segunda-feira, 31 de março de 2014

Kasa da Praia: será desta?

Foto Hernâni Von Doellinger

Cinco anos depois da inauguração prometida, as "obras" da famigerada Kasa da Praia estão finalmente a começar... outra vez. Será desta?
Escrevi no dia 11 de Agosto de 2013, a propósito da santa-engrácia portuense:

As "obras" da Kasa da Praia, as tais que iam "regressar em força" aqui há coisa de dois meses, estão entregues aos pombos. As corridas do Circuito da Boavista passaram e os operários desapareceram. Era o que eu dizia.
A Kasa da Praia é uma das sobras da Capital Europeia da Cultura, Porto 2001. Dois mil e um - digo bem. A ideia era pegar nas paredes do velho edifício do CLIP e meter lá dentro um restaurante e bar dançante, coisa fina abrilhantada também com serviço de pequeno-almoço e salão de chá. Ideia peregrina. Que caminhou pelos jornais, com notícias vá-se lá saber porquê em 2002, em 2003, em 2004, em 2005, em 2007 e em 2008, mas sem sair do papel. Do papel de jornal, entenda-se. A inauguração foi prometida em 2009, passou-se 2010, passou-se 2011, e em Março de 2012 deitaram o miolo abaixo, e com grande estrondo. Mas apenas, e outra vez, na chamada comunicação social. A coisa ficou assim até ao lifting facial do pretério mês de Junho, para não parecer mal aos camones dos popós. E a partir daí, nada.
Antes de ser CLIP - Colégio Luso-Internacional do Porto, escola para meninos ricos e excelente -, aquela casa sem kapa foi posto de transformadores e de rectificadores de mercúrio para fornecimento de energia aos eléctricos da Invicta. Tem história, portanto, e uma localização que é um luxo: no limite ocidental do Parque da Cidade, agora em cima da praia, entre o Castelo do Queijo e o Edifício Transparente. Quem dera a muitos...
Mas já lá vão doze anos - 12 anos, digo bem - e o que temos ali são ruínas. Ruínas muito bem pintadas por fora, é preciso que se diga, porque isto não é uma crítica, ainda menos reclamação. Eu apenas tomo nota, de resto até gosto daquilo conforme está.

Vida de cão 34

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 30 de março de 2014

Fermín Bouza Brey

Nao senlleira

¡Quén dera ser nao senlleira
n-aquel mar non presentido
das ja mergulladas terras!

Sen ceo, sen astros, sen vento,
sempre â toa pol-as ondas
deitado no esquecimento,

nin andar nin desandar,
nin ter outro coido acedo
que leijarse ir pol-o mar...

¡Quén dera ser nao senlleira!
Sen fito - estrela nin porto -
¡ser eu a propia ribeira!

"Nao Senlleira", Fermín Bouza Brey

(Fermín Bouza Brey nasceu no dia 31 de Março de 1901. Morreu em 1973.)

A ver navios 18

Foto Hernâni Von Doellinger

Fafenses excelentíssimos

O Canivete que vendia jornais, o Palhaço que fazia autópsias, o Cesteiro que esteve nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, o Paredes que também era Neiva de mãos enormes e falso susto para crianças, o Landinho eterno Menino, o Landinho do Club que tinha uns testículos muito compridos e era primo de quem fosse importante mesmo que fosse estrangeiro, o Piu, o Chico Cereja, o Sandim que levava os filmes de carrinho, o Tónio da Legião, o Dr. Antunes.
A Rosa do Piroco (Senhora Rosa do Mato!, corrigia-me a minha mãe), o Zé de Castro poeta e cauteleiro, o Chupiu, o Manel do Campo, o Luisinho com o "criado" atrás, o Zé Cão, o Roda Forte cauteleiro, o Pai Zé cauteleiro e gasolineiro, o Meireles de Antime, o Malhado decilitrador premiado e competente arranjador de guarda-chuvas, o Clemente que construía pipas e escadas e era tão pequenino que eu nunca percebi onde cabia tanto tabaco e aguardente, o gigante Barnabé e o mano, o Rates artista da bola, o poeta Augusto Fera, o Álvaro da Dinâmica, o carteiro Aristides, o Zé Sacristão, o Sr. Ferreira do Hospital, o 17 da Bomba, meu avô.
O Sr. Arcipreste, o Maló que era de Fafe em dias certos e cantava fanhosa e desalmadamente o "despedi-me e fui para longe" na esquina da minha rua, o Quinzinho da Farmácia que era o melhor médico do mundo, o Rui que era irmão do Renato e ardinava o Comércio do Porto, o Pedro e o Norte Desportivo, o Guia e a língua portuguesa, o Zegolina e a má-língua, o Batata, o Miguel Chichilim, o Fiu, o Chichirini, o Neca do Hotel, o Zé Manco, o Zé Manquinho, o Sibino, o Sr. Augusto Paredes, o Jerónimo Barbeiro, o Zé Bastos, o Chester faz-tudo, o Nélson Fafe e a alma do teatro, o Sr. Saldanha e a Bandeira Nacional.
Na música: os Bacalhaus, os Custódio, os Gandarelas, os Betas, os Silvas, os Maciéis. Nos bombeiros: o comandante Luís Mário, os Costas do Assento, os Feira Velha, os Quintos, os Ferreiras e os Nogueiras, os Moleiros e os dos Santo, mestres também de filosofias de carne e osso e do jogo do pau.
O Joãozinho da Loja Nova que era um partidão e nem assim, o Joãozinho Summavielle e o meio fininho ao balcão do Peludo de costas voltadas para a televisão, o engenheiro Mário Valente doente da bola e fazedor do que Fafe é, o Albano das Águas esperto que eu sei lá, o Armindo Alves que era a Banda de Revelhe, o Mário Chanato, o Zé do Registo, o Fernando da Sede, o Sr. Avelino do Café, o Flórido engraxador, o Belinho, o Baptista do Asilo, o Nelinho da SIF, o Guarda-Fios, o Miguel do Zé da Menina, o Miguel Cantoneiro, o Chaparrinho, o Nelo Chapeleiro, o Manel da Pinta, o Nelinho Barros, o Hugo Alfaiate, o Chico da Libânia, o Toninho Nacor e a Dona Isabel, o padre Barros, o padre Zé, o Bilinho e o Bergiga meus companheiros de infância, o inesquecível Berto Dantas.
E, ainda por cima, o grande Zé Manel Carriço, provavelmente o homem mais extraordinário que conheci em toda a minha vida.
A todos e outros que tais, os meus respeitos. Muito agradecido por serem a minha memória.

