôs-se a cear, calada, abstraída.
A velha ainda falou em alguma coisa, bebeu um gole de café e foi fumar no quarto.
A bênção, Mãe Nácia! - E Conceição, com o farol de querosene pendendo do braço, passou diante do quarto da avó e entrou no seu, ao fim do corredor.
Colocou a luz sobre uma mesinha, bem junto da cama - a velha cama de casal da fazenda -,e pôs-se um tempo à janela, olhando o céu. E ao fechá-la, porque soprava um vento frio que lhe arrepiava os braços, ia dizendo:
- Eh! a lua limpa, sem lagoa! Chove não!...
Foi à estante. Procurou, bocejando, um livro. Escolheu uns quatro ou cinco, que pôs na mesa, junto ao farol. Aqueles livros - uns cem, no máximo - eram velhos companheiros que ela escolhia ao acaso, para lhes saborear um pedaço aqui, outro além, no decorrer da noite. Deitou-se vestida, desapertando a roupa para estar à vontade.
Pegou no primeiro livro que a mão alcançou, fez um monte de travesseiros ao canto da cama, perto da luz, e, fincando o cotovelo neles, abriu à toa o volume.
Era uma velha história polaca, um romance de Sienkiewicz, contando casos de heroísmos, rebeliões e guerrilhas. Conceição o folheou devagar, relendo trechos conhecidos, cenas amorosas, duelos, episódios de campanha. Largou-o, tomou os outros - um volume de versos, um romance francês de Coulevain.
E, ao repô-los na mesa, lastimava-se:
- Está muito pobre, essa estante! já sei quase tudo decorado!
"O Quinze", Rachel de Queiroz
(Rachel de Queiroz nasceu no dia 17 de Novembro de 1910. Morreu em 2003.)
sábado, 16 de novembro de 2013
José Saramago
O disco amarelo iluminou-se. Dois dos automóveis da frente aceleraram antes que o sinal vermelho aparecesse. Na passadeira de peões surgiu o desenho do homem verde. A gente que esperava começou a atravessar a rua pisando as faixas brancas pintadas na capa negra do asfalto, não há nada que menos se pareça com uma zebra, porém assim lhe chamam. Os automobilistas, impacientes, com o pé no pedal da embraiagem, mantinham em tensão os carros, avançando, recuando, como cavalos nervosos que sentissem vir no ar a chibata. Os peões já acabaram de passar, mas o sinal de caminho livre para os carros vai tardar ainda alguns segundos, há quem sustente que esta demora, aparentemente tão insignificante, se a multiplicarmos pelos milhares de semáforos existentes na cidade e pelas mudanças sucessivas das três cores de cada um, é uma das causas mais consideráveis dos engorgitamentos da circulação automóvel, ou engarrafamentos, se quisermos usar o termo corrente.
O sinal verde acendeu-se enfim, bruscamente os carros arrancaram, mas logo se notou que não tinham arrancado todos por igual. O primeiro da fila do meio está parado, deve haver ali um problema mecânico qualquer, o acelerador solto, a alavanca da caixa de velocidades que se encravou, ou uma avaria do sistema hidráulico, blocagem dos travões, falha do circuito eléctrico, se é que não se lhe acabou simplesmente a gasolina, não seria a primeira vez que se dava o caso. O novo ajuntamento de peões que está a formar-se nos passeios vê o condutor do automóvel imobilizado a esbracejar por trás do pára-brisas, enquanto os carros atrás dele buzinam frenéticos. Alguns condutores já saltaram para a rua, dispostos a empurrar o automóvel empanado para onde não fique a estorvar o trânsito, batem furiosamente nos vidros fechados, o homem que está lá dentro vira a cabeça para eles, a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não, duas, assim é realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém, enfim, conseguir abrir uma porta, Estou cego.
O sinal verde acendeu-se enfim, bruscamente os carros arrancaram, mas logo se notou que não tinham arrancado todos por igual. O primeiro da fila do meio está parado, deve haver ali um problema mecânico qualquer, o acelerador solto, a alavanca da caixa de velocidades que se encravou, ou uma avaria do sistema hidráulico, blocagem dos travões, falha do circuito eléctrico, se é que não se lhe acabou simplesmente a gasolina, não seria a primeira vez que se dava o caso. O novo ajuntamento de peões que está a formar-se nos passeios vê o condutor do automóvel imobilizado a esbracejar por trás do pára-brisas, enquanto os carros atrás dele buzinam frenéticos. Alguns condutores já saltaram para a rua, dispostos a empurrar o automóvel empanado para onde não fique a estorvar o trânsito, batem furiosamente nos vidros fechados, o homem que está lá dentro vira a cabeça para eles, a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não, duas, assim é realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém, enfim, conseguir abrir uma porta, Estou cego.
