terça-feira, 31 de março de 2015

Mobiliário urbano (propriamente dito)

                                                                                                                              Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 30 de março de 2015

Afonso Celso

Depois da formosa mulher do dentista americano, era, sem dúvida, o capitão canadense o mais interessante personagem de bordo.
Meses antes, ao que se dizia, naufragara entre as Bermudas o navio que ele comandava.
Perdera-se completamente a carga e sucumbira quase toda a tripulação.
Cabia a Captain Smart não pequena responsabilidade na catástrofe - afirmavam à meia voz passageiros bem informados. E o fitavam rancorosamente de esguelha, quando passava carrancudo e hirto, o eterno cachimbo plantado no matagal dos bigodes ruivos, que lhe interceptavam a boca e se emaranhavam na barba, derramada em catadupa sobre o peito.
O infeliz comandante regressava à pátria, despojado pelo mar dos haveres e da reputação.
Antipatizavam todos com ele no paquete em que viajávamos. Ninguém lhe dirigia a palavra. Chegavam a considerar de mau agouro a sua presença. Se algum acidente desagradável ocorresse durante a derrota, atribuí-lo-iam com certeza à sua nefasta influição.

"Notas e Ficções", Afonso Celso

(Afonso Celso nasceu no dia 31 de Março de 1860. Morreu em 1938.)

Lugares-comuns 211

Foto Hernâni Von Doellinger

Generoso, mais rápido do que uma linha recta

A menor distância entre dois pontos é uma recta? Nem sempre. Às vezes a menor distância entre dois pontos pode ser uma curva. Aqui não se trata de ciência, é mero exercício de memória. Por exemplo: lembram-se do Generoso? Claro que não se lembram do Generoso. Mas eu explico: o Generoso era um extremo brasileiro que jogou no SC Braga bem no início da década de setenta do século passado, por alturas da segunda divisão, se não me engano. O Generoso (e decerto um nome assim nunca foi tão bem empregue), o Generoso, dizia eu, era tão rápido, corria tanto, que, quando atacava e levava um adversário à ilharga, despossuído de outros e melhores argumentos técnicos, chutava a bola para a frente, saía do relvado, contornava o defesa pela pista de cinza, e - espantem-se! - ainda chegava lá primeiro.
Para que nos entendamos, o relvado e a pista de cinza eram no Estádio 28 de Maio, em Braga. Sim, antes do 25 de Abril de 1974, o Estádio 1.º de Maio chamava-se Estádio 28 de Maio. O que só demonstra (raciocínio palerma e suinamente fascistóide) que a Outra Senhora levava 27 dias de avanço em relação a Esta Senhora e que as revoluções cometem-se para mudar os nomes das ruas, praças, pontes, estádios e outro imobiliário. Mas eu também vi o Generoso executar a sua supersónica façanha no então pelado do meu Fafe, onde o resvés com os pilares de cimento e com os tubos metálicos da vedação conferia um toque extra de emoção e perigo ao espectáculo. O Generoso, sempre na mecha e a passar calafriantes tanjas ao excelentíssimo público e ao desastre, trazia-me à cabeça o encantatório e fanhoso reclame altifalante do poço-da-morte, nos dias dos 16 de Maio e da Senhora de Antime: também ali havia "arrojo, coragem, audácia, cooommm-ple-to desprezo pela vida". E eu sempre achei que o Generoso devia jogar de capacete.

E um pires de tremoços, se faxavor

                                                   Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 29 de março de 2015

Adelino Fontoura

Celeste

É tão divina a angélica aparência 
e a graça que ilumina o rosto dela, 
que eu concebera o tipo de inocência 
nessa criança imaculada e bela. 

Peregrina do céu, pálida estrela, 
exilada na etérea transparência, 
sua origem não pode ser aquela 
da nossa triste e mísera existência. 

Tem a celeste e ingênua formosura 
e a luminosa auréola sacrossanta 
de uma visão do céu, cândida e pura. 

E quando os olhos para o céu levanta, 
inundados de mística doçura, 
nem parece mulher - parece santa.

(Adelino Fontoura nasceu no dia 30 de Março de 1859. Morreu em 1884.)

Lugares-comuns 210

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 28 de março de 2015

Alexandre Herculano 3

E não era lá nenhum grande homem: era um vulto de pouco mais de quatro pés de altura; feio como um judeu; barrigudo como um cónego de Toledo; imundo como a consciência do célebre arcebispo Gelmires, e insolente como um vilão de beetria. Chamava-se de seu nome Dom Bibas. Oblato do Mosteiro de D. Muma, quando chegou à idade que se diz da razão, por ser a das grandes loucuras, achou que não era feito para ele o remanso da vida monástica. Atirou às malvas o hábito a que desde o berço o tinham condenado: e, ao cruzar a porta do ascetério, escarrou ali em peso o latim com que os monges começavam a empeçonhentar-lhe o espírito. Depois, sacudindo o pó das suas sapatas, voltou-se para o mui reverendo porteiro, e, por um esforço sublime de abnegação, atirou-lhe à cara com toda a ciência hebraica que tinha alcançado naquela santa casa, gritando-lhe com uma visagem de escárnio: raca maranata, raca maranata - e desaparecendo após isso, como a zebra perseguida desaparecia naqueles tempos aos olhos dos monteiros nas florestas do Gerês.

"O Bobo", Alexandre Herculano

(Alexandre Herculano nasceu no dia 28 de Março de 1810. Morreu em 1877.)

quarta-feira, 25 de março de 2015

Pobre e mal agradecida

Estão a ver uma daquelas mulheres espectaculares, tão espectaculares que até parecem travestis? Ela era isso. Mas em mulher, definitivamente em mulher. Mulherão. Vi-me à rasca para segurar o maxilar inferior enquanto lhe tirava as medidas como quem não quer a coisa, e à distância. Até que pousei os olhos na ganga.
Levantei os olhos da ganga e atravessei a esplanada o mais discretamente possível, andando às arrecuas para ninguém suspeitar de que eu ia ter com ela, abalroei uma mesa e três cadeiras, obviamente para disfarçar, accionei o modo de visão periférica, aproximei-me do alvo sem colocar em causa a minha própria segurança e avisei-a ao ouvido, quase num sussurro, mais segredo era impossível:
- A senhora desculpe, não deve ter reparado, mas tem as calças deveras rotas nos joelhos. E, agora que estou aqui à beira, verifico que também estão razoavelmente esgaçadas nas coxas. Caiu?
Ui! Levei uma data que nem queiram saber! E em versão megafónica. Eu, que só queria ajudar...