Aqui há uns anos soube que foi feito um "Dicionário dos Fafenses" ilustres. A lista oficial, estou quase certo, não será exactamente esta, a minha, posto que incompletíssima. Mas lá está. A ilustreza é um conceito deveras relativo. Como certos e determinados pronomes...

P.S. - Tenho vindo a particularizar alguns destes meus heróis fafenses em textinhos com nome próprio, aqui no Tarrenego! e no meu outro blogue, Fafismos. E entretanto acrescentei outros. Quem quiser ver, é só chamar por eles.

Vida de cão 33

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 29 de março de 2014

Quando Fafe arrebenta, arrebenta!

Em meia dúzia de dias, Fafe arrebenta com Portugal inteiro e arredores. Hoje é o WRC Rally Sprint, na Lameirinha, amanhã é um concerto de bombos, no Teatro-Cinema, e no próximo dia 5 de Abril é a gravação, no Multiusos, da emissão 2500 do Preço Certo da RTP, com o inefável Fernando Mendes. O tesão dos motores já me passou há que tempos, o presidente do ACP não é de fiar e o Fernando Mendes deve ser muito boa pessoa e ter muitos galhardetes de juntas de freguesia e de bombeiros. Passo, porém. Eu, se estivesse em Fafe e me deixassem entrar, ia aos bombos. E, se fosse possível, pedia que me cantassem o "Resineiro", mas de mansinho como antigamente.

Typical portuguese appetizers, of course

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 28 de março de 2014

Alexandre Herculano 2

Vós os que não credes em bruxas, nem em almas penadas, nem em tropelias de Satanás, assentai-vos aqui ao lar, bem juntos ao pé de mim, e contar-vos-ei a história de D. Diogo Lopes, senhor de Biscaia.
E não me digam no fim: - "não pode ser." - Pois eu sei cá inventar coisas destas? Se a conto, é porque a li num livro muito velho. E o autor do livro velho leu-a algures ou ouviu-a contar, que é o mesmo, a algum jogral em seus cantares.
É uma tradição veneranda; e quem descrê das tradições lá irá para onde o pague.
Juro-vos que, se me negais esta certíssima história, sois dez vezes mais descridos do que S. Tomé antes de ser grande santo. E não sei se eu estarei de ânimo de perdoar-vos como Cristo lhe perdoou.
Silêncio profundíssimo; porque vou principiar.

"A Dama Pé-de-Cabra" ("Lendas e Narrativas"), Alexandre Herculano

(Alexandre Herculano nasceu no dia 28 de Março de 1810. Morreu em 1877.) 

O toque final do artista

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 27 de março de 2014

Armindo Rodrigues

Liberdade

Ser livre é querer ir e ter um rumo
e ir sem medo,
mesmo que sejam vãos os passos.
É pensar e logo
transformar o fumo
do pensamento em braços.
É não ter pão nem vinho,
só ver portas fechadas e pessoas hostis
e arrancar teimosamente do caminho
sonhos de sol
com fúrias de raiz. 

É estar atado, amordaçado, em sangue, exausto
e, mesmo assim,
só de pensar gritar
gritar
e só de pensar ir
ir e chegar ao fim.


Armindo Rodrigues

(Armindo Rodrigues nasceu em 1904. Morreu em 1993.)

Lugares-(in)comuns 61

Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 25 de março de 2014

Ainda a propósito da palavra porcausa

A palavra porcausa escreve-se da mesma forma que as palavras porexemplo e poracaso. As três obedecem ao mesmo princípio - o da ignorância.

segunda-feira, 24 de março de 2014

domingo, 23 de março de 2014

Saudades do presunto e do futuro

                                                                                       Foto Hernâni Von Doellinger

Há um sítio onde o presunto é à moda antiga, honrado, macio como veludo, saboroso como a vida. E depois há o meu amigo Celso e a senhora sua mãe, ainda melhores do que o presunto. Apaparicam-nos. Querem-nos como se estivéssemos em casa, e estamos. Às vezes dão-me as saudades - e foi isso.

Moacyr Scliar

Vamos começar pelo Benjamin, cuja foto figura em nosso álbum de família, o álbum que tenho diante de mim. É, aliás, a mesma desbotada fotografia que está na lápide de sua sepultura, no cemitério israelita. O que nela chama atenção é o ar assustado, tão típico de meu tio. Chamavam-no Ratinho (não se tratava de codinome; era apelido mesmo): os olhinhos pretos e as orelhas de abano tornavam-no parecido com um camundongo. Não aqueles camundongos alegres das histórias infantis, mas, ao contrário, um ratinho melancólico, solitário, sempre enfurnado em sua toca. Diferentemente do irmão, que casou e teve quatro filhos, Benjamin não constituiu família; acho mesmo que nunca teve namorada e que seu contato com mulheres resumia-se às prostitutas da rua Voluntários da Pátria, que o conheciam e lhe faziam um preço especial. Era pobre, o Ratinho. Alfaiate competente, poderia ter ganhado muito dinheiro com a profissão. Isso não aconteceu. Em primeiro lugar, a alfaiataria tradicional foi aos poucos sendo deslocada pela indústria de confecções, de modo que ao longo dos anos ele foi perdendo a clientela, da qual faziam parte algumas pessoas conhecidas em Porto Alegre - jornalistas, políticos, jogadores de futebol, delegados de polícia. Em segundo lugar, e à medida que ficava mais velho, Ratinho começou a desenvolver teorias peculiares acerca de roupas. Sustentava, por exemplo, que a manga esquerda deveria ser mais curta do que a direita ("Assim as pessoas podem olhar mais facilmente o relógio de pulso") e confeccionava os paletós de acordo com tal idéia, o que obviamente desconcertava, e irritava, muitos clientes. Ele, porém, rejeitava os protestos, rotulando os insatisfeitos de "retrógrados" e "reacionários". É preciso acompanhar a marcha do tempo, insistia, porque a marcha do tempo é a marcha do progresso. Uma linguagem em que ecoava o seu passado de homem de esquerda, de trotskista. Mas Ratinho já não se interessava por política, pelo menos pela política partidária, essa que dá as habituais manchetes de jornal.

"Os Leopardos de Kafka", Moacyr Scliar

(Moacyr Scliar nasceu no dia 23 de Março de 1937. Morreu em 2011.)

sábado, 22 de março de 2014

A minha rua é um mundo

Foto Hernâni Von Doellinger

O Dia De

Hoje é o Dia Mundial da Água. E amanhã, 23 de Março, é o Dia do Naturólogo, Acupuncturista, Naturopata, Quiropraxista e Terapeuta Natural. Estão a ver como é tão importante para as nossas vidas esta coisa moderna dos dias de?

Como é que se escreve a palavra porcausa?