"Ensaio sobre a Cegueira", José Saramago
(José Saramago nasceu no dia 16 de Novembro de 1922. Morreu em 2010.)
sexta-feira, 15 de novembro de 2013
Porto, minha Havana à beira-Douro
Foto Hernâni Von Doellinger |
Quando um jornalista estrangeiro dá um peido sobre Portugal num sítio qualquer - sentado num penico ou sentado exactamente num site, como dizem os camones -, Portugal cora e pede desculpa. O penico ecoa e o sítio também - a nossa vergonha é imensa, embora o cu seja alheio.
Terá vindo ao Porto um tal de Nigel Cassidy, parece que por conta do site BBC News Business, e acabou por descobrir a pólvora: o Porto tem lojas fechadas e quarteirões inteiros de casas abandonadas. Pior, muito pior do que isso, há mulheres que lavam a roupa nos tanques das Fontainhas, indesmentível e intolerável sinal de que há gente sem emprego, com contas de energia por pagar e sem meios para substituir a máquina de lavar avariada.
Ora bem. Eu não sei se o senhor Nigel Cassidy percebe alguma coisa de máquinas de lavar avariadas. Se por acaso perceber, agradeço que passe cá por casa, que tenho uma a verter há mais de dez anos. Mas de tanques públicos o alegado repórter não percebe nada, isso digo-lho eu, nem percebe do que são os tanques públicos no Porto e no Norte. E também não percebeu nada do Porto nem de Portugal.
Deu-lhe jeito, ao tal Nigel Cassidy, fazer da cidade do Porto o caso exemplar "da crise que assola o País", como muito bem explica o nosso jornal Público, que também nunca perde pitada destas merdas em inglês. Deu jeito ao bife e deu jeito aos seus xerpas canhotos, mas estão todos tão enganados.
O Porto não começou a ser o buraco negro que é por causa "do programa de ajustamento imposto pelo resgate financeiro de Portugal". A cidade do Porto não desapareceu de repente há dois anos e meio, num estalar de dedos da troika. Não. O Porto abandonou-se, mudou-se para Lisboa há décadas e o pobre Porto que ficou para trás teve Rui Rio durante doze anos. Queriam agora o quê?
Esta gente fala da "crise" como quem fala de folclore. Deixem-me rir, ó Nigel e arquitectos militantes, mas esta história não é vossa. Quando quiserem falar da crise, perguntem a quem sabe, a quem se lava no tanque. O Porto é uma "Detroit europeia", uma "mini-Havana", é o que dizem? Melhor para mim, que não tenho dinheiro para ir para fora.
quinta-feira, 14 de novembro de 2013
Júlio Dinis
Ao cair de uma tarde de Dezembro, de sincero e genuíno Dezembro, chuvoso, frio, açoutado do sul e sem contrafeitos sorrisos de Primavera, subiam dois viandantes a encosta de um monte por a estreita e sinuosa vereda que pretensiosamente gozava das honras de estrada, à falta de competidora, em que melhor coubessem.
Era nos extremos do Minho e onde esta risonha e feracíssima província começa já a ressentir-se, se não ainda nos vales e planuras, nos visos dos oiteiros pelo menos, da vizinhança da sua irmã, a alpestre e severa Trás-os-Montes.
O sítio, naquele ponto, tinha o aspecto solitário, melancólico e, nessa tarde, quase sinistro. Dali a qualquer povoação importante, e com nome em carta corográfica, estendiam-se milhas de pouco transitáveis caminhos. Vestígios de existência humana raro se encontravam. Só de longe em longe, a choça do pegureiro ou a cabana do rachador, mas estas tão ermas e desamparadas, que mais entristeciam do que a absoluta solidão.
Não se moviam em perfeita igualdade de condições os dois viandantes, que dissemos.
