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segunda-feira, 26 de maio de 2025

Quando a "puta" tocava

O bombeiro profissional
Ele era um bombeiro verdadeiramente profissional. Só aceitava incêndios das 9h às 13h e das 14h às 17h, de segunda a sexta-feira. Fora do horário de expediente, que ligassem aos voluntários!

A "puta" tocava e Fafe desatava a correr em direcção aos Bombeiros. A "puta" era a sirene. E os homens largavam tudo: trabalho, mesa, cama, mulher e até os socos ou as botas pelo caminho. Havia os que iam de bicicleta e os que apanhavam boleia de motorizada. Carros paravam para levar desgraçados vindos das lonjuras da Cumieira ou dos campos do Sabugal e já com os bofes de fora. Depois, havia o Casimiro das Caixas, que começava o dia a fazer as palavras cruzadas no jornal do Café Chinês e chegava na sua velha furgoneta. Mas quando "ela" tocava, era para todos. Tocava também para os curiosos, para os que iam apenas ver, saber onde era o fogo. E, em vez de estorvar, faziam-se úteis. Apanhavam e arrumavam as bicicletas e as motorizadas que os bombeiros atiravam em pleno andamento ao chegarem ao quartel, e um mirone encartado ainda tinha de estacionar em condições a carrinha do Casimirinho, deixada sempre à frente dos portões a empancar a saída dos carros de incêndio. O Casimiro da Caixas era um fafense que tinha vindo de Guimarães, onde decerto nascera, como talvez Portugal, e nunca se descolou daquela pronúncia carregada que nos fazia rir a todos.
"Ela" tocava e eu, miúdo, lá estava. O fogo era uma aflição. Olhava para aqueles homens, esbaforidos, trementes, brancos como a cal, a entrarem na "primeira viatura" apenas meio vestidos, a enrodilharem-se nas calças que não enfiavam ou nas galochas que levavam ainda nas mãos, cheios de urgência para enfrentarem as labaredas, e via heróis. Exactamente: heróis, muito melhores do que os dos livrinhos de cobóis e dos filmes, nem que fosse o Steven McQueen anos mais tarde na "Torre do Inferno", que os bombeiros de Fafe foram ver a Guimarães, em viagem oficial. Eu também fui. Os meios eram escassos, a formação era elementar, Fafe era uma terra pequena, mas aqueles homens tinham um coração bombeiro do tamanho do mundo. E o seu maior medo, que eles nunca confessavam, era chegar lá e o fogo já estar apagado...
Tão grande era o coração, grande demais para um homem só, que depois tinha de ser repartido. Ser bombeiro era coisa sanguínea, "doença" de família. Irmãos, pais e filhos, netos, tios e sobrinhos, primos, todos sofriam do mesmo bem. Creio que hoje ainda é um bocado assim.
Naquele tempo, eram os do Santo, os do Tónio Quim Calçada os Moleiros, os Costas do Assento, os Feira Velha, os Funileiros, os Quintos. Eram também o Agostinho Cachada, o Augusto Susana, o Frescaragem, que tinha lábia de leiloeiro, o Nogueira da Ponte do Ranha, que "fardava muito bem", o Zé dos Alhos, o Zé Sacristão, o Nelo Chapeleiro, o Chaparrinho, o Ferreira "Puta Velha", o Armando "Salazar", que era o viagra em pessoa, o enorme Sr. Humbertino, que trabalhava para os Summavielles e já só se apresentava no dia da Festa dos Bombeiros, tal como o Sr. Matias e como o Joãozinho motorista, que conhecia como ninguém as manhas do Opel descapotável e apanhava todos os anos uma carraspana de tal ordem que era preciso levá-lo a casa.

(E havia os espontâneos, que afinal não eram tão espontâneos assim. Moravam ali à porta e estavam sempre de prevenção para uma emergência que o fosse realmente. Faltava um motorista, a saída estava a atrasar-se? - era só chamar por eles e eles avançavam: lembro-me do Fredinho Bastos e do irmão Quinzinho, do Varinho Dantas ou do Toninho da Luísa, que tinha piada fina e eu gostava de imaginar DaLuísa derivado ao comediante americano Dom DeLuise, mas isso já é outro filme. Se calhasse, enfiavam um blusão e um bivaque, só para despaisanar, e avançavam a todo o gás, bombeiros como os de exame feito e papel passado e ainda mais voluntários, mas qual seguro qual carapuça! Ser-se bombeiro era efectivamente um estado de alma. E estes eram bombeiríssimos de primeira.)