Vida de cão 76

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 24 de março de 2015

Herberto Helder (1930-2015)

Se perguntarem das artes 

Se perguntarem das artes do mundo?
Das artes do mundo escolho a de ver cometas
despenharem-se
nas grandes massas de água: depois, as brasas pelos recantos,
charcos entre elas.
Quero na escuridão revolvida pelas luzes
ganhar baptismo, ofício.
Queimado nas orlas de fogo das poças.
O meu nome é esse.
E os dias atravessam as noites até aos outros dias, as noites
caem dentro dos dias - e eu estudo
astros desmoronados, mananciais, o segredo. 

"Do Mundo", Herberto Helder 

(Herberto Helder nasceu no dia 23 de Novembro de 1930. Morreu ontem.)

Gonzalo López Abente

O meu mar

Unha nube de chumbo a tapar todo o ceu;
borraxeira e orballo que revoan no ar;
os inxentes penedos, xa tristeiros de seu,
espallando queixumes con dorido fungar;
os montes envolveitos na brétema sotil;
e as bocas desdentadas da furnas no cantil.

Escumas, ardentías,
atruxante balbor,
e, cal apocalípticas porfías
de cíclopes, vestiglos e xigantes
das vellas e varís mitoloxías,
os ecos trepidantes
do líquido elemento bruador. 
 
¡O mar!
¡O meu mar!
¡O mar que eu vexo,
nestes días de inverno,
gris, abalante,
inquedo, forte e rexo,
a cólera a roubar do fondo do averno
e a bater na orelas, escumante
de rabia e de furore, nun épico loitar!

Este mar que derruba coas paredes das hortas,
desfaise contra os cons e sobe polos cabos;
que corre polas rúas ribeiranas e tortas
antre as casas homildes dos mariñeiros bravos.
Este mar belicoso que a costa brava asedia,
que as ondas esnaquiza nunha branca fervenza
e en escumas de prata no cantil as destrenza…
é o gran creadore dunha eterna traxedia.

"Nemancos", Gonzalo López Abente

(Gonzalo López Abente nasceu no dia 24 de Março de 1878. Morreu em 1963.)

A ver navios 43

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 23 de março de 2015

Moacyr Scliar 2

Esta noite, doutor, pensei muito no Noel Nutels. Aqui na UTI a gente dorme mal, e eu tenho sonhos estranhos, mas acordei lembrando, não sei por quê, uma história que me contaram, aquela história do Noel com os generais. O senhor conhece? Não conhece? Então lhe conto. O senhor tem jeito de quem gosta de ouvir histórias, e desta o senhor gostará. É triste, mas é engraçada. Como tudo, não é, doutor? Como tudo.
O Noel estava num hospital do Rio, morrendo de câncer. Isso foi em 1973, no começo de 1973. Ele não tinha sessenta anos ainda, e tudo o que ele queria era chegar aos sessenta anos, mas não, aos sessenta não chegaria, estava morrendo. Câncer, doutor. Na bexiga, parece. Coisa horrível - preciso lhe dizer? -, horrível, horrível. Tiveram de colocar uma sonda urinária... Horrível. Bem, mas então ele estava lá, morrendo. E aí uns generais, que tinham vindo ao hospital por causa de um colega doente, resolveram visitar o Noel. O motivo não sei ao certo. Talvez fossem amigos de Noel, tinha tantos amigos, inclusive entre os militares, muitos haviam trabalhado com ele e o admiravam; talvez achassem que a coisa pegaria bem - era a época da ditadura, visitar o Noel, que era uma figura tão respeitada, principalmente na esquerda, poderia repercutir bem na opinião pública.

Chegaram no quarto, bateram na porta e, como ninguém respondesse, foram entrando. Ali estava o Noel, deitado, olhos fechados, respiração estertorosa - morrendo. Os generais, consternados, não sabiam o que fazer. O que é que podem cinco generais fazer ao redor de um moribundo? Nada. Olhavam, simplesmente. E esperavam que alguma coisa acontecesse.
Aconteceu. De repente o Noel abriu os olhos. Abriu os olhos e olhou os militares. Os dois que estavam a oeste da cama, os dois que estavam a leste, o que estava ao sul - a norte não havia general algum, faltava general para o norte, e mesmo que houvesse de nada adiantaria, ao norte a cama estava encostada na parede, nenhum espaço sobraria para um general, por magro que fosse; olhou todos, um por um, com aquele olhar debochado dele. Um dos generais perguntou como ele estava. E o Noel, que, mesmo morrendo, continuava o gozador de sempre, respondeu: estou como o Brasil, na merda e cercado de generais.


"A Majestade do Xingu", Moacyr Scliar

(Moacyr Scliar nasceu no dia 23 de Março de 1937. Morreu em 2011.)

Lugares-comuns 208

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 22 de março de 2015

Guimarães Passos

Tu, só tu...

A Estrela d’Alva desaparecia
Quando eu parti naquela madrugada,
E a doce aurora, tímida e rosada,
Das nuvens de ouro levantava o dia.


Numa palmeira, que no espaço abria
O verde leque, para o céu voltada.
Da áurea garganta uma ave apaixonada
Cavatinas alegres despedia.


Manhã tão linda: o prado um firmamento
Glauco e cheiroso, estrelas multicores,
O chão bordando num deslumbramento!


E eu vendo o campo, eu vendo o céu tranqüilo,
Pensava em ti, dona das minhas dores;
Morta: só tu darias vida àquilo.


"Horas Mortas", Guimarães Passos

(Guimarães Passos nasceu no dia 22 de Março de 1867. Morreu em 1909.)