Um, o mais moço e pela aparência o de mais grada posição social, era transportado num pouco escultural, mas possante muar, de inquietas orelhas, músculos de mármore e articulações fiéis; o outro seguia a pé, ao lado dele, competindo, nas grandes passadas que devoravam o caminho, com a quadrupedante alimária, cujos brios, além disso, excitava por estímulos menos brandos do que os da simples e nobre emulação.
Contra o que seria plausível esperar deste desigual processo de transporte, dos dois o menos extenuado e impaciente com as longuras e fadigas da jornada não se pode dizer que fosse o cavaleiro.
A postura de abatimento que lhe tomara o corpo, o olhar melancólico, fito nas orelhas do macho, a indiferença, a taciturnidade ou o manifesto mau humor, que nem as belezas e acidentes da paisagem natural conseguiam já desvanecer, o obstinado silêncio que apenas de quando em quando interrompia com uma frase curta mas enérgica, com uma pergunta impaciente sobre o termo da jornada, contrastavam com a viveza de gestos e desempenado jogo de membros do pedestre, com a sua torrencial verbosidade, a que não opunha diques, e com as joviais cantigas e minuciosas informações a respeito de tudo, por meio das quais se encarregava de entreter e ao mesmo tempo instruir o seu sorumbático companheiro.
Explica-se bem esta diferença, dizendo que o cavaleiro era um elegante rapaz de Lisboa, que fazia então a sua primeira jornada, e o outro um almocreve de profissão.
"A Morgadinha dos Canaviais", Júlio Dinis
(Joaquim Guilherme Gomes Coelho, conhecido como Júlio Dinis, nasceu no dia 14 de Novembro de 1839. Morrem em 1871.)
Era nos extremos do Minho e onde esta risonha e feracíssima província começa já a ressentir-se, se não ainda nos vales e planuras, nos visos dos oiteiros pelo menos, da vizinhança da sua irmã, a alpestre e severa Trás-os-Montes.
O sítio, naquele ponto, tinha o aspecto solitário, melancólico e, nessa tarde, quase sinistro. Dali a qualquer povoação importante, e com nome em carta corográfica, estendiam-se milhas de pouco transitáveis caminhos. Vestígios de existência humana raro se encontravam. Só de longe em longe, a choça do pegureiro ou a cabana do rachador, mas estas tão ermas e desamparadas, que mais entristeciam do que a absoluta solidão.
Não se moviam em perfeita igualdade de condições os dois viandantes, que dissemos.
Um, o mais moço e pela aparência o de mais grada posição social, era transportado num pouco escultural, mas possante muar, de inquietas orelhas, músculos de mármore e articulações fiéis; o outro seguia a pé, ao lado dele, competindo, nas grandes passadas que devoravam o caminho, com a quadrupedante alimária, cujos brios, além disso, excitava por estímulos menos brandos do que os da simples e nobre emulação.
Contra o que seria plausível esperar deste desigual processo de transporte, dos dois o menos extenuado e impaciente com as longuras e fadigas da jornada não se pode dizer que fosse o cavaleiro.
A postura de abatimento que lhe tomara o corpo, o olhar melancólico, fito nas orelhas do macho, a indiferença, a taciturnidade ou o manifesto mau humor, que nem as belezas e acidentes da paisagem natural conseguiam já desvanecer, o obstinado silêncio que apenas de quando em quando interrompia com uma frase curta mas enérgica, com uma pergunta impaciente sobre o termo da jornada, contrastavam com a viveza de gestos e desempenado jogo de membros do pedestre, com a sua torrencial verbosidade, a que não opunha diques, e com as joviais cantigas e minuciosas informações a respeito de tudo, por meio das quais se encarregava de entreter e ao mesmo tempo instruir o seu sorumbático companheiro.
Explica-se bem esta diferença, dizendo que o cavaleiro era um elegante rapaz de Lisboa, que fazia então a sua primeira jornada, e o outro um almocreve de profissão.
"A Morgadinha dos Canaviais", Júlio Dinis
(Joaquim Guilherme Gomes Coelho, conhecido como Júlio Dinis, nasceu no dia 14 de Novembro de 1839. Morrem em 1871.)
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quarta-feira, 13 de novembro de 2013
terça-feira, 12 de novembro de 2013
Bruno Tolentino
A imitação da música, 98
Prometeu já não furta o relâmpago.
Ícaro não aspira a um céu invinto.
Anteu não quer a terra nem o Olimpo.
Há um pretenso heroísmo cujo pântano
é um mundo aleatório como o instinto.