Mas a pinga. Naquele tempo, ser bombeiro dava muita sede e a água era toda precisa para apagar incêndios. De modo que, conscienciosos, os voluntários fafenses, regra geral, decilitravam no verde tinto com apreciável pertinácia. O meu avô da Bomba, que era quarteleiro e videirinho, até montou um pequeno tasco que foi um sucesso. O meu vizinho Agostinho Cachada era um dos principais clientes, mas tinha um porém: pelava-se por bagaço e quando ia para casa nunca mais lá chegava, porque, mesmo depois de o meu avô fechar o tasco, o bom do Sr. Agostinho voltava sempre para trás para beber mais um. Era certinho. Uma noite, para lhe evitar a canseira e apressar o sono, o meu avô foi atrás dele até ao Paredes, já a meio caminho, com a garrafa da aguardente escondida debaixo do capote...

Quando o monte ardia, os bombeiros iam e pronto. Atulhados em viaturas desconfortáveis, vagarosas, barulhentas, fumegantes, inseguras e, não raro, caindo aos pedaços. Iam e pronto. Os bombeiros voluntários. Naquele tempo ninguém sequer sonhava ganhar dinheiro por apagar incêndios - eram uns tolos. Tolos, porém despachados e íntegros. Devotados. E espertos, desenrascados. Não havia rede, satélites, parabólicas ou fibra óptica, ainda não havia radiotelefones ao serviço, os telemóveis ainda não tinham sido inventados e nem sequer havia cabinas telefónicas nos montes. Parece impossível, mas lá em cima, no meio da penedia e das giestas, no Portugal das cabras e dos cabrões, não havia telefone de espécie nenhuma. E não havia SIRESP, graças a Deus. Que se segue: se eram precisos reforços, alguém vinha de motorizada dar o recado ao quartel.
Pelo menos em Fafe era assim, e não havia razão de queixa.

Quando a sirene tocava, também as mulheres de Fafe se sobressaltavam. Era a "puta" que lhes tirava os maridos de casa, da cama. E eles iam para os braços da "outra". Os Bombeiros eram uma tremenda paixão, a "amante" perigosa que levava tudo o que queria. E elas tinham medo que um dia os seus homens não voltassem. Tolices de mulheres. Então os heróis não voltam sempre?
Às vezes, não. Às vezes o herói faz o que tem de fazer, isto é, faz o que fazem os heróis, e depois desaparece em direcção ao sol poente. Desaparece e nunca mais.

P.S. - Nova versão, publicado no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Nacional do Bombeiro.

quarta-feira, 26 de maio de 2021

O drama, a tragédia, o horror. O sangue...

Foto Hernâni Von Doellinger

Quando eu era mocico e a ambulância acudia a um desastre com a sirene em altos berros, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do hospital. Ali se plantavam, esperavam, prognosticavam, diagnosticavam, e finalmente assistiam ao espectáculo. Ao vivo. Em casos mais graves e raros, assistiam também ao morto. As escadas do hospital eram um palco de desgraças e caldeirão de emoções, cenário de reality show sem que Portugal sequer soubesse o que isso viria a ser. Eram também muito jeitosas para tirar fotografias de grupo a casamentos, bombeiros em festa e bandas de música, palavra de honra. Eram, portanto, o sítio mais in da vila e só estorvavam naquilo em que deveriam melhor servir, que era carregar macas com feridos e doentes por aqueles degraus acima ou por aqueles degraus abaixo, às vezes de cangalhas até ao chão.
Mas o espectáculo. A ambulância saía e o povo corria. O bom do Senhor Ferreira via-se à rasca para manter na ordem aquela gente toda e tola que fazia guerra por um lugar na primeira fila, sobretudo mulheres afogueadas e gordas, com os socos e o coração nas mãos ou enrodilhados no avental arregaçado. Faço notar que não foi por distracção que escrevi "a" ambulância. O artigo definido é aqui propositado e certo, porque, naquele tempo, dará para acreditar?, os Bombeiros de Fafe tinham apenas uma ambulância, uma velha Skoda vermelha que regularmente ficava sem travões no meio das descidas. Pois, como dizia, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do hospital e regalavam-se de braços decepados e orelhas arrancadas e narizes esborrachados e fémures a céu aberto e pés desfeitos e tripas de fora e miolos ao léu e espinhelas partidas e... - Foi tiro?, Foi facada?, Foi sachola?, Foi o home?, Foi a amante? Foi desastre?, Foi o vinho? E muitos Uis! e muitos Ais! e muitos Coitadinhos! e muitos Valha-nos Deus! Estavam ali no relambório, a dar água sem caneco e a benzer-se na direcção da Igreja Nova, mas sem perder pitada. Vampiros mirones, iam ao sangue, queriam sobretudo molhanga, muita, vermelha vermelha como a ambulância que chegava enfim, esbaforida e ganinte. Era um fartote! Uma comoção!...
Agora as pessoas não precisam de ir a correr para as escadas do hospital. Sentam-se em casa, ligam a televisão e vêem na CMTV.