Lugares-comuns 207

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 21 de março de 2015

A vaca que ri palitos é um boi, e dos tesos

O Queijo Limiano apareceu-me hoje em casa com um brinde: "A Vaca Que Ri Palitos". Uma brincadeira aparentemente para crianças, "palitos de pão crocantes para mergulhar no delicioso queijo A Vaca Que Ri", miminho anunciado como "ideal para lanches nutritivos e divertidos". Vem tudo explicado num cartão que acompanha a oferta e que é abrilhantado por dois extraordinários momentos culturais: uma espécie de poema que conta "De que é feita uma família" e um desenho de uma vaca que por acaso é um boi, derivado ao bigode.
Os mais tradicionalistas dir-me-ão que a vaca é portuguesa, e aí estaria imediatamente justificado o bigode. Mas a vaca, como podem conferir mais abaixo, tem os olhos em bico, é cinturão vermelho e usa hachimaki. A vaca é, portanto, um boi japonês. Para além do mais, sendo japonês, trata-se de um boi paradoxalmente abonado e manifestamente exibicionista - reparem no que ele segura (acaricia?) com a mão esquerda. Um indesmentível vergalho, em manifesta posição de ataque. E na mão direita um bernardo sobresselente, não vá dar-se o caso.


Não chego a perceber o que é que o Queijo Limiano (que, como o próprio nome indica, é fabricado em Vale de Cambra) pretende com uma campanha esgalhada desta maneira, embora não me custe admitir que foi apenas distracção, tipo alguém não viu bem a coisa. Seja com for, perante esta desafiadora imagem, tudo nesta promoção para as crianças e para a família ganha uma ambiguidade que me põe de pé atrás. "Para mergulhar no delicioso queijo"? "Lanches nutritivos e divertidos"? "Uma família é feita de tudo / o que são coisas boas, / a passar de mão em mão / de geração em geração"? Que diabo, havia mesmo necessidade?!...

Dinis Machado 3

Mildred Shelley tinha trinta e cinco anos muito bem defendidos por condições naturais e por cuidados próprios. Um rosto desenhado, marcado e fino. Uns lábios esticados e curvos, uns olhos profundos, de um tom violeta que eu não me lembrava de ter visto. A pele era rósea, como se fosse impossível tocar-lhe e não ficar mancha. O cabelo era escuro e uma onda muito larga ia morrer sobre a orelha direita. De perfil, fazia lembrar um retrato de Modigliani, porque o pescoço prolongava-se, prolongava-se. De frente, despertava sentimentos vários, de certo modo confusos. O tom violeta dos olhos é que tinha a culpa, tão cheio de sensualidade sombria e de um poder avaliador verdadeiramente extraordinário.
- Chamo-me Mildred Bruce. Fez mal em perguntar por Mildred Shelley. Seria o suficiente para não o receber se estivesse mais maldisposta. Shelley é um nome maldito.
- Pois - disse eu.
Vestia um
tailleur cinzento, curto nas mangas, de um corte severo. As mãos brancas eram muito largas, e usava um anel de prata no dedo mínimo da mão direita. Fazia-o rodar com os dedos da mão esquerda. Reparei que tinha as unhas cortadas rentes e sem verniz.
- Que deseja?
Tinha uma voz aveludada, quase rouca, como se viesse muito de dentro e saísse com dificuldade, envolvida em sombras e nevoeiro.
- Falar consigo - disse eu.


"Requiem para D. Quixote", Dennis McShade

(Dinis Machado nasceu no dia 21 de Março de 1930. Morreu em 2008.)  

sexta-feira, 20 de março de 2015

"Percursos" de Gaspar de Jesus


                                                                                             Foto GASPAR DE JESUS

A exposição "Percursos", do artista fotógrafo Gaspar de Jesus, continua patente ao público, até 12 de Abril, no Fórum Cultural de Ermesinde. A mostra compreende duas dezenas de fotografias a preto e branco analógico, impressas pelo autor, com imagens captadas em Portugal, mas também no Brasil, na Bélgica e em França. A escolha das obras a expor foi criteriosamente realizada, pretendendo assumir-se como uma das sínteses possíveis dos últimos trinta anos de deambulações artísticas e profissionais de Gaspar de Jesus.
Fotojornalista e professor de Fotografia, Gaspar de Jesus trabalhou em A Capital, O Primeiro de Janeiro, A Bola, TV Guia, Notícias Magazine e Autores. Artista premiado, realizou uma vintena de exposições individuais e participou em inúmeras exposições colectivas, dentro e fora do País. Foi formador em cursos do FAOJ e integrou o quadro de formadores do IPF-Porto. É co-autor dos livros "Portugal e o Ambiente", "Reencontros - Portugal em Fotografia", "Daqui Houve Nome Portugal", "21 Retratos do Porto para o Século XXI", "Porto Cidade com Alma" e "Porto sem Filtro". É autor do blogue Arte Fotográfica e promotor das tertúlias Com a Arte no Olhar.
Acerca da exposição, horários e mais informação, aqui.

Lugares-comuns 206

Foto Hernâni Von Doellinger

Menotti del Picchia

O problema, agora, era aquele: desfazer-se dos cachorrinhos. Para o Padre Nazareno o caso assumia proporções graves. Não. Não podiam continuar aí. Brigavam a dentadas como se, em lugar de irmãos, fossem três bandidos. Negrinha não possuía nenhuma força moral perante suas crias. Seus latidos disciplinares, longe de pacificá-los, atiçavam-nos, fazendo-os retesar as patas dianteiras e fuzilar as pupilas. A barulheira exasperava os vizinhos. Chovia reclamações de toda a parte. Padre Nazareno andava zonzo.
Nelo, certa vez, botara a cabeça na cerca:
Olhe, padre, se você não acaba com essa ninhada, eu acabo jogando nela um cadinho de bronze fervendo.
Agora era procurar quem ficasse com eles.
Isso doía o coração de Nazareno. Chegara a amá-los como se fossem filhos. Suas preferências iam todas para um cotó, meio capenga, mas esperto e afetivo. Mal via o padre, corria aos pinotes abanando o toquinho de rabo, ganindo de contente.
Quieto, Sulfato!
Batizara-o com o nome de Sulfato. Não sabia por quê. Tinha o focinho rosado e úmido, um olhar de gente. Manifestava uma precocidade alarmante. Compreendia as mínimas palavras.
Olhe, Sulfato, se você me rasgar outra vez a batina, entrego você ao Tinoco. O Tinoco era o "homem do saco". Um pobre-diabo que vendia espigas de milho num saco de estopa. As mães, para assustar os filhos peraltas, afiançavam que ele raptava e carregava as crianças desobedientes naquele saco. À palavra "Tinoco", Sulfato, esperto e compreensivo, fugia e ia esconder-se debaixo do tanque. Duro, depois, para desentocá-lo.

"Salomé", Menotti del Picchia

(Menotti del Picchia nasceu no dia 20 de Março de 1892. Morreu em 1988.)

