quarta-feira, 31 de julho de 2024

Chamavam-lhes "Águias-Clok"

No tempo do Valença, do Castro, do Cândido, do Leitão ou do Albano, só para nomear alguns, chamavam "Águias-Clok" à equipa de reservas da AD Fafe, isto é, aos crónicos suplentes e outros supranumerários que, a meio da semana, faziam o habitual "treino de conjunto" contra os titulares. "Águias-Clok", chamavam-lhes, era no gozo, dito e repetido até à exaustão, uma espécie de praxe para deixar bem vincada, de cima para baixo, a diferença entre os jogadores de futebol, os verdadeiros jogadores de futebol, e os "ciclistas", os "jogadores de futebol" que apenas corriam, atrevidos a quem a bola eventualmente estorvava, isto lá na gramática deles, e todos se entendiam, que remédio, sobretudo do lado dos mais novos.
Na verdade, Águias-Clok foi uma equipa de ciclismo que existiu mesmo, ligada ao histórico Clube Desportivo "Os Águias", de Alpiarça, com o patrocínio da cerveja Clok, Águias-Clok, portanto, um projecto desportivo meteórico que apareceu em 1977, fez a Volta a Portugal de 1978, com resultados até bastante interessantes, mas desfez-se logo no final desse mesmo ano. E não pensem que era um grupo de aleijados, nada disso, daquele plantel irrepetível faziam parte nomes tão marcantes da velocipedia nacional como Marco Chagas, Alexandre Rua, António Marçalo, Joaquim Carvalho, Joaquim Andrade ou Jacinto Paulinho, entre outros.
Pois em Fafe, no campo de futebol, "Águias-Clok" eram "os mais fracos", os "ciclistas" da bola, os das reservas, ex-juniores e outros jovens, maioritariamente fafenses, à procura ou à espera de uma oportunidade. A brincar, a brincar, o rótulo fora-lhes colado pelos mais velhos, os "craques" da equipa principal, quer-se dizer, os instalados da vida, sei lá eu se com receio de que algum dos miúdos, mais capaz e afoito, se lembrasse de repente de lhes roubar o lugar e as mordomias concomitantes.
Lembro-me do Moreno e do Tintas. Lembro-me de muitos mais jovens e promissores jogadores desse tempo, na nossa AD Fafe, para prefiro passar os olhos apenas pelas histórias do Moreno e do Tintas, a título de exemplo e porque eram ambos das minhas confianças. Que injustiça chamar-lhes "ciclistas"! Eram bons de bola, os dois, ainda que completamente diferentes um do outro, o Moreno, médio levezinho, com visão, habilidade e passe, e o Tintas, defesa lateral, mais físico e irreverente, às vezes rematador. O Moreno, se não estou em erro, ainda passou pelo Vianense e voltou, e o Tintas, que chegou a prestar provas no FC Porto ou andou por lá perto, era a vítima preferida do treinador Júlio Teixeira, que também padecia de uma grande pancada, chutava descalço, falava pelos cotovelos e dava a táctica para a bancada.
Se o Tintas e o Moreno engataram depois um percurso particularmente brilhante como jogadores de futebol, coisa constada, pelo menos ao nível dos cinco nomes lá de cima? Isso parece-me que não, ou então estarei mal informado. O Moreno e o Tintas tinham todas as capacidades físicas e técnicas para o sucesso, para altos voos, mas faltava-lhes, estou em dizer, um bocadinho de vocação. Um bocadinho assim. Talvez, ao fim e ao cabo, eles não estivessem realmente para ali virados.
Se, por causa do futebol, o Moreno e o Tintas foram, em última análise, dois excelentes ciclistas que se perderam? Não creio. Atleticamente falando, o Tintas desembaraçava-se com assinalável destreza no bilhar do Café Arcada, disso lembro-me bem, mas também não sei se seguiu carreira...

Há aqui qualquer coisa que

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 30 de julho de 2024

Amigo do peito

Ele tinha 36 anos e gostava muito de mamar. A namorada despediu-se do emprego para poder amamentá-lo de duas em duas horas. Palavra de honra. Veio nos jornais.

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Amigo ou Dia Internacional da Amizade. E amanhã é Dia Mundial da Amamentação.

Esta mania das grandezas

Para o Guinness
E finalmente colocou a melancia
em cima do bolo. Era um bolo
para o Guinness, é preciso que se note...