P.S. - Publicado originalmente no dia 10 de Fevereiro de 2016.

A sesta do meu avô da Bomba

Foto Hernâni Von Doellinger

Eu ainda não sabia que aquela "meia horinha" se chamava assim, mas o primeiro adulto que eu vi a fazer a sesta foi o meu avô Manuel, o 17 da Bomba, que não era terrorista e ganhara a explosiva alcunha derivado a ser o bombeiro número 17 e quarteleiro dos Bombeiros de Fafe. O meu avô morava no quartel dos bombeiros, que, para todos os efeitos, na nossa terra, era a Bomba, e, pronto, sem fazermos mal a uma mosca, lavamos com a CIA em cima e não há quem nos acuda.
Naquela casa, isto é, na Bomba, só se comia e bebia do bom e do melhor, embora regrado. Muito regrado. Depois do almoço, o meu avô descia até à camarata e estendia-se numa das camas, a primeira à entrada do lado esquerdo, tapando a cara com o Jornal de Notícias. O JN era naquela altura um jornal grande, quase um lençol, muito jeitoso para a sesta, e o meu avô, contrariando a regra geral, gostava de dormir sob aqueles assuntos.
As minhas tarefas de neto em relação à sesta do meu avô eram ir buscar o JN e passar de vez em quando pela camarata para, se necessário, corrigir a posição do jornal. Tinha uma terceira tarefa, não editorial, que era andar em bicos de pés e de bico calado.
O Jornal de Notícias do meu avô era comprado a meias com o Senhor Ferreira do Hospital, que o lia primeiro, e depois eu ia buscá-lo, ou então ficava cada um com metade das páginas e a uma certa hora da manhã eu fazia a troca, já não me lembro bem.
O Senhor Ferreira do Hospital e o meu avô foram amigos e cúmplices toda a vida. Eram unha com carne, apesar de diferentes como a água e o vinho: o Senhor Ferreira era comunista, tinha estado preso, e o meu avô... antes pelo contrário. Para além de comunista, o Senhor Ferreira era um homem bom, íntegro, sábio, um grande Homem que eu admirava e gostava de ouvir. Anos passados, aos domingos, eu à beira de ir para a tropa e portanto sem emprego, o Senhor Ferreira cumprimentava-me com uma nota de 20 escudos escondida e imperativa na mão tremente. Depois de cegar, o Senhor Ferreira conhecia-me pela voz, mesmo sem eu abrir a boca, quase que só pela presença ou talvez pela respiração, não sei o truque. Já casado e jornalista, no Porto, eu ia frequentemente a Fafe, entrava no Nacor, então transplantado para as megalómanas porém inóspitas instalações em frente ao tasco original, eu ainda à porta, limpando os pés, o Senhor Ferreira, sentado ao enorme balcão, lá ao fundo, com a sua malguinha à frente, adivinhava-me e atirava logo: - Está aí o Hernâni? Aquilo comovia-me tanto, enchia-me tanto a alma, eu ficava tão orgulhoso, que não fazeis ideia! Eu estava realmente ali, e ganhava o dia, palavra de honra! Pelo menos uma tardada de abraços e revigorante conversa. E ainda hoje fico à rasca quando me lembro disto.
Mas o meu avô. O meu avô da Bomba fazia a sesta muito bem. Naquele tempo ainda não era moda dizer-se que a sesta faz bem à saúde, o que até viria mesmo a calhar ao meu avô, que era "uma pessoa muito doente". Era também preguiçoso, como vim a concluir mais tarde, o que me livrou do divã do psiquiatra e despesas adjacentes, uma vez que consegui perceber sozinho que tenho bem a quem sair.
Quando éramos miúdos, o meu avô punha-nos a bulir como gente grande, a mim e ao meu irmão Nelo. Eu era pau para toda a colher: limpava e polia os capacetes e outros amarelos com solarine Coração e uma espécie de pó de talco, lavava as viaturas, verificava o óleo e colocava água nos radiadores, anotava as quilometragens, lavava, punha a secar e enrolava as mangueiras depois dos incêndios, metia baterias à carga, enchia as baterias com água da chuva colhida num garrafão com funil que estava no telhado, ia chamar motoristas para as saídas urgentes de ambulância, servia de bombeiro, varria o "parque do material", levava avisos a casa dos bombeiros, atendia o telefone, tocava a sirene (era a parte de que eu mais gostava), hasteava as bandeiras aos domingos e dias de festa, ia à cave buscar vinho, "sempre a assobiar!", segundo ordens superiores. Enfim, eu é que era o verdadeiro Bomba. E não saía de lá. Também porque naquela casa só se comia e bebia do bom e do melhor - já disse.