Vida de cão 75

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 19 de março de 2015

O Dia do Pai tal qual ele é

- Tcharam! Feliz Dia do Pai!... (apitos, confetes e serpentinas)
- Boa noite.
- É dia, pai. Dia do Pai, pai! Parabéns!
- Igualmente. Você quem é?
- Eu? Então não sabe quem eu sou, pai?
- Sei.
- Quem é que eu sou, pai?
- Não sei.
- Sou o seu filho, pai!
- Que horas são?
- Sou o seu filho, pai. Lembra-se? O Tó! Tó!!
- Totó?
- O Tó, pai, o seu filho...
- Eu não tenho filhos...
- Tem, pai. Eu sou o Tó!
- Tó?
- António, pai. António!
- O meu filho chamava-se António.
- Sou eu, pai. Sou o António...
- Que horas são?
- E esta é a Lu, pai, a minha mulher, a sua nora.
- Agora vou dormir.
- Olhe para a sua nora, porra! É todos os anos a mesma merda, pai...
- Que horas são?
- Ó pai, olhe para os seus netos, caralho! Ó Bi, dá o desenho ao bu.
- Boa noite.
- É dia, pai, são onze da manhã.
- Onde é que eu estou?
- Está no lar, pai.
- No nosso lar?
- No seu lar, pai. Já lhe expliquei mil vezes que eu e a Lu não podemos, temos a nossa vida, e a vida é assim. Mas este lar é bom. Custa-nos a sua reforma quase toda, mas é muito bom...
- És o António?
- Sou, pai. Sou o António.
- Chama a tua mãe, que eu preciso de urinar.
- A mãe já morreu, pai. Quantas vezes já lhe disse? A mãe morreu...
- Quero ir para casa.
- O pai está aqui muito bem, não está, Lu?

(ouve-se um soluço)

- Está a chorar porquê, pai?
- A mãe morreu...
- Foi há vinte anos, pai. Há vinte anos que não saímos disto, sempre a mesma choradeira. Deixe lá a mãe em paz. Hoje é Dia do Pai...
- A mãe morreu...
- Nunca se pode falar consigo, pai.
- Boa noite.
- Estraga sempre o ambiente, pai.
- Que horas são?
- Olhe, nós vamos mas é embora, pai. Eu e a Lu temos mais que fazer e os meninos precisam de apanhar ar. Para o ano voltamos cá, se Deus quiser, mas agora vamos, pai...
- Ide, ide, meus filhos. Da puta. Ide chamar pai a outro... (cai o pano)

quarta-feira, 18 de março de 2015

Lugares-comuns 205

Foto Hernâni Von Doellinger

Afinal há lista VIP

"Afinal há lista VIP", dizem as notícias, cheias de campainhas e à pala da Visão. As notícias de hoje em dia fazem-me rir, porque são de "última hora" e chegam sempre atrasadas às... notícias. Quero dizer: há que tempos que nós sabíamos que havia lista VIP, valha-me Deus! Um destes dias as notícias vão descobrir mais outros afinais acerca do Passos, do Portas, do Costa, do Sócrates, do Silva & companhia ilimitada, e o povo vai ter de dizer outra vez às notícias: mas nós já sabíamos, porra!, porque é que vocês não nos lêem?
Antigamente os jornais contavam as notícias às pessoas. Agora as pessoas contam as notícias aos jornais. E as notícias contadas pelas pessoas aos jornais passam por investigação nas notícias dos jornais. Alegadamente.

Augusto Abelaira 2

Sentado, as pernas cruzadas, uma das mãos no bolso e a outra a brincar com o lápis, Giovanni Fazio observa os passos, para diante e para trás, dum casal de ingleses. Ele - chamar-te-ás John, decidiu - recuara dois ou três metros, e ela - Mary - dirigia-se devagar para os degraus do palácio, sob o olhar indiferente da estátua de David. Encostou-se ao pedestal, tirou o lenço da cabeça e olha para o marido. Este baixa-se um pouco, aponta demoradamente a máquina e dispara por fim.
Mary virara-se outra vez de costas e Giovanni quis adivinhar-lhe a direcção dos olhos, acompanhá-los depois no voo extasiado que terminava na torre do Palazzo Vecchio. Mas o marido gritara qualquer coisa interrogativa, ela deu meia volta e viu John, que agitava um braço e abria e fechava a boca. Dizendo o quê? E Mary aproxima-se novamente do David, regressando o marido à posição anterior, a máquina preparada. Talvez o primeiro retrato fique melhor do que o segundo, murmura Giovanni, como se fosse ele o fotógrafo.
Depois as situações inverteram-se: o marido posou então para a imortalidade. Em Florença - dirá aos amigos, de regresso a Londres, e indicando a fotografia. Ah! - exclamarão eles, amavelmente.
Porquê? Porquê? O desejo insensato de falar com aqueles desconhecidos. Desconhecidos e talvez ridículos, assim, a tirar fotografias! E, enquanto bebe o café escaldante, continua a persegui-los com o olhar.

"A Cidade das Flores", Augusto Abelaira

(Augusto Abelaira nasceu no dia 18 de Março de 1926. Morreu em 2003.)

Lugares-comuns 204

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 17 de março de 2015

Edmar Morel

Até um cego via, olfateando, no começo de 1964, que havia um rastilho nos estranhos caminhos do Brasil, preparado desde 25 de Agosto de 1961, quando o Sr. Jânio Quadros renunciou, no Palácio do Planalto, jogando pela janela 5.636.623 votos. 
Generais, almirantes e brigadeiros nunca engoliram o Sr. João Goulart como Presidente da República, cargo a que foi guindado pela fuga do Sr. Jânio Quadros. Antes, fora também o vice do Sr. Juscelino Kubitschek, obtendo mais sufrágios, no primeiro pleito, do que o próprio Presidente. 
Sumariamente demitido do cargo de ministro do Trabalho do Sr. Getúlio Vargas, por imposição de um grupo de coronéis, todos agora generais, João Belchior Marques Goulart, gaúcho de São Borja, homem de fronteira, bonachão, de hábitos simples e até rústicos, cedo conquistou o gentio humilde do Brasil, principalmente as classes trabalhadoras e estudantis. Foi o legítimo herdeiro de Vargas, já que os filhos do ex-ditador não tinham qualidades de liderança.


