terça-feira, 31 de agosto de 2021

O Sousa dos altifalantes

A frase era: "E ao iniciarmos os nossos trabalhos, a todos desejamos uma muito boa tarde". Mas só funcionava se fosse metida no meio de uma marcha militar de John Philip Sousa, que para mim era um músico português de Castelo de Paiva que tinha ido para a América em pequenino. Eu sabia que no Pejão, acolá nas redondezas, havia por aquela altura uma grande banda de música, quase tão boa como a nossa, a de Revelhe, e era por isso. Quanto à marcha propriamente dita, de preferência Stars And Stripes Forever. Isso, sim, era serviço profissional. Serviço completo.
Os domingos à tarde da minha infância eram os melhores dias do mundo. Até tinham altifalantes e fanfarraE eu adorava os altifalantes e a música. Os altifalantes chamavam por mim e eu ia hipnotizado como um rato atrás do flautista de Hamelin. As marchas de John Philip Sousa eram o indicador, o indicativo. Eram sinal de futebol no Campo da Granja, eram Festa da Bomba, eram o Santo António na minha rua, eram a Senhora de Antime que descia à vila numa tremenda e comovente procissão, a banda no fim, à ordem do bombo mas a toque de caixa, debitando uma interminável ladainha de preguiçosos e compungidos "Queremos Deus"...

P.S. - Publicado originalmente no dia 10 de Janeiro de 2013. O fenomenal John Philip Sousa - compositor, maestro, militar, atirador desportivo, escritor e etc. - era de facto luso-americano, filho de pai português de origem açoriana. Os camones chamam-lhe Suza, como a da mala de cartão...

O boleto

O boleto é uma ordem oficial escrita que requisita alojamento para militares numa casa particular ou o próprio alojamento assim conseguido. É também salvo-conduto, a parte superior do carril sobre o qual rolam comboios e eléctricos, um género de cogumelos comestíveis e a articulação da perna do cavalo acima da ranilha, dizem uns, ou acima da quartela, dizem outros. No Brasil, boleto é ainda papelinho de aposta nas corridas de cavalos, registo de dados de uma operação bolsista, bilhete de acesso a espectáculos e similares ou impresso de factura-recibo.
Posto isto, que não interessa para nada, mudemos de assunto. Falemos de uma coisa completamente diferente. Falemos do boleto.
O boleto que, pelo menos aqui há uns anos e em Fafe, era praticado pelas bandas de música e consistia numa módica quantia em dinheiro vivo que o contramestre da filarmónica distribuía pelos músicos provavelmente a título de ajuda de custo ou, talvez melhor dizendo, como subsídio de alimentação - o que salvava o dia sobretudo aos jovens aprendizes, que passeavam muito bem a farda e faziam número na procissão mas "ainda não ganhavam".
De uma certa maneira, o boleto era também uma das peças do concerto. Enfim, uma bagatela, como lhe chamariam os românticos. Peça curta e despretensiosa mas de sucesso garantido, faço questão de acrescentar, para contar tudo como deve ser contado. Se não parecesse um rematado disparate, suponho até que seriam os próprios músicos a pedir bis. O dinheiro saía em notas puídas e renitentes de um gordo envelope cada vez mais magro e era entregue em mão, uma mão atrás da outra, no dia mesmo da "festa", em pleno coreto, com o povo ao redor, durante um intervalo que desse jeito.
Posso ter inventado esta memória, mas cuido que o mais das vezes o bodo era repartido já da parte da tarde do "serviço". E que se segue? Não sei porquê (sei, sei!), a minha cabeça começou então a ligar boleto a beberete, merenda, vinho, como se fossem palavras sinónimas, e até hoje. Boleto igual a merenda, vinho. Exactamente. Merenda ao "balcão" de uma barraca beduína, periclitante e malcheirosa, espécie de estendal armado às três pancadas entre varas de choupo e toldos de pano, com bacalhau frito, orelheira salgada, frango de churrasco, milhões de moscas e sardinhas assadas que eram uma desgraça. Uma desgraça bem bebida, afogada em tinto ou branco até ao nariz.
Vinho, como quem diz. Bastas ocasiões bebia-se "receita", isto é, juntava-se cerveja e açúcar ao alegado vinho para disfarçar o pique a vinagre... 

P.S. - Publicado originalmente no dia 18 de Março de 2020. E não esquecer nunca: fafense ou merenda devem ler-se e dizer-se sempre fafénse ou merénda. E sémpre também... 

O último dos Bernardinos

Já sabem, eu não posso ver na rua bandas de música ou grupos de zés-pereiras, que me perco. Sigo-lhes os passos, esqueço-me da vida, já não sei que recado ia fazer. (Eram quatro ou cinco pães? Ou seriam bananas?) Os "trampolineiros" da minha infância alegram-me os dias da madureza, descompassam-me o bater do coração, tornam-me a Fafe e à pureza original, comovem-me. Queria que houvesse discos pedidos para poder encomendar todos os dias o "Resineiro" cantado de mansinho mas bem picada de tasco em tasco. Queria pedir desculpa por ignorantemente lhes ter chamado "trampolineiros", coisa feia. Eram, são, tamborileiros. Os tamborileiros da minha alegria triste. E portanto cá vai mais uma vez, versão refinada e aumentada:

O meu avô Bernardino Neques, que nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria, tinha o seu lado musical. Desunhava-se satisfatoriamente com a concertina e o acordeão, e já velhinho veio-lhe a mania do violão, lembro-me que com alguma falta de jeito, Deus me perdoe se estou a ser injusto. Esqueçamos, porém, o violão, o acordeão e a concertina, que foram só para meter conversa. Tornemos aos bombos, à caixaria.
O Neques do meu avô Bernardino não era de baptismo. O verdadeiro nome do meu avô de Basto era Amigo Pereira - assim lhe chamava toda a gente por essas feiras e romarias ali à beira, a começar pela Lagoa, onde ele varria o terreiro com o varapau de lódão girando por cima da cabeça como ventoinha de helicóptero, e suponho que não é preciso dizer mais nada para que se perceba de que marca era o homem. (Mas vou dizer: quando fazia de jogador do pau e estava decentemente avinhado, o meu avô tinha um grito de guerra que era "Olraitecamoniésse!". E tinha um cão de pele e osso ao qual dera o nome de Tuísta, que queria dizer Twist. O meu querido avô era anglófilo americanado e não sabia. De americano, o Bô só conhecia o vinho, e talvez o João Massagista, mas desta parte não tenho a certeza.) A alcunha que ficou famosa, Neques, veio-lhe do seu tempo de moço, contava-se, quando rufava a bom rufar na caixa, honesto instrumento por onde começou na arte. E tocava naquele ritmo manso e exacto que ele gostava de explicar como neque-neque-neque, neque-neque, neque-pum. Neques, pois.
O meu avô era apaixonante. Obviamente Banda Revelhe, por causa do meu pai e por bom gosto natural. E o toque de caixa, para o Amigo Pereira, tinha ciência, solfejo. Gostava de perguntar-me, por exemplo, "Quantas pranas tem uma rana?", como se estivéssemos a elaborar sobre fusas e semifusas. Eu dizia que não sabia, que era o que o velho Neques queria ouvir, para logo a seguir me ensinar, matreiro e mais uma vez, "Conta-as, rapaz: rana-catrapana-catrapana-pana-pum; quantas são?..."
Já não há Bernardinos assim. E faz-me diferença. Pum.


P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Abril de 2014.