Portugal tem a Maior Renda de Bilros do Mundo, o Maior Arroz de Lapas do Mundo, a Maior Aula de Judo do Mundo, a Maior Aula de Surf do Mundo, a Livraria Mais Antiga do Mundo, o Maior Sobreiro do Mundo, a Maior Sardinhada do Mundo, o Maior Assador de Castanhas do Mundo, a Maior Concentração de Motas Antigas do Mundo, o Maior Pão com Chouriço do Mundo, o Maior Número de Não-Mágicos a Fazer Um Truque de Magia Num Único Local, a Maior Largada de Bolas do Mundo, o Maior Castelo Insuflável do Mundo e um Megaprato de Bacalhau Dourado que é o maior do mundo, tudo devidamente homologado pelo Livro dos Recordes do Guinness. Tem igualmente o Jornal Mais Pequeno do Mundo, a Maior Distância Percorrida em Cadeira de Rodas por 24 Horas, a Maior Omeleta do Mundo, a Maior Colecção de Garrafas de Uísque do Mundo, o Maior Número de Aviões de Papel Lançados Simultaneamente, o Maior Logótipo Humano do Mundo, o Maior Número de Horas Seguidas a Tocar Bateria, a Maior Onda Surfada, o Maior Número de Toques Numa Tecla de Piano Num Minuto e o Aplauso Mais Ruidoso do Mundo. Para além disso, tem ainda o inesgotável Cristiano Ronaldo, que, só à sua conta, dá ao país mais de trinta recordes, sem exagero. Com exagero, serão mais de cem...
E apenas falando em cometimentos nacionais que não metem polícia nem dão cadeia, como são os casos, por outro lado, do tráfico humano, da corrupção generalizada, da incompetência política e do desbarato dos dinheiros públicos, que isso então, upa upa, ninguém nos agarra. Pois é. Somos um país pela medida grande.
É também nosso, e oficialmente certificado, o Maior Andor do Mundo: costuma sair à rua na Aparecida, em Torno, Lousada, a meio de Agosto. O famoso andor mede de alto quase 23 metros, pesa tonelada e meia e é transportado, diz-se, por mais de cem homens do sexo masculino. Aqui há uns anos, durante a procissão, o maior andor do mundo virou, caiu e feriu sete pessoas, número que infelizmente ficou muito longe de constituir recorde. E seria mais um para a conta. O desastre estava, no entanto, previsto: Deus, que gosta pouco de abusos de confiança, já se sentira incomodado com a Torre de Babel, e armou a confusão que se sabe...
Eu se fosse aparecidense - aparecidense e festeiro - e também tivesse a vaidade de pôr o nome da terra no índice do Livro dos Recordes, seria porém mais modesto, terreno e prático do que os construtores em altura. E não ia muito longe. Ficava-me ali pelas redondezas da capela e chamaria os do Guinness para provarem o cabrito assado no forno da Pitarisca. Evidentemente o melhor cabrito assado do mundo, estou farto de dizer, e não é preciso usar capacete.

(Na Aparecida, por alturas da romaria, compram-se nas tendas de feira sapatos muito jeitosos e vitalícios para se ir a casamentos de sobrinhos. As Festas da Senhora da Aparecida são, este ano, de 9 a 15 de Agosto. A "Majestosa Procissão", com o "Tradicional Andor Grande", sai a 14, uma quarta-feira.)

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Bordado. Não sei de que é que Portugal está à espera...

O escalador

Os expertos apontavam-no como o grande escalador para esta Volta a Portugal. Mas a verdade é só uma: passaram-lhe para as mãos um robalo, e ele nada, entregaram-lhe um rodovalho, e ele nicles, deram-lhe até um chicharro, e ele sem saber que volta dar-lhe. A montanha parira um rato. Ele, disse ele, afinal era mais douradinhos da Iglo... 

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Medievais, mas pouco

Foto Hernâni Von Doellinger

É extraordinário o que se consegue comprar numa feira medieval. Artigos tão antigos e tão avançados para aquele tempo, tão modernos, tão actuais - mas qual idade das trevas, qual quê! Se um destes dias, na próxima feira medieval, encontrar à venda telemóveis, carros eléctricos ou camisolas do Ronaldo, não fico nada admirado...

Idade Média

A Idade Média, ao contrário do que o próprio nome parece indicar, foram duas: a Baixa Idade Média e a Alta Idade Média. Diferenciam-se, evidentemente, pela altura.