"O Golpe Começou em Washington", Edmar Morel

(Edmar Morel nasceu no dia 17 de Março de 1912. Morreu em 1989.)

Lugares-comuns 203

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 16 de março de 2015

Je suis Ibrahimović

Os franceses são uns cómicos. Estão a ver o "Alô, Alô"? Exactamente - o "Alô, Alô" foi feito por ingleses. Quando não são cómicos, os franceses são perigosos. Que o diga a Maria Antonieta, se pudesse. Em França faz-se pouco de Maomé, por causa da liberdade, mas com a França não se brinca, por causa da blasfémia.
O jogador de futebol Zlatan Ibrahimović, do Paris Saint-Germain, disse que a França é um "país de merda". Dizer que a França é um "país de merda" é deitar mão a uma velha expressão idiomática francesa utilizada diariamente milhões de vezes por milhões de franceses. Mas Ibrahimović é sueco. Estrangeiro, portanto.
Uns franceses, dos perigosos, já mandaram Ibrahimović para casa. Eu, se fosse a ele, ia a correr. Antes que lhe cortem o pescoço. Fundamentalmente.

Cavaco Silva, o das rifas

A pré-campanha eleitoral do PSD continua de vento em popa. O Presidente da República visitou hoje o Conselho da OCDE e apostou que a economia portuguesa pode crescer este ano à volta de dois por cento, bem acima das melhores expectativas do Governo de Passos Coelho, da Comissão Europeia, do FMI, dos estupores da troika, enfim. Claro que - admitiu Cavaco Silva no corredor, já depois da propaganda feita na sala - isto é apenas um palpite, um sonhei-com-o-dois, um acordei-virado-para-este-lado-que-até-dá-tanto-jeito-aos-meus. "O resultado final, tal como na lotaria, só se sabe no fim", acabou por sentenciar o Supremo Magistrado da Nação, que afinal é um simples como o outro - o dos prognósticos só no fim do jogo. E, já agora, leve o 35, que sai de certeza, só se não sair...

Camilo Castelo Branco 3

Pais de Família! 
Atendei e vereis o maior de quantos crimes se tem visto no mundo! Vereis uma filha matar a sua mãe, porque esta lhe não deixava fazer o quanto desejava.
Vereis como essa filha corta a cabeça da sua mãe, e os braços, e as pernas, e vai pôr cada pedaço de corpo da sua mãe em diferentes lugares, para que ninguém conhecesse o cadáver da morta, nem a mão que a matara e despedaçara. Vereis como a matadora da sua mãe, da sua mãe, ó pais de famílias, da sua mãe, que a trouxera nas entranhas, que lhe dera o alimento dos seus peitos, que a criara ao seu lado com beijos e afagos, que tirara o pão da sua boca para o dar à sua filha, que fora talvez pedir uma esmola para que a sua filha não tivesse fome, e não desse seu corpo em troca de um bocado de pão! Vereis como esta filha sem alma, sem medo de Deus, sem temor das penas do inferno, é descoberta como matadora da sua mãe, por um milagre, pela providência de Deus! Vereis aquela mulher com alma de tigre comer com toda a vontade e contentamento, ao pé da cabeça ensanguentada da sua mãe, e responder quando lhe perguntam se é aquela a cabeça da sua mãe.
- Sim! - disse ela - essa é a cabeça da minha mãe!
E continuou a comer.

"Maria! Não Me Mates, Que Sou Tua Mãe!", Camilo Castelo Branco 

(Camilo Castelo Branco nasceu no dia 16 de Março de 1825. Morreu em 1890.)

sábado, 14 de março de 2015

António Costa vai aprender a falar português

António Costa já aprendeu a não falar mandarim. E agora vai aprender a falar português. O líder do PS e candidato a primeiro-ministro vai aprender a basezinha da concordância, vai aprender a perseverar em vez de "perzeverar", e sobretudo vai aprender a não comer sílabas enquanto fala. Falar com a boca cheia é, para além do mais, falta de educação.

Castro Alves 3

O coração

O coração é o colibri dourado
Das veigas puras do jardim do céu.
Um - tem o mel da granadilha agreste,
Bebe os perfumes, que a bonina deu.


O outro - voa em mais virentes balças,
Pousa de um riso na rubente flor.
Vive do mel - a que se chama - crenças,
Vive do aroma - que se diz - amor.


"Espumas Flutuantes", Castro Alves

(Castro Alves nasceu no dia 14 de Março de 1847. Morreu em 1871.)

sexta-feira, 13 de março de 2015

Cacaso

Na corda bamba

Poesia
eu não te escrevo
eu te
vivo
e viva nós!
"Na Corda Bamba", Cacaso
(Antônio Carlos de Brito, que usou o pseudónimo literário de Cacaso, nasceu no dia 13 de Março de 1944. Morreu em 1987.)

Vítor Pereira, o verdadeiro arrastador de multidões

O assunto era carisma, capacidade de empolgamento e mobilização. Dei umas voltinhas de aquecimento sobre coisas quase tão sérias como o futebol - política e religião, por exemplo -, mas acerca de Vítor Pereira, treinador da bola, que era o golo que eu então queria marcar, escrevi o seguinte, no dia 18 de Outubro de 2011:

Por isso é que eu digo que Vítor Pereira não tem futuro no FC Porto. E peço desculpa por esta descida tão brusca à terra, e ainda por cima ao futebol nacional, que descer mais era impossível. Vítor Pereira não tem o carisma de José Mourinho, o carisma de André Villas-Boas ou até o carisma que Jesualdo Ferreira. Lamentavelmente, também não tem o seu próprio carisma. E o carisma não se ensina nem se aprende. É um dom especial, inato, pessoal e intransmissível.
O actual técnico dos dragões é uma personalidade insegura, rígida, tensa, cinzenta, uma excelente pessoa. Falta-lhe a chama dos líderes, carece de umbigo. O treinador Vítor Pereira não é natural, não sorri, não ri, não cativa, não empolga, não leva ninguém com ele. Na hora da batalha final, vai olhar para trás, para as suas tropas, e estará sozinho.
Vítor Pereira poderá saber muito de futebol (já me disseram que sim), poderá ser um profissional sério e esforçado (acredito que é), poderá até ser campeão (Deus me ouça), mas é um mero entre parênteses no FC Porto.