Vai surgindo outro sonho, outro esperanto
em Babel, uma torre confiscando
as altitudes que não vão subindo,
vão-se encolhendo e se resignando
às superposições do gesto ímpio.
Nem há mais, assombrados pelos campos,
um enigma, uma esfinge, um deus surgindo
sob as conjurações dos pirilampos.
Não: há um vazio, um lento labirinto.
"O mundo como Ideia", Bruno Tolentino
(Bruno Tolentino nasceu no dia 12 de Novembro de 1940. Morreu em 2007.)
Prometeu já não furta o relâmpago.
Ícaro não aspira a um céu invinto.
Anteu não quer a terra nem o Olimpo.
Há um pretenso heroísmo cujo pântano
é um mundo aleatório como o instinto.
Vai surgindo outro sonho, outro esperanto
em Babel, uma torre confiscando
as altitudes que não vão subindo,
vão-se encolhendo e se resignando
às superposições do gesto ímpio.
Nem há mais, assombrados pelos campos,
um enigma, uma esfinge, um deus surgindo
sob as conjurações dos pirilampos.
Não: há um vazio, um lento labirinto.
"O mundo como Ideia", Bruno Tolentino
(Bruno Tolentino nasceu no dia 12 de Novembro de 1940. Morreu em 2007.)
segunda-feira, 11 de novembro de 2013
D. Sancho I
Ai eu coitada!
como vivo en gran cuidado
por meu amigo
que ei alongado!
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!
Ai eu coitada!
Ai eu coitada!
como vivo en gran desejo
por meu amigo
que tarda e non vejo!
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!
D. Sancho I
(Sancho Afonso, que primeiro foi Martinho e ficou na História como D. Sancho I, nasceu no dia 11 de Novembro de 1154. Morreu em 1211.)
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domingo, 10 de novembro de 2013
Da defesa mista ao prego em prato
A defesa mista não foi inventada por Luís Freitas Lobo. Mas, na boca de Freitas Lobo, a defesa mista ganha foros de insondável ciência, sublimidade concomitante e apropinquada só ao alcance de dois ou três predestinados: ele. Além disso, a defesa mística explica quase tudo o que acontece, para o bem e para o mal, no último terço do terreno, amém.
Luís Freitas Lobo é um homem culto e sabe muito de futebol, muito mais do que eu - é preciso que se note. Mas fala pelos cotovelos e pelos joelhos, decerto nunca se ouviu. É muita posse de bola, e o parlapiê havia de aparecer também nas estatísticas finais, à beira dos cantos e dos remates à baliza, a ver se ele tomava sentido. O comentador televisivo não deixa espaço ao narrador que eu só quero que me diga os nomes dos números, põe-se à frente do telespectador, acha que fala para cegos doutorados, metaforizando as coisas corriqueiras que, porventura desconhece, nós também estamos a ver e somos simples. Quer-se dizer: o comentador é ruído. Freitas Lobo, que acha que tudo o que diz é absolutamente essencial e extraordinário, está a banalizar o jogo, a desvalorizá-lo, a transformá-lo numa treta. Porque passam-se coisas no campo, coisas, e eu tenho dois olhos e a minha opinião.
Já sei: vão dizer-me que, se não gosto, sempre posso tirar o som. Tirei.
Era uma bola a pinchar e onze contra onze numa luta brava em campo pelado. Naquela altura eu acreditava no futebol. Era o jogo da bola, só isso, mais uma que outra coça aos árbitros. Lembro-me dos jogadores com camisas de botões e das chuteiras remendadas e de travessas. O meu coração era amarelo e preto, todo branco de vez em quando, com o azul e branco ainda guardado para segundas núpcias. Lembro-me dos jogadores que nasciam e morriam no clube onde nasceram. Lembro-me de jogadores que verdadeiramente morreriam em campo pelo seu clube, era só dizerem-lhes que era preciso. Lembro-me de jogadores que corriam como se treinassem todos os dias e só treinavam durante o jogo. Lembro-me de jogadores que fugiam da tropa para jogar e depois iam presos. Lembro-me de jogadores que chegavam da guerra carregados de paludismo e queriam lá saber. Lembro-me de jogadores que choravam nas derrotas e embebedavam-se nas vitórias, porque era assim. Lembro-me e gosto. Sou um bocado velho, o que se há-de fazer?
