Foto Hernâni Von Doellinger |
segunda-feira, 31 de maio de 2021
Um país para o Guinness
Eu se fosse aparecidense - aparecidense e festeiro - e também tivesse a vaidade de pôr o nome da terra no índice do Livro dos Recordes, seria porém mais modesto, terreno e prático do que os construtores em altura. E não ia muito longe. Ficava-me ali pelas redondezas da capela e chamaria os do Guinness para provarem o cabrito assado no forno da Pita Arisca. Evidentemente o melhor cabrito assado do mundo, estou farto de dizer, e não é preciso usar capacete.
P.S. - Publicado originalmente no dia 13 de Agosto de 2019. Hoje, 1 de Junho, é Dia Nacional do Sobreiro e da Cortiça. O "maior sobreiro do mundo" - há quem diga "mais antigo do mundo" - chama-se Assobiador, conta 237 primaveras e mora em Águas de Moura, Palmela.
Manuel Cuña Novás 5
Malencónico seixo do lecer,
doce namoro meu do meiodía centro,
pan quente a miña pel verdexiada,
ista derradeira raiola, ista pinga de luz
cae ispida no pó da corredoira. N-é túa.
Virán somas e medos
agudos como cristaes de neve
a roldar o meu corpo esgarecido.
Ben sei da miña morte: unhas mans nenas,
mans do xogo entre amoras degoradas,
manciñas sin escola axexando a valeira serán,
namentras do solpor enfrautan luz os páxaros,
por enriba dos aers estantíos e núos,
atoparán o meu corpo
en doce pedra quente convertido.
Despois, no paradiso cheo de sol e ascua,
pólos muros vizosos de silveiras e amoras
loumiñarei os meus pes de verde frío.
Asemade atendín a o silenzo da noite en chorros outurada,
sarabia que no ceo faise luz e pendura:
Rodaba o mundo cristaíño e alobre
baixo a lúa que imanta outuras dos anceios
e ía parecendo na traslación da ollada
a outras fermosuras e outros cánticos
no iminentes laio derradeiro.
Non teño outra eisperencia tan temida
ao meu recullo vou que a enbadonuese o día.
(Manuel Cuña Novás nasceu no dia 1 de Junho de 1924. Morreu em 1992.)
Foi comprar tabaco e não voltou
Algo de definitivo
Os que deixaram de fumar
Maus hálitos
Uma questão de respeito
- Nunca fumei à frente do meu pai.
- Porquê?
- Por uma questão de respeito.
- Mas o teu pai sabe que tu fumas?
- Há que anos...
- E então?
- É uma questão de respeito.
- E o teu filho sabe que tu fumas?
- Claro que sabe.
- E tu fumas à frente do teu filho?
- Claro que fumo.
- Porquê?
domingo, 30 de maio de 2021
Como o mundo é pequeno (e um bocado parvo)
- Sou, com efeito, um bocado parvo, mas como é que o caro senhor adivinhou?
- Um pressentimento. É que eu também sou...
- O caro senhor também é um pressentimento?
- Não, não, caro senhor: também sou um bocado parvo.
- Como o mundo é pequeno! Somos então praticamente primos...
- Parentes, pelo menos...
- E, mal que lhe pergunte, o caro amigo é um bocado parvo por parte da senhora sua mãe ou por parte do senhor seu pai?
- Por parte do senhor meu pai.
- Mas isso é extraordinário, caro amigo, porque eu também sou...
- O caro amigo também é um bocado parvo por parte do senhor meu pai?
- Oh, que pena! Quase que éramos irmãos, não é?...
Não sou eu. Sou o outro.
- Então hoje resolveu aparecer...
- Não.
- Não?...
- Não.
- Mas você...
- Não sou eu.
- Você não é você?...
- Não. Sou o meu irmão gémeo.
O vogal que era consoante
E os amigos do Pina, que é deles?
Ignoro o que se passa hoje em dia com aquelas duas pressurosas e exclusivas agremiações pinaculares. Desconheço se ainda existem, se bolem, se fazem saraus literários ou pelo menos almoço de Natal, se são nenhuma ou se se multiplicaram por vinte. O Pina é grande e chega para todos: para os compinchas de verdade e para os simpatizantes, curiosos, atrevidos e outros aproveitadores. Eu sou um simples admirador das palavras de Manuel António Pina, só lhe conhecia a voz da televisão e da rádio, naquele falar de quem fala, e do olá distraído no elevador do Edifício JN, e parece que o estou a ouvir dizer: - Sirvam-se.
Fanecamente falando
Bem boas que elas andam, as fanecas. Já repararam? Se calhar a mãe
Natureza resolveu chamar à razão a nem sempre atinada lei das
compensações, mas a verdade é que durante a quase década baixa da
sardinha, uma desgraça, a faneca comportou-se sempre com uma categoria
de que
eu já nem me lembrava. Regalei-me.
Gosto delas fritas. Só com sal e passadas por farinha milha, à tasco, ou
então mais à minha moda, tratadas também com pimenta e limão e depois
envolvidas com farinha triga e ovo. Sem outros truques ou invenções. Há
derivas que aceito e como, mas estão longe de me satisfazer. Insisto: a
faneca só me enche as medidas quando na sua pureza original. Frita.
Uma vez há muitos anos, pela madrugada, deixei que me metessem num barco
e fui à pesca da faneca com o grupo do meu saudoso amigo Adélio Santos.
Quer-se dizer: eles foram à pesca e eu fui vomitar uma noite de copos e
sem passagem pela cama. Não sei se a nojeira serviu de engodo, mas o certo é que
aquilo era peixe até dar com um pau. Seríamos uns seis ou sete naquela
companha de ocasião e toda a gente teve direito a um ou dois baldes
cheios de fanecas e cavalas, até eu, que pelos vistos também tinha feito
a minha parte e não sabia. Estava na idade da toléria e tão tolo era
que desprezei então as cavalas, hoje em dia com lugar cativo na minha
lista de pitéus.
Mas voltemos às fanecas. O meu amigo Lopes, que é tão fanequeiro como
eu, diz, no seu mar de sabedoria, que "a faneca é um peixe muito
honesto". E é. Em diversos sentidos e apesar de já ter andado por
aí na boca da malandragem armada em carapau de corrida. A este respeito
(ou a respeito da falta dele), torno a Fafe, à década de setenta do
século vinte: quem é desse tempo e não se lembra de aproveitar a
barafunda das quartas-feiras para passar por elas, pelas gajas, em Cima
da Arcada, roçar-lhes o cotovelo pelas mamas como quem não quer a
coisa, dizer-lhes entredentes "Ah, faneca, comia-te toda!" e levar um
estalo na cara que acabava logo ali com todos os tesões? Quem não se
lembra, nem era homem nem era nada. Ou então sofre de Alzheimer e está desculpado.
O Lopes tem razão: a faneca é um peixe muito honesto. Depois, há fanecas
mais honestas do que outras. Em minha casa, por exemplo, só entram
fanecas do alvor, pescadas já dentro da manhãzinha, como daquela vez com
o Adélio mas agora por mãos que sabem. Um luxo. Mordomia matosinhense.
São fanecas do mar que eu vejo da minha varanda. Madrugo também,
compro-as vivinhas da silva, ainda sem terem passado pelo castigo do
gelo e isentas de outras burocracias normalizadoras e estragativas,
amanho-as eu, eu é que sei. Não menos importante: comemo-las no próprio
dia. Exactamente. Elas andaram e andam bem boas, mas é preciso saber dar-lhes as
voltas.
P.S. - Hoje, 31 de Maio, é Dia Nacional do Pescador.