Ora bem: enganei-me redondamente e peço desculpa. Quando disse que Vítor Pereira "não leva ninguém com ele", e que, "na hora da batalha", quando "olhar para trás", "estará sozinho", fui néscio e injusto. Vítor Pereira, é vê-lo agora na Grécia: um sucesso! Nunca nenhum treinador de futebol, de Afonso Henriques até Mourinho, arrastou tamanhas multidões atrás de si. Multidões de adeptos das equipas adversárias, que lhe querem aquecer o corpo, é certo, mas multidões. E já por duas vezes, que se saiba e até ver.
Por outro lado, dentro de uma ou duas semanas Vítor Pereira deverá ser recambiado para Portugal (que na Grécia já há gente a mais com fósforos nas mãos), retomará o seu lugar de mais ou menos pacífico comentador televisivo e, para a minha humilhação ser completa, dará às quartas-feiras workshops sobre carisma nas instalações do Inatel.

quinta-feira, 12 de março de 2015

Jornadas Literárias de Fafe 2015


Sexta edição das Jornadas Literárias de Fafe. Já são um clássico, e por direito próprio. De 16 a 21 de Março (da próxima segunda-feira a sábado). Mais informação e programa, aqui.

Peregrino Júnior

Não acontece nada. A vida parou, estagnada e podre. A cidade permanece adormecida numa calma resignação silenciosa. Terra de gente pobre - caboclos sem ambições, sem remorsos, sem problemas. Nem dramas de consciência, nem inquietações de coração. Ignorando seus direitos - que direitos? - e não sabendo o que vai pelo resto do mundo, as fronteiras do seu espírito coincidem com o horizonte curto dos seus olhos: a curva mansa do rio e o corte vertical da floresta. Nem alegria. Nem esperança. Esperança de quê? Liberdade, isso sim. A miséria não é afinal uma forma de liberdade? Mas para quê, se não sabem o que fazer daquela estranha liberdade das matas sem-termo e sem dono, dos rios preguiçosos que não descansam?
Frei Jacó aparece por lá, vez por outra, com as Missões: casa, batiza, absolve, reza... dá presentes, ensina catecismo. É teimoso no ensino da doutrina cristã:
- Sois cristão?
- Sim, pela graça de Deus!
- Quem é Deus?
- Um soberano Senhor, criador do Céu e da Terra.
- Deus tem sempre existido?
- Sim, porque não teve princípio nem há de ter fim...
- E para que fim nos criou Deus?
- Para amá-lo nesta vida e gozar depois d’Ele no Céu para sempre.
Frei Jacó - bom frade ingênuo, a cabeça branca, os olhos sem malícia, fica espantado com aqueles caboclos que vem do centro - meio do cerrado do seringal, do coração sombrio da mata calada. Chegam tímidos e nus. Índios mansos, tristes e miseráveis. Frei Jacó dá-lhes roupas e calçados, além de terços e santos. Impõe uma condição: que assistam à missa vestidos: "com roupa de ver Deus".
Concordam, com um aceno de cabeça. Vestem a roupa, calçam os sapatos - e endomingados, manquejando, os sapatos machucando os pés grossos, vão para a igreja. Mal terminada a missa - na própria calçada da igreja - descalçam os sapatos - ufa! que alívio! - e despem as roupas - Eta calor brabo! Depois atravessam dignamente a praça, nus, com a mais grave naturalidade, e voltam para suas malocas, contentes e tranquilos.

"A Mata Submersa", Peregrino Júnior

(Peregrino Júnior nasceu no dia 12 de Março de 1898. Morreu em 1983.)

quarta-feira, 11 de março de 2015

Carmen Dolores

Casava-se a Celina, filha mais velha da D. Adozinda Ferreira, quarentona bem conservada, e todo o velho e pequeno hotel familiar para convalescentes, os Abelos ares!, debruçado à beira do morro de Santa Teresa, como a mirar a esplêndida vista da cidade, em baixo, aparecia rejuvenescido e embelezado pela abundância de festões de flores e galhadas verdes, com que o iam enfeitando alegremente algumas criadas vestidas com garridice espaventosa, rindo com os hóspedes mais íntimos que as ajudavam.
- Ponha as dálias encarnadas aqui, seu Juvêncio... É para casarem com os crisântemos brancos...
- Casarem... casarem... Você, Crescência, não tem outra idéia na cabeça senão a de casamento...
- Pois então?!..., respondia a primeira, com um muxoxo de mulatinha espevitada, o dia é mesmo para se pensar nisso. Bem que eu quisera estar no lugar de D. Celina, mas... com outro noivo, já se vê... Olhem lá...
Um vulto de rapaz ladeava solitariamente os maciços espessos do jardim, como procurando fugir à atenção, e uma gargalhada esfuziou no grupo, que depressa fingiu mergulhar mais ativamente nos preparativos da ornamentação da casa, em cujas janelas baixas já se balouçavam frágeis cadeias cheirosas, invenção da Crescência, atravessando as abertas em forma de bambolins floridos. Um aroma quente de folhas e pétalas dava ao ambiente um cunho de festa. E já um tapete esmeraldino se estendia no solo, em frente à porta da sala térrea, em cujo recinto ainda vazio de convidados branquejavam panos de crochet forrando os móveis usados, enquanto, de cada mesinha, de cada étagère,dos dois consolos antigos, do tampo do piano de armário, partia a nota violenta dos grandes ramos de rosas, de dálias, de begônias e palmas de Santa Rita, transbordando de todas as jarras da família, ali reunidas como principal recurso decorativo.

"A Luta", Carmen Dolores

(Emília Bandeira de Melo, que usou o pseudónimo literário de Carmen Dolores, nasceu no dia 11 de Março de 1852. Morreu em 1910.)

Lugares-comuns 201

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 10 de março de 2015

José de Mesquita

O original

Ter o teu retrato, assim, corpo inteiro, Querida,
é para mim, a um tempo, alegria e tortura.
Alegria, pois vejo o sol da minha vida,
que, mesmo assim de longe, aclara a noite escura;

mas tortura, também, tantálica e doída,
pois que, em te vendo assim, suave criatura,
cópia viva do que és, mais sangrenta ferida
do desejo cruel o meu ser amargura...

Como eu quisera ter aqui sempre ao meu lado,
dia e noite e poder beijá-los, como beijo
teu retrato, tua alma e teu corpo adorado!

