quarta-feira, 12 de março de 2014

Ligue-me quando estiver noutro jornal

Trabalhar no meu jornal era obra desenganada. As pessoas que contactávamos sabiam que, se falassem, tudo o que dissessem podia ser usado contra elas. (Como na América e nos filmes.) E geralmente era. Nem que lhes telefonássemos apenas para perguntar as horas, havia de sair dali cagada da grossa. Nós depois ligávamos a ventoinha. O 24horas era assim, fugia-lhe o pé para a escandaleira. Se não houvesse sangue, os meus chefes tratavam disso. Para os mais distraídos perceberem: estão a ver como são agora todos os jornais? Pronto, o meu jornal é que começou.
Portanto tínhamos muito poucas "fontes". As pessoas minimamente informadas fugiam de conversar connosco como o diabo foge da cruz. Umas tinham vergonha na cara ou medo e outras desprezavam-nos simplesmente. Umas e outras sabiam que as nossas perguntas tinham quase sempre volta de foda. Se desse jeito, pedíamos a A para falar de B, para a seguir metermos A e B no mesmo saco e malharmos nos dois como se fossem um só. O jornal escolhia os seus alvos e gastava a pólvora toda (seca, por norma) enquanto a coisa vendesse. Mas é preciso que se diga: isto de eleger "inimigos" e disparar até cair para o lado foi uma herança recebida de Paulo Portas, do tempo em que o actual vice-primeiro-ministro era director do semanário Independente e fazia a vida negra ao Cavaco primeiro-ministro e respectivos ajudantes no Governo. O das feiras é que inventou esta receita de sucesso e gabava-se disso. O seu a seu dono.
No meu jornal, Lisboa encarregava-se de fechar as portas às quais nos mandava depois bater, aqui do Porto. Levávamos quase sempre com a porta no nariz. As pessoas respondiam-nos torto, muito torto, era o pão-nosso de cada dia. Uma vez calhou-me o Sócrates, nas vésperas de ganhar as primeiras eleições. Lembram-se do génio do gajo? Pois é. Foi uma discussão das antigas, mas essa história merece prefácio à parte e hei-de contá-la quando os linchadores de aviário sossegarem a parreca e largarem os tomates ao homem. Os outros malcriados não merecem que lhes diga os nomes.
Claro que a grosseria não era geral. Havia também pessoas que muito simplesmente se recusavam a falar-nos mas sem baixarem o nível. O bom do Raul Solnado (1929-2009), Luís Represas, o actor José Pedro Gomes, são dos que me lembro agora que escrevo. Nenhum dos três me conhecia, mas, depois de me ouvirem educadamente, foram igualmente atenciosos na nega. Disseram-me: "Desculpe, Hernâni, não é nada de pessoal consigo, portanto ligue-me quando estiver noutro jornal. Então conversaremos do que quiser". Agradeci sinceramente a franqueza e a urbanidade. E pedi desculpa eu. Eu sabia que eles tinham razões.
Era vida difícil. Num jornal que precisava da "opinião" dos "famosos" sobre tudo e sobre nada. A propósito da Marisa Cruz nua num filme ou por causa do Fidel Castro que passou a pasta ao irmão. A minha sorte é que acabava sempre por encontrar uma alma caridosa que me ajudava a ganhar o dia. Gente que sabia o que era o 24horas mas que, fosse por que razão fosse, nunca me deixou ficar pendurado: gente como Marcelo Rebelo de Sousa e Júlio Magalhães, os empresários e portistas Pôncio Monteiro (1940-2010), Manuel Serrão e Rui Moreira, hoje presidente da Câmara do Porto, os estilistas Miguel Vieira, Katty Xiomara, Luísa Pinto e Gio Rodrigues, os juízes Rui Rangel e Eurico Reis, o fiscalista Saldanha Sanches (1944-2010), Valentim Loureiro (o meu cromo da sorte), Júlio Isidro e Joaquim Letria, que também eram da casa, Tozé Brito, Luís Filipe Barros, José Cid, o humorista Nilton, Octávio Machado, Francisco José Viegas, Manuel Luís Goucha, José Carlos Malato, Jorge Gabriel, Hélio Loureiro, Paulo Teixeira Pinto e mais uns poucos de que injustamente me estou a esquecer. Eram sempre os mesmos e a minha tábua de salvação. O meu piquete de emergência.
Cada qual lá teria os seus motivos. Alguns, tenho a certeza, era mesmo uma questão de bondade. Fiquei agradecido a todos. De vez em quando pago-lhes aqui com umas ripeiradas. É este maldito 24horismo que não há maneira de me passar.

(Texto escrito e publicado no dia 31 de Março de 2012, só actualizei os cargos ao Portas e ao Rui Moreira. O jornal 24horas nasceu em 1998 e morreu oficialmente em 2010, um ano depois de os seus alegados responsáveis terem liquidado a sangue frio a Redacção do Porto. Podem limpar as mãos à parede. Mas tinha piada o pasquim, que até chegou a ser bem feito, e é a bíblia do jornalismo que hoje se faz em Portugal.)

6 comentários:

  1. Quando se gosta do que se faz é isto que nos acontece! Sempre a recordar! E que bem nos faz, acontece que ninguem nos imagina como somos verdadeiramente, mas aos que irao ler posso jurar que este ( ex ) jornalista é sobretudo um Bom Homem e de Grande Coração, nunca precisando de assinatura nas noticias para ser alguem!
    Abraço Miguel

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  2. Só para dizer que passo por aqui todos os dias, mas apenas raramente, como agora, comento. Um pouco como quem lia o 24 Horas escondido no interior do Público.

    Abraço

    PES

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    1. Obrigado, amigo PES, pelas visitas e por este comentário. Abraço.

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  3. Hernâni, confesso que não era leitor do 24 horas apesar de saber que tu estavas lá.
    Era um projecto que, de facto e infelizmente, fez escola e que hoje vemos reproduzido em quase toda a comunicação social, independentemente da plataforma utilizada.
    Lamento discordar contigo mas, em minha opinião, esse estilo foi inaugurado pelas televisões.
    Um abraço,
    RG

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