Sardinhamente falando
Uma vez, na peixaria da Dona Augusta, seria mês de Abril, uma senhora perguntava se "As sardinhas..." e foi logo interrompida pela minha peixeira, que lhe respondeu "Estão muito boas, as sardinhas ainda estão boas". É claro que não estavam, e logo em ano de colheita medíocre, mas a peixeira tem de fazer pela vida. Eu trouxe biqueirão.
Já experimentaram, decerto já, tirar a cabeça aos biqueirões, abri-los pela barriga retirando-lhes a espinha, que sai muito facilmente, temperar estas "costeletas" com sal, pimenta preta moída na hora, limão e um quase-nada de alho picado, e deixá-los neste preparo aí umas quatro horas, duas para cada lado? E depois passá-los por ovo e pão ralado e fritá-los sem deixar queimar? E fazer entretanto um arrozinho de bacalhau com trocinhos de tronchuda? Arroz carolino, já se sabe, que se transforma com o peixinho num verdadeiro manjar de deuses. Mas decerto já experimentaram.
Dica: as espinhas saem ainda mais facilmente se os biqueirões forem do dia anterior. Mas, para mim, peixe ou é do dia ou já não é peixe. Em miúdo, muito gostava eu de ouvir às peixeiras de Fafe o pregão "É da biba, olha a bibinha", e ficava-se logo também a saber que as sardinhas nesse dia seriam mais caras. Mas eram "como prata". Hoje tenho a sorte de morar em Matosinhos, a dois passos do porto de pesca e da lota. O mais das vezes trago para casa peixe vivo, literalmente vivo, que os pescadores dos barcos pequenos estão a acabar de entregar. O que me levanta alguns problemas, operacionais e... de consciência. Um dia tive com uma solha uma luta cujos pormenores não conto nem quero lembrar. Ganhei, mas portei-me mal. E só à mesa é que me perdoei.
sábado, 29 de maio de 2021
Os rapazes do Vaticano
E já muito facilita o Vaticano, quedando-se pelos simpáticos septuagenários ou octogenários. Basta pensar que, biblicamente, Moisés viveu até aos 120 anos, Jacob até aos 147, Abraão até aos 175, Adão até aos 930, Noé até aos 950, e Matusalém, filho de Enoque, pai de Lameque e avô de Noé, faleceu inesperadamente aos 969 anos.
(Evidentemente também há João XII, que chegou a papa aos 18 anos, dormia com as prostitutas do pai, teve relações sexuais com a própria mãe, castrou um dos seus cardeais, cegou outro, torturou quem lhe desprazia e acabou por morrer com uma valente marretada na cabeça, gentilmente oferecida pelo marido cornudo de uma das suas incontáveis amantes. Mas isso não é desculpa.)
Não sei se sabem: todos os católicos são elegíveis para papa. Basta-lhes serem, obviamente, baptizados, maiores de idade e homens, embora depois devam vestir saias. Isto é, eu posso ser papa, um sétimo de toda a população mundial pode ser papa, depois, na questão das saias, cada um seria para o lado que der.
Só que as eleições no Vaticano não são directas e universais. Votam apenas os cardeais, lacrados no chamado conclave, onde, nas horas mortas, contam anedotas picantes uns aos outros e fazem malha. E se votam apenas os cardeais (120 no máximo, "em nome" de cerca de 1272 milhões de almas), porque é que os velhinhos haveriam de escolher para patrão o Silva dos Plásticos, que, sendo embora uma pessoa estimável e comerciante respeitado, não lhes pertence de lado nenhum?
P.S. - Publicado originalmente no dia 19 de Junho de 2016. No dia 30 de Maio de 1994, o papa João Paulo II proclamou um "não irrevogável e definitivo" à ordenação sacerdotal de mulheres.
O Secónego
Quando me chegou às mãos, o Secónego já era um sábio intermitente, com apagões. Era um homem precocemente envelhecido e debilitado. De vez em quando desligava e isso fazia-me uma enorme impressão. Lembro-me que nessas alturas me apetecia chorar. Que injustiça para uma cabeça assim. Filhadaputice que ele não merecia, era o que eu achava e depois ia confessar-me, porque achar filhadaputice, fosse de que espécie fosse, era pecado no seminário.
Por falar em filhadaputice (e vão três), havia umas "brincadeiras" institucionalizadas para as aulas do Secónego. E os coninhas, que, borrados de medo, até respiravam pelas orelhas frente aos outros professores, pintavam a manta com o Secónego, numa coragem cobarde que ainda hoje me mete nojo. Eu também não era nenhum santo - e certamente por isso (e por achar filhadaputices a torto e a direito) é que me mandaram dar uma volta -, mas, para mim, as aulas do Secónego eram sagradas. Eram as únicas em que eu não mijava fora do penico. Por pena. Quem me dera que tivesse sido por respeito.
Um dia o Secónego desligou-se o interruptor em plena aula. De repente ficou ali, sentado à secretária, olhando o nada, obviamente esquecido de nós e dele, e dizia apenas "Leia, menino", apontando para ninguém. E nós lemos, mandei eu, e mandei também chamar quem o tirasse dali. Lemos: três ou quatro de nós, uns atrás dos outros, passando a Selecta de mão em mão, Vaiamos, irmana, vaiamos dormir nas ribas do lago, u eu andar vi a las aves meu amigo. E lemos a cantiga até ao fim e voltámos ao princípio, uma e outra vez, numa lengalenga interminável, e tanto fazia quem lesse, eram as minhas ordens, porque eu sentia que o som das nossas vozes apaziguava a alma cansada e ausente do velho professor. E isso era preciso.
Depois levaram-no.
O Secónego tinha uma casa creio que à borda da estrada que sobe da cidade de Braga para o Bom Jesus. Padres mais novos diziam-lhe, no gozo: "Ó Secónego, que pena, uma casa tão bonita e quem por ali passa de carro só lhe vê o cume". E ele: "Pois, mas isso é à ida, menino. À vinda nem o cume vê"...
P.S. - Publicado originalmente no dia 11 de Julho de 2013. O Secónego, assim chamado, era o cónego Arlindo Ribeiro da Cunha, autor, entre outras obras, de "A Língua e a Literatura Portuguesa" e de uma "Gramática Latina" que chegou à sétima edição. Vimaranense de São Torcato, é nome de rua em Braga.
Os cónegos dividem-se em três partes
Os cónegos que então conheci afiguravam-se-me criaturas patuscas, isso é certo. Geralmente baixinhos, barrigudos e corados, sebentos às vezes, os cónegos eram uns cromos, caricaturas deles próprios. Também não sei se ficaram assim depois e por causa de terem ido para cónegos ou se aqueles é que eram os requisitos necessários e critérios de selecção.
Uma vez, um padre recém-ordenado, mestre e amigo, ensinou-me que a classe dos cónegos se dividia em três categorias: "os cónegos de merda, a merda de cónegos e os cónegos a sério" - que seriam os da sé propriamente dita, eventualmente os cónegos com cargo no cabido. O meu mestre e amigo suponho que actualmente é cónego, mas não sei de que categoria.
Como funciona agora com os cónegos, confesso que desconheço. Mas acredito nisto: quarenta anos não dão para nada na Igreja instituição, não dão sequer para meter a chave à porta - quanto mais para puxar o autoclismo.
P.S. - Publicado originalmente no dia 11 de Julho de 2013. Os cónegos sempre me fizeram rir: olhem-lhes bem para as vestimentas cerimoniais e digam-me se não pensam logo no circo...