A jovem profissional precisava de trocar uma folga e procurou ajuda junto da colega da secretaria. Uma de cada lado do balcão. Giras. A colega da secretaria passou o papel e a esferográfica à jovem profissional, e começou a ditar:
- Solicito, so-li-ci-to, troca de folga, de fol-ga, do dia 15 para o dia 23, por causa...
- Porcausa? Que palavra é essa? Como é que se escreve? - interrompeu a jovem profissional, descontraidamente ignorante e escandalizada, e, tipo, com toda a razão.

P.S. - Mais sobre o mesmo tema, aqui e aqui.

Lugares-comuns 138

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 21 de março de 2014

Dinis Machado 2

Antigamente, eram os barcos. Brancos, azuis e furta-cores, com lanternas penduradas nos cintos dos homens que passavam nas cobertas. E aquém dos barcos: as ondas tinham outra maneira de quebrar, o quebrar de antigamente, se é que sabe ao que me estou a referir. Depois, os homens falavam alto e as mulheres ficavam grávidas, as gaivotas rasavam o cais, alisando a pedra, subindo subitamente, enquanto o Norberto afiava os mastros, virados para o céu, com a navalha que um dia se lhe cravaria na garganta. A navalha era do Norberto, até tinha as suas iniciais no cabo, mas foi atraída, por obscuros motivos hipnóticos, para a mão do Toledo das Rondas.

"Discurso de Alfredo Marceneiro a Gabriel García Márquez", Dinis Machado

(Dinis Machado nasceu no dia 21 de Março de 1930. Morreu em 2008.) 

quinta-feira, 20 de março de 2014

A prima vera

era boa como milho; casou-se e estragou-se.

Ilse Losa 2

"Numa viagem por terras bálticas apeei-me, certa tarde de calor, numa extensa praia de areia lisa. Descalcei-me e pus-me a caminhar ao longo do mar, calmo como os lagos das florestas. Tão grande era o silêncio em redor que me parecia ouvir as vibrações do ar e a agitação dos peixes na água.
Caminhando assim, a passo lento, sem hora marcada, deparei com um aglomerado de casinhas desabitadas, de pedras toscas enegrecidas pelo tempo, sem portas nem janelas. Resolvi entrar numa delas, mas mal pus o pé na soleira da porta o mar empinou-se em ondas ruidosas que se quebravam aos meus pés e alastravam pela areia, numa espuma hostil de tão fria. Era como se uma grande mão inimiga me tocasse.
Assustada, afastei-me em direcção ao monte do outro lado das dunas e das tristes casinhas vazias, o qual, visto assim de baixo, me parecia bastante calvo. Resolvi subir. Chegado ao cimo, vi que o mar voltara à sua calma, tal como o tinha encontrado ao chegar.
Nisto os meus olhos caíram sobre um grupo de quatro árvores que naquele lugar ermo, sem mais nenhuma vegetação, faziam o efeito de terem sido expulsas para o deserto. Entre um pinheiro e um cipreste, ambos de porte solene, havia um choupo de aspecto frágil, cujas folhas, verdes de um lado e prateadas do outro, tremiam sem cessar. Atrás elevava-se uma faia, majestosa no esplendor do seu tronco sem mácula e da sua volumosa copa de folhas cor de sangue. Dir-se-ia que os outros dois, o pinheiro e o cipreste, se aconchegavam na sua sombra como num quente abraço maternal.

"Silka", Ilse Losa

(Ilse Losa nasceu no dia 20 de Março de 1913. Morreu em 2006.)

segunda-feira, 17 de março de 2014

Portugal, país de aldramaus

Por que razão medram tanto os aldrabões em Portugal? Por que razão vamos a votos e damos a mama aos aldrabões, de variada cor, e há quarenta anos, como se por acaso acreditássemos neles - nos aldrabões? Os aldrabões que antes e/ou depois estão nos bancos, nas edepês, nas caixas, nas renes, nas cepês, nas referes, nas misericórdias, nos metros, nos centímetros, nas construtoras, nas destrutoras, nos superescritórios de advogados, nos supermercados de escravos, nas fundações, nas afundações, nas jotas, nas motas, nas assessorias, nas tias, nas televisões e nos jornais, no parlamento, na moinice enfim, e têm do povo uma vaga ideia. Por que razão?
Andava com esta dúvida fisgada nem sei há que tempos, mas ontem tive a inesperada revelação, quase sem querer, ao ouvir um minhoto retinto a falar. O homem antigo falava de não sei quem e chamava-lhe aldrabom. Aldrabom. Os minhotos de cá de baixo falamos assim (e eu até tenho uma certa vaidade na nossa maneira de falar), trocamos o ão pelo om, daí a confusom, e se calhar acreditamo-nos: ora aí está um aldra que é bom, pensamos na melhor das intenções e caímos na esparrela. Porque aí é que a porca torce o rabo: eles não são aldrabons - são aldramaus.

Jornadas Literárias de Fafe


Quinta edição das Jornadas Literárias de Fafe, de hoje até sexta-feira. "As palavras dizem liberdade" é o mote para, ao que consta, quase um cento de iniciativas. Mais informação, aqui; o programa, não sei onde.

domingo, 16 de março de 2014

Vandalismo ou... vandalismo?

Foto Hernâni Von Doellinger

Camilo Castelo Branco 2

Os amigos

Amigos cento e dez, e talvez mais,
Eu já contei. Vaidades que eu sentia!
Supus que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.

Amigos cento e dez, tão serviçais,
Tão zelosos das leis da cortesia,
Que eu, já farto de os ver, me escapulia
Às suas curvaturas vertebrais.

Um dia adoeci profundamente.

Ceguei. Dos cento e dez houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.

- Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego, não nos pode ver...

Que cento e nove impávidos marotos!

Camilo Castelo Branco

(Camilo Castelo Branco nasceu no dia 16 de Março de 1825. Morreu em 1890.)

Lugares-comuns 137

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 15 de março de 2014

Sai sempre à casa

Já repararam na ironia da coisa? Chama-se "prémio" o dinheiro que a gente paga com língua de palmo, ano após ano, à companhia de seguros. Prémio. Um dia a gente precisa, e nicles. Pois muitos parabéns!

sexta-feira, 14 de março de 2014

O sucesso das moelas de coelho

O Dr. Google continua a remeter-me centenas de consulentes que me perguntam se "o coelho tem moela" ou se "há moelas de coelho". Ó galinácea ignorância! Mas é claro que o coelho não tem moela, é claríssimo que não há moelas de coelho, nem de coelha, quantas vezes mais tenho de dizer? Esclareço, no entanto, que quem as cozinha muito bem é o meu amigo Peixoto, em Fafe.