Tenho-me esquecido de ir buscar o jornal para o meu avô da Bomba e também já há muito que não estou com o Senhor Ferreira do Hospital - gostava de lhe pedir um retrato. Aqueles dois nem devem ter reparado. Estão entretidos a meterem-se um com o outro, foram sempre assim, ou então dormem uma bela sesta, cada qual com a sua metade de JN sobre o rosto. Eu também já durmo a sesta, percebo-os agora. Quando nos voltarmos a encontrar, os três, ainda nos havemos de rir disto tudo.


P.S. - Publicado originalmente no dia 8 de Outubro de 2011 e, entretanto, revisto e aumentado. 

Quando o SIRESP vinha de motorizada

O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso: dominados. É uma questão de marialvismo, orgulho macho. E então arrebitam e continuam a arder lampeiramente uma semana depois de terem sido decretados dominados aos microfones da CMTV, e a CMTV fica toda contente, porque a CMTV é do ramo do sarrabulho e do fumeiro - disso vive, em lume brando. Os oficiais da Protecção Civil, doutores da mula ruça porém pessoas muito honradas e de boina, que antes deste rico emprego nunca tinham posto os pés num incêndio, tiraram um curso relâmpago de Teatro de Operações, vulgo TO, Forças no Terreno, Frentes Activas, Meios Aéreos & Pontos de Ignição e gostam de dar na televisão: o mais que dizem é que os incêndios de manhã, se não estão já dominados, vão entregar-se às autoridades a meio da tarde. Os oficiais da Protecção Civil e os políticos que os pariram inventaram um novo dicionário, especializaram-se em semântica, graduaram-se em eufemística e falam muito do que sabem nada...
Os bombeiros estão lá no centro do vulcão a derreter, mas a eles agora ninguém lhes pode perguntar. E ainda bem, porque lá dentro faz muito calor e o calor dilata os copos. O senhor da boina e galões no camião de Fórmula 1 com ar condicionado é que sabe, e bebe águas das pedras. Geladas. E há briefings bidiários com groselha.

Quando o monte ardia, os bombeiros iam. Os bombeiros voluntários. Naquele tempo ninguém sequer sonhava ganhar dinheiro por fazer de conta que apaga incêndios - eram uns tolos. Tolos porém honrados. Não havia rede, satélites, parabólicas ou fibra óptica, ainda não havia radiotelefones ao serviço, os telemóveis ainda não tinham sido inventados e nem sequer havia cabinas telefónicas nos montes. Parece impossível, mas lá em cima, no meio da penedia e das giestas, no Portugal das cabras e dos cabrões, não havia telefone de espécie nenhuma. E não havia SIRESP, graças a Deus. Que se segue: se eram precisos reforços, alguém vinha de motorizada dar o recado ao quartel...

O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso: dominados. Freud explicaria muito melhor do que eu, mas eu, de momento, não tenho o Freud aqui à mão e, com isto do desemprego, perdi-lhe o número do telemóvel. Por outro lado, os incêndios estão desgostosos por lhes terem trocado o nome e mudado o objecto social. Objecto social, sim: o fogo é hoje em dia um negócio como outro qualquer - como a guerra, como a droga ou como a cirurgia plástica, por exemplo -, com múltiplas plataformas de exploração e sinergias que não param de exponenciar-se, a jusante e a montante, um extraordinário negócio que distribui transversalmente milhões e milhões e milhões de euros ou dólares consoante o paraíso, uma indústria em que todos ganham e em que apenas Portugal e os portugueses do rés-do-chão ficamos a perder.