Os apaixonantes

Encostados ao coreto, de mão em concha na orelha, seguem a música com gestos semibreves de deleite e aprovação, procurando com um sorriso de conhecedor e olhos piscos a cumplicidade do povo todo ali à roda. E pedem chiu!, semiconfusos e comovidos até às lágrimas, à espera dos ribombos do grand finale, para então se desfazerem em aplausos. Eles estão a ouvir a melhor banda do mundo, a sua banda, e pouco importa que, na verdade, até nem tenham bom ouvido. Não precisam dos ouvidos sequer. Eles ouvem a música com o coração. Eles são os apaixonantes.
Regra geral, são homens, reformados e musicalmente analfabetos. Mas também são sábios, quando conseguem reduzir a sublime arte que tanto os apaixona à sua simplicidade essencial. "Perceber de música é gostar do que se ouve", dizem. Eles, sim, são os verdadeiros filarmónicos, fazendo jus à explicação da origem grega da palavra: phílos = amigo + harmonikós = de harmonia. Exactamente: eles são os amigos da música.
Eles vão ouvir os ensaios, da parte de fora, na rua, por respeito. Trazem na carteira o calendário dos concertos. Seguem a banda para todo o lado, se possível de boleia na camioneta que transporta o material e os músicos. É verdade, como eles apreciam a proximidade e o convívio com os seus artistas! Oferecem mais um copo a troco de dois dedos de paleio, discutindo clarinetes e bombardinos, marchas e fantasias, com demonstrativos e desafinados terululi-fá-dó-mi-rol-fé-poropopó-trró-pum! pelo meio. Pedem "mais peso", querem "peças pesadas" para afogar sem misericórdia a banda do outro coreto no emocionante despique que apenas intervala. Entusiasmados, metem na conversa o Tchaikovsky e o Giménez, num tu cá, tu lá mais próprio de quem evoca uma famosa dupla de defesas centrais. Se eles sabem do que falam? Talvez não. E isso interessa?
Na terra onde eu nasci há duas bandas de música. E dois grupos rivais de apaixonantes. Qualquer observador independente dirá que, objectivamente, uma banda é melhor do que a outra. Mas isso aqui também não interessa para nada. Para os apaixonantes, a qualidade absoluta é um valor irrelevante. A nossa banda é que é sempre a melhor. O ouvido dos apaixonantes, para além de geralmente duro, é um ouvido selectivo, faccioso: surdo às fífias da casa e inventor de desafinações na concorrência. "Estão fraquinhos este ano"...
Portugal deve ser o único país do mundo que tem apaixonantes. E os apaixonantes são uma raça em vias de extinção. Alguns dos poucos sobreviventes podem ainda ser vistos numa festa ou romaria perto de si, em grupos de dois ou três, encostados ao coreto, de mão em concha na orelha. Se por caso os vir, respeite-os, mime-os, ajude à preservação da espécie.
Porque os apaixonantes e as bandas de música são como aqueles casais antigos, em que um não vive sem o outro. Ela morre e ele vai logo atrás. Ele morre e ela vai logo atrás. No dia em que desaparecer o último apaixonante, as filarmónicas também não ficam cá por muito mais tempo...

P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Setembro de 2011. Entretanto a correlação de forças entre as duas bandas fafenses já não será, porventura, a que era, mas isso também não importa para aqui. O que importa é: hoje, 1 de Setembro, é Dia Nacional das Bandas Filarmónicas.

Festinhas

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Apetecia-me bater-lhes...

Fui aí a um sítio que faz o melhor bacalhau assado na brasa de Portugal e, portanto, do mundo. É servido com batata cozida (é claro), coberto com cebola e azeitonas, e generosamente regado com um azeite-e-alho tão extraordinário que só apetece dar banho ao pão. Para cumprir todos os meus cânones, falta-lhe o ovo cozido, é certo, mas esta é uma falha que eu relevo com todo o gosto.
Na mesa ao lado, um jovem casal também estava no bacalhau. Acompanhado por cerveja, uma a dividir pelos dois, logo no berço do alvarinho e do trajadura. Eu ia perdendo o apetite! Mas o pior ainda estava para vir. E veio: uma travessa de batatas fritas, porque as cozidas não lhes serviam - ficaram todas - ou então nunca tal tinham visto.
Ainda pensei desculpá-los. "Está bem, são espanhóis (não consegui sequer considerá-los galegos, era doloroso demais para mim), estes tipos não percebem nada disto". Mas não desculpei. E é preciso que se note que eu sou pela livre escolha. Para mim, cada um come do que gosta. Mas há comportamentos que, por escandalosos, devem ser guardados para o recato do lar. Eu próprio já comi bacalhau assado com feijoada à transmontana, mas foi em casa de amigos. Nunca por nunca o faria em público. Haja decoro! Para além do mais, gastronomicamente falando, a feijoada com o bacalhau na brasa é uma extravagância, enquanto que a batata frita, posto que excelentíssima, não passa de uma indigência.
Apetecia-me bater-lhes, Deus me perdoe...

No tempo dos romanos

Foto Hernâni Von Doellinger

A moedinha do arrumador

Foto Hernâni Von Doellinger

Um tubarão na sopa

O título tem tudo para ser um bom título, tirando o facto de não ser. Dizia o jornal: "Vale mais um tubarão no mar do que na sopa". Um tubarão na sopa? Um tubarão? Com cabeça e tudo? Ou a cabeça é para cozer à parte, com grão? Desculpem-me meter o bedelho, mas chamar a mosca ao assunto não seria mais credível? Quero eu dizer: mais vale uma mosca no ar do que na sopa. Isto é que está certo, ou não? É que os nossos pratos, ainda que sopeiros, são muito pequeninos. E cada vez mais. Por causa dos tubarões - os outros.

P.S. - Publicado originalmente no dia 31 de Maio de 2013. Hoje, 30 de Agosto, é Dia Internacional do Tubarão-Baleia.

Mais vale prevenir

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 29 de agosto de 2021

Há verdades que precisam de ser ditas

Há verdades que precisam de ser ditas. Bacalhau à espanhola, por exemplo. Bacalhau à espanhola não é caldeirada de bacalhau, tão-pouco ensopado de bacalhau. Bacalhau à espanhola é um prato que pede azeite e não água. É quase um guisado, de molho grosso e aveludado, e com o tempero apurado até aos limites legais de sal, pimenta, alho, louro e salsa. Por mim, também malagueta. Colorau, um nada só para dar cor. E, tomem nota, o pimento e o tomate são duas desnecessidades usadas apenas por quem pensa, mas não sabe, que só assim é que é "à espanhola". Erro crasso. O bacalhau à espanhola é à portuguesa!
E permitam-me que esclareça ainda o seguinte: o bacalhau até pode ser de quarto, daquele que, inteiro, não mede mais do que um palmo e tem a espessura de uma folha de papel A4. E pode ser pouco. Não faz diferença nenhuma. O importante é o gosto que o bacalhau empresta, o equilíbrio do tempero geral, a consistência da molhanga. Quando eu era pequeno e os tempos eram de pobreza como os de agora, a minha mãe fazia um bacalhau à espanhola a que, honestamente, chamava batatas à espanhola. E vocês não fazem ideia do que perderam por nunca terem provado as batatas à espanhola da minha mãe...
E pronto, era isto. Fiz a minha parte, estou enfim de consciência tranquila. Andava com esta espinha atravessada na garganta há que tempos, depois de ter visto o que não queria aí num sítio onde fui comer. E agora, se me dão licença, vou à cozinha rectificar a feijoada com tripas do almoço e salgar uns ossinhos da suã para o jantar de logo à noite.

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Interlúdio fotográfico 360

Foto Hernâni Von Doellinger

Condutora inteligentíssima

Um casal de idosos num daqueles carrinhos portáteis, os papa-reformas, como alguém teve a feliz ideia de lhes chamar. Nas calmas, evidentemente. Atrás do carrinho de corda, uma condutora de um veículo a sério (à séria, se lido em Lisboa), uma verdadeira automobilista. A condutora, jovem e dinâmica, tem óculos de sol e pressa de ambulância: buzina, assobia, gesticula, grita através da janela aberta:
- A passear!?...
Era domingo, duas da tarde, na ensolarada estrada à beira-mar. Condutora inteligentíssima! Sim, às tantas os velhos iam mesmo a passear...  

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Pensamento do dia

- Gosto muito de pensar.
- O mundo?
- O gado. 

Oração da manhã

Foto Hernâni Von Doellinger


Respeitinho

Lá vão ligeiros, marido e mulher conversando pela rua, ele à frente e ela um passo atrás, coisa de antigos. Têm uma filha. Casou. Lá vai jovem e ligeira conversando pela rua com o marido a estrear, ela atrás, o homem um passo adiante, porque o respeito é muito bonito. Na minha rua, em pleno século XXI.

Foi comprar cigarros e não voltou

Era uma esposa exemplar, uma esposa à moda antiga. Em apenas duas palavras imediatamente seguidas de ponto de admiração: uma esposa! Todos os dias de manhã ela ia comprar tabaco para o marido. Um dia ela foi e nunca mais voltou. 