P.S. - Tudo sobre moelas de coelho, aqui.

Vida de cão 31

Foto Hernâni Von Doellinger

Castro Alves 2

O "adeus" de Teresa

A vez primeira que eu fitei Teresa,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus...
E amámos juntos... E depois na sala
"Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala...
 
E ela, corando, murmurou-me: "adeus".

Uma noite... entreabriu-se um reposteiro...
E da alcova saía um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus...
Era eu... Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa...

E ela entre beijos murmurou-me: "adeus".

Passaram tempos... séc'los de delírio
Prazeres divinais... gozos do Empíreo...
... Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse - "Voltarei! descansa!..."
Ela, chorando mais que uma criança,

Ela em soluços murmurou-me: "adeus".

Quando voltei... era o palácio em festa!
E a voz d'
Ela e de um homem lá na orquestra
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei!... Ela me olhou branca... surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!...

E ela arquejando murmurou-me: "adeus".

"Espumas Flutuantes", Castro Alves

(Castro Alves nasceu no dia 14 de Março de 1847. Morreu em 1871.)

quinta-feira, 13 de março de 2014

Terá sido boa ideia?

Ouço e leio que nos próximos 50 anos, em Portugal, o mar vai ganhar um metro à terra. Ouço e leio que o Governo vai gastar 16,6 milhões de euros para demolir, este ano, mais de 800 habitações na orla costeira, para que ninguém morra afogado enquanto dorme. E ponho-me a pensar: terá sido boa ideia construir ali em baixo o novo terminal de cruzeiros do Porto de Leixões, obra para cima de 50 milhões de euros e que provavelmente nem sabe nadar?

Foto Hernâni Von Doellinger

António de Assis Júnior

Estava longe de suspeitar que viria um dia a figurar na tal fita da sonhada conspiração, e passaria privações sem conta, que jamais esquecerei: Em 2 de Agosto, quinta-feira, passava pela estação da Funda, de que eu era o chefe, um comboio ordinário, levando uma carruagem de 3.ª classe com presos. Por uns zunzuns, sabia já que os brancos de Dala Tando e Lucala queriam comer carne de preto... Como estava determinado, nela entrei sem oposição das sentinelas, para efectuar a revisão que havia feito em todas as outras. Já dentro dela fui pelos soldados, perfeitos selvagens que jamais vi iguais, violentamente agredido (e o comboio em marcha), descalçado, rasgada a roupa e o boné do uniforme e imediatamente amarrado. E isto feito em menos tempo que o necessário para o contar. O condutor, porém, após 3 quilómetros de percurso da estação, fez parar o comboio e ali aparecera a declinar a minha identidade, sendo então desamarrado e solto; mas muito maltratado e contuso. (...) No noite do dia 5 - domingo-, estando de serviço na estação do Bundo, apareceram 2 sargentos - um dos quis reconheci ser o Felizardo - que confidencialmente falaram ao chefe Armendia, que, depois, me impediu que os acompanhasse à polícia. Estranhei o facto, mas eles procuraram sossegar-me: - Não tenha receio; é apenas para prestar declarações sobre a sua agressão na Funda. Como os presos que assistiram ao caso vão ser deportados esta noite, não poderão depois testemunhá-lo. O interesse, pois, é seu... - Decidi-me a ir, pois se eu nada havia feito... Chegado à polícia, fui logo recolhido na prisão n.º 4 - segredo - ; dois dias depois fui presente ao comandante e aí relatei o caso, sendo recolhido de novo à prisão. Uma semana depois fui presente ao administrador, Viana Frazão, e acompanhado por este, por dois sargentos (Carvalho e Gonçalves), escrivão Freitas e 2 polícias, fomos todos à minha casa, onde procederam a uma busca e apreensão de toda a minha correspondência e algum dinheiro que encontraram na mala - uma parte do qual me foi entregue na polícia mediante recibo. A correspondência e parte do dinheiro até hoje não sei deles.

"Relato dos Acontecimentos de Dala Tando e Lucala", António de Assis Júnior

(António de Assis Júnior nasceu no dia 13 de Março de 1887. Morreu em 1960.)

That's all folks!

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 12 de março de 2014

Ligue-me quando estiver noutro jornal

Trabalhar no meu jornal era obra desenganada. As pessoas que contactávamos sabiam que, se falassem, tudo o que dissessem podia ser usado contra elas. (Como na América e nos filmes.) E geralmente era. Nem que lhes telefonássemos apenas para perguntar as horas, havia de sair dali cagada da grossa. Nós depois ligávamos a ventoinha. O 24horas era assim, fugia-lhe o pé para a escandaleira. Se não houvesse sangue, os meus chefes tratavam disso. Para os mais distraídos perceberem: estão a ver como são agora todos os jornais? Pronto, o meu jornal é que começou.
Portanto tínhamos muito poucas "fontes". As pessoas minimamente informadas fugiam de conversar connosco como o diabo foge da cruz. Umas tinham vergonha na cara ou medo e outras desprezavam-nos simplesmente. Umas e outras sabiam que as nossas perguntas tinham quase sempre volta de foda. Se desse jeito, pedíamos a A para falar de B, para a seguir metermos A e B no mesmo saco e malharmos nos dois como se fossem um só. O jornal escolhia os seus alvos e gastava a pólvora toda (seca, por norma) enquanto a coisa vendesse. Mas é preciso que se diga: isto de eleger "inimigos" e disparar até cair para o lado foi uma herança recebida de Paulo Portas, do tempo em que o actual vice-primeiro-ministro era director do semanário Independente e fazia a vida negra ao Cavaco primeiro-ministro e respectivos ajudantes no Governo. O das feiras é que inventou esta receita de sucesso e gabava-se disso. O seu a seu dono.
No meu jornal, Lisboa encarregava-se de fechar as portas às quais nos mandava depois bater, aqui do Porto. Levávamos quase sempre com a porta no nariz. As pessoas respondiam-nos torto, muito torto, era o pão-nosso de cada dia. Uma vez calhou-me o Sócrates, nas vésperas de ganhar as primeiras eleições. Lembram-se do génio do gajo? Pois é. Foi uma discussão das antigas, mas essa história merece prefácio à parte e hei-de contá-la quando os linchadores de aviário sossegarem a parreca e largarem os tomates ao homem. Os outros malcriados não merecem que lhes diga os nomes.
Claro que a grosseria não era geral. Havia também pessoas que muito simplesmente se recusavam a falar-nos mas sem baixarem o nível. O bom do Raul Solnado (1929-2009), Luís Represas, o actor José Pedro Gomes, são dos que me lembro agora que escrevo. Nenhum dos três me conhecia, mas, depois de me ouvirem educadamente, foram igualmente atenciosos na nega. Disseram-me: "Desculpe, Hernâni, não é nada de pessoal consigo, portanto ligue-me quando estiver noutro jornal. Então conversaremos do que quiser". Agradeci sinceramente a franqueza e a urbanidade. E pedi desculpa eu. Eu sabia que eles tinham razões.
Era vida difícil. Num jornal que precisava da "opinião" dos "famosos" sobre tudo e sobre nada. A propósito da Marisa Cruz nua num filme ou por causa do Fidel Castro que passou a pasta ao irmão. A minha sorte é que acabava sempre por encontrar uma alma caridosa que me ajudava a ganhar o dia. Gente que sabia o que era o 24horas mas que, fosse por que razão fosse, nunca me deixou ficar pendurado: gente como Marcelo Rebelo de Sousa e Júlio Magalhães, os empresários e portistas Pôncio Monteiro (1940-2010), Manuel Serrão e Rui Moreira, hoje presidente da Câmara do Porto, os estilistas Miguel Vieira, Katty Xiomara, Luísa Pinto e Gio Rodrigues, os juízes Rui Rangel e Eurico Reis, o fiscalista Saldanha Sanches (1944-2010), Valentim Loureiro (o meu cromo da sorte), Júlio Isidro e Joaquim Letria, que também eram da casa, Tozé Brito, Luís Filipe Barros, José Cid, o humorista Nilton, Octávio Machado, Francisco José Viegas, Manuel Luís Goucha, José Carlos Malato, Jorge Gabriel, Hélio Loureiro, Paulo Teixeira Pinto e mais uns poucos de que injustamente me estou a esquecer. Eram sempre os mesmos e a minha tábua de salvação. O meu piquete de emergência.
Cada qual lá teria os seus motivos. Alguns, tenho a certeza, era mesmo uma questão de bondade. Fiquei agradecido a todos. De vez em quando pago-lhes aqui com umas ripeiradas. É este maldito 24horismo que não há maneira de me passar.