Não te armarás em parvo, disse o Senhor
O problema dos ex-colegas. Não é brincadeira. Para um gajo com quase sessenta anos de idade embora em estado praticamente novo, o problema dos ex-colegas é uma chatice quase tão grande como os calhamaços do José Rodrigues dos Santos se eu os lesse. Imaginem-me: com ex-colegas da escola primária, os melhores de todos, com ex-colegas do seminário, já lá irei, com ex-colegas do liceu que foram para doutores e foi um ar que se lhes deu, com ex-colegas dos Comandos que acham que são muito mama sumae! e eu não sou, com ex-colegas da fábrica de quem tenho tantas saudades, com ex-colegas dos jornais e da rádio que têm lá as suas vidinhas, vejo-me fodido para os aturar a todos, mesmo quando eles não querem saber de mim, o que é regra geral.
E quando querem saber de mim, então ainda é pior. O caso do seminário, e eu disse que vinha cá, é absolutamente paradigmático. Para quê? Digmático. Ninguém me mandou para o seminário, fui porque quis, porque queria ser padre, e às vezes ainda quero. A minha mulher sabe disso. No ano em que lá cheguei, éramos 136 crianças, havia um documento de acção psicológica (isto anda tudo ligado) que rezava assim: "Começar é fácil. Recomeçar é de muitos. Chegar ao fim é de heróis. Nesta marcha ascensional é nosso dever caminhar! A empresa é difícil, mas fascinante O Ideal!"...E há umas certas e determinadas pessoas que acreditam nisto, os supra-sumos que chegaram ao "O Ideal!". Se tivessem ido para os Comandos, andariam agora por aí de boina vermelha e crachá, eventualmente de G3 a tiracolo se os deixassem, e em vez de ego te absolvo diriam... mama sumae! Estes rapazes tiveram os melhores mestres do mundo, o padre Fonseca e o padre João Aguiar, e não aprenderam nada com eles, não perceberam nada da vida...
Porque. Reencontrei-me ultimamente, e gostei no princípio, com ex-colegas do seminário que deram em padres. Há aquela festa inicial, "ó pá, há que tempos, és mesmo tu, estás mais gordo, estás mais magro, está igualzinho, dá cá esses ossos, dá cá essa febras!", como pessoas normais, e depois os meus ex-colegas enfiam no cu um daqueles feijõezinhos que lhes dão aquela voz sacrista e falseta, e, superiores, condescendentes e compassivos, perguntam sempre, como se estivessem ensaiados uns com os outros, "e então, o que é que tens feito?"...
Fico à rasca. Começo a suar, a gaguejar, não sei o que hei-de dizer em minha defesa. Afinal estou perante um dos que chegaram ao topo do Kilimanjaro e eu nem sequer passei do sopé do Bom Jesus do Monte, onde o Secónego tinha uma casa. Conto o melhor que consigo: "ó pá, tenho sido sobretudo jornalista, sou casado, sempre com a mesma mulher, o que é um bocado estranho na minha profissão, admito e peço desculpa, tenho um filho com 32 anos que é uma jóia e o meu maior orgulho, temos a casa e o carro pagos, saímos de vez em quando para arejar, cada vez menos, eu não sei conduzir mas cozinho muito bem, e não me lembro se já disse que sou jornalista"...
Era assim. Mas há dias mudei de táctica, quando voltei a esbarrar com um dos meus que deu em padre. Inquirido sacramentalmente "e então, o que é que tens feito?", confessei na mesma o "ó pá..." do parágrafo anterior, porque tenho este defeito de informar, mas depois acrescentei perguntando também, para livração da minha alma:
- E tu? Nunca fizeste nada, pois não? Quer-se dizer, és padre, não é?...
P.S. - Publicado originalmente no dia 29 de Maio de 2016.
Anne Marie Morris 5
Anne Marie Morris
(Anne Marie Morris nasceu no dia 30 de Maio de 1916. Morreu em 1999.)
Xavier Costa Clavell 6
Tampouco ignoraba - don Fernando Filgueira faláralle de isto - que Fisterra xogara un papel estelar dentro da mitoloxía europea do Medievo. Era o fin do mundo coñecido. Alén de Fisterra espallábanse as augas e o misterioso abismo das néboas ultraterrenais.
Segundo a lenda, fronte ao Promontorium Nerum, o emplazamento de Fisterra, estaba, baixo as augas, a cidade coñecida polo nome de Duyo.
O neno, xa sen medo ao mar, bañouse nas augas da praia chamada de "Area do mar de Fora", unha espléndida praia situada ao noroeste do cabo de Fisterra.
"Fillo do Vento", Xavier Costa Clavell
(Xavier Costa Clavell nasceu no dia 30 de Maio de 1923. Morreu em 2006.)
sexta-feira, 28 de maio de 2021
Lamparina
Quando, no meio da discussão e dos encontrões, lhe ofereceram uma lamparina, ele aceitou de bom grado e deitou abaixo a ligação à EDP.
P.S. - Hoje, 29 de Maio, é Dia Internacional da Energia.
Génios
À velocidade da luz
A velocidade da luz desloca-se praticamente à velocidade da luz. O que é extraordinário!
Agustín Fernández Paz 6
Conforme pasaban os minutos, a insolencia daquel alumno ía en aumento. Xa non se trataba só do seu ostentoso desprezo ás explicacións que o profesor, con paciencia infinita, repetía unha e outra vez. O peor era que, ademais, o mozo tentaba atraer a atención dos seus compañeiros cos máis variados procedementos e, por qué non dicilo, cun éxito cada vez maior.
Atentos como estaban ás impertinencias do seu compañeiro, os alumnos non se decataron das transformacións mínimas que anunciaban o desastre: o medre desmesurado das uñas, as grosas serdas que apareceron na pel, o sangue coloreando os ollos, os cairos afiados que asomaban por entre uns labios anormalmente inchados, a desfeita nas costuras da chaqueta e o pantalón...
Cando foron conscientes do que ocorría, era xa demasiado tarde. Algúns aínda tiveron un tempo fugaz para pensar en balas de prata e en cruces invertidas, e na ausencia da lúa chea, máis evidente naquela mañá de primavera, e noutras inútiles fantasías cinematográficas, tan afastadas do rutineiro mobiliario escolar que os rodeaba.
Así de terribles e inagardados son algúns fenómenos de licantropía.
"Relatos Mínimos", Agustín Fernández Paz
(Agustín Fernández Paz nasceu no dia 29 de Maio de 1947. Morreu em 2016.)
No meu tempo havia respeito
- Ruço de mau pêlo, quer casar, não tem cabelo.
- Viva quem tem pêlos na barriga, e quem os abaixo tem que viva também.
- Enganei-te, enganei-te, com uma pinga de leite, à porta da missa, a comer uma chouriça.
- Três vezes nove, vinte e sete, quem morreu foi o valete, enterrado na retrete.
- Indo eu, indo eu, a caminho de Viseu, encontrei um burro morto a cagar e a mijar prò primeiro que falar.
- Pipa nova, pipa velha, foi ao mar, não afogou, com licença, meus senhores, aqui está quem se cagou.
- O Manel e a Maria foram ambos passear, o Manel deu um peido e mandou a Maria ao ar.
- Vinho na pipa, couves na horta, se não nos der nada, cagamos na porta.
- Cagarim, cagarou-se, há dois modos de cagar, se o cagalhoto foi grosso, fica o cu o fumegar.
- Ó Mila, o teu pai tem pila; se não fosse a pila, não havia a Mila.
- Sanica o cu, sanica a gaita; sanica o cu e a serigaita.
- Afina a guitarra, a viola toca, afina a guitarra e também a piroca.
- Quem te fosse ao cu e não te pagasse.