Militâncias

Propunha a activista: - "O" Dia da Igualdade Feminina devia ser "a" Dia da Igualdade Feminina. E devia ser todos os dias, isto é, todas as dias!
Contrapunha o chauvinista: - Ou quando um homem quiser, como o Natal...

Já um homem não pode ser feminista

Feminista convicto, apresentou-se todo pimpão à porta do congresso, distribuindo babosos sorrisos à direita e à esquerda, para a frente e para trás. As porteiras barraram-lhe o caminho, matulonas. Que era só para mulheres, disseram-lhe...

Sem desculpa

Errar é próprio do homem. A mulher não tem desculpa!

Um bocado lésbico

Ele próprio confessava que era realmente um bocado lésbico. Lésbico naquela parte que diz respeito a gostar de mulheres. Por isso não compreendia as lésbicas que gostam de mulheres que fazem tudo para parecerem homens...

Ladies first?

Ele disse, força do hábito, "As senhoras primeiro". Ui!, caíram-lhe todos em cima - feministas, machistas e indiferenciados -, derivado àquilo da igualdade de género...

P.S. - Hoje, 26 de Agosto, é Dia Internacional da Igualdade Feminina.

Na luta

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Era uma vez um cão

Havia um cão que tinha um dono muito bem mandado. Obediente, brincalhão, carinhoso, esperto - só lhe faltava ladrar...

Cãopinchas

Foto Hernâni Von Doellinger

O meu cão

Eu tenho um cão. É um cão imaginário. O meu cão chama-se Parkinson, porque quando quero chamar por ele nunca me lembro do seu verdadeiro nome que é Alzheimer. A raça do meu cão tem dias, vantagem de ser imaginário: às segundas é perdigueiro, às terças é labrador, às quartas é são bernardo, às quintas é pastor alemão, às sextas é dálmata e aos fins-de-semana é sobretudo rafeiro. O meu cão nasceu no país certo.
O meu cão fica-me muito em conta. Não come mas cala, dispensa vacinas e vitaminas, nunca vai ao veterinário, não precisa de casota nem de agasalhos para o Inverno, e só me custa o preço da trela. O meu cão conhece o dono e não morde a mão que não o alimenta. Se todos fôssemos cães assim, vínhamos mesmo a calhar ao Governo da Nação.
O meu cão faz-se muito bem de morto e corre atrás de qualquer coisa que lhe atire. Só lhe falta falar. O meu cão não ladra às pessoas, não fornica as pernas transeuntes, não abocanha, não caga no passeio, não mija nos pneus do carro do vizinho, não tem pulgas nem chatos, nem anda por aí a emprenhar cadelas mais ou menos oferecidas. É como se não existisse. O meu cão é um exemplo de cidadão. O meu cão sou eu.
Já mo quiseram comprar e eu não o vendi. Foi um vendedor de ilusões. Oferecia-me um país inteiro sem pretos em troca do meu cão. Nã! Antes quero o cão. E os pretos! 

Animais de tiro e queda

Foto Hernâni Von Doellinger

Animal ou besta de tiro: animal que puxa um carro, na definição simplificadora do dicionário. Ou, mais desenvolvido, animal utilizado como tracção para o transporte de pessoas e mercadorias, aparelhos agrícolas como, por exemplo, o arado, ou como motor de noras e moinhos (chamam-se em Espanha moinhos de sangue).
Os principais animais de tiro são os cavalos, as mulas e os burros, os bois e as vacas, os ónagros, os camelos e dromedários, os iaques, os búfalos de água, os lamas, os alces e as renas do Pai Natal, os elefantes, os portugueses, as avestruzes e... os cães. Os cães: que antigamente tiravam só praticamente no Alasca e para o cinema, e agora, na marginal do Porto e Matosinhos, também puxam por jovens ciclistas e skaters radicais e manifestamente preguiçosos.

Outros animais de tiro, mas por diversa razão, são, aqui que ninguém nos ouve: o coelho-bravo, a lebre, a raposa e o saca-rabos; a perdiz-vermelha, o faisão, o pombo-da-rocha, o gaio, a pega-rabuda e a gralha-preta; o pato-real, a frisada, a marrequinha, o pato-trombeteiro, o marreco, o arrabio, a piadeira, o zarro-comum, a negrinha, a galinha-d´água, o galeirão, a tarambola-dourada, a galinhola, a rola-comum, a rola-turca, a codorniz, o pombo-bravo, o pombo torcaz, o tordo-zornal, o tordo-comum, o tordo-ruivo, a tordeia, o estorninho-malhado, a narceja-comum e a narceja-galega; o javali, o gamo, o veado, o corço e o muflão.
Para não saberem que vão morrer, a estes animais de tiro chamam-lhes espécies cinegéticas. É preciso que se note que o melro saiu da lista dos abatíveis em 2011, por ordem de Daniel Campelo, o do queijo, então secretário de Estado das Florestas e do Desenvolvimento Rural. Uma medida que seguramente marcou um extraordinário mandato, posto que breve.

Já os caracóis são obviamente animais de tiro porque puxam pela própria casa, andam com a rulote às costas (o que não acontece com as primas lesmas, essas viscosas sem-abrigo e nudistas descaradas), mas, pelos vistos, gostavam de ser ainda mais. Em 2015, uma campanha em nome destes simpáticos moluscos gastrópodes terrestres foi lançada pelos seus representantes legais, uma rapaziada bem disposta que sobretudo não quer que eles, os caracóis, sejam cozidos vivos. Seria, portanto, de lhes enfiar um balázio na cabeça, aos caracóis como aos garranos, e, então sim, metê-los na panela. Aos caracóis.
Com a coitada da lagosta é que ninguém se importa. Se calhar por ela ser podre de rica e pelar-se por uma sauna bem suada. Invejosos de merda...

P.S. - Hoje, 26 de Agosto, é Dia Mundial do Cão ou Dia Internacional do Cão, cãosoante. 

Vida de cão 552

Foto Hernâni Von Doellinger

O poder do sabão

Era muito cuidadoso com a ferramenta. Todos os dias, de manhã e à noite, lavava as intimidades com um bom naco de sabão azul. O sabão, se não me engano, é um poderoso desinfectante e antibacteriano. Um dia, faltando sabão azul em casa, lavou-se com sabão rosa. Nunca mais foi o mesmo homem. 

Leporídeos

- Colhões ou coelhões?
- Testículos.
- E era preciso ser malcriado?... 

Maus hálitos

Tinha muitos maus hálitos. O tabaco e o vinho, por exemplo. E também coçava os testículos...

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Dos tomates e do decoro. E vice-versa.

Foto Hernâni Von Doellinger

Em Fevereiro de 2020 saiu à rua uma campanha publicitária ao tomate pelado Guloso. Uma desnecessidade para mim, que na cozinha sou utilizador habitual, para não dizer compulsivo, deste produto. Ora bem: há coisa de três anos o tomate pelado Guloso, como quem diz o tomate nudista, começou a aparecer-me cá em casa vestido, isto é, com pele. Seria pudor? Como já aqui contei, aproveitei a última década para passar de bovino come e cala a guerrilheiro da reclamação, e não me tenho dado mal. Dei-me até muito bem por exemplo num gramático protesto a propósito de uma alheira de caça à qual faltava a cedilha, como já aqui contei.
Que se segue: resolvi contactar o Sr. Guloso ele próprio, perguntando-lhe, preocupado e mais respeitosamente era impossível, se por acaso não estaria o Excelentíssimo passando por alguma crise de escrotal decoro (há que chamar as coisas, neste caso os coisos, pelo nome), e aproveitei para me queixar do cada vez maior verdor e da cada vez maior acidez do produto em questão. O tomate pelado, não esqueçamos.
O meu e-mail teve resposta em quinze dias. Uma resposta profissional, simpática e, pareceu-me descortiná-la, com uma pitada de ironia no estrugido, que foi o que melhor me soube. Fui informado de que os tomates de que eu reclamava tinham sido produzidos "na campanha de 2017, que, por condições extremas do tempo (chuvas em final de Abril e Maio), se traduziu em tomate mais ácido, com menos cor e que se separa da pele com mais dificuldade."
Como forma de "atenuar a imagem menos positiva" que em mim lamentavelmente provocara, o Sr. Guloso revelou a intenção de enviar-me "um cabaz de produtos da marca, incluindo pelado da campanha de 2018, na expetativa de" me "fazer chegar um tomate pelado mais condizente com o nome". Obviamente agradeci e recusei a oferta, hábito antigo do velho ofício.
Agora. Estamos no ano de 2021. O tomate pelado Guloso continua a chegar-me a casa com pele, verde e ácido, rigorosamente como o da famigerada e defeituosa colheita de 2017. Conclusão, das duas uma: em Portugal os anos são todos de "condições extremas do tempo (chuvas em final de Abril e Maio)", pelo menos para os tomates, ou então há quatro anos que todos os anos são 2017. O que é lamentável e vice-versa.