(Texto escrito e publicado no dia 31 de Março de 2012, só actualizei os cargos ao Portas e ao Rui Moreira. O jornal 24horas nasceu em 1998 e morreu oficialmente em 2010, um ano depois de os seus alegados responsáveis terem liquidado a sangue frio a Redacção do Porto. Podem limpar as mãos à parede. Mas tinha piada o pasquim, que até chegou a ser bem feito, e é a bíblia do jornalismo que hoje se faz em Portugal.)

Raul Brandão 2

O navio fundeia na Terceira, num vasto semicírculo, fechado ao norte pelo monte Brasil e do outro lado pela ilha das Cabras. Está um calor surdo. Demoro-me a olhar a cidade, donde irrompe uma pirâmide amarela, o monumento a D. Pedro IV. Num plano mais afastado alguns montes escalvados. É Braga, Braga com mais regularidade nas ruas, mais cai nas paredes, e que lhe deu na veneta para ser praia, estendendo até à beira-mar os seus conventos e as suas igrejas pesadas, com um forte em cada extremidade. Na rua andam mulheres de capote negro, apertado na cinta e formando concha sobre a cabeça, e raparigas do povo com o lenço atado só com um nó e deixando ver as madeixas: - são as solteiras; as casadas escondem todo o cabelo e atam duas vezes o lenço no pescoço. Foi aqui que vi as mais lindas figuras de mulheres dos Açores - tipos peninsulares, de cabelos negros e olhos negros retintos.
Tomei por uma estradinha ao acaso, onde florescem, nascendo nos muros, as chagas e os alfinetes cor-de-rosa. Atravessei a Urze tão branquinha, os caminhos humildes de Figueiras Pretas e Bico de Cabo Verde, recolhida entre pinhais e acácias, a que chamam pau-de-toda-a-obra. Fui seguindo entre sarças da ilha. No caminho uma carreada - bois luzidios com ponteiras doiradas nos chifres e homens desempenados e fortes à frente dos carros.
Entro no quintal dum amigo. Gostei sempre de me perder nas quintas e nos jardins entre quadros rústicos de lavoura. Sentei-me num pomar de deliciosas nêsperas amarelas e maduras, a vermelha mais ácida, e a branca mais doce e que se desfaz em sumo na boca. A vegetação reluz envernizada de novo. Espreitei o recanto abrigado da vinha baixa, que produz com duas castas, a Isabela e o Vermelho, o vinho de cheiro e o branco que tem fama. E depois passei por o jardim silencioso e húmido, pelas ruas altas de faias de Holanda. E neste ar tépido, nesta luz difusa, apareceram-me as japoneiras gigantescas em pirâmide, o goifão branco com a flor amarela ou leitosa abrindo ao meio das folhas estendidas à superfície das águas verdes e podres das bacias; a aromática espirradeira, que deixa cair as pétalas vermelhas, uma a uma, num canteiro de relva, desfalecida como se a sangrassem. Isto cresce diante dos meus olhos numa atmosfera quente e numa luz tão verde que chega a dominar o cinzento. Os jardins são sempre uma obra de arte, e quanto mais desordenados, mais belos.


"As Ilhas Desconhecidas", Raul Brandão

(Raul Brandão nasceu no dia 12 de Março de 1867. Morreu em. 1930)

O cão e a dona

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 11 de março de 2014

O Astro (ou quando me mandaram atrás dele)

Sou fã de Marcelo Rebelo de Sousa, já disse. Gosto daquele ar cartomante com que o Professor nos revela tudo o que nós já sabíamos. Gosto daquele sorrisinho matreiro, marca já-te-fodi. Gosto da forma como o Professor vai à televisão vender pedaços de nada como se fossem o mundo inteiro. O truque está no poder de concentração e nos embrulhos. Marcelo usa papel de embrulho do melhor: papel de lustro, manobrista e recadeiro. E os fregueses adoram. Marcelo sabe mais que o Papa. Sabe mais que a Irmã Lúcia. Sabe o passado e o futuro. Marcelo é o nosso presente.
A omnisciência sempre me seduziu. Desde miúdo, quando, ainda em Fafe, ia a casa do Bertinho Dantas (o sobrinho) jogar O Sabichão. Depois, ao longo da vida, tive a sorte de encontrar sábios a sério em velhos lavradores, em professores, em camaradas de profissão, em três ou quatro amigos, gente que muito respeito e continuo a admirar. Hoje, porém, no negócio dos que tudo sabem, só me contento com Deus. Deus no Céu e Marcelo Rebelo de Sousa na Terra.