- Sexta-feira, sexta-feira, tararam tararam, sexta-feira da paixão, tararam tararam, foram dar com os padres todos, tararam tararam, a ir ao cu ao sacristão. Tararam tararam. Eram sete matulões, tararam tararam, com bigodes no colhões. Tararam tararam. Pontapés e bofetadas, tararam tararam, nas parrecas das criadas. Tararam tararam.
- A puta da minha amiga não tinha que pôr na mesa, cortou as beiças da cona, fez cozido à portuguesa.
Brincar em serviço
Ele nunca brincava em serviço. O que, para um palhaço de circo, era talvez contraproducente.
quinta-feira, 27 de maio de 2021
Danados para a brincadeira
Factos reais como punhos. Manhã de sábado, A28, direcção
Matosinhos-Viana do Castelo, um pouco antes da saída para Vila do Conde.
À minha frente segue uma velha carrinha Renault 4L, de um cor-de-rosa
altamente suspeito e vagaroso. Aproximo-me, com o fastio próprio dos
condutores domingueiros que já não têm paciência para os condutores
domingueiros, mas arrebita-se-me a atenção quando, mesmo em cima dela,
leio os dizeres da viatura. São uns dizeres sugestivos e muitos,
reclames açucarados a um loja de prazeres - sex-shop em português.
E
vejo finalmente os ocupantes, ainda por trás: é o do volante e, ao
lado, uma louraça da fazer parar o trânsito. Mas eu avanço. Avanço
cuidadosamente para a ultrapassagem, olho para o gajo e o gajo sorri
malandro. E eu continuo a olhar (eu posso olhar e continuar a olhar,
porque eu não conduzo, não sei conduzir, nem sequer tenho carta) e o
gajo continua a sorrir. Brincalhão. A gaja não sorri, não me liga nenhuma,
olha sempre em frente, tomando sentido à estrada, ainda mais loura do
que há bocado e, reparo agora, tem uns lábios vermelhos e
escarrapachados.
A minha mulher desliga o pisca e então é que se me
faz luz. A gaja da catrel é uma boneca. Uma boneca mesmo, de plástico,
uma boneca insuflável, de carregar pela boca. O gajo olha para mim e
sorri cada vez mais, está a gostar da coisa. Malandro. Não sei onde é
que a gaja tem a mão.
P.S. - Publicado originalmente no dia 22 de Dezembro de 2012. Hoje, 28 de Maio, é Dia Internacional ou Mundial do Brincar.
José Craveirinha 8
quando me gemes
as duas simples letras
do meu banal diminutivo
ao meu ouvido
o sussurrante som da sílaba
na pauta dos teus lábios
ultrapassa um sinfónico
ditirâmbico universo
de milhentos Zés.
(José Craveirinha nasceu no dia 28 de Maio de 1922. Morreu em 2003.)
Xoán Cuveiro Piñol 4
[...]
Os animaes cando baixan do río e alcóntranse encerrados e ven que se lles vai acabando a auga do mar, comezan a dar unhas carreiras que se asemellan a voaduras, unhas veces emparellados e outras soos; vólvense tolos, e algún deles querse choutar á terra. Os homes e os rapaces, cando xa non queda de auga máis que a do río, bótanse a el, póndose a cabalo dos peixes, que coa mesma coraxe que teñen lévanos unha grande distancia sin caírse; outros tíranlles arpóns, pedras e astra tiros, de sorte que aquelo convírtese nunha festa dun género novo, da que non quedan pouco ademirados astra os mesmos estrangeiros. Outras veces arremoíñanse en runfladas os arroaces e acometen a rede, tal é o istinto que teñen, pro como está pola parte de fóra arrodeada de lanchas e botes, desde elas con remos e paus, fan recuar os animaes, que xa fatigosos e cheos de firidas e pancadas, déixanse coller astra dos nenos, e tráenos á terra onde os poñen en toradas pra estraelles a graxa, que por certo é das máis finas, e co importe dela cobren os gastos da compostura da rede, e os das lanchas e botes.
[...]
Xoán Cuveiro Piñol
(Xoán Cuveiro Piñol nasceu no dia 28 de Maio de 1821. Morreu em 1906.)
Redacção (exactamente: cção).
A televisão é muito importante.
Gosto de ver na televisão as redacções das televisões porque nas
redacções das televisões que dão na televisão não há cadeiras partidas.
Trabalhei em muitas e variegadas redacções, na rádio e sobretudo na
imprensa, mas nunca na redacção de uma televisão.
Nas redacções onde eu trabalhei as cadeiras eram todas mancas e
andávamos à pancada por uma que se segurasse mais ou menos. O
sobrevivente marcava a sua cadeira para toda a vida, mas quando virava
costas já ela estava debaixo do cu do lado. E andávamos outra vez à
pancada. Foi por isso que, quando chegou a altura, estávamos sem forças
para irmos às ventas dos bandalhos que fazem profissão de destruir
redacções e que têm cadeiras da televisão. Feitas de cortiça.
A televisão é muito boa porque dá na televisão. Eu gosto muito da televisão.
Radiofonicamente falando
Era um homem muito antigo
Era inegavelmente um homem muito antigo. Do tempo em que os jornais escreviam notícias. E ele percebia. Depois os jornais começaram a publicar vídeos. E ele deixou de perceber.
Os amigos são para as ocasiões
Era o Lopes
Eu levo os telemóveis muito a sério (à séria, se lido em Lisboa). Se o meu telemóvel toca, e é raro, eu atendo. Sempre. Ainda ontem: eu estava aqui nas traseiras, por acaso sem o telemóvel à mão, e ouvi-o tocar na cozinha, virada para a rua. Fui lá a correr: não era o telemóvel, era a máquina de lavar roupa, que as máquinas de lavar roupa agora também tocam. O que é que eu fiz? Atendi a máquina de lavar roupa, evidentemente, e era o Lopes...
P.S. - Hoje, 27 de Maio, é Dia Mundial dos Meios de Comunicação. Há quem diga...
quarta-feira, 26 de maio de 2021
O agente da autoridade
- Boa tarde, senhor agente, mas eu não sou condutor...
- Pois. Documentos, se faz favor, senhor condutor...
- Que documentos, senhor agente? E, palavra de honra, eu não sou condutor...
- Pois. Carta de condução, se faz favor, senhor condutor...
- Não tenho, senhor agente. Porque a verdade é mesmo esta: eu não sei conduzir, eu nunca na vida conduzi, eu não sou condutor...
- Pois. Livrete, se faz favor, senhor condutor...
- Não tenho, senhor agente, eu nem sequer tenho carro. É como digo: eu não sou condutor...
- Pois. Seguro do veículo, se faz favor, senhor condutor...
- Não tenho, senhor agente. Nem veículo, já disse... E não sou condutor...
- Pois. Então, se faz favor, o que é que o senhor condutor está a fazer aí sentado?...
- Aqui sentado? Ó senhor agente, estou aqui na esplanada a apanhar um bocadinho de sol e a beber uns fininhos com este amigo...
Isto das idades
Centros históricos
Luís Veiga Leitão 5
A uma bicicleta desenhada na cela
Nesta parede que me veste
da cabeça aos pés, inteira,
bem hajas, companheira,
as viagens que me deste.
Aqui,
onde o dia é mal nascido,
jamais me cansou
o rumo que deixou
o lápis proibido...
Bem haja a mão que te criou!
Olhos montados no teu selim
pedalei, atravessei
e viajei
para além de mim.