P.S. - Em Espanha, a cidade valenciana de Buñol celebra hoje, última quarta-feira de Agosto, o Dia da Tomatina.

A minha receita de tomates aux gésiers de lapin

Livre de gorduras e lave em duas águas, uma pode ser das Pedras, as moelas de coelho. Meta as moelas de coelho numa marinada feita com sumo de pepino nacional, vinagre balsâmico, azeite de trufa, mel de rosmaninho, gengibre, flor de anis, flor de sal, flor-de-lis, flor-de-lótus e flor-de-ferrari. Deixe a repousar esta marinada dentro de uma embalagem para ovos de codorniz enquanto o vagaroso e lastimável ex-ministro da Finanças Vítor Gaspar conta até dez, que é aproximadamente durante duas horas e um quarto. Os ovos de codorniz deviam ter sido tirados antes da embalagem, agora desfaça-se ao menos das cascas. Lave muito bem os tomates, corte um chapeuzinho numa das extremidades e limpe-os de todas as sementes e nervuras internas. Introduza as moelas de coelho nos tomates, misturando-as com uns pozinhos de queijo com o nome mais arrevesado que encontrar no supermercado. Pegue nos tomates e coloque o chapeuzinho, que vai adornar, de lado, com um pequeno cartão a dizer PRESS. Leve os tomates ao forno durante 180 minutos a 15 graus. Excelente. Está pronto. Retire do forno e deite ao lixo. Aqueça a feijoada que sobrou de ontem e seja feliz.

Homem que é homem coça-os. Mas com máscara!

Homem que é homem coça os coisos. Esse gesto tão masculino de esfregar entusiasticamente o escroto enquanto se conversa com o amigo. Aliás, coçam os dois, cada qual coça o respectivo, porque são ambos muito homens. E esse outro gesto tão masculino de, acabada a conversa e a ecuménica coçadela, darem-se uma mãozada forte e bem abanada, machos até mais não, "um destes dias temos de ir jantar". Eu, se me dão licença, proporia um terceiro momento de afirmação varonil nestes (re)encontros entre velhos compinchas: findo o parlapiê, sossegados os tomates e despachado o cumprimento, que cada um cheire a mão do outro, e então, sim, "adeus e até à próxima". Mas com máscara... 

A felicidade agarra-se pelos tomates

Jasmina era uma mulher feliz. Fazia o que queria do marido. Em casa mandava ela, e mandava nele também. O homem gostava assim. As vizinhas e amigas de Jasmina - à qual, pelas costas, chamavam Felismina - perguntavam-se, roídas de inveja: "Como é que ela consegue, como é que ela consegue?!..."
E um dia Jasmina explicou: "Trago-o bem preso pelos tomates, um bocadinho mais acima..."  

Um artista...

Ninguém morria tão bem como ele. E vai fazer muita falta... 

Um grande nome

A organização tinha prometido um grande nome e cumpriu satisfatoriamente. Quando as luzes do palco se acenderam e foi anunciado, o artista chamava-se, com efeito, José Manuel-António Ferreira Rocha Vieira da Silva Pereira Gonçalves Ribeiro e Castro Melo Antunes Bastos Monteiro Neves Brochado Macedo Nogueira Santos Oliveira Costa Rodrigues Martins Carvalho Marques Almeida Cunha Pires Lopes de Perestrelo e Lencastre-Maldonado. 

A pintura do Mané

A pintura do Mané não lhe dizia grande coisa. Asseguravam-lhe que o Mané era um grande artista, falavam-lhe do impressionismo francês, até do realismo, dos jogos de luz e de sombra, dos nus, mas ele não se deixava convencer. O Mané era um gajo porreiro, isso nem se discute, pagava umas cervejas quando chegava a sua vez e desenrascava satisfatoriamente o lugar de defesa-esquerdo nos jogos das manhãs de domingo na praia, mas, quer-se dizer, era apenas um trolha regular e à beira da reforma. Como ele... 

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

O chichi do maestro

Nos grandes concertos sinfónicos, o maestro sai sempre no final de cada peça para ir à casinha mudar a água às azeitonas. Depois volta para as palmas e para as vénias, sorridente e aliviado. E os músicos? Os músicos protestam batendo nas estantes e continuam em palco de perninhas apertadas e, quem sabe, a urinarem-se por elas abaixo...    

A obra-prima

Os especialistas dividem-se e a opinião pública também. Há quem defenda que o melhor trabalho de Miguel Ângelo são os frescos da Capela Sistina. Outros preferem a Baía de Cascais... 

Pianíssimo

Estou como diz o outro: Bach leve, levemente...

A alma acústica da obra

Corrido o ano de 2012. Um monte de fardos de palha era a grande atracção da Capital Europeia da Cultura que montou tenda em Guimarães. Parece que a palha, segundo contava então o jornal Público, não deixava ninguém indiferente à passagem pela Cidade Berço. "Há quem abrande ou conduza com a cabeça de fora da viatura", informava o jornal, sem precisar infelizmente: cabeça de fora para quê?...
A mim, no entanto, tocou-me muito mais o projecto "Vi:Ela Sentada", da autoria do escultor sonoro e plástico João Ricardo de Barros Oliveira. A instalação constava de 20 cadeiras e 40 camisas brancas penduradas num estendal. As camisas. As cadeiras, desta vez, não. Um trabalho sem objectivo e sem mensagem, nas esclarecedoras palavras do artista. A inspiração veio-lhe obviamente do dióspiro, numa ocasião em que passou por uma viela, ouviu uma conversa entre mulheres e uma sardinha caiu de uma varanda e escorregou num guardanapo que estava a secar, afogando-se, a sardinha, num balde de lampreias. Depois foi só pesquisar a alma acústica e a obra nasceu.
A lógica é uma batata e a arte pode ser um dióspiro. A palha é apenas palha. Abro aqui uma excepção no Tarrenego! e condescendo ao YouTube. Aproveitem estes intensos dez minutos. Até ao fim, até ao tutano. Às vezes a cultura é uma coisa muito bonita.


P.S. - Publicado originalmente no dia 15 de Agosto de 2012, sob o título "Quando a arte é um dióspiro". Hoje, 24 de Agosto, é Dia Internacional da Música Estranha. E é também Dia do Artista.

Para que conste

- Estou indignado!
- Estás?
- Estou?
- E então?
- Estou indignado...

Serralves nunca mais

A Fundação de Serralves tinha ou ainda tem trabalhadores a "falso recibo verde". Estou indignado com Serralves! Nunca mais na vida ponho os pés em Serralves. Eu nunca pus os pés em Serralves. Mas agora é que nunca mais.

Indignação e revolução

A indignação é a mãe de todas as revoluções! Era. Até aparecer a pílula do dia seguinte... 

E parabéns à prima

Lembram-se do tempo em que as pessoas não se indignavam? Pois é. Depois vieram as redes sociais...

P.S. - Hoje, 23 de Agosto, é Dia do Internauta. Parabéns à prima! 

A ponte é uma passagem 34

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 21 de agosto de 2021

Guerra das Rosas

A Rosa Maria e a Rosa Beatriz andam sempre à bulha uma contra a outra por causa do Anacleto Lingrinhas. Lá no bairro dizem que é a Guerra das Rosas.

P.S. - Dia 22 de Agosto de 1485. Ricardo III de Inglaterra morre na Batalha de Bosworth, pondo termo à Guerra das Rosas, que decorreu com assinalável engalfinhamento entre as casas de Iorque e de Lencastre. Henrique VII sobe ao trono.

Interlúdio fotográfico 359

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Vida de cão, vida de cão!