Era uma vez 2005, ano de eleições em Portugal. Luís Filipe Menezes chefiava a lista do PSD por Braga e foi em pré-campanha a Celorico de Basto. O cabeça de cartaz do jantar-comício era Marcelo Rebelo de Sousa. O meu jornal mandou-me atrás dele.
Dos discursos, lembro-me apenas que Menezes "lançou" a candidatura de Marcelo à Presidência da República (as voltas que a vida dá!), oferecendo-lhe um quadro já não sei com que motivos. No final das intervenções, Marcelo andou de mesa em mesa, como noivo em dia de casamento, distribuindo bacalhauzada àquela gente toda a quem fazia questão de fazer de conta que conhecia.
Eu aproveitei a confusão para dizer ao que ia:
- Sr. Professor, eu sou o...
- Eu sei - cortou simpaticamente Marcelo, estendendo-me a mão e um sorriso de orelha a orelha.
- ... o Hernâni Doellinger, do...
- Sei muito bem quem é - insistiu Marcelo, retirando a mão e reduzindo o sorriso.
- ... jornal 24horas - consegui informar, enfim.
- Exactamente, eu sei, sei muito bem, Hernâni, 24horas, eu sabia - concluiu Marcelo, metendo o resto de sorriso no bolso das calças e pedindo licença para continuar com os cumprimentos, que ainda havia muitas mesas para bacalhauzar no salão de cima e que falávamos no fim.
Claro que não falámos. Marcelo Rebelo de Sousa foi-se embora como quem não quer a coisa, sem me dar uma segunda oportunidade e se calhar até fez bem. Também não interessa. O importante é isto: o Professor não me conhecia de lado nenhum, nunca me tinha visto mais gordo nem mais magro, mas apareci-lhe à frente e ele soube logo quem eu era. Não é extraordinário? Agora que penso nisso, devia ter-lhe pedido que me lesse a sina. E os números do Euromilhões.

Ainda hoje guardo religiosamente a mão com que cumprimentei Marcelo Rebelo de Sousa naquele encontro histórico de Celorico de Basto. Os nossos contactos seguintes resumiram-se ao telefone. Ligava eu, por dever de ofício. O Professor atendeu-me quase sempre. E foi sempre amável e útil.

(Texto escrito e publicado no dia 28 de Agosto de 2012, com o título "O Astro". O jornal 24horas nasceu em 1998 e morreu oficialmente em 2010, um ano depois de os seus alegados responsáveis terem liquidado a sangue frio a Redacção do Porto. Podem limpar as mãos à parede. Mas tinha piada o pasquim, que até chegou a ser bem feito, e é a bíblia do jornalismo que hoje se faz em Portugal.)

Gonçalves Crespo

Alguém

Para alguém sou o lírio entre os abrolhos,
E tenho as formas ideais do Cristo;
Para alguém sou a vida e a luz dos olhos,
E, se na Terra existe, é porque existo.

Esse alguém, que prefere ao namorado
Cantar das aves minha rude voz,
Não és tu, anjo meu idolatrado!
Nem, meus amigos, é nenhum de vós!

Quando, alta noite, me reclino e deito,
Melancólico, triste e fatigado,
Esse alguém abre as asas no meu leito,
E o meu sono desliza perfumado.

Chovam bênçãos de Deus sobre a que chora
Por mim além dos mares! Esse alguém
É de meus dias a esplendente aurora;
És tu, doce velhinha, oh minha mãe!


"Miniaturas", Gonçalves Crespo

(Gonçalves Crespo nasceu no dia 11 de Março de 1846. Morreu em 1883.)

Na escola

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 10 de março de 2014

Quando me mandaram entrevistar o morto

Eu trabalhava num jornal que tinha uma revista de fim-de-semana muito dada àqueles rankings da treta que só servem para meter as fotografias dos "famosos" no júri de faz de conta. Eu trabalhava no Porto e o jornal era chefiado a partir de Lisboa. Uma vez o assunto devia ser música, já não me lembro, e pedi a ajuda do Luís Filipe Barros. "Luís Filipe quê?..." - disse o meu chefe, especialista em Big Brother. "Quem é esse gajo? Não arranjas ninguém conhecido?..."
Passou-se o mesmo com o Tozé Brito, que o meu chefe (outro) também não fazia ideia de quem fosse: "Esse tipo jogou onde? O que é que ele percebe de música?...", atirou-me, com aquele risinho telefónico e condescendente tão próprio dos sábios de Lisboa. Pouco tempo depois (e nem digo que tenha sido por causa de eu lhe ter sacudido o pó), Tozé Brito foi para jurado num programa de televisão e o jornal onde eu trabalhava nunca mais lhe largou a braguilha. Até fechar. O jornal.
Outra vez havia cá em cima uma iniciativa qualquer relacionada com cartoons e política, algo do género. Eu tentava convencer Lisboa para o interesse da coisa e agarrei-me a este argumento de peso: a obra do grande Sam era o destaque do evento. "Qual Sam?", inquiriu o chefe de serviço, com o fastio de quem tem mais que fazer do que estar outra vez a ensinar-me o que é notícia e o que não é notícia. "Então, pá, o Sam, o famoso cartoonista, o Sam do Guarda Ricardo, pá, estás farto de saber, não estás?, o Sam...", respondi-lhe eu, já mais perto do que longe de o mandar à merda.
A palavra "famoso" fazia milagres naquele jornal. "Ok. Vai lá então e aproveita para entrevistar o gajo, o Sam", decidiu finalmente o chefe. Estive para lhe dizer que sim, que era o que eles gostavam de ouvir, mas resolvi contar-lhe a verdade: "Esta se calhar é mesmo impossível, pá. O Sam já morreu há uns anitos. Mas a culpa não foi da redacção do Porto, palavra de honra".
Aquela rapaziada era assim, profissionais formidavelmente informados. Estão hoje todos muito bem colocados nas redacções da capital. São chefes e fazem por isso. Deus os abençoe e lhes dê muito dinheiro.

(Texto escrito e publicado no dia 21 de Fevereiro de 2012. O jornal 24horas nasceu em 1998 e morreu oficialmente em 2010, um ano depois de os seus alegados responsáveis terem liquidado a sangue frio a Redacção do Porto. Podem limpar as mãos à parede. Mas tinha piada o pasquim, que até chegou a ser bem feito, e é a bíblia do jornalismo que hoje se faz em Portugal.)

Lúcio de Mendonça

Alice

Os seus olhos são como os das pombas,
sem falar no que está oculto dentro.



Cântico dos cânticos

Imagina um sorriso só de criança,
Todo candura, e junta-lhe a meiguice
De um sorriso de mãe; e tens ideado
O sorriso de Alice.


Imagina um olhar - mistério e sonho,
Cheio de luz, de glória, de doidice...
Com a sedução dos olhos da mãe d’água:
E tens o olhar de Alice.