Os palavrões futebolísticos com nada dentro não nasceram agora, neste tempo insosso cheio de periodizações tácticas, champôs e espaços entre linhas. Há mestres antes do mestre. E nem vou falar dos estimáveis Gabriel Alves e Rui Tovar. Mas do consagrado Alves dos Santos, que nos deu a "pertinácia" e o "arreganho", e viu um golo "exactamente igual ao golo anterior", quando a Eurovisão estreou as repetições (que era só uma, com um inesperado e mal amanhado R no canto superior direito do ecrã da televisão do Peludo) e ele não sabia. Ou do bom do Mário Wilson, então treinador do Boavista, quando perdeu nas Antas e queixou-se dos golos de "bola parada". José Maria Pedroto, então treinador do FC Porto, disse que não podia ser: bola parada não anda, logo não entra, explicou.
Sou, portanto, antigo. Gosto de futebol. Dos noventa e tal minutos que se jogam em campo. Vejo e sei o que vejo, não preciso que ninguém me ensine e dispenso a opinião especialista. Para mim um jogo não dura uma semana. E, sim, gosto de ver futebol na televisão, mas, para ouvir futebol, prefiro a Antena 1. Ou então um prego em prato.
P.S. - A fotografia, retirei-a do livro "Associação Desportiva de Fafe - 50 Anos de História", de Artur Ferreira Coimbra. E melhorei-a. É a nossa equipa da época 1962/1963. Da esquerda para a direita, de pé: Toneca, Germano, Apolinário, Ricoca, Costa, Adelino, Manel Zebras e o massagista João "Americano"; de joelhos: Júlio Alves, Fernando Alves, Berto Dantas, Mário "Machica", Adriano e Avelino Lopes. Estes e outros eram os meus ídolos e mais tarde, quando botei bigode, fizeram-me o imerecido favor de serem também meus amigos. Lembro-me deles todos os dias e esta é uma espécie de homenagem a que tornarei.
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Álvaro Cunhal
Longe de veredas e
povoações, a serra ondulava pedregosa e nua. Só aqui e além, ao fundo
das encostas ou por detrás dos cabeços, repousavam manchas macias de
terra lavrada. Donde e quem vinha lavrá-la parecia mistério em sítio tão
desolado e ermo. Toda a tarde caminharam, o Lambaça adiante, André
atrás. Nem uma só vez avistaram um ser humano. Não fora o sol derramando
luz no ar e nas coisas, não fora o ar límpido e leve, aquele deserto e
aquele silêncio seriam intoleravelmente opressivos. Assim, a serra
abria-se à intimidade, numa carícia tranquila e confiante.
Mas, quando o sol começou a aproximar-se do horizonte, e os vales se diluíram em penumbras, e os cabeços e rebolos estenderam as sombras, e o ar começou a pesar de humidade e frio, então, sobranceira, a serra ganhou subitamente nova grandeza, como que olhando os intrusos com hostilidade.
"Cinco Dias, Cinco Noites", Manuel Tiago
(Álvaro Cunhal, que usou o pseudónimo literário de Manuel Tiago, nasceu no dia 10 de Novembro de 1913. Faz hoje cem anos. Morreu em 2005.)
Mas, quando o sol começou a aproximar-se do horizonte, e os vales se diluíram em penumbras, e os cabeços e rebolos estenderam as sombras, e o ar começou a pesar de humidade e frio, então, sobranceira, a serra ganhou subitamente nova grandeza, como que olhando os intrusos com hostilidade.
"Cinco Dias, Cinco Noites", Manuel Tiago
(Álvaro Cunhal, que usou o pseudónimo literário de Manuel Tiago, nasceu no dia 10 de Novembro de 1913. Faz hoje cem anos. Morreu em 2005.)
sábado, 9 de novembro de 2013
Cavaco e a Constituição, exactamente
Foto Hernâni Von Doellinger |
Cavaco pede acordo (entre o Governo e o PS) para evitar chumbo do Orçamento no TC, diz a manchete do jornal. Exactamente: se o Pedro e o Tozé se entenderem, que se lixe a Constituição. É um bom truque. Truque de traque. Por mor de evitar manhosas interpretações, porque é que o homem não se queda pela cortiça?