Luís Veiga Leitão
(Luís Veiga Leitão nasceu no dia 27 de Maio de 1912. Morreu em 1987.)
terça-feira, 25 de maio de 2021
A Festa da Bomba
Foto Tarrenego! |
Quando eu era pequeno, Fafe tinha três grandes festas e eram as maiores festas do mundo: a Senhora de Antime, a Festa da Bomba e a cascata do Santo António na minha rua. Quanto à enormeza da Senhora de Antime, sobretudo da sua incomparável e pungente procissão, suponho que estamos conversados. Do nosso Santo António já aqui dei um lamiré, e é preciso não esquecer que até tínhamos foguetes e altifalantes que o Zé da SIF arranjava e metíamos raivinha às outras ruas todas, incluindo avenidas, rampas, quelhas e largos como o nosso. O Zé da SIF é irmão do Armando Perrinha, e eles mais o Zé Maria, que foi comando no Ultramar, a Dina e a Luísa são filhos do Agostinho Cachada e da Senhora Laura, família quase minha, vizinhos do coração e gente do melhor que pode haver. Mas as festas. Faltava a festa de anos dos Bombeiros Voluntários de Fafe - a Festa da Bomba -, e vamos a isso.
A Festa da Bomba, um bocadinho acima e dois meses antes do Santo António, era de arrebenta. Só de altifalantes - sempre os altifalantes! - eram dois dias, quase três, e coisa profissional, a encher de som fanhoso o ar da vila e arredores: "Amplificações sonoras de João Baptista Gonçalves, de Antime, Fafe, deslocam-se a qualquer localidade, haja ou não haja corrente eléctrica", levando atrás a discografia completa do António Mafra e da Maria Albertina, com o Tom Jones e o alemão Freddy Breck a emprestarem um toque de classe aos "trabalhos". E no domingo era povo que só visto. Havia bailarico no terraço do quartel e na parada, havia discos pedidos - "E o disco que se segue é dedicado à menina de camisola vermelha que está encostada à parede na varanda do segundo andar, por um seu admirador", e saía "O Carrapito da Dona Aurora" -, havia os tremoços da minha avó e o verde tinto do meu avô, que era quarteleiro mas não era tolo, havia capacetinhos de folheta dourada e alfinete torcido para enfiar nas lapelas dos generosos pobretes mas alegretes que davam "qualquer coisinha para a ajuda". (Se calhar foram os primeiros pins de que há memória. Os lacinhos furta-cores e os autocolantes de mão estendida ainda não tinham sido inventados.) Arranjaram-se ali namoros, casamentos. Era uma festa popular, sim. Mas a minha Festa da Bomba era a festa dos bombeiros.
Começava uns dias mais cedo, a distribuir pelas montras o programa do aniversário e a puxar pelo corpo para pôr os carros e o quartel como brincos, que naquele tempo eram só para mulheres e piratas. Depois ia na "Carrinha", uma velha Austin da II Grande Guerra, ajudar a recolher garrafões de vinho oferecidos pelos ricos da terra e amigos da Bomba: os Summavielles, o Zé de Freitas, o João do Sal, o Senhor Fernandes do Retiro (não por acaso, um quase eterno presidente da associação), que são os que me recordo.
O meu ponto alto, porém, era o içar das bandeiras, logo pela manhãzinha do dia grande. Eu fazia questão, tomava conta da bandeira dos Bombeiros, bela, azul e branca, passada a ferro pela minha querida tia Laura, feita num linho que dava gosto tocar, com a águia que afinal era a fénix renascida, as chamas e os machados no meio. Içava-a a compasso, orgulhoso, solene, tremente e, confesso, a chorar por mim abaixo como um madaleno arrependido nunca soube de quê.
Tinha mais que fazer no quartel, mas ia ao Largo ver o desfile engrossado pelas corporações convidadas e amigas. Caíam-me os olhos para os carros, todos mais modernos do que os nossos, mas isso não chegava para me desmoralizar. Eu sabia que os bombeiros de Fafe eram muito melhores do que os outros, nem que tivessem de ir a pé para o fogo. E às vezes iam.
Lembro-me sobretudo dos amigos de Vizela, que eram mais do que amigos, eram irmãos (futebol à parte), e, depois da obrigação feita, decilitravam com quase tanto gabarito como os bombeiros de Fafe, campeões mundiais da decilitragem. Era: após a cerimónia das medalhas é que começava a verdadeira festa. Cada um que se amanhasse para o almoço, e já voltavam todos bem bons, mas a meio da tarde havia o "beberete" no salão de festas transformado em refeitório. O "beberete" constava de uns bijus e de uns bolinhos de bacalhau feitos pela minha avó e metidos em sacos plásticos de doses individuais e sumárias, acompanhados à fartazana pelo tal vinho dado pelos beneméritos da corporação e que era bebido como se só voltasse a haver Festa da Bomba dali a um ano. O que até nem estava mal visto.
Conclusão: era beberete demais para tão pouco comerete. Passavam-se ali carraspanas iglantónicas. Os de Vizela ficavam até ao fim, num taco-a-taco que chegou a ser histórico, mas o nosso Joãozinho do Opel levava sempre a taça para casa. E levavam-no sempre a casa. De padiola. E eu pensava que não fazia mal, que os nossos bombeiros voluntários mereciam demais aquele dia sem medida e só para eles, derivado ao resto do ano em que eles eram só para os outros. Pensava que, às tantas, a Festa da Bomba era essencialmente aquilo - aquela bebedeira geral, eucarística, redentora e uniformizada, em descompassada ordem unida. E achava bem. E quero acreditar que nunca mais na vida tive pensamentos tão acertados.
P.S. - Publicado originalmente no dia 22 de Abril de 2012. Hoje, 26 de Maio, é Dia Nacional do Bombeiro.
O drama, a tragédia, o horror. O sangue...
Foto Hernâni Von Doellinger |
Quando eu era mocico e a ambulância acudia a um desastre com
a sirene em altos berros, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do
hospital. Ali se plantavam, esperavam, prognosticavam, diagnosticavam, e
finalmente assistiam ao espectáculo. Ao vivo. Em casos mais graves e raros,
assistiam também ao morto. As escadas do hospital eram um palco de desgraças e
caldeirão de emoções, cenário de reality show sem que Portugal sequer soubesse o que isso viria
a ser. Eram também muito jeitosas para tirar fotografias de grupo a
casamentos, bombeiros em festa e bandas de música, palavra de honra. Eram,
portanto, o sítio mais in da vila e só estorvavam naquilo em que deveriam melhor
servir, que era carregar macas com feridos e doentes por aqueles degraus acima
ou por aqueles degraus abaixo, às vezes de cangalhas até ao chão.
Mas o espectáculo. A ambulância saía e o povo corria. O bom
do Senhor Ferreira via-se à rasca para manter na ordem aquela
gente toda e tola que fazia guerra por um lugar na primeira fila, sobretudo mulheres
afogueadas e gordas, com os socos e o coração nas mãos ou enrodilhados no
avental arregaçado. Faço notar que não foi por distracção que escrevi
"a" ambulância. O artigo definido é aqui propositado e certo, porque,
naquele tempo, dará para acreditar?, os Bombeiros de Fafe tinham apenas uma
ambulância, uma velha Skoda vermelha que regularmente ficava sem travões no
meio das descidas. Pois, como dizia, as pessoas de Fafe corriam para as escadas
do hospital e regalavam-se de braços decepados e orelhas arrancadas e narizes
esborrachados e fémures a céu aberto e pés desfeitos e tripas de fora e miolos
ao léu e espinhelas partidas e... - Foi tiro?, Foi facada?, Foi sachola?, Foi o
home?, Foi a amante? Foi desastre?, Foi o vinho? E muitos Uis! e muitos Ais! e
muitos Coitadinhos! e muitos Valha-nos Deus! Estavam ali no relambório, a dar
água sem caneco e a benzer-se na direcção da Igreja Nova, mas sem perder
pitada. Vampiros mirones, iam ao sangue, queriam sobretudo molhanga, muita,
vermelha vermelha como a ambulância que chegava enfim, esbaforida e ganinte.