Imagina uma grave melodia,
Tão doce como nunca mais se ouvisse,
Como nunca se ouviu na terra ainda,
E tens a voz de Alice.


Já viste como o cisne fende o lago?
Como desliza a névoa na planície?
Como anda na clareira a pomba rola?
É ver o andar de Alice.


Olha o macio pétalo corado
De rosa que de todo não abrisse.
O mimo da conchinha nacarada
É a boca de Alice.


Se um dia visses no alcantil dos cerros
A imaculada neve que caísse,
Verias, ai de mim! do que é formado
O coração de Alice.


"Alvoradas", Lúcio de Mendonça

(Lúcio de Mendonça nasceu no dia 10 de Março de 1854. Morreu em 1909.)

Vida de cão 30

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 9 de março de 2014

Quando me mandaram oferecer vinho ao Saddam

Isto foi para aí em 2002, portanto um ano antes da invasão do Iraque, e aconteceu quando chegou a Portugal a inesperada porém impactante notícia de que Saddam Hussein se perdia de amores pelo nosso Mateus Rosé. O meu jornal mandou-me logo escrever uma artigalhada sobre o momentoso assunto e comprar uma caixa do mais famoso vinho português para oferecer, "com um cartãozinho simpático", ao ditador de Bagdade. Perante a minha perplexidade telefónica a propósito da segunda parte do serviço, Lisboa explicou-me o jornalístico intuito da genial ideia, sufocando-me à nascença todos os mas: "Se o gajo nos responder depois a agradecer, é o máximo, dá uma capa fantástica. Mas se não disser nada... também dá uma coisa gira. Então vá..."
E eu fui. Comprei o vinho e escrevi o texto. Um texto pequeno que andava à volta disto: o Saddam gosta de Mateus Rosé. Era capaz de ter também alguma graça, já não me lembro, mas quando digo andar à volta é mesmo andar à volta, fazer chouriço, meter palha, usar e abusar da técnica de composição musical da variação (e fuga), porque a "notícia" não tinha mais nada para dizer, era oca por dentro. E foi manchete no dia seguinte.

(Permitam-me abrir aqui um parêntese pedagógico, para proteger os caros leitores da tentação de conclusões precipitadas e injustas acerca do meu jornal. Deixem-me esclarecer o seguinte: num certo sentido, o 24horas foi o precursor do jornalismo que hoje se faz em Portugal - um jornalismo de títulos, colorido e imaginativo, a que, para ser perfeito, só falta o pequeno pormenor da informação. Hoje os jornais portugueses são todos iguais ao 24horas. Uma diferença apenas os separa: o 24horas era, nos seus bons tempos, o melhor pior jornal do País; era um mau jornal muito bem feito. E ficava barato ao dono. Depois veio a rapaziada e tomou conta.)

Meti a caixa de vinho num armário da redacção. Eu já tinha aprendido que as geniais ideias vindas de Lisboa padeciam de tesão breve e alzheimer. Regra geral, no dia seguinte os nossos criativos e bem-intencionados chefes já não se lembravam das figuras tristes que nos tinham mandado fazer no dia anterior. E mandavam-nos fazer outras. Assim foi.
Em Dezembro de 2003 apanharam Saddam e eu pensei: "Agora é que era de lhe mandar o Rosé, para lhe animar o Natal na prisão". E deixei-me estar. O ex-presidente iraquiano foi executado três anos depois, como se viu no YouTube, e as garrafas lá continuaram no armário, até ao dia em que Lisboa veio ao Porto anunciar que o Porto ia fechar para salvar o jornal. Isto é, para salvar Lisboa. Começava o ano de 2009 e desfizeram-se de nós. Eu trouxe para casa duas garrafas do Mateus Rosé de Saddam Hussein.
O 24horas acabou por não se safar, mas "Lisboa" sim e é o que eu lhes estimo. As duas garrafas de Mateus Rosé ainda cá estão, a fazerem de pai e mãe de uma outra, de aguardente do Salazar, parece que engarrafada pelo próprio, como me garantiu, no acto da oferta, o sobrinho-neto do nosso estimado ditador. Estão bem umas para as outras, as garrafas. E os outros também.

(Texto escrito e publicado no dia 9 de Março de 2012. O jornal 24horas nasceu em 1998 e morreu oficialmente em 2010, um ano depois de os seus alegados responsáveis terem liquidado a sangue frio a Redacção do Porto. Podem limpar as mãos à parede. Mas tinha piada o pasquim, que até chegou a ser bem feito, e é a bíblia do jornalismo que hoje se faz em Portugal.)

Um mercado à antiga

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 8 de março de 2014

Dia da mulher

Um: - Hoje é dia da mulher.
O outro: - E a que horas é que ela vem?

João de Deus

Mal de pés

Certo patrício nosso brasileiro,
Depois de ter corrido o mundo inteiro
Ao voltar de Paris desenganado
Dos médicos, que tinha consultado,
Achou-se num wagon com um inglês,
O desgraçado tinha mal de pés.
E a última palavra da ciência
Era ir vivendo e tendo paciência.

Mostrou-se o
bife incomodado,
Fungando para um e outro lado...
Como quem busca o foco de infecção;
Diz-lhe o nosso infeliz compatriota,
A apontar-lhe com o dedo a bota
E exalando um suspiro de paixão:

- Eis a causa, senhor, eis o motivo!...
O que eu não sei é como ainda vivo!
Tenho gasto rios de dinheiro,
E sempre, sempre, sempre o mesmo cheiro!

E isto por ora vá!... mas alto dia
Quando aperta o calor... Virgem Maria!...
"E diga-me: em lavando os pés refina,
Ou sente algum alívio?"

- "Isso não sei,
Sei que tenho exaurido a medicina;

Mas lavar é que nunca experimentei."

Às vezes dá-se ao médico o dinheiro
Que se devia dar ao aguadeiro.


João de Deus

(João de Deus nasceu no dia 8 de Março de 1830. Morreu em 1896.)