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Dinah Silveira de Queiroz
Era como uma brecha ou ferida rasgando as árvores e as plantas, uma vila miserável que transbordava de gente. Ela via os casebres, o povo afluindo ao porto, o navio chegando à bacia de óleo,e punha sua vista naquele teatro com a firmeza do sacrifício que se entrega, cuidando no céu. Se Deus bem quisesse, daí a momentos iria conhecer Tiago, seu primo, seu prometido, a resposta que dera à vida pequenina de Lisboa. O olhar crescia na água, atravessando as lágrimas que não queriam cair. Havia um apagado de luz branca, em torno da mancha vermelha e cinza de orlas verdes de São Vicente. Ali estava seu caminho, seu destino. "Sou como um inocente que entendesse seu próprio nascer".
"A Muralha", Dinah Silveira de Queiroz
(Dinah Silveira de Queiroz nasceu no dia 9 de Novembro de 1911. Morreu em 1982.)
"A Muralha", Dinah Silveira de Queiroz
(Dinah Silveira de Queiroz nasceu no dia 9 de Novembro de 1911. Morreu em 1982.)
sexta-feira, 8 de novembro de 2013
Cavaco e a cortiça, exactamente
Foto Hernâni Von Doellinger |
O Presidente da República destacou nesta quinta-feira a "enorme potencialidade" da cortiça, diz o jornal. Exactamente: a cortiça é impermeável, isolante, flutuante, flexível, compressível, resistente à temperatura e ao desgaste do tempo. Cavaco Silva falou finalmente do que sabe e, estou de acordíssimo, era o destaque que se impunha.
Teixeira de Pascoaes 2
Que saudades eu sinto desta flor,
Que vai murchar!
E desta gota de água e de esplendor,
Um pequenino mundo que é só mar.
E desta imagem que por mim passou
Misteriosamente.
E desta folha pálida e tremente
Que tombou...
Da voz do vento que me deixa mudo,
E deste meu espanto de criança.
Que saudades de tudo eu sinto, porque tudo
É feito de lembrança...
"Versos Pobres", Teixeira de Pascoaes
(Teixeira de Pascoaes nasceu no dia 8 de Novembro de 1877. Morreu em 1952.)
Que vai murchar!
E desta gota de água e de esplendor,
Um pequenino mundo que é só mar.
E desta imagem que por mim passou
Misteriosamente.
E desta folha pálida e tremente
Que tombou...
Da voz do vento que me deixa mudo,
E deste meu espanto de criança.
Que saudades de tudo eu sinto, porque tudo
É feito de lembrança...
"Versos Pobres", Teixeira de Pascoaes
(Teixeira de Pascoaes nasceu no dia 8 de Novembro de 1877. Morreu em 1952.)
quinta-feira, 7 de novembro de 2013
Cecília Meireles
Jornal, longe
Que faremos destes jornais, com telegramas, notícias,
anúncios, fotografias, opiniões...?
Caem as folhas secas sobre os longos relatos de guerra:
e o sol empalidece suas letras infinitas.
Que faremos destes jornais, longe do mundo e dos homens?
Este recado de loucura perde o sentido entre a terra e o céu.
De dia, lemos na flor que nasce e na abelha que voa;
de noite, nas grandes estrelas, e no aroma do campo serenado.
Aqui, toda a vizinhança proclama convicta:
"Os jornais servem para fazer embrulhos".
E é uma das raras vezes em que todos estão de acordo.
"Mar Absoluto e Outros Poemas", Cecília Meireles
(Cecília Meireles nasceu no dia 7 de Novembro de 1901. Morreu em 1964.)
Que faremos destes jornais, com telegramas, notícias,
anúncios, fotografias, opiniões...?
Caem as folhas secas sobre os longos relatos de guerra:
e o sol empalidece suas letras infinitas.
Que faremos destes jornais, longe do mundo e dos homens?
Este recado de loucura perde o sentido entre a terra e o céu.
De dia, lemos na flor que nasce e na abelha que voa;
de noite, nas grandes estrelas, e no aroma do campo serenado.
Aqui, toda a vizinhança proclama convicta:
"Os jornais servem para fazer embrulhos".
E é uma das raras vezes em que todos estão de acordo.
"Mar Absoluto e Outros Poemas", Cecília Meireles
(Cecília Meireles nasceu no dia 7 de Novembro de 1901. Morreu em 1964.)
quarta-feira, 6 de novembro de 2013
Sophia de Mello Breyner Andresen
Pátria
Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro
Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Do longo relatório irrecusável
E pelos rostos iguais ao sol e ao vento
E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas
- Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro
Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo
"Livro Sexto", Sophia de Mello Breyner Andresen
(Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no dia 6 de Novembro de 1919. Morreu em 2004.)
Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro
Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Do longo relatório irrecusável
E pelos rostos iguais ao sol e ao vento
E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas
- Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro
Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo
"Livro Sexto", Sophia de Mello Breyner Andresen
(Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no dia 6 de Novembro de 1919. Morreu em 2004.)
terça-feira, 5 de novembro de 2013
Exm.º Sítio da Câmara Municipal de Fafe,
Foto Hernâni Von Doellinger |
Anunciou V. Ex.ª a tomada de posse da nova Câmara Municipal de Fafe para as 17 horas do passado sábado, dia 2 de Novembro. E anunciou-a de forma gongórica, é preciso que se note, o que só engrandece a importância de um acto que V. Ex.ª certeiramente classificou como "instalação dos órgãos".
Hoje é terça-feira, dia 5 de Novembro, e sobre o assunto mais nada. Acaba de dar-me V. Ex.ª a pertinente notícia de que a Biblioteca Municipal promove uma exposição alusivo ao S. Martinho. E está muito bem. Agradeço. Mas compreenda que o coração se me apequenou quando, perante este silêncio todo, comecei a pensar que se calhar no sábado não houve posse nenhuma, que Fafe ainda não tem Câmara, que a rambóia continua, que foram aos penáltis e que o Dr. Raul ainda é o médico da minha mãe (o que, na verdade, até me deixaria mais descansado).
Tenha a bondade de perceber, Exm.º Sítio, a minha angústia: já lá vão quatro dias e eu não sei do presidente da Câmara. Passei pelos hospitais, fui à GNR, liguei à PJ, perguntei à minha vizinha que sabe tudo da vida dos outros - todos me mandaram fazer a mesma coisa, contactar V. Ex.ª. Que, se houvesse novidades, V. Ex.ª é que as haveria de saber, faz parte das obrigações, foi o que me disseram em todo o lado.
Permita-me, portanto, que, mais respeitosamente era impossível, solicite de V. Ex.ª as seguintes informações:
- Houve tomada de posse ou não?
- Se não houve, foi por ter morrido alguém? Se houve, morreu alguém?
- Em tendo ocorrido a muito bem dita "instalação dos órgãos autárquicos", o novo presidente tomou posse?
- Se tomou posse, Raul Cunha falou? E disse alguma coisa? E está bem de saúde? E há fotografias que atestem que o homem está vivo?
- O sítio oficial da Câmara de Fafe tem vergonha da cerimónia de tomada de posse da Câmara de Fafe? Se tem, porquê?
- Para que é que serve o sítio oficial de uma Câmara Municipal?
Grato pela atenção,
com os melhores cumprimentos,
h.
Mormente
- Então, vizinho, o que me diz?
- Digo, sobre quê?
- Sobre tudo...
- Sobretudo? Ah! Acho que nomeadamente.
- Digo, sobre quê?
- Sobre tudo...
- Sobretudo? Ah! Acho que nomeadamente.
segunda-feira, 4 de novembro de 2013
O filósofo Carrilho e o carralho do mediatismo
Manuel Maria Carrilho. A notícia diz: O antigo ministro da Cultura tem dado várias entrevistas ao longo dos últimos
dias. No sábado, disse não saber como lidar com o mediatismo em torno da
separação de Bárbara Guimarães. Eu ensino-o, Senhor Professor: deixe de dar entrevistas.
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domingo, 3 de novembro de 2013
Gosto deste Papa. Temo por este Papa.
Já repararam no extraordinário desta coisa tão simples? O Papa quer saber o que pensam os católicos. Há séculos que o Vaticano nos diz o que devemos pensar e o que é pecado pensarmos. Agora pergunta-nos a nossa opinião. Com Francisco, parece que somos outra vez Igreja. Deus queira que não lhe tirem a tosse.
O desporto é bom é com gajas. Gajas boas.
Não sei quem começou, mas foi no estrangeiro. O desporto na televisão passou a ser sobretudo bancadas. Antes, durante e depois. O entretanto do campo é agora apenas uma obrigação publicitária, um bocejo de todo o tamanho. As câmaras procuram é gajas de arrebita. Gajas boas, finas e bonitas. Se de repente as gajas boas, finas e bonitas metem o dedo no nariz e vão comer o carranho de há três dias, a câmara foge a sete pés que não tem, porque gajas boas, finas e bonitas não comem carranhos. São as ordens. Comem pistácios homologados pela FIFA. E a FIFA e outras fífias são mandadas por mentecaptos e onzeneiros.