Meados de Agosto de 2015. "Cão deixado no lixo dentro de um saco gera onda de solidariedade em Vila Real", anunciava o jornal Público, em título fim-de-semaneiro. E acrescentava: "Plataforma Proanimal alerta que nesta altura do ano há mais animais abandonados e menos pessoas disponíveis para os acolher."
Verdade como punho, ontem como hoje. Embora não gere nenhuma "onda de solidariedade", está curiosamente a acontecer o mesmo com os velhos e com os recém-nascidos, por assim dizer, humanos - cada vez mais abandonados e com cada vez menos pessoas disponíveis para os acolher. É. Vivemos realmente uma "altura do ano" filhadaputa. Mas os cãezinhos, Senhor...

P.S. - "Portugueses já gastam mais com cães do que com bebés", dizia a capa do semanário Expresso, em Outubro de 2011. Hoje, terceiro sábado de Agosto, é Dia Internacional do Animal Abandonado. E está certo.

Na quieta melancolia

Foto Hernâni Von Doellinger

O amor é como o jantar, arrefece

Casámos de branco, os dois, ou cuidavas que eu me ficava? Tu parecias uma princesa de conto de fadas e eu parecia o Américo Tomás a inaugurar um chafariz. Mas que belo par de jarras - diziam os convidados -, serão da Vista Alegre? E os néscios dos teus progenitores inchados de orgulho, "Vista Alegre, estás a ver António, estou farta de te dizer, não há nada como o branco", rejubilava a tua mãe, e o teu pai, "Fresquinho, se for fresquinho não digo que não, Maria"...
Vinte anos, como tão redondamente disse o tal Patxi Andión. Dávamo-nos bem, Glória, parecíamos mesmo um casal: eu não me metia contigo e tu não te metias comigo. O cuidado que eu tinha com o estore, de manhã, para não te incomodar. Os vagares com que eu andava pela casa, em pezinhos de lã, porque dizias que a minha presença te fazia corrente de ar. Fui ou não fui ao workshop de reeducação para mijadores sem ponto de mira que tanto me recomendaste? Íamos ou não íamos todos os anos aquele domingo de Agosto à Póvoa de Varzim fazer as nossas ricas férias? Tu sabes, devias saber que eu nunca te enganei, Glória, palavríssima de honríssima, desculpa-me o superlativo absoluto sintético em dose dupla, mas já estou por tudo. Fui-te fiel como só um bacalhau seco e posteriormente demolhado pode ser. Dei-te vinte anos da minha vida e tu recambias-mos resumidos e empacotados em dezassete sacos de plástico que me obrigaste a pagar e colocaste na parte de fora da porta de casa. Dezassete? Não mereço vinte, para ser conta certa? Eu sei que as coisas já não estavam como antigamente, esfriaram, mas não será essa a evolução natural de vida de casados? O amor funciona a coração e não a gás, Glória, o amor não é chama eterna, vai arrefecendo como o jantar, e deixa-me tomar nota desta, que é muito boa...
Vinte anos de uso e nem me levaste à troca. E isso é o que mais me magoa, Glória. Dizes que me mandas embora porque eu não presto e não porque encontraste melhor. Não faças assim, Glória, ao menos põe-me os cornos, ainda estás a tempo, faz-me esse favor, dá-me essa alegria, põe-me os cornos. Se não for por mim, que seja pelos nossos queridos filhos, coitadinhos, que vamos desgraçar para o resto da vida deles com esta tão unilateral quanto politraumatizante separação. O quê? Não temos filhos? Pois não, desculpa lá, Glória, às vezes entusiasmo-me um bocadinho. 

Saudades para D. Vilaça

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Quando a comida é como a vingança

O jornal Público ensinou-nos aqui atrasado o que se deve fazer quando "um prato absolutamente fenomenal (ou não tão fenomenal assim) chega à mesa." E então o que é que se faz? "Come-se? Não, primeiro fotografa-se." E coloca-se no Instagram. Depois, suponho, pede-se a continha, sai-se de casa ou do restaurante chique, "mete-se" o boné e vai-se deglutir duas ou três bifanas e uma avestruz à Conga.
Eu não sei o que é o Instagram (aliás cuidava que se chamava Instragam e só mudei de ideias ainda agora depois do computador me corrigir dezasseis vezes), e nem me aquece nem me arrefece que pensem que estou a mangar. Sei é de cozinha e de jornalismo também não.
Quem escreve sobre gastronómicas matérias no jornal da Sonae vê-se que tem inúmeros mestrados e consideráveis doutoramentos em Técnicas de Titulagem, mas também se percebe que é gente que só entra na cozinha para perguntar à mãezinha "o que é o comer". Não nego à partida que estas senhoras e estes senhores jornalistas sejam experts em lasanha pré-cozinhada do Lidl ou em rissóis e alegados bolinhos de bacalhau congelados do Pingo Doce, posto que fazem das tripas coração para que o patrão não saiba. Falta-lhes é o resto, a basezinha, como diria o nosso Eça, que, esse sim, sabia de mesa.
Vamos supor: um prato realmente "absolutamente fenomenal" como, não vamos mais longe, um arrozinho de grelos com fanequinhas fritas. Chega à mesa e tira-se-lhe fotografias em vez de se lhe garfar com toda a galhardia? Então vou explicar o que se passa entretanto: o malandro do arroz coalha, fica arroz de hospital, argamassa de atirar às paredes, e as fanecas, esse peixinho tão honesto, esfriam, perdem a graça, afeiam-se, desapetitam-nos. Uma tragédia...
E atenção que as fanequinhas frias ainda vá lá, mas no tasco e no Verão. E verão que tenho razão (esta veia poética que não me larga), quando um dia perderem a cabeça e experimentarem, o Verão e o tasco. Já o arroz segue directamente para o balde do lixo, tamanha dor de alma ainda por cima nestes tempos agrestes de cotão nos bolsos.
Também é verdade: há pratos que são como a vingança, devem ser servidos frios, e por isso até se chamam pratos frios. E estes podem ser fotografados à moda das sessões de casamento, quero dizer: entre as oito da manhã e as seis da madrugada do dia seguinte. Quanto ao resto, por amor de Deus, fiquem quietos! Creio que posso dizer melhor: respeitosamente, comam fotografias à vontade se, tipo, lhes souber bem, mas, por favor, não me instagrem a comidinha a sério (à séria, se lido em Lisboa)...

Já agora: um tasco é um tasco. Uma tasca ou uma tasquinha são outra coisa...

P.S. - Publicado originalmente no dia 22 de Janeiro de 2017. De acordo com a mitologia grega, hoje, 20 de Agosto, é dia do Festival de Némesis, deusa da vingança. Némesis era, dito com mais rigor, a divindade grega que personificava a justiça implacável. Concedendo a cada um o que merecem as suas obras, era o símbolo do equilíbrio e da equidade. Punia especialmente a arrogância e a transgressão dos limites impostos à natureza humana.

Ao ouvido

Foto Hernâni Von Doellinger

E o número da máquina fotográfica?

- Passei o dia inteiro a ligar-lhe para o telemóvel, mas dava sempre impedido...
- Quando for assim, ligue-me para a máquina fotográfica.

No tempo em que

No tempo em que não havia telemóveis, ligava-se da máquina fotográfica. O que é extraordinário!

A primeira selfie

Ele tinha dez anos quando fez a sua primeira selfie. Gostou. Depois correu à igreja e confessou-se.

A minha cara

Ofereceram-me um livro. "É a tua cara", disseram-me. O livro resumia-se a uma fotografia. E era realmente a minha cara.

Agora eu era o herói

Foto Torrenego!

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Era um homem muito antigo 2

Era um homem muito antigo e vivia agarrado a coisas que já não se usam. Vejam lá que, quando precisava de selfies, teimava em ir ao fotógrafo, que na verdade lhe fazia um preço bastante em conta: meia dúzia - 6,5 euros; uma dúzia - 10 euros; oferta de um postal em ambos o casos.