Cansado de sonhar, eu aspiro o real,
e, no meu louco amor, o que ora mais desejo
é ter, em vez da cópia, o próprio original...

"Ilha dos Amores", José de Mesquita

(José de Mesquita nasceu no dia 10 de Março de 1892. Morreu em 1961.)

Lugares-comuns 200

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 9 de março de 2015

O gesto é tudo. E só.

Bonifácio Porreirinho batia na mulher todos os dias. Batia-lhe forte e feio, como se fosse obrigação religiosa, encomenda divina. Até ontem. Foi. Ontem vinha no jornal: "Cem portugueses calçaram saltos altos pelos direitos das mulheres". Bonifácio Porreirinho percebeu imediatamente a mensagem, e a partir de agora nunca mais.

Entretanto, numa praia australiana, quase 800 maduros e maduras completamente em pelota bateram "o recorde do maior mergulho colectivo nu do mundo". Obra de caridade em favor das "pessoas afectadas por distúrbios alimentares e pela imagem corporal". E também, deito-me a adivinhar, por intenção das almas do purgatório.

José Bezerra Gomes

Circo

Hoje  Hoje
grande
estréia
do grande
Circo
Tom Mix

Adiado o
espetáculo...

O palhaço
fugiu...

Aviso ao
público...

José Bezerra Gomes

(José Bezerra Gomes nasceu no dia 9 de Março de 1911. Morreu em 1982.)

domingo, 8 de março de 2015

Ruy Cinatti

Fastio

Quem me faz descer desta mansarda já,
onde me icei?

Farto estou já de estar sozinho
a caçar moscas,
como se minha fosse a voz irada
que assim me mantém
divinizado.


"Tempo da Cidade", Ruy Cinatti

(Ruy Cinatti nasceu no dia 8 de Março de 1915. Morreu em 1986.)

Lugares-(in)comuns 102

Hernâni Von Doellinger

João de Deus 2

Lágrima celeste

Lágrima celeste, 
Pérola do mar,
Tu que me fizeste
Para me encantar!

Ah! se tu não fosses
Lágrima do céu, 
Lágrimas tão doces
Não chorara eu.

Se eu nunca te visse,
Bonina do vale,
Talvez não sentisse
Nunca amor igual.

Pomba debandada,
Que é dos filhos teus?
Luz da madrugada,
Luz dos olhos meus!

Meu suspiro eterno,
Meu eterno amor,
De um olhar mais terno
Que o abrir da flor.

Quando o néctar chora
Que se lhe introduz
Ao romper da aurora
E ao raiar da luz!

Esta voz te enleve,
Este adeus lá soe,
O Senhor to leve
E Deus te abençoe.

O Senhor te diga
Se te adoro ou não,
Minha doce amiga
Do meu coração!

Se de ti me esqueço
Ou já me esqueci,
Ou se mais lhe peço
Do que ver-te a ti!

A ti, que amo tanto
Como a flor a luz,
Como a ave o canto,
E o Cordeiro a Cruz;

A campa o cipreste, 
A rola o seu par,
Lágrima celeste,
Pérola do mar.

"Campo de Flores", João de Deus

(João de Deus nasceu no dia 8 de Março de 1830. Morreu em 1896.)

Os parabéns que vêm de Belém

O Presidente da República felicitou hoje Nélson Évora. Ontem tinha felicitado Pedro Passos Coelho. Dois campeões de pista. Coberta, no primeiro caso; encoberta, no caso do segundo.

Os antigos sabiam tudo e morriam muito

Laranja. "De manhã ouro, à tarde prata e à noite mata". Desde os meus dezassete, dezoito anos que tento regularmente a suicídio antes de me deitar. Às vezes também com tangerinas.

A ver navios 42

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 7 de março de 2015

Artur de Sales

O último...

Sonetões, sonetinhos ou sonetos,
Não cansei o leitor com versalhada
De légua e meia ou de légua de estrada
Batida de avejões rubros e pretos.

Catorze linhas só, na forma usada;
Deduzidas as duas dos tercetos,
Lidas em quatro fôlegos directos,
Um sorvo, um trago, um ai!, uma pitada...

Cada qual, sendo mau, dura mui pouco.
Se é bom, lembra um sorvete que se peça
Mignon, de creme, de baunilha ou coco.

Dobra-se a dose; mal não faz nem dura!
Sem ser pesado ao estômago e à cabeça,
Não dá lugar a sono na leitura...

Artur de Sales

(Artur de Sales nasceu no dia 7 de Março de 1879. Morreu em 1952.)

O tipo do logo e a problemática da semântica

- Alô? Fala o Costa, da Silva & Silva.
- Viva! É Silva, da Costa & Costa.
- Era mesmo consigo. É pá, precisamos que nos enviem o vosso logo imediatamente.
- Enviarmos o quê?
- O vosso logo.
- Logo?
- Imediatamente.
- Logo ou imediatamente?
- Agora. Já temos a máquina a andar.
- Mandarei então imediatamente.
- Logo!

Lugares-comuns 199

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 6 de março de 2015

Silva Ramos 2

Desencontro

Quantas vezes me viste sem te eu ver,
E quantas eu te vi que me não viste...
E só agora, ao ver que me fugiste,
Eu vejo o que perdi, em te perder.


Estranha condição do estranho ser
Que alegre vive nesta vida triste:
Que só saibamos em que o bem consiste,
Quando o bem só consiste no morrer.


Quão feliz eu seria, se, na hora
Em que te vi, te visse como agora,
Ideal, nos meus sonhos ideais!...


Se o que eu sinto por ti sentir pudera,
Então, sorrindo, eu te diria: Espera,
E hoje, chorando, não te espero mais.


"Pela Vida Fora...", Silva Ramos

(Silva Ramos nasceu no dia 6 de Março de 1853. Morreu em 1930.)