Era um fartote! Uma comoção!...
Agora as pessoas não precisam de ir a correr para as escadas
do hospital. Sentam-se em casa, ligam a televisão e vêem na CMTV.
P.S. - Publicado originalmente no dia 10 de Fevereiro de 2016.
A sesta do meu avô da Bomba
Foto Hernâni Von Doellinger |
Eu ainda não sabia que aquela "meia horinha" se chamava assim, mas o
primeiro adulto que eu vi a fazer a sesta foi o meu avô Manuel, o 17 da
Bomba, que não era terrorista e ganhara a explosiva alcunha derivado a
ser o bombeiro número 17 e quarteleiro dos bombeiros de Fafe. O meu avô
morava no quartel dos bombeiros, que, para todos os efeitos, era a
Bomba.
Naquela casa só se comia e bebia do bom e do melhor, embora regrado.
Muito regrado. Depois do almoço, o meu avô descia até à camarata e
estendia-se numa das camas, a primeira à entrada do lado esquerdo,
tapando a cara com o Jornal de Notícias. O JN era naquela altura um
jornal grande, quase um lençol, muito jeitoso para a sesta, e o meu avô,
contrariando a regra geral, gostava de dormir sob aqueles assuntos.
As minhas tarefas em relação à sesta do meu avô eram ir buscar o JN e
passar de vez em quando pela camarata para, se necessário, corrigir a
posição do jornal. Tinha uma terceira tarefa, não editorial, que era
andar em bicos de pés e de bico calado.
O Jornal de Notícias do meu avô era comprado a meias com o Sr. Ferreira
do Hospital, que o lia primeiro, e depois eu ia buscá-lo, ou então
ficava cada um com metade das páginas e a uma certa hora da manhã eu
fazia a troca, já não me lembro bem.
O Sr. Ferreira do Hospital e o meu avô foram amigos e cúmplices toda a
vida. Eram unha com carne, apesar de diferentes como a água e o vinho: o
Sr. Ferreira era comunista, tinha estado preso, e o meu avô... antes
pelo contrário. Para além de comunista, o Sr. Ferreira era um homem bom,
um grande Homem que eu admirava e gostava de ouvir. Anos passados, aos
domingos, eu à beira de ir para a tropa e sem emprego, o Sr. Ferreira
cumprimentava-me com uma nota de 20 escudos escondida na mão tremente.
O meu avô da Bomba fazia a sesta muito bem. Naquele tempo ainda não era
moda dizer-se que a sesta faz bem à saúde, o que até vinha mesmo a
calhar ao meu avô, que era "uma pessoa muito doente". Era também
preguiçoso, como vim a concluir mais tarde, o que me livrou do divã do
psiquiatra e despesas adjacentes, uma vez que consegui perceber sozinho
que tenho bem a quem sair.
Quando éramos miúdos, o meu avô punha-nos a bulir como gente grande, a
mim e ao meu irmão Nelo. Eu era pau para toda a colher: limpava os
capacetes e outros amarelos com solarine Coração e uma espécie de pó de
talco, lavava as viaturas, verificava o óleo e colocava água nos
radiadores, anotava as quilometragens, lavava, punha a secar e enrolava
as mangueiras depois dos incêndios, metia baterias à carga, enchia as
baterias com água da chuva colhida num garrafão com funil que estava no
telhado, ia chamar motoristas para as saídas urgentes de ambulância,
servia de bombeiro, varria o "parque do material", levava avisos a casa
dos bombeiros, atendia o telefone, tocava a sirene (era a parte de que
eu mais gostava), hasteava as bandeiras aos domingos e dias de festa, ia
à cave buscar vinho, "sempre a assobiar!", segundo ordens superiores.
Enfim, eu é que era o verdadeiro Bomba. E não saía de lá. Também porque
naquela casa só se comia e bebia do bom e do melhor - já disse.
Tenho-me esquecido de ir buscar o jornal para o meu avô da Bomba e
também já há muito que não estou com o Sr. Ferreira do Hospital. Aqueles
dois nem devem ter reparado. Estão entretidos a meterem-se um com o
outro, foram sempre assim, ou então dormem uma bela sesta, cada qual com
a sua metade de JN sobre o rosto. Quando nos voltarmos a encontrar, os
três, ainda nos havemos de rir disto tudo.
P.S. - Publicado originalmente no dia 8 de Outubro de 2011.
Quando o SIRESP vinha de motorizada
Os bombeiros estão lá no centro do vulcão a derreter, mas a eles agora ninguém lhes pode perguntar. E ainda bem, porque lá dentro faz muito calor e o calor dilata os copos. O senhor da boina e galões no camião de Fórmula 1 com ar condicionado é que sabe, e bebe águas das pedras. Geladas. E há briefings bidiários com groselha.
Quando o monte ardia, os bombeiros iam. Os bombeiros voluntários. Naquele tempo ninguém sequer sonhava ganhar dinheiro por fazer de conta que apaga incêndios - eram uns tolos. Tolos porém honrados. Não havia rede, satélites, parabólicas ou fibra óptica, ainda não havia radiotelefones ao serviço, os telemóveis ainda não tinham sido inventados e nem sequer havia cabinas telefónicas nos montes. Parece impossível, mas lá em cima, no meio da penedia e das giestas, no Portugal das cabras e dos cabrões, não havia telefone de espécie nenhuma. E não havia SIRESP, graças a Deus. Que se segue: se eram precisos reforços, alguém vinha de motorizada dar o recado ao quartel...
O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso: dominados. Freud explicaria muito melhor do que eu, mas eu, de momento, não tenho o Freud aqui à mão e, com isto do desemprego, perdi-lhe o número do telemóvel. Por outro lado, os incêndios estão desgostosos por lhes terem trocado o nome e mudado o objecto social. Objecto social, sim: o fogo é hoje em dia um negócio como outro qualquer - como a guerra, como a droga ou como a cirurgia plástica, por exemplo -, com múltiplas plataformas de exploração e sinergias que não param de exponenciar-se, a jusante e a montante, um extraordinário negócio que distribui transversalmente milhões e milhões e milhões de euros ou dólares consoante o paraíso, uma indústria em que todos ganham e em que apenas Portugal e os portugueses do rés-do-chão ficamos a perder.
Chamavam-se fogos antigamente e eram para apagar. Exactamente, fogos. E para apagar. Velhos tempos, coisas simples: Portugal ardia menos e não havia tanto teatro... de operações.
P.S. - Publicado originalmente no dia 7 de Agosto de 2016.
Quando a "puta" tocava
A "puta" tocava e Fafe desatava a correr em direcção aos Bombeiros. Os homens largavam tudo: trabalho, mesa, cama, mulher e até os socos pelo caminho. Havia os que iam de bicicleta e os que apanhavam boleia de motorizada. Carros paravam para levar desgraçados vindos das lonjuras da Cumieira ou dos campos do Sabugal e já com os bofes de fora. Depois, havia o Casimiro das Caixas, que começava o dia a fazer as palavras cruzadas no jornal do Café Chinês e chegava na sua velha furgoneta. Mas quando ela tocava era para todos. Tocava também para os curiosos, para os que iam apenas ver, saber onde era o fogo. E faziam-se úteis. Apanhavam e arrumavam as bicicletas e as motorizadas que os bombeiros largavam em pleno andamento ao chegarem ao quartel e um mirone encartado ainda tinha de estacionar em condições a carrinha do Casimirinho, deixada sempre à frente dos portões a estorvar a saída dos carros de incêndio. O Casimiro da Caixas tinha vindo de Guimarães, onde decerto nascera, como talvez Portugal, e nunca se descolou daquela pronúncia carregada que nos fazia rir a todos.