Consta que no Portugal dos pequeninos há uma guerra pelos direitos de transmissão de gajas boas, finas e bonitas e de carranhos em vinha-d'alhos. Uma guerra que mete ao embrulho as televisões ditas televisões, a Sport TV do Joaquim Oliveira que dá cabo de empregos e de jornais, Angola é nossa (ou somos Angola), a Benfica TV, um careca desnorteado e catorze alegados clubes da alegada Liga de futebol que na verdade são apenas um, o meu.
Pago um dinheirão pela minha televisão. Rima e é verdade. Não vejo nada, mas gosto de passar os olhos por tudo. E lá estão as gajas boas, finas e bonitas. Nas bancadas. No ténis que é bem, no basquetebol americano, no voleibol português com side-out, no hóquei em patins de trazer por casa, no andebol assim assim, no futebol já me tinhas dito, no pingue-pongue de olhos em bico, no hipismo aiô silver, no motociclismo, na Fórmula 1, na Fórmula 2, na Fórmula 3, na fórmula mágica e nas fórmulas todas. Também no bowling e nos dardos, simpáticas modalidades que, para ser correcto, ainda andam à procura de gajas boas, finas e bonitas. Nas bancadas.
Consta que no Portugal dos pequeninos há uma guerra pelos direitos de transmissão de gajas boas, finas e bonitas e de carranhos em vinha-d'alhos. Uma guerra que mete ao embrulho as televisões ditas televisões, a Sport TV do Joaquim Oliveira que dá cabo de empregos e de jornais, Angola é nossa (ou somos Angola), a Benfica TV, um careca desnorteado e catorze alegados clubes da alegada Liga de futebol que na verdade são apenas um, o meu.
Pago um dinheirão pela minha televisão. Rima e é verdade. Não vejo nada, mas gosto de passar os olhos por tudo. E lá estão as gajas boas, finas e bonitas. Nas bancadas. No ténis que é bem, no basquetebol americano, no voleibol português com side-out, no hóquei em patins de trazer por casa, no andebol assim assim, no futebol já me tinhas dito, no pingue-pongue de olhos em bico, no hipismo aiô silver, no motociclismo, na Fórmula 1, na Fórmula 2, na Fórmula 3, na fórmula mágica e nas fórmulas todas. Também no bowling e nos dardos, simpáticas modalidades que, para ser correcto, ainda andam à procura de gajas boas, finas e bonitas. Nas bancadas.
sábado, 2 de novembro de 2013
Teixeira de Pascoaes
A alma
A alma não é mais
Que transcendente imagem
De tudo quanto abrange
A luz do nosso olhar.
É o retrato perfeito
E fiel duma paisagem:
Tem uma serra ao fundo, e, depois dela, o mar.
Teixeira de Pascoaes
(Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, mais conhecido como Teixeira de Pascoaes, gostava de ter nascido no dia 2 de Novembro de 1877. Morreu em 1952.)
A alma não é mais
Que transcendente imagem
De tudo quanto abrange
A luz do nosso olhar.
É o retrato perfeito
E fiel duma paisagem:
Tem uma serra ao fundo, e, depois dela, o mar.
Teixeira de Pascoaes
(Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, mais conhecido como Teixeira de Pascoaes, gostava de ter nascido no dia 2 de Novembro de 1877. Morreu em 1952.)
sexta-feira, 1 de novembro de 2013
A diferença entre panache e panachê é gasosa
Foto Hernâni Von Doellinger |
Auto-Garage Avenida. Gosto deste nome assim. Lembra-me Monsieur Hulot, mas não é por isso. Sou um tipo démodé: gosto de garages, de equipes, de cabines, de omoletes, de camionetes, de bicicletes - palavras que já não se usam (há quem não tenha sido informado) mas que mantêm um certo e determinado je ne sais quoi. Esta preciosidade sobrevive em Guimarães, na Avenida Dom Afonso Henriques, logo abaixo dos restos mortais do Teatro Jordão. Teve também certamente melhores dias, mas o panache ainda lá está. E eu disse panache, não disse panachê.
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