Lugares-comuns 198

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 5 de março de 2015

Ramón Otero Pedrayo

Tripou o cabalo pola canella, e chégou unha rara figura de home fracote, escanabouzado, xordo de comenencia e pitarroso dos ollos. Xa polos camiños se distinguía polo grande capotón que cobría os cadrís do faco deixando soilo saír a cola. O cabalo todo envolveito en pelaxes acostumaba a pararse diante tóda-las portas. O recaudador. Pola porta da Predreira metíase todo o mundo: as arroiadas, os cás famentos, os labregos, os pedichós. Unha noite tamén entróu o lobo e meteuse na corte das ovellas. A fidalga recibiu ó home cunha curtesía de quen teima cobrir a vergonza íntema. Ben se decataba il da falla de cartos. Naquil tempo a idea de Estado comezaba a facer forza na aldea. Astra entón gobernaban potenzas antergas, visibres, presentes. O poder estaba representado por monxes e cregos, por fidalgos cobradores e comedores, mais ó tempo cheos de confianza cos paisanos. Moito tardóu a idea abstracta do Estado en se sentir nos eidos. Daquela entraba no pazo o Estado na persoa dun novo tipo, nin labrego nin señor. Co tempo, os recadadores fixéronse señoritos.

"Os Camos da Vida", Ramón Otero Pedrayo

(Ramón Otero Pedrayo nasceu no dia 5 de Março de 1888. Morreu em 1976.)

O que verdadeiramente me chateia 2

O que me incomoda, o que verdadeiramente me chateia, é a indigência intelectual e moral das "explicações" que o alegado primeiro-ministro de Portugal debita para justificar os seus desencontros com as obrigações de um cidadão, digamos, razoavelmente honesto. O seu discurso sem ponta por onde se lhe pegue dá bem a ideia do que ele pensa a respeito da inteligência dos portugueses. E o pior de tudo é que ele tem razão.
Por outro lado, a questão não é se Passos Coelho ainda tem condições para ser (alegado) primeiro-ministro. A questão é, antes: como é que um indivíduo com o cadastro que agora se vai sabendo pôde ser (alegado) primeiro-ministro?

Nova corrida, nova viagem 8

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 4 de março de 2015

Xela Arias

Testemuña

Eu, nin andaría os pasos dun poema…

Ti, regresas ó espectáculo dos días,
espántante, son diabólicas
as agardas, as paces maníacas;
olladas solícitas, erratas.


Entretéñome nos bares: xa me coñecen
os tolleitos.


Así sucede un pouco antes
de botarmos a correr ás mortes,
diarias.


"Tigres coma Cabalos", Xela Arias

(Xela Arias nasceu no dia 4 de Março de 1962. Morreu em 2003.)

Eugénio de Castro

Epígrafe

Murmúrio de água na clepsidra gotejante,
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio de areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre...


Homem que fazes tu? Para quê tanta lida,
Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça?
Procuremos somente a Beleza, que a vida
É um punhado infantil de areia ressequida,
Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa...


"Oaristos", Eugénio de Castro

(Eugénio de Castro nasceu no dia 4 de Março de 1869. Morreu em 1944.)

Lugares-comuns 197

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 3 de março de 2015

O Kosovo é em Cabeceiras de Basto

O Exército português está a preparar a próxima missão no Kosovo em Cabeceiras de Basto. Mais concretamente na aldeia de Busteliberne, que deve ter sido escolhida derivado ao nome. O multijornalista Carlos Rui Abreu, que acompanhou a invasão, publica no JN um excelente conjunto de fotografias.

Bulhão Pato 3

Ciúmes do passado

Quando teu rosto adorado
Da luz do amor se ilumina,
Resplandecente a meu lado,
Não sabes porque, anuviado,
O meu semblante se inclina?
Porque um amargo sorriso
Pelos meus lábios desliza,
Quando teus lábios, Luísa,
Me proferem, anelantes,
Tantos protestos de amor!
É que minha alma se oprime
À lembrança do passado,
Em que já outro a teu lado
Escutou essas palavras,
Que me repetes agora
Cada vez com mais ardor;
E que esses mordidos beijos
Que me perdem de ventura,
Dados com a mesma ternura
Já perderam de desejos
Neste mundo outro também!
E tu não sabes, querida,
Os zelos que me devoram
À lembrança que, na vida,
Já quiseste a mais alguém?!

"Versos de Bulhão Pato", Bulhão Pato

(Bulhão Pato nasceu no dia 3 de Março de 1828. Morreu em 1912.)

segunda-feira, 2 de março de 2015

O que verdadeiramente me chateia

O que me incomoda, o que verdadeiramente me chateia, é comer três tangerinas e a última sair-me seca; ou presentear-me com meia dúzia de sardinhas e a derradeira calhar-me moída; ou um alegado primeiro-ministro que só tem explicações da treta para as trafulhices em que se meteu.

domingo, 1 de março de 2015

Maricarmen, por supuesto

Foto Hernâni Von Doellinger

Ontem. Um bando de moças desce as escadas que levam até aos bares do Molhe, na Foz. São seis ou sete, modernas, bem vestidas, galhofeiras. Uma das raparigas despe a gabardina e exibe-se com um vestido de "espanhola". Vermelho e preto, por supuesto, e com um letreiro ao peito. Penso: coitadas, chegaram atrasadas ao carnaval; ou então são palerminhas das praxes; ou então são palerminhas das praxes que chegaram atrasadas ao carnaval.
Aproximo-me para proceder à competente desambiguação. O letreiro diz: "Felicita-me ou não. Vou-me casar". Percebo logo tudo, oh juventude irreverente e criativa! É um novo ritual de despedida de solteira. Só pode ser. Ou publicidade ao viagra; ou uma partida para os apanhados.
Comovem-me a simpatia e a originalidade da ideia. Esta espécie de performance, teatro de rua, em vez do tradicional striptease masculino. Que coisa bem sacada! A "espanhola" apercebe-se de que eu estou na onda, aproxima-se de mim, toda gaiteira, com umas cuequinhas verdes na mão direita e umas cuequinhas cor-de-rosa na mão esquerda. Que giro! Fala em castelhano:
- Olá. Vou casar amanhã. Podes dizer-me que cuecas devo usar? Estas ou estas?
- Nem umas nem outras, minha senhora. Sem cuecas é que vai bem - respondo eu, sumariamente ponderado o assunto em questão.
As "amigas" riem e tiram fotografias. Eu fico no retrato.
Vermelha-e-preta e radiante, la novia insiste:
- Ningunas?
- É como lhe digo, minha senhora. Se o caso é casamento, sem cuecas é que usted vai bem.
A rapariga parece-me ter ficado algo desconsolada com a minha resposta. Eu, que só quero ajudar, dou-lhe uma segunda oportunidade:
- Olhe, espere lá. Arregace aí as saias e experimente os dois pares, um de cada vez, a ver se eu mudo de ideias.
- ...

E desejei-lhe muitas felicidades.