Ela tocava e eu, miúdo, lá estava. O fogo era uma aflição. Olhava para aqueles homens, esbaforidos, trementes, brancos como a cal, a entrarem na "primeira viatura" apenas meio vestidos, a enrodilharem-se nas calças que não enfiavam ou nas galochas que levavam ainda nas mãos, cheios de urgência para enfrentarem as labaredas, e via heróis. Exactamente: heróis, muito melhores do que os dos livrinhos de cobóis e dos filmes, nem que fosse o Steven McQueen anos mais tarde na "Torre do Inferno". Os meios eram escassos, a formação era elementar, Fafe era uma terra pequena, mas aqueles homens tinham um coração bombeiro do tamanho do mundo. E o seu maior medo, que eles não confessavam, era chegar lá e o fogo já estar apagado...
Tão grande era o coração, grande demais para um homem só, que depois tinha de ser repartido. Ser bombeiro era coisa sanguínea, "doença" de família. Irmãos, pais e filhos, netos, tios e sobrinhos, primos, todos sofriam do mesmo bem. Creio que hoje ainda é um bocado assim.
Naquele tempo, eram os do Santo, os do António Quim (sim, o do cinema...), os Moleiros, os Costas do Assento, os Feira Velha, os Funileiros, os Quintos. Eram também o Agostinho Cachada, o Augusto Susana, o Frescaragem, que tinha lábia de leiloeiro, o Nogueira da Ponte do Ranha, que "fardava muito bem", o Zé dos Alhos, o Zé Sacristão, o Nelo Chapeleiro, o Chaparrinho, o Ferreira "Puta Velha", o Armando "Salazar", que era o viagra em pessoa, o enorme Sr. Humbertino, que trabalhava para os Summavielles e já só se apresentava no dia da Festa dos Bombeiros, tal como o Sr. Matias e como o Joãozinho motorista, que conhecia como ninguém as manhas do Opel descapotável e apanhava todos os anos uma carraspana de tal ordem que era preciso levá-lo a casa.
(E havia os espontâneos, que afinal não eram tão espontâneos assim. Moravam ali à porta e estavam sempre de prevenção para uma emergência que o fosse realmente. Faltava um motorista, a saída estava a atrasar-se? - era só chamar por eles e eles avançavam: lembro-me do Fredinho Bastos e do irmão Quinzinho, do Varinho Dantas ou do Toninho da Luísa, que tinha piada fina e eu gostava de imaginar DaLuísa derivado ao comediante americano Dom DeLuise, mas isso já é outro filme. Se calhasse, enfiavam um blusão e um bivaque, só para despaisanar, e avançavam a todo o gás, bombeiros como os de exame feito e papel passado e ainda mais voluntários, mas qual seguro qual carapuça! Ser-se bombeiro era efectivamente um estado de alma. E estes eram bombeiríssimos de primeira.)
Mas a pinga. Naquele tempo, ser bombeiro dava muita sede e a água era toda para apagar incêndios. De modo que, conscienciosos, os voluntários fafenses, regra geral, decilitravam no verde tinto com apreciável pertinácia. O meu avô da Bomba, que era quarteleiro e videirinho, até montou um pequeno tasco que foi um sucesso. O meu vizinho Agostinho Cachada era um dos principais clientes, mas tinha um porém: pelava-se por bagaço e quando ia para casa nunca mais lá chegava, porque, mesmo depois de o meu avô fechar o tasco, o bom do Sr. Agostinho voltava sempre para trás para beber mais um. Era certinho. Uma noite, para lhe evitar a canseira e apressar o sono, o meu avô foi atrás dele até ao Paredes, já a meio caminho, com a garrafa da aguardente escondida debaixo do capote...
Quando a sirene tocava, também as mulheres de Fafe se sobressaltavam. Era a "puta" que lhes tirava os maridos de casa, da cama. E eles iam para os braços da "outra". Os Bombeiros eram uma tremenda paixão, a "amante" perigosa que levava tudo o que queria. E elas tinham medo que um dia os seus homens não voltassem. Tolices de mulheres. Então os heróis não voltam sempre?
Às vezes, não. Às vezes o herói faz o que tem de fazer, isto é, faz o que fazem os heróis, e depois desaparece em direcção ao sol poente. Desaparece e nunca mais.
Vens de Carrinha...
Foto Mundial Fotos |
O senhor de óculos e sem boné é Baltazar Rebelo de Sousa, ministro do
outro tempo, destacado colaborador de Salazar e Caetano, pai de Marcelo
Rebelo de Sousa e grande amigo de Fafe. Ia lá à minha terra muitas
vezes e nunca de mãos vazias. A fotografia conta uma das suas visitas
aos Bombeiros, e à direita, impecavelmente fardado de gala, está o
carismático e severo comandante Luís Mário, pai do comandante Armindo,
querido amigo que tive a sorte de rever e abraçar na última Senhora de
Antime.
Nenhum deles, porém, interessa para o meu assunto. Eu quero é falar do
carro que domina a cena. Uma velha Austin, refugo inglês da Segunda
Guerra Mundial, tal qual os pesados capacetes pretos para incêndios, os
cintos com machadinha e tudo e os blusões de serviço, iguais aos dos
soldados nos filmes. Foi material que deu jeito, que cumpriu por muitos e
bons anos. Menos, se não me engano, as sinistras máscaras antigás, que
só serviam para as minhas brincadeiras de miúdo e ficavam muito bem em
cima dos armários.
O carro tinha nome, chamava-se Carrinha e, de acordo com o "MG" da
matrícula, ainda deverá ter passado pelos pés do Exército português
antes de chegar a Fafe, orgulhosamente de volante à direita e "piscas"
de puxar por um cordel, como o coiso do fradinho das Caldas. Tinha
também manias e birras, provavelmente derivado à idade, e constava que
só o Casimiro das Caixas lhe conhecia as neuras e sabia fazer-lhe as
vontades todas - o Casimirinho era, pois, o nosso especialista em
Carrinha.
A Carrinha apareceu na minha vida já completamente coberta por uma chapa
ondulada em forma de U invertido e com uma grossa lona e correias de
cabedal para fechar atrás. E foi o meu primeiro e único carro. Quer-se
dizer: o carro não era meu, nunca foi meu, nunca o levei para casa nem
dormi com ele, mas a verdade é que nunca conduzi mais nenhum. E conduzir
talvez também não seja o verbo adequado ao caso, portanto passo a
explicar:
Mal dei fé que chegava aos pedais, o que eu fazia era ligar o motor e
solavancar as mudanças até que uma delas, uma qualquer, pusesse o carro a
andar. Às vezes calhava para a frente, outras vezes calhava para trás.
Viajava imensos dois, três metros, e invertia a operação, sem curvas,
novamente com a alavanca à sorte, voltava ao exacto centímetro de
partida e depois desaparecia dali a todo o gás, antes que alguém me
descobrisse o sítio das orelhas. Esta parte era muito importante.
Uma vez o quartel da Rua José Cardoso Vieira de Castro entrou em obras,
crescendo para a frente, e os carros dos Bombeiros mudaram-se
provisoriamente para uma garagem muito grande do "benfeitor" José
Freitas Nogueira, bastava dobrar a esquina, no encontro da Rua Monsenhor
Vieira de Castro com a Rua Dr. José Summavielle Soares, quase em frente
ao campo de futebol. Era um enorme portão verde e tinha lá dentro,
assim que se entrava, uma rampa muito jeitosa para as minhas
habilidades. Sobretudo ao baixo. Melhor ainda: ali o meu avô não ouvia
as coças que eu dava na desgraçada caixa de velocidades da pobre
Carrinha, gemente e ganinte por todos os lados. Bons tempos...