O rapaz do sorriso de plástico

No metro, direcção Senhor de Matosinhos-Fânzeres. Entro na estação Matosinhos Sul e o rapaz também. A carruagem está a rebentar pelas costuras, arranjo lugar sentado porque sou velho e momentaneamente aleijadinho, o rapaz fica de pé, encostado à porta. O rapaz, mais perto dos vinte do que dos quinze, vai ao bolso e saca do telemóvel (deve ter outro nome o aparelho, mas para mim é um telemóvel e já digo muito). Saca do telemóvel, dizia, eleva-o na mão direita bem acima da cabeça, aponta-o para a dita e, como se estivesse sozinho a fazer caretas ao espelho da casa de banho, veste de repente um sorriso de plástico que por acaso até lhe fica bastante mal, olha para o telemóvel, dispara, suponho, e volta à cara normal, como se não fosse nada. Um lado está resolvido. Agora o outro: o rapaz continua com o telemóvel na mão direita bem acima da cabeça, que revira para a esquerda num lamentável trejeito artístico, e, como se estivesse sozinho a fazer caretas ao espelho da casa de banho, veste outra vez e de repente um sorriso de plástico que por acaso até lhe fica bastante mal, olha para o telemóvel, dispara, suponho, e volta à cara normal, como se nada fosse. Feito extraordinário, de que tomo nota: o sorriso do rapaz é o exactamente o mesmo das duas vezes, o mesmíssimo, decalcado, sem tirar nem pôr, o mesmo sorriso da cara para fora, oco, palermóide, nanométrica réplica mimética um do outro, o mais profundo sorriso de cara de cu à paisana - posso garantir eu, que sei muito de sorrisos.
Penso então ali, respeitosamente: há que dar valor ao rapaz - para se atingir semelhante grau de perfeição, isto é preciso muito treino, muito ano, muita selfie!..

O rapaz saiu no Parque de Real, duas paragens acima, viagem de três minutos. Serviço feito, ala para casa, que se faz tarde! Nem tive tempo para lhe dar os parabéns.

Era um homem muito antigo

Era um homem muito antigo e vivia agarrado a coisas que já não se usam. Vejam lá que ainda tirava fotografias com máquina fotográfica!...

P.S. - Hoje, 19 de Agosto, é Dia Mundial da Fotografia.

Era uma vez

Foto Tarrenego!

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Desce, desce, balão desce

- Ó patego, olha o balão! - alguém disse.
- Aonde?, aonde?... - perguntou o patego. 

Mais leve que o ar

Há quem seja magro, mas Hélio abusava. Um dia levantou voo.

P.S. - O hélio foi descoberto de forma independente pelo francês Pierre Janssen e pelo inglês Norman Lockyer, no dia 18 de Agosto de 1868.

Pipi da saia curta

Foto Hernâni Von Doellinger

É preciso ter azar

A frase diz: é preciso ter azar! E eu acho que não.

As grandes decisões devem ser tomadas em cuecas

No dia em que decidiu finalmente atirar-se de cabeça na piscina vazia, a piscina estava cheia. Ficou como um pito! E resolveu, dali para a frente: as grandes decisões, as decisões definitivas, devem ser tomadas em cuecas.

Quando se tem queda para a queda

Era um tipo manifestamente azarado. Caiu e partiu o braço em dois sítios: mais precisamente em Mirandela, há coisa de dez anos, e no Sabugal, fará amanhã quinze dias.

P.S. - Hoje, 17 de Agosto, é Dia do Gato Preto.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Os candidatos remax

Foto Hernâni Von Doellinger

Não sei quem é que os pôs assim, mas é assim que eles se apresentam. Candidatos autárquicos em pose profissional de quem nos quer comprar ou vender qualquer coisa. Sobretudo vender.

O filósofo

Ensinava: o pior da morte é que a vida deixa de fazer sentido.

Assassinado por formigas

Quando saiu a notícia de que Cícero foi assassinado em Fórmias, edição de 7 Dezembro de 43 antes de Cristo da Trombeta de Arpino, houve logo quem compreendesse que o ilustre político, escritor, orador e filósofo romano fora devorado por formigas. Hoje em dia na nossa comunicação social o lamentável equívoco persiste. Porque os jornais digitais e até os analógicos não têm tempo para.  

Um Tales de Mileto

A água é o princípio de todas as coisas; o vinho é o fim - dizia o filósofo antigo. Um tal... um tal... um Tales de Mileto.

A mão que cumprimentou Agostinho da Silva

Uma vez tive a sorte de encontrar-me com mestre Agostinho da Silva. Ainda hoje guardo a mão com que o cumprimentei.

O despertar do filósofo

- A vida é uma imensa linha recta cheia de curvas, e cada subida concomita-se numa irrefutável descida, vice-versando - disse o filósofo, ao pequeno-almoço.
- Chega-me o açúcar - disse a mulher do filósofo.

P.S. - Hoje, 16 de Agosto, é Dia do Filósofo. No Brasil.

Como no cinema

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 15 de agosto de 2021

Parti pris

Eu pessoalmente não tenho nada contra a Coca-Cola, mas não gosto. E nunca provei.

P.S. - O americano John Stith Pemberton, químico farmacêutico inventor da Coca-Cola, morreu no dia 16 de Agosto de 1888.

Patrioticamente

Foto Tarrenego!

Ó Elvis, ó Elvis

"Cristo morreu, Marx também, e eu já não me sinto nada bem", dizia mais ou menos assim a famosa frase humorístico-panfletária das décadas de sessenta e setenta do século passado. Cristo morreu mas ressuscitou, Marx só não ressuscitou porque era materialista ateu e imprevidente, mas anda por aí como o nosso Santana Lopes, e eu, nesta historieta, não interesso para nada. Porém. Cultivo aqui no Tarrenego! uma comprovada teoria que se chama "Elvis não morreu e o 24horas também não". Assim. Elvis Presley morreu no dia 16 de Agosto de 1977. Ou, melhor dizendo, foi exactamente nesse dia que ele não morreu. Anda por aí, como Cristo, como Marx e como Santana Lopes. O jornal 24horas morreu oficialmente no dia 30 de Junho de 2010. Ou, melhor dizendo, foi exactamente nesse dia que ele não morreu. Também anda por aí: chama-se agora Correio da Manhã, Jornal de Notícias, Sábado, Observador, Diário de Notícias, Sol, Record, A Bola, O Jogo e assim sucessivamente... 

Quando Elvis não morreu

Quando o cantor norte-americano Elvis Presley não morreu encontrou-se com o psicopata austro-alemão Adolf Hitler, que lhe disse, cheio de ciúmes: - Vais ter um lindo enterro...

Paronimando

Ó Elvis, ó Elvis, Badarós à vista.

Hey, Mr. Tambourine Man, play a song for me

Foto Hernâni Von Doellinger

As pombinhas da catrina

As pombinhas da catrina andaram de mão em mão. Acabaram por casar, é certo, mas da fama não se livram...

Maria já não vai com as outras

Enquanto Maria ia com as outras, bem ia. O pior foi quando foi com o outro, só para provar. Resultou grávida de seis meses e agora as outras já não a deixam ir.  

Foi comprar tabaco e não voltou

Era uma esposa exemplar, uma esposa à moda antiga. Em apenas duas palavras imediatamente seguidas de ponto de admiração: uma esposa! Todos os dias de manhã ela ia comprar tabaco para o marido. Um dia ela foi e não voltou. 

Nunca por amor

Já ia no sétimo matrimónio e garantia que nunca casara por amor. Por interesse então?, perguntavam-lhe. Que não. Por dinheiro? Também não. Explicava que casou sempre por... acaso.

sábado, 14 de agosto de 2021

Homem de famílias

O casamento, para ele, era tudo. Aliás, tinha dois. Ao mesmo tempo.

Cavalheiro de posição

- É muito complicado para uma pessoa da minha posição...
- E qual é exactamente a posição de vosselência?...
- Defesa central. Mas também faço o lado direito...

P.S. - Hoje, 15 de Agosto, é Dia do Solteiro. E do Fotógrafo. E da Informática. E da Gestante. E de Nossa Senhora Achiropita, da Abadia, da Ajuda, da Assunção, da Boa Morte, da Boa Viagem, da Candelária, da Ponte, da Saúde, da Vitória, de Begoña e Desatadora dos Nós. Sobretudo de Nossa Senhora Desatadora de Nós, amém!

Está mau para os fotógrafos...

Foto Hernâni Von Doellinger

Oh, my dicky ticker!

Eu tinha um cardiologista e visitava-o de quatro em quatro meses. Falávamos de jornais, de jornalistas, de política, de restaurantes secretos e fora de mão e sobretudo do FC Porto. E media a tensão, o que é extraordinário! Deixei. Deixei também o urologista e fiquei-me apenas com o dentista, que me sevicia de meio em meio ano, fora os inopinados. É a crise, é a vida. Um destes dias morro e vão dizer que foi por por causa de eu ter deixado de falar de jornais, de jornalistas, de política, de restaurantes secretos e fora de mão e sobretudo do FC Porto com o meu ex-cardiologista.

