Foto Tarrenego! |
Quando eu era pequeno, Fafe tinha três grandes festas e eram as maiores
festas do mundo: a Senhora de Antime, a Festa da Bomba e a cascata do
Santo António na minha rua. Hoje sei que Fafe tem duas festas de
considerável importância local: a Senhora de Antime, ainda e sempre, e
essa recente e extraordinária festa da cultura que são as Jornadas Literárias.
Para que não pensem que a minha memória exagera, deixem-me contar-lhes o
seguinte: no nosso Santo António até tínhamos altifalantes, que o Zé da
SIF arranjava e aquele pedaço de Fafe regalava-se a ouvir o "Tango dos
Barbudos", o "Fado das Trincheiras" e o "Je T'Aime Moi Non Plus", que
era proibido e eu nunca percebi o que é que estava ali a fazer. O Zé da
SIF é irmão do Armando Perrinha, e eles mais o Zé Maria, que foi comando
no Ultramar, a Dina e a Luísa são filhos do Agostinho Cachada e da
Senhora Laura, família quase minha, vizinhos do coração e gente do
melhor que pode haver.
Os discos deviam ser poucos. O "Tango dos Barbudos", parece que lhe
estou a ver a capa, tocava vezes sem conta e o "Se eu morrer na batalha
só quero ter por mortalha a bandeira nacional", do Fernando Farinha
fardado, fazia a rua inteira chorar, não sei se por causa do Zé Maria já
estar na guerra. Dessa parte não me lembro bem. Lembro-me é que nem com
o "Je T'Aime" se me arrebitava o pirilau, também não sei se por medo de
ir preso ou por o meu corpo ainda não ter idade para semelhantes
acrobacias.
Tínhamos foguetes também. Eram foguetes de três-croas, foguetes
envergonhados, quase peidos, se me dão licença, géu, trás, trás, adeus e
até ao próximo. E tínhamos girândolas e diabos-encaixados. Tudo
comprado no Rates, mais ou menos onde está agora escondido o monumento à
Justiça de Fafe. Quase tudo comprado no Rates, devo corrigir-me: na
verdade, íamos em bando para nos aproveitarmos das distracções do homem,
a antipatia enfiada numa larga bata de sarja cinzenta e com manguitos, e
metíamos ao bolso tudo o que lá coubesse. Levávamos muitos bolsos e o
mais certo é que o Senhor Rates até fosse boa pessoa.
Estávamos portanto no Santo Velho, quando a minha rua era um largo de
terra e tílias e nem desconfiava que um dia havia de ser uma estrada com
semáforos e tudo. Hoje a nossa cascata seria multada por estacionamento
proibido.
A Festa da Bomba, um bocadinho acima e dois meses antes, era de
arrebenta. Só de altifalantes eram dois dias, quase três, e coisa
profissional, a encher de som fanhoso o ar da vila e arredores:
"Amplificações sonoras de João Baptista Gonçalves, de Antime, Fafe,
deslocam-se a qualquer localidade, haja ou não haja corrente eléctrica",
levando atrás a discografia completa do António Mafra e da Maria
Albertina, com o Tom Jones e o alemão Freddy Breck a emprestarem um
toque de classe aos "trabalhos". E no domingo era povo que só visto.
Havia bailarico no terraço do quartel e na parada, havia discos pedidos -
"E o disco que se segue é dedicado à menina de camisola vermelha que
está encostada à parede na varanda do segundo andar, por um seu
admirador", e saía "O Carrapito da Dona Aurora" -, havia os tremoços da
minha avó e o verde tinto do meu avô,
que era quarteleiro mas não era tolo, havia capacetinhos de folheta
dourada e alfinete torcido para enfiar nas lapelas dos generosos
pobretes mas alegretes que davam "qualquer coisinha para a ajuda". (Se
calhar foram os primeiros pins de que há memória. Os lacinhos
furta-cores e os autocolantes de mão estendida ainda não tinham sido
inventados.) Arranjaram-se ali namoros, casamentos. Era uma festa
popular, sim. Mas a minha Festa da Bomba era a festa dos bombeiros.
Começava uns dias mais cedo, a distribuir pelas montras o programa do aniversário e a puxar pelo corpo
para pôr os carros e o quartel como brincos, que naquele tempo eram só
para mulheres e piratas. Depois ia na "Carrinha", uma velha Austin da II
Grande Guerra, ajudar a recolher garrafões de vinho oferecidos pelos
ricos da terra e amigos da Bomba: os Summavielles,
o Zé de Freitas, o João do Sal, o Senhor Fernandes do Retiro (não por
acaso, um quase eterno presidente da associação), que são os que me
recordo.
O meu ponto alto, porém, era o içar das bandeiras, logo pela manhãzinha
do dia grande. Eu fazia questão, tomava conta da bandeira dos Bombeiros,
bela, azul e branca, passada a ferro, feita num linho que dava gosto
tocar, com a águia, as chamas e os machados no meio. Içava-a a compasso,
orgulhoso, solene, tremente e, confesso, a chorar por mim abaixo como
um madaleno arrependido nunca soube de quê.
Tinha mais que fazer no quartel, mas ia ao Largo ver o desfile
engrossado pelas corporações convidadas e amigas. Caíam-me os olhos para
os carros, todos mais modernos do que os nossos, mas isso não chegava
para me desmoralizar. Eu sabia que os bombeiros de Fafe eram muito
melhores do que os outros, nem que tivessem de ir a pé para o fogo. E às
vezes iam.
Lembro-me sobretudo dos amigos de Vizela, que eram mais do que amigos,
eram irmãos (futebol à parte), e, depois da obrigação feita,
decilitravam
com quase tanto gabarito como os bombeiros de Fafe, campeões mundiais
da decilitragem. Era: após a cerimónia das medalhas é que começava a
verdadeira festa. Cada um que se amanhasse para o almoço, e já voltavam
todos bem bons, mas a meio da tarde havia o "beberete" no salão de
festas transformado em refeitório. O "beberete" constava de uns bijus e
de uns bolinhos de bacalhau feitos pela
minha avó e metidos em sacos plásticos de doses individuais e sumárias,
acompanhados à fartazana pelo tal vinho dado pelos beneméritos da
corporação e que era bebido como se só voltasse a haver Festa da Bomba
dali a um ano. O que até nem estava mal visto.
Conclusão: era beberete demais para tão pouco comerete. Passavam-se ali
carraspanas iglantónicas. Os de Vizela ficavam até ao fim, num
taco-a-taco que chegou a ser histórico, mas o nosso Joãozinho do Opel
levava sempre a taça para casa. E levavam-no sempre a casa. E eu pensava
que não fazia mal, que os nossos bombeiros voluntários mereciam bem
aquele dia sem medida e só para eles, derivado ao resto do ano em que
eles eram só para os outros. E quero acreditar que nunca mais na vida tive
um pensamento tão acertado.
P.S. - Publicado originalmente no dia 22 de Abril de 2012, e daí a
referência às Jornadas Literárias, que entretanto alguém escondeu não
sei onde. Hoje, 26 de Maio, é Dia Nacional do Bombeiro.
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