Dei também as minhas voltas no carro de bois do Sr. José do Santo e, com
expressa licença da minha mãe, na carroça do Moniz azeiteiro ("Os
azeites do Moniz são os melhores do País", dizia na retaguarda), mas,
francamente, não eram a mesma coisa. Não me enchiam as medidas. Nem os
carrinhos de choque, de que fui, não é para me gabar, prestigiado ainda
que bissexto praticante. Não. Nada. A Carrinha foi o meu primeiro e
único carro. Como no amor. Nunca mais quis outro.
P.S. - Publicado originalmente no dia 27 de Setembro de 2013.
segunda-feira, 24 de maio de 2021
As Grilas, as Turicas e um par de mamas
A história precisa de ser melhor contada, não precisa? Vamos lá então ver se sei, e por partes:
Primeiro, para que nos situemos, é essencial não confundir as Grilas com as Turicas, erro crasso e muito comum entre os especialistas locais. As Grilas eram mesmo ao lado do prédio do Café Chinês, que então se construía. Irmãs, velhas no meu critério de criança, solteironas, desgrenhadas, professoras e misteriosas. Raramente vistas na rua, espreitavam apenas à porta, defendida por um portão baixinho em ferro forjado, e quando meteram telefone em casa ligaram ao meu avô a perguntar se o telefone dos Bombeiros "também tocava em português" como o delas. Eu morava ali à beira, ao dobrar da esquina, no Santo, e as senhoras até gostavam de mim. Mesmo depois da tratantada que lhes perpetrei e que graças a Deus nunca lhes chegou aos ouvidos. Sabiam que eu era filho da "viúva da Bomba" e isso valia muito em Fafe. Quando eu passava, as Grilas diziam-me sempre qualquer coisa simpática, só com a guedelha grisalha e o nariz de fora, e uma vez deram-me um santinho. Obviamente não mereciam a traição que lhes cometi...
Isto as Grilas. Agora as Turicas, na mesma Rua Monsenhor Vieira de Castro e do mesmo lado, direito para quem desce para o Picotalho ou para a Recta, mas depois do cruzamento dos tascos do Paredes e do Zé Manco, nem 50 metros de distância entre umas e outras, e daí a lamentável e inexplicável confusão numa terra tão prenhe de historiadores. As Turicas eram também irmãs. Costuravam. Pequeninas e idosas, resmungonas e prendadas para os mais delicados lavores, faziam renda de bilros sentadas num banquinho junto às enormes portadas que davam para a rua. Tinham uma loja mais antiga do que elas e que cheirava a um mofo muito bom. Vendiam botões e tafetás, fitas de nastro, fechos, linhas, lãs, chitas, agulhas e flanelas. Vendiam também vinho ao garrafão nas traseiras do estabelecimento. As boas senhoras tinham uma "criadita" que abria a porta a quem ia comprar vinho. E a miúda tinha umas mamas. A minha mãe mandou-me ao vinho e eu pedi à rapariga se me deixava apalpar-lhe as mamas. Ela não deixou e eu apalpei. As mamas eram de papel e foi um desgosto muito grande.
Que se segue: o prédio do Café Chinês estava a ser construído e as Grilas, que já lá moravam resvés, queixavam-se das obras e dos operários. Queixavam-se do barulho e da insegurança, de tudo e de nada, barafustavam que a casa ia abaixo, era berraria o dia inteiro, guinchos de um lado e palavrões do outro, que até foi preciso chamar a Polícia. A Polícia veio e ficou. Dias e dias. Um agente sempre a rondar e a deitar os olhos ao conflito durante as horas de expediente, não fosse a coisa passar a vias de facto.
Ora, foi exactamente o desprezo por este pequeno pormenor que me tramou. Quando o toco de giz me apareceu aos pés a tentar-me e eu não resisti a apanhá-lo e a sarrabiscar "Senhoras Donas Grilas" na parede das ditas, palavras não eram escritas e já estava a ser levantado por um potente garibalde que me agarrou em tenaz pelo cachaço e perguntou - O que é que o senhor está a fazer?
Olhei para trás e o garibalde era um polícia. O senhor era eu mais os meus onze anos, o que me fez desconfiar que estava metido em caso sério. Com o giz na mão e a última perninha do "s" final ainda a fumegar, respondi - Nada...
Ainda hoje acho que respondi com grande categoria.
E o polícia - Onde é que o senhor mora? E eu, que não queria a minha mãe metida na ocorrência, até porque era melhor para mim - Moro longe. E ele - Então, vamos para a esquadra.
(Para a esquadra? Mais polícias? Isso é que não me dá jeito, pensei, rápido como um fósforo, derivado ao que se ouvia dizer. Porque a Polícia daquele tempo.... bem, a Polícia daquele tempo vestia uma farda de terilene cinzento, que era a cor da Autoridade e do País. Os carteiros também vestiam de cinzento, mas em cotim. A outra diferença é que os carteiros eram nossos amigos.)
E eu - Enganei-me, senhor polícia, desculpe, moro já aqui no Santo...
O polícia deixou-me finalmente aterrar, empurrou-me para casa, ainda com a tenaz no meu cachaço, o João do Zé Manco viu, veio a correr acudir por mim e foi à frente avisar a minha mãe de que eu não tinha feito mal nenhum. Fiquei a dever uma ao João. Dessa vez a minha mãe não me bateu. E ainda agora me diz que, para além da cunha do João, levou em devida conta o facto de eu ter escrito "Senhoras Donas Grilas" e não "Grilas" simplesmente. "Senhoras", evidentemente. Para a minha mãe, respeito e educação acima de tudo.
Fui condenado a limpar a parede com um pano molhado, cumpri pena e segui para a escola, de coração a mil e tremente como varas verdes. As varas verdes eram também uma especialidade da minha mãe. Livrei-me de boa...
P.S. - Publicado originalmente no dia 24 de Dezembro de 2013. Hoje, 25 de Maio, é Dia da Costureira. E também Dia do Massagista, do Sapateado e do Orgulho Nerd.
Profissão de risco
Para todo o serviço
Gosto muito de ténis. De ver na televisão. Não sei jogar, nunca joguei. Suponho que nem seria capaz de acertar com a raquete na bola, quanto mais executar um approach ou um lob, meter um passing shot ou um slice, esmagar com um smash - logo eu que sou um zero a inglês. Mas há uma pancada do ténis moderno em que sou craque: a limpeza-do-suor-com-a-toalha. Como é do conhecimento de todos os seguidores da modalidade, a limpeza-do-suor-com-a-toalha é, hoje em dia, a principal pancada do ténis. Até há chegadores de toalhas, apanha-bolas nos tempos livres. Qualquer jogador que não limpe-o-suor-com-a-toalha de trinta em trinta segundos nem é jogador nem é nada. Num encontro que dure duas horas, por exemplo, hora e meia é gasta a limpar-o-suor-com-a-toalha. E os duelos de limpeza-do-suor-com-a-toalha são interessantíssimos. E as toalhas são de desenho exclusivo para cada torneio. Lembro-me de quando não era assim e era uma chatice. Não sei quando é que esta revolucionária pancada começou, mas podia ter sido inventada por mim. Haviam de me ver, pratico-a de forma exímia. Mesmo nesta idade. Principalmente nesta idade e com a pandemia às costas. Que pena o ténis não ser só limpar-o-suor-com-a-toalha.
P.S. - Publicado originalmente no dia 28 de Junho de 2012. Hoje, 25 de Maio, é Dia da Toalha.