O cão e o dono

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 7 de março de 2014

Quando me mandaram ligar ao Papa

Madeleine McCann desapareceu. E o desaparecimento da "pequena Maddy" foi o melhor que aconteceu ao meu jornal naquele ano de 2007. As notícias saíam que nem pãezinhos quentes, para delícia de um público ávido de drama, coscuvilhice e sangue cor-de-rosa. E se não havia notícias, "inventavam-se" notícias. O monstro precisava de ser alimentado e as vendas iam de vento em popa.
Uma vez o chefe mandou-me ligar ao Presidente da República, a todos os antigos presidentes da República vivos, ao primeiro-ministro, a todos os ex-primeiros-ministros vivos, ao presidente da Federação Portuguesa de Futebol, ao seleccionador nacional, aos presidentes e treinadores de FC Porto, Benfica e Sporting, ao Freitas do Amaral (já não me lembro como é que este apareceu na lista, mas ele aparece sempre), ao cardeal-patriarca de Lisboa e... ao Papa. "Ao Papa?", perguntei eu, só para ter a certeza. "Sim, pá! Liga ao Papa! Queremos um depoimento do Papa sobre o desaparecimento da Maddy". Foi assim, palavra de honra, que o chefe me respondeu.
Portanto tinha de ligar ao Papa. O resto era fácil, era como se já estivesse feito. Pelo prestígio, pelo rigor e seriedade, pela sua inatacável ética editorial, o jornal onde eu trabalhava tinha praticamente linha directa com aquela gente toda. Agora Sua Santidade, isso, sim, era um desafio. Claro que eu podia enfiar-me no bar o dia inteiro a "tentar ligar ao Papa" e à hora do fecho avisava o chefe, em Lisboa, de que "Não consegui, pá, desculpa, o gajo armou-se em difícil, não fala, eu ainda disse que ia da tua parte, mas nem assim o tipo se descoseu, sabes como são os alemães, teimosos de merda". Porém eu não frequentava o bar.
Pensei então: o que é que há de mais parecido com o Papa e a que eu possa realmente chegar? E lembrei-me: o cardeal português D. José Saraiva Martins, que também estava em Roma como o outro e creio que ainda era prefeito da Congregação para as Causas dos Santos. Meti as mãos ao caminho, fiz chamada atrás de chamada e ao fim da tarde consegui enfim falar com ele. Atendeu-me cheio de bondade e essessss nassss palavrassss. Conhecia o caso e deu-me a sua opinião numa conversa de quase um quarto de hora. Falou-me da menina desaparecida, disse-me que rezava por ela, mas lembrou, com lucidez e sabedoria, que é fundamental que os pais não se ponham a jeito (a expressão é minha) para que semelhantes tragédias aconteçam. Vocês também percebem, tal como eu percebi, para quem é que o nosso cardeal enviava este recado...
No fim, D. José Saraiva Martins fez-me um pedido: "Olhe, depois mande-me o jornal, se faz favor". E eu mandei. O meu jornal era o 24horas. Exactamente. O jornal com as gajas todas boas e as mamas ao léu. Deve ter sido um sucesso no Vaticano.

(Texto escrito e publicado no dia 24 de Fevereiro de 2012. "Liga ao Papa!" foi o título que então lhe dei. O jornal 24horas nasceu em 1998 e morreu oficialmente em 2010, um ano depois de os seus alegados responsáveis terem liquidado a sangue frio a Redacção do Porto. Podem limpar as mãos à parede. Mas tinha piada o pasquim, que até chegou a ser bem feito, e é a bíblia do jornalismo que hoje se faz em Portugal.)

quinta-feira, 6 de março de 2014

O senhor velocipedista

Foto Hernâni Von Doellinger

Silva Ramos

Astros e lampiões

Nas noites de Veneza, quando a lua nova envolve numa cúpula de luz o zimbório de Santa Maria dela Salute, e as proas recurvas das gôndolas vão cortando o cinto de lhama bordado no azul do Adriático, podem ouvir-se, acompanhados a mandolim, cantos como este:

Amici, la notte é bella,
La luna va spontare;
Di cá, di lá, per la cittá
Andiamo a franottare.


Aqui, nesta Veneza americana, quem quiser divagar, por noites de luar, o instrumento de que se deve munir não é o mandolim, é o apito. E isto porque os legisladores provinciais têm da lua esta elevada compreensão: que ela foi criada com o fim meramente econômico de evitar aos municípios grandes dispêndios de luz, e, em virtude desta idéia conspícua, estabelecem e determinam que a cidade se abstenha de dar-se ao luxo de uma iluminação, em noites de luar.
Mas, meus senhores, é necessário que se atenda a que nesta Veneza não são simplesmente os ais das Desdêmonas que nos podem atravessar o coração, são também as facas das capoeiras que nos podem perfurar os intestinos. Demais, os gondoleiros vogam assim, por noites de lua, porque, como diz a trova, contam que, das janelas:

uma flor caderá á ... á ...

Ora, ninguém nos afiança que seja precisamente uma flor o que nos cairá na cabeça, em uma noite de luar, na rua Direita.
(...)

Silva Ramos

(Silva Ramos nasceu no dia 6 de Março de 1853. Morreu em 1930.)

quarta-feira, 5 de março de 2014

A ver navios 17

Foto Hernâni Von Doellinger

Quando for pequeno quero ser

"Quando for pequeno, quero ser palhaço e astronauta", disse o ancião, sonhador e triste. Com efeito, aquela sociedade funcionava às arrecuas: nascia-se velho e morria-se a chupar no dedo. Era naturalmente governada por garotos.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Bulhão Pato 2

Confissão

Fui na infância católico exaltado;
Tudo era para mim edificante,
Ver o altar, ver o trono cintilante,
Ouvir na igreja a voz do órgão sagrado!

Foi-se apagando o amor arrebatado,
E a ciência levou-me num instante,
Com o sopro glacial e penetrante,
O edifício de luz do meu passado!

Deitei-me aos pés dos grandes missionários,
Na eloquência e na fé extraordinários;
Nenhum deles me deu sombras d’esp’rança!

Ó crenças infantis, talvez agora
Volteis a mim ardentes como outrora:
Diz-se que um velho torna a ser criança!...


Bulhão Pato

(Bulhão Pato nasceu no dia 3 de Março de 1828. Morreu em 1912.)

Lugares-comuns 135

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 2 de março de 2014

Lições de História 6: Marx

Depois de ter inventado o comunismo, Marx fez comédia em Hollywood, cantou "A mula da cooperativa", foi candidato à Presidência da República e abriu um restaurante em Fafe. Actualmente diz piadas na rádio e joga a defesa direito no Benfica.

Estou mesmo a ver o filme 10

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 1 de março de 2014

O pregador

O pregador subiu ao púlpito, e os seus passos seguros, pesados, degrau a degrau, ecoaram em stereo litúrgico na igreja confortavelmente vazia. Estranho... Dizia-se que era o melhor pregador da região.
O pregador não iria, porém, deixar os seus créditos por mãos alheias. Compenetrado mas decidido, agarrou nas três tachas que levava na ponta da língua, sacou do martelo que trazia à cintura, e em menos de um padre-nosso já tinha consertado a estante que o sacristão escangalhara sem querer nas arrumações da missa das sete.