Por outro lado. A idade média em Portugal, segundo dados oficiais, rondará os 46,8 anos e será a segunda mais elevada entre os vinte e sete países da União Europeia. Portugal é, aliás, líder europeu do aumento da idade média nos últimos dez anos - com mais 4,4 anos -, eu não faço ideia se isto é bom ou é mau cá para o pessoal, mas acho que pelo menos devia dar medalha.

domingo, 28 de julho de 2024

O Grosso da Coluna e o Maciço Central


A diferença entre o Grosso da Coluna e o Maciço Central pode resumir-se assim: o primeiro é corredor de bicicletas e o segundo joga no eixo da defesa, como agora se diz. E o que têm em comum o Grosso da Coluna e o Maciço Central? Fisicamente falando, pertencem ambos à família dos Armários.

Não era evidentemente o caso de Herculano Oliveira, no retrato, um poderosíssimo lingrinhas a quem chamavam "Andorinha das Penhas", uma levandisca com pedais, peso-pluma voador, digo eu, capaz até de bater Joaquim Agostinho na subida à serra da Estrela, quer-se dizer, às Penhas da Saúde, e é daí que lhe vem o cognome, o qual, dito assim a quem é, tem tanto de ornitológico como de justo.
Naquele tempo, os ciclistas eram-nos contados pela rádio, com muito emoção e, às vezes, algum atraso. Ouvidos, os ciclistas eram o fim do mundo em cuecas, eram trinta por uma linha, eram tudo e mais capaz alguma coisa e também "ases do pedal", "bravos do pelotão" ou "gigantes da estrada", nome que lhes assentava tão bem e que agora parece que está reservado aos SUV e aos camiões TIR, para além da Brisa e outras mais modestas correntes de ar mensais.
Herculano Oliveira era do Sangalhos, é património do grande Sangalhos - uma potência velocipédica de que decerto os mais novos nem fazem ideia -, mas também passou, entre outras equipas, pela Coelima e fez carreira internacional. Nas décadas de sessenta e setenta, foi 4.º na Volta a Portugal, 22.º na Volta a Espanha e 45.º na Volta a França. Posso dizer, só para me gabar, que, em mocico, estive às vezes à beira dele?...

Os gigantes da estrada

Foto Hernâni Von Doellinger

Natureza de conserva

Ele era um acérrimo defensor da conservação da natureza. Em lata, mas sobretudo em frasco e em plástico.

P.S. - Exactamente. Hoje é Dia Nacional e Mundial da Conservação da Natureza.

sábado, 27 de julho de 2024

O Velho Lau e o Lausperene

Foto Tony Dias/Movephoto

Que fique assente de uma vez por todas: o Velho Lau e o Lausperene não são uma única e mesma pessoa, como muito boa gente cuida, e, aliás, Lausperene nem sequer é pessoa. O Lausperene, ou Sagrado Lausperene, é a exposição e adoração permanente do Santíssimo Sacramento nas igrejas ou capelas. O Velho Lau é Venceslau Fernandes, ex-ciclista realmente de longeva carreira e pai da triatleta Vanessa Fernandes, Velho porque ganhou a Volta a Portugal de 1984, tinha então 39 anos, e correu até aos 46, derivando talvez daí, de tanta perenidade, a compreensível confusão...

Claro que vi Venceslau Fernandes em acção. Com as camisolas da Ambar, do Sangalhos, do Benfica, do FC Porto, da Ajacto e outras de que menos reza a história. E lembro-me até do Cedemi, embora a minha memória não consiga fazer a ligação ao Velho Lau. Evidentemente também frequentei Sagrados Lausperenes no meu tempo, mas isso, se fosse a contar, já seriam outros quinhentos...

Trepadores "honoris causa"

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Flores ao solheiro

Um restinho de sol e lá se sentavam elas comparando doenças e façanhas de netos havidos ou inventados. Rosa, Violeta, Hortênsia, Margarida, Dália, Açucena - evidentemente no jardim imaginário, ao entardecer da vida...

Trunfo é paus

Quatro tigres-de-bengala. Jogam sueca e contam antigamentes, na fresquinha do jardim que nunca lhes puseram.

Troca-se neto por um cão!

Três rapazes nos arrabaldes dos sessenta anos bem servidos, certamente amigos de longa data, gente bem, meninos da Foz no seu tempo, fazem o costumeiro passeio higiénico matinal na avenida à beira-mar. O da esquerda empurra um carrinho de bebé com uma vaidade que só vista, e é bonita de se ver. Os outros dois vão à rasca até às orelhas, envergonhadíssimos com "a situação", evitam ser reconhecidos por quem passa, como por exemplo eu, que não os conheço de lado nenhum, mais desconforto era impossível. O da direita puxa o do meio pela manga e diz-lhe, tapando a boca com a mão, como fazem agora os treinadores e jogadores de futebol quando querem falar da mãe de alguém e sabem que há câmara de televisão por perto: - Se inda ao menos fosse um cão, um canito! Agora o caralho do neto...
Não é metáfora política. É a vida.