Chamavam-se fogos antigamente e eram para apagar. Exactamente, fogos. E para apagar. Velhos tempos, coisas simples: Portugal ardia menos e não havia tanto teatro... de operações.

P.S. - Publicado originalmente no dia 7 de Agosto de 2016.

Vens de Carrinha...

Foto Mundial Fotos

O senhor de óculos e sem boné é Baltazar Rebelo de Sousa, ministro do outro tempo, destacado colaborador de Salazar e Caetano, pai de Marcelo Rebelo de Sousa e grande amigo de Fafe. Ia lá à minha terra muitas vezes e nunca de mãos vazias. A fotografia conta uma das suas visitas aos Bombeiros, e à direita, impecavelmente fardado de gala, está o carismático e severo comandante Luís Mário, pai do comandante Armindo, querido amigo que tive a sorte de rever e abraçar na última Senhora de Antime.
Nenhum deles, porém, interessa para o meu assunto. Eu quero é falar do carro que domina a cena. Uma velha Austin, refugo inglês da Segunda Guerra Mundial, tal qual os pesados capacetes pretos para incêndios, os cintos com machadinha e tudo e os blusões de serviço, iguais aos dos soldados nos filmes. Foi material que deu jeito, que cumpriu por muitos e bons anos. Menos, se não me engano, as sinistras máscaras antigás, que só serviam para as minhas brincadeiras de miúdo e ficavam muito bem em cima dos armários.
O carro tinha nome, chamava-se Carrinha e, de acordo com o "MG" da matrícula, ainda deverá ter passado pelos pés do Exército português antes de chegar a Fafe, orgulhosamente de volante à direita e "piscas" de puxar por um cordel, como o coiso do fradinho das Caldas. Tinha também manias e birras, provavelmente derivado à idade, e constava que só o Casimiro das Caixas lhe conhecia as neuras e sabia fazer-lhe as vontades todas - o Casimirinho era, pois, o nosso especialista em Carrinha.
A Carrinha apareceu na minha vida já completamente coberta por uma chapa ondulada em forma de U invertido e com uma grossa lona e correias de cabedal para fechar atrás. E foi o meu primeiro e único carro. Quer-se dizer: o carro não era meu, nunca foi meu, nunca o levei para casa nem dormi com ele, mas a verdade é que nunca conduzi mais nenhum. E conduzir talvez também não seja o verbo adequado ao caso, portanto passo a explicar:
Mal dei fé que chegava aos pedais, o que eu fazia era ligar o motor e solavancar as mudanças até que uma delas, uma qualquer, pusesse o carro a andar. Às vezes calhava para a frente, outras vezes calhava para trás. Viajava imensos dois, três metros, e invertia a operação, sem curvas, novamente com a alavanca à sorte, voltava ao exacto centímetro de partida e depois desaparecia dali a todo o gás, antes que alguém me descobrisse o sítio das orelhas. Esta parte era muito importante.
Uma vez o quartel da Rua José Cardoso Vieira de Castro entrou em obras, crescendo para a frente, e os carros dos Bombeiros mudaram-se provisoriamente para uma garagem muito grande do "benfeitor" José Freitas Nogueira, bastava dobrar a esquina, no encontro da Rua Monsenhor Vieira de Castro com a Rua Dr. José Summavielle Soares, quase em frente ao campo de futebol. Era um enorme portão verde e tinha lá dentro, assim que se entrava, uma rampa muito jeitosa para as minhas habilidades. Sobretudo ao baixo. Melhor ainda: ali o meu avô não ouvia as coças que eu dava na desgraçada caixa de velocidades da pobre Carrinha, gemente e ganinte por todos os lados. Bons tempos...
Dei também as minhas voltas no carro de bois do Sr. José do Santo e, com expressa licença da minha mãe, na carroça do Moniz azeiteiro ("Os azeites do Moniz são os melhores do País", dizia na retaguarda), mas, francamente, não eram a mesma coisa. Não me enchiam as medidas. Nem os carrinhos de choque, de que fui, não é para me gabar, prestigiado ainda que bissexto praticante. Não. Nada. A Carrinha foi o meu primeiro e único carro. Como no amor. Nunca mais quis outro.
 
P.S. - Publicado originalmente no dia 27 de Setembro de 2013.