P.S. - Hoje, 14 de Agosto, é Dia do Cardiologista. Pelo menos no Brasil...

Pegada ecológica

Tinha uma pegada deveras ecológica. Fosse aonde fosse, ia em pezinhos de lã.

P.S. - Hoje, 14 de Agosto, é Dia de Combate à Poluição.

Cheirinho bom!...

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Há 636 anos que ninguém vê a padeira

É a chamada mulher de barba rija. Feia, grande, cabelos espetados, seis dedos em cada mão e forte como um hércules. E o nome, Brites de Almeida, também lhe fica de modo, tal como um certo comportamento masculino e o bigode de que ninguém fala mas que certamente. Assim seria a Padeira de Aljubarrota, segundo a tradição popular, porém já se sabe: quem conta um conto acrescenta um ponto, e dessarte nasce o mito.
Esta padeira nunca existiu. Ainda assim, a lenda liga-a à Batalha de Aljubarrota e ao massacre que se lhe teria seguido, mas que também nunca aconteceu. Brites seria a líder de um grupo de populares, tipo claque de futebol, que perseguiu os castelhanos em fuga. Brites emboscou-se, fez-lhes espera, aos desgraçados dos espanhóis, e matou com as próprias mãos uns tantos, se por acaso fosse verdade e o Benfica tivesse claques.
Nessa noite de 14 de Agosto de 1385, a padeira chegou a casa e descobriu sete espanhóis escondidos no forno onde costumava cozer o pão. Ela percebeu logo que eles eram espanhóis porque diziam muito "qué rico!", "vale, vale!", "qué tal, qué tal?" e outros nomeadamentes. Sem pestanejar, ou ainda que pestanejando derivado à farinha, Brites pegou na pá e bateu-lhes até os matar, um a um, à medida que os infelizes iam saindo do forno.
O professor catedrático e historiador Francisco Ribeiro da Silva contou-me uma vez que a Padeira de Aljubarrota pertence à classe dos "mitos simpáticos que sublinham muito justamente o importante papel de algumas mulheres na História de Portugal", ela por ela com, por exemplo, a nossa Maria da Fonte

Portugal, país de doutores e bastardos

Os portugueses têm mais doutorados e mais filhos fora do casamento do que aqui os vizinhos espanhóis, os quais, por seu lado, vivem mais tempo e navegam mais na Internet. Melhor para eles! Eu não faço ideia para que é que estas estatísticas comparativas servem, mas a verdade é que elas não nos largam, pondo-se depois a jeito para as leituras que mais nos apetecerem. Organismos dos dois países confrontaram indicadores e chegaram à conclusão de que, por exemplo, há quatro espanhóis para cada português. O que também não quer dizer absolutamente nada, como ficou cabal e historicamente demonstrado em Aljubarrota.
Ah!, mas dizem que morremos do mesmo em ambos os lados da fronteira: tumores e doenças dos aparelhos circulatório e respiratório são as principais causas de morte apuradas, nos dois países, pelos minuciosos estatísticos. Fossem eles um pouco mais longe e se calhar descobririam que em França também. E na Alemanha. E em Itália. E na Suíça. E na Hungria. E espantariam o mundo com a novidade. 

P.S. - Publicado originalmente no dia 5 de Abril de 2012. Os números dizem respeito a essa altura e não sei como é que estão as coisas actualmente. A Batalha de Aljubarrota decorreu no final da tarde de 14 de Agosto de 1385. Para aproveitar a fresca, digamos assim...

Inquéritos de Verão

Foto Tarrenego!

Figueira de Castelo Rodrigo, um calor do caraças, aqui há uns anos. Para quem não me conhece, eu sou, em primeiro plano, o da esquerda. Obviamente.

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Mal comparando

Se um elefante incomoda muita gente, dois olifantes incomodam muito mais.   

Se um elefante

- E tive assim tipo uma reacção pélvica, passei-me...
- Reacção quê?
- Pélvica. Tipo à flor da pele, tás a ver? Pélvica.
- Queres dizer epidérmica?
- Não, essa cena é dos elefantes. Pélvica. Diz-se pélvica. Dããããã!...

P.S. - Hoje, 12 de Agosto, é Dia Mundial do Elefante.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

A sério? E há quem goste?

Foto Hernâni Von Doellinger

Uma vez no Verão levei com uma bolada nos dentes e fiquei com a boca cheia de praia. Sinceramente, achei uma merda. Soube-me a areia. 

P.S. - Hoje, 11 de Agosto, é Dia de Brincar na Areia.

O homem e o cão (e vice-versa)

Todas as manhãs o homem e o cão passeiam pela praia, naquela incerta linha de sobe e desce onde o mar enrola na areia e acaba Portugal. Par pândego, haviam de ver. O homem atira a bola de ténis e o cão, dez-réis de cão, rasteirinho e de raça que não sei, corre e salta, como uma bala, como uma mola, abocanhando-a, à bola, ainda no ar. Cão danado para a brincadeira. E habilidoso. "Bem, muito bem, espectáculo!", diz o homem. E o cão regressa e larga a bola, e corre e salta à volta do homem, e ladra no verdadeiro ladrar que não morde, e abana o rabo, abana, que quer dizer "Obrigado, estou muito contente, mais, quero mais!...", e põe a língua de fora, que quer dizer "Ainda havemos de fazer isto ao contrário".
Um quadro enternecedor. Homem e cão, numa simbiose perfeita. O amigo dos animais e o melhor amigo do homem. Fossem eles polícias, o homem e o cão da bola de ténis, matinais frequentadores de oceanos, e estaríamos na presença de um binómio exemplar e definitivo. Decerto já viram nas notícias: binómio é um polícia e um cão que são colegas de trabalho. Já um carteiro e um cão são um perónio. Um perónio partido e o fundilho das calças esgaçado.

Todas as manhãs, portanto. Eu também por ali ando comigo pela trela e por isso é que sei o que estou a contar. Ontem desatei a rir com o raio do cão, que realmente tem jeito, parece do circo o lingrinhas. (Não é que isto interesse, mas fez-me lembrar o Kelvin, o outro brinca-na-areia, e se calhar por isso é que me ri). Entre uma acrobacia e outra, o cão tendia a enfiar-se na água, coisa de cão certamente, e o homem dizia "Sai daí, Rex, anda cá, Rex, já vais levar, Rex!...", nem de propósito Rex, eu seja cão se estou a inventar. O homem, que tomara nota do meu riso, resolveu pôr-me ao corrente, "É todos os dias a mesma merda, ele gosta, o caralho do cão mete-se no mar e eu depois é que tenho de lhe dar banho, secar e escovar, trabalho filho da puta, olha, lá vai ele outra vez, ó corno!, fode-me sempre..."

O cão resolveu apanhar a última, mas sem boca. Estava-se a armar para mim. Dominou a bola com o peito e, sem deixar cair, rematou em grande estilo e foi golo, palavra de honra que foi golo. Depois colocou o açaime ao homem e levou-o para casa.

P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Junho de 2013.

Pé ante pé

Foto Hernâni Von Doellinger

Cautelas e caldos de galinha

O meu avô da Bomba era um homem muito desconfiado. Segurava as calças com cinto e suspensórios.

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

É de homem

Homem que é homem não teme leão. Os ratos são outro assunto...

P.S. - Hoje, 10 de Agosto, é Dia Mundial do Leão.

É preciso dizer alguma coisa

O supra-sumo da conversa de chacha é aquela frase tão nossa - "Temos de dizer alguma coisa para não estarmos calados". Convenhamos que se trata de uma proposição silogisticamente inatacável: com efeito, para não estarmos calados, basta-nos "dizer alguma coisa". Ou chorar. Ou tossir. Ou arrotar, vá lá. Isso é verdade sem desmentido. Mas não "temos de", valha-me Deus, não é imposição divina ou paisana "dizer alguma coisa" só porque. Então o silêncio não é de ouro? Caros amigos, estar calado não é obrigatoriamente defeito e pode até ser, quem sabe, a refinadíssima expressão gourmet da sabedoria, da eloquência complacente. Por isso é que eu digo que, quando é apenas para "dizer alguma coisa", mais vale estar calado.
Como exemplarmente fica demonstrado, creio, no parágrafo anterior. 

