domingo, 23 de maio de 2021

O Fredinho ensinou-me o Rali

Eu ia ver o Rali com o Fredinho Bastos. O Rali assim com merecida maiúscula era um acontecimento emocionante pelo qual esperávamos ansiosamente durante um ano inteiro e que se dividia em três partes, como jogo e meio de futebol: a viagem até à Lagoa, sempre em modo de rali a partir de Medelo, a passagem do rali propriamente dito, que para nós os dois acabava logo após o sétimo ou oitavo carro, e a merenda que se seguia, nem que chovessem canivetes. Eu, por mim, ficava a ver o resto dos concorrentes até ao fim, mas o Fredinho fazia questão de me ensinar a relatividade das coisas e a prioridade de umas sobre outras. "O rali já acabou, isto agora não é nada. Vamos mas é comer", dizia todos os anos, sem querer saber sequer a minha opinião. E lá íamos atacar o farnel, preparado com todo o carinho pela sua mulher - uma Senhora a quem devo muito mais do que apenas bolinhos de bacalhau e panados, aliás excelentes.
Fazíamos o caminho de regresso até ao carro pela estrada do troço de competição, encostando à berma quando se aproximava o roncar de mais um motor, mas (o Fredinho tinha razão) aquilo era só bazófia, muito roncar e pouco motor. Dava tempo para tudo. Até para cumprimentar pilotos e penduras da segunda metade da tabela, que estavam no largo da famosa Igreja de Nossa Senhora das Neves ainda à espera da ordem de saída. O Fredinho conhecia aquela malta toda. Ele, Alfredo Bastos, também tinha sido corredor de ralis.
Portanto sabia que, depois de Jean-Luc Thérier, Rafaello Pinto, Markku Alen, Hannu Mikkola (com Jean Todt, o actual presidente da FIA, como navegador), Ove Andersson, Sandro Munari, Bjorn Waldegaard, Jean Pierre Nicolas, Walter Röhrl ou Michèlle Mouton, pouco mais havia que realmente interessasse ver. As bombas já tinham passado: os Alpine Renault, os Fiat 124 Abarth, os belíssimos Lancia Stratos, os Fiat 131 Abarth, os Audi Quattro e até o Opel Ascona, que em Portugal, antes do 25 de Abril, se chamava Opel 1904 SR por causa da moral e dos bons costumes. Isto que não saia daqui, mas os que vinham a seguir a estes andavam menos em quatro rodas do que nós os dois a pé...
Nós íamos no Vauxhall Viva GT verde e cinza que o Fredinho levara à Rampa da Penha, e eu vi, uns anos antes, no reinado do estupendo Chevrolet Camaro de Ernesto Neves. O Vauxhall, preparado pelo avinhadíssimo Valdemar Mecânico, ou "Paredes", ainda mantinha as barras de protecção e os assentos e volante de competição. Era de uma incomodidade dolorosa, porque andávamos sempre nas horas, e de lado, mas extremamente seguro. Diziam ao Fredinho que ele conduzia muito bem. Ele respondia: "Toda a gente conduz bem até bater. Eu também".
O Rali em Fafe era a Lagoa e era um mundo. Só anos depois é que apareceram as outras classificativas, creio que "descobertas" pelo próprio Fredinho, que as terá sugerido e mostrado aos organizadores da prova, parece-me que até ao próprio César Torres, mítico presidente do ACP, dirigente da FIA, responsável pelo regresso da Fórmula 1 a Portugal e criador do melhor rali do mundo. Soube-se ontem que o Rali vai regressar a Fafe, a casa, no próximo ano, embora apenas para uma sessão de espectáculo no troço Fafe/Lameirinha. E eu lembrei-me do Fredinho.

P.S. - Publicado originalmente no dia 18 de Novembro de 2011. E o Rali tornou mesmo a casa...

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