segunda-feira, 31 de maio de 2021

Sardinhamente falando

Foi um bom ano. Óptimo! Em tempo de balanço, há que dizer com toda a frontalidade que as sardinhas da época 2020 foram excelentíssimas, e sei de prova tirada que as de 2021 também prometem. Abençoada proibição. Finalmente, ao fim de quase dez anos, enfrentei-me com sardinhas competentes, maiores ou menores, sabendo e cheirando a mar e pingando no pão, como manda a tradição.
Por acaso eu às tradições até nem ligo. Cá em casa só começamos a assar sardinhas depois de passados os santos populares e tenho um contrato assinado com os meus amigos pescadores e com a minha querida peixeira que me proíbe de explicar porquê. Mas em 2020 comemos sardinhas assadas do nosso mar todas as sextas-feiras após o São João e até aos princípios de Novembro, com Setembro e Outubro em grande forma, apesar de serem meses que sardinhamente falando, padecem de "r".
É. A sabedoria popular ensina, e genericamente bem, que Maio, Junho, Julho e Agosto são os melhores meses para comer sardinha assada. Mas a Dona Dina, que Deus tem, dizia-me que de Junho a Dezembro eu podia comer as suas sardinhas à confiança, e eu comia e ela tinha razão. A Dona Dina era uma pessoa muito boa e a melhor assadeira de sardinhas do mundo. As sardinhas assadas da Dona Dina eram não mais do que douradas e traziam sempre o mar dentro.
Eu ando lá perto...

Uma vez, na peixaria da Dona Augusta, seria mês de Abril, uma senhora perguntava se "As sardinhas..." e foi logo interrompida pela minha peixeira, que lhe respondeu "Estão muito boas, as sardinhas ainda estão boas". É claro que não estavam, e logo em ano de colheita medíocre, mas a peixeira tem de fazer pela vida. Eu trouxe biqueirão.
Já experimentaram, decerto já, tirar a cabeça aos biqueirões, abri-los pela barriga retirando-lhes a espinha, que sai muito facilmente, temperar estas "costeletas" com sal, pimenta preta moída na hora, limão e um quase-nada de alho picado, e deixá-los neste preparo aí umas quatro horas, duas para cada lado? E depois passá-los por ovo e pão ralado e fritá-los sem deixar queimar? E fazer entretanto um arrozinho de bacalhau com trocinhos de tronchuda? Arroz carolino, já se sabe, que se transforma com o peixinho num verdadeiro manjar de deuses. Mas decerto já experimentaram.
Dica: as espinhas saem ainda mais facilmente se os biqueirões forem do dia anterior. Mas, para mim, peixe ou é do dia ou já não é peixe. Em miúdo, muito gostava eu de ouvir às peixeiras de Fafe o pregão "É da biba, olha a bibinha", e ficava-se logo também a saber que as sardinhas nesse dia seriam mais caras. Mas eram "como prata". Hoje tenho a sorte de morar em Matosinhos, a dois passos do porto de pesca e da lota. O mais das vezes trago para casa peixe vivo, literalmente vivo, que os pescadores dos barcos pequenos estão a acabar de entregar. O que me levanta alguns problemas, operacionais e... de consciência. Um dia tive com uma solha uma luta cujos pormenores não conto nem quero lembrar. Ganhei, mas portei-me mal. E só à mesa é que me perdoei.

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