Mobiliário urbano (propriamente dito) 216

Foto Hernâni Von Doellinger

A diferença entre um vigarista e um vigarista

Faustino foi ao banco pedir um empréstimo. Quantia avultada. Pretendia construir e montar de raiz uma fábrica de papel canelado, investimento para cima de milhões de euros e emprego garantido para cerca de 23 pessoas, talvez vinte e duas e meia ou vinte e três e meia, ainda não sabia bem. O senhor do banco riu-se: "Fábrica de cartão canelado? Vê-se logo que é golpe, vigarice das antigas". "Golpe, não, caríssimo senhor, e faça o favor de reparar que eu disse caríssimo sem saber sequer a taxa de juro. Em todo o caso, se eu fosse vigarista, e dos antigos, ter-lhe-ia indicado que precisava do dinheiro para abrir um banco", ripostou Faustino, sem se rir, e foi roubar carteiras para outro lado.

Manigâncias

O meu banco manda-me mensagens para o telemóvel, assediando-me com a oferta de casas ao preço da uva mijona. São casas devolvidas ao banco por portugueses à rasca como eu. As casas que eram de pessoas vão a leilão. E eu sinto-me insultado com as SMS que me convidam a ser cúmplice no aproveitamento da desgraça alheia. Logo à primeira fui imediatamente ao balcão protestar o meu incómodo e exigir que a coisa acabasse ali. Que "Sim, senhor, tem toda a razão, vamos já tratar do assunto", foi o que diligentemente me responderam. E as mensagens continuaram.
Também comprei casa, no meu tempo. Fui chulado durante 25 anos e sei de que lado estou. Não devo nada ao banco, não devo nada a ninguém. Decerto por causa disto é que o banco cuida que eu agora sou um dos seus. Não sou. Sou um dos outros.

P.S. - Publicado originalmente no dia 27 de Novembro de 2012. O meu banco insiste que eu seja Cliente Prestige mas eu não quero, não sou. De castigo, o meu banco ferrou-me com uma multa mensal de 5,41 euros a que chama "comissão de manutenção".  

O banco levou-lhe a casa

Foto Hernâni Von Doellinger

O meu banco mente-me

O meu banco escreve-me um email e diz-me: "Junto enviamos o seu extrato em formato digital. Pode agora consultar de forma rápida, cómoda e ecológica os movimentos do mês passado." O meu banco mente-me com quantos dentes lá guarda. O formato digital não é a forma mais rápida de eu consultar o meu extracto - o papel é que era; o formato digital não é a forma mais cómoda de eu consultar o meu extracto - o papel é que era; e não acredito que o meu banco tenha um cêntimo sequer de preocupação ecológica.

P.S. - Publicado originalmente no dia 5 de Abril de 2018. O meu banco, que é Millennium BCP, deixou de gastar papel comigo e passou a cobrar-me 5,41 euros mensais de "comissão de manutenção".

Despesas de manutenção efectivamente

"Despesas de manutenção?", perguntei. "Efectivamente despesas de manutenção, meu caro senhor", respondeu-me o senhor do banco. "Mas qual manutenção e qual efectivamente?", insisti, porque padeço dessa tola mania de insistir. "Efectivamente temos destacado um colega que diariamente e em exclusivo põe a arejar, limpa o pó e passa a ferro as vinte notas de cinquenta euros que o caro senhor em boa hora fez o favor de entregar à nossa guarda. É o gestor de conta de vosselência, assim lhe chamamos...", explicou-me o senhor do banco. "Ah, bom!, nesse caso efectivamente...", disse eu.

P.S. - Publicado originalmente no dia 4 de Outubro de 2017. Inesperadamente no mês passado, o meu banco, que é o Millennium BCP, começou a cobrar-me 5,41 euros mensais de "comissão de manutenção". Eu estava isento, tinha isso prometido, mas não sei o que fiz, se calhar portei-me mal, e agora é assim. Sou um velho cliente, protestei, mas não adiantou nada. Evidentemente, quanto mais não seja pela desconsideração, vou mudar de banco.

A rede

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 8 de agosto de 2021

De cavalo para burro

Passou de cavalo para burro e gostou, porque a verdade é só uma: com os pés rentes ao chão, sentia-se muito mais confortável e seguro...

A perna extra

"Fiambre da perna extra" faz lembrar a "quinta pata do cavalo". O que é desagradável.

Quadrúpedes

O cavalo é um quadrúpede. Meio polvo, também.

P.S. - O Brasil celebra hoje, 9 de Agosto, o Dia Nacional da Equoterapia.

Pela estrada fora

Foto Hernâni Von Doellinger

Pardos mas nem tanto

De noite todos os gatos são pardos. Até que alguém acende a luz.

Gato-sapato

 Faziam dele gato-sapato. Quarenta e dois, biqueira larga.

E as gatas?

Hoje é Dia do Gato. Mas Dia do Gato é todos os dias, é quando o gato quiser. Parabéns, Pantufa! Parabéns, Félix! Parabéns, Tareco! Quanto às gatas, aguardam uma vigorosa tomada de posição por parte do Bloco de Esquerda, do PAN e das Capazes.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Comida substantiva

Gostava de comida substantiva. E enchia-a de adjectivos.

Por esse rio abaixo

Foto Hernâni Von Doellinger

Ruptura de stock

Ouço Tiago Nacarato no rádio. Canta "A Dança". Diz: "Mesmo que se acabe o stock / Da tão bem-vinda Super Bock / A vida é boa / A vida é tão boa / A vida é mesmo boa de se levar."
E lembro-me do Verão de 1990, na ilha do Sal, Cabo Verde. Agosto passava para Setembro, e a Super Bock esgotou sem remédio em toda a ilha. Fui eu.

Une petite différence

A diferença entre panache e panachê não se nota muito: é gasosa.

A receita

- Passa-me a receita, se faz favor?
- Mas com certeza, ora tome lá.
- Hummm... precisava de mais um bocadinho de cerveja e menos açúcar.

Eflúvios amorosos

"Cheiras a cerveja", disse ela. "Aproveita", disse ele.

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Cinco contos de tremoços

O Zé Manel Carriço era um exagerado e provavelmente a pessoa mais extraordinária que conheci em toda a minha vida. O Zé Manel não comprava maços de tabaco, comprava volumes de tabaco, caixotes, camiões inteiros de tabaco, navios! O Zé Manel até comprou um jornal falido, até comprou um cinema, vejam lá! O Zé Manel comprava tudo, e a dinheiro, não acreditava no plástico. Por isso andava sempre com a carteira grotescamente amarrecada por um enorme molho de notas de conto como se fosse à feira do gado mercar uma junta de bois. Ou duas. Ou três. Ou. As notas chegavam e sobravam. O Zé Manel fazia questão que se soubesse. Ah!, e o Zé Manel Carriço era uma homem extremamente generoso.
Às vezes o José Manuel, que de baptismo era Rodrigues, levava-me a umas noitadas privadas (ele, o Pimenta e eu) no Peludo antigo, mesmo em frente ao seu excêntrico atelier, o que nos era de uma extrema comodidade. As noitadas entravam pela madrugada dentro, porque o Zé Manel tinha muito que contar e nós gostávamos de ouvir. O Sr. Avelino fechava para nós. Comia-se um marisquito, que àquelas altas horas estava nas últimas, e sobretudo bebia-se cerveja, finos, com tremoços, para fazer boca. Mais do que uma vez esgotámos o stock de copos, enchendo sete ou oito mesas à nossa volta, o café inteiro, porque o Sr. Avelino gostava de fazer a conta no fim. Partiam-se alguns, o Sr. Avelino afinava, tomava nota para acrescentar ao rol. Mas o pior era o desbaste nos tremoços, que pedíamos repetidamente por uma questão de princípio.
Uma noite o Sr. Avelino não aguentou e queixou-se: - Sr. Zé Manel, assim não pode ser, já comeram mais de dez pires de tremoços. É um prejuízo muito grande. Os tremoços custam-me dinheiro, valha-me Deus!...
O Zé Manel foi ao bolso do casaco, sacou da carteira marreca, tirou uma mão-cheia de notas e disse séria, calma e secamente: - Ó Avelino, traz-me cinco contos de tremoços! - e pousou o dinheiro como mão de póquer em cima da única mesa de vago, que era a nossa...