P.S. - Hoje é Dia Mundial dos Avós.

A felicidade das galinhas

Nos intervalos das transmissões da Volta a Portugal em Bicicleta, na RTP, passa muito um reclame aos Ovos Matinados, ditos "os ovos das galinhas mais felizes de Portugal". Felizes? As galinhas? Aos engraçados autores da tirada publicitária, proponho um breve exercício. Tentem pôr um ovo XL com um cu do tamanho de um cu de galinha, ou mesmo com um cu do tamanho do cu que têm, se não for escandalosamente exorbitante, e depois venham-me falar de felicidade...

Um dia de cada vez

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Volta a Portugal em bicicleta!

- Volta a Portugal! Volta a Portugal em bicicleta! - pediu-lhe insistentemente a mulher, num derradeiro telefonema de aflição. E ele voltou. Mas veio de carro.

quarta-feira, 24 de julho de 2024

A Milinha Modista

Foto Tarrenego!

A Milinha Modista era uma instituição no Santo Velho. Chamava-se Milinha Modista, Milinha Costureira ou Milinha Parola, e esta parte do Parola eu nunca percebi porquê, não sei de onde veio, porque a Milinha vestia elegantemente e era uma senhora cheia de classe, sobretudo se não a obrigassem a abrir a boca. Esta Milinha chamava-se estes nomes todos para se distinguir da outra Milinha da nossa rua, a Milinha Vaqueiro, que eu suspeitava, com fundamentadas razões, que fosse dona de uma empresa de margarinas, entre outros negócios mais ou menos secretos. Ela e o Sr. Manuel, o marido, de quem se dizia que era o sapateiro de Salazar e que realmente saía muito, de comboio, com um embrulho debaixo do braço, e sempre se me afigurou um homem misterioso, gentil e triste.

Durante muitos anos eu confundi Agatha Christie com Miss Marple. Quero dizer, a cara de Agatha Christie era, para mim, a cara da veterana actriz inglesa Margaret Rutherford, e só já em adulto é que desfiz o equívoco, perante o verdadeiro retrato da famosa autora de romances policiais, porventura descoberto na badana de um livro. Mais curioso ainda é que, em Fafe, eu mantinha sob apertada vigilância meia dúzia de velhas senhoras que eram Miss Marple de certeza absoluta, por mais que tentassem disfarçar. Senhoras antigas, amiúde intrometidas, vestindo com quase cinquenta anos de atraso, senhoras assim como a minha Milinha Vaqueiro ou as manas Grilas em dias de maior asseio. Fafe era mesmo assim, havia de tudo. Fafe era o mundo inteiro, e essa foi a minha sorte.

A Milinha Modista morava por baixo do Chico Varandas, o herói da nossa rua, o vizinho que uma vez, pelas Festas da Vila, desafiou para a pancada o macaco do Homem Mais Forte do Mundo em pessoa. O prédio do Chiquinho era mesmo encostado à nossa casinha amarela, do lado direito de quem olha para fora. No lado esquerdo era a Milinha Vaqueiro. Os três quintais também eram contíguos e aos olhos uns dos outros. As Milinhas não se davam e a minha mãe é que intermediava.
A Milinha era uma excelente costureira, renomada, muito procurada e disputada pelas mais finas damas da melhor sociedade fafense, que, com excepção da Nicinha, tinham de mandar recado, marcar vez e ir para a fila. A Nicinha, mãe do ilustre Eugénio Marinho, era como se fosse família e, verdade seja dita, uma jóia de pessoa.
A Milinha era mestra. E tinha aprendizas. Isto é, aceitava aprendizas, e também era imensa a lista de candidatas e pedidos metidos pelos pais, com recomendações, empenhos, peitas e tudo, mas só três ou quatro, à vez, seriam as infelizes contempladas. Não eram empregadas nem recebiam salário, pelo contrário, eram crianças e aprendizas para todo o serviço, mulheres a dias, cozinha incluída. E eram também senhoras da limpeza, a vassoura, esfregão e espanador, com especial cuidado ao pó dos grossos figurinos marcados com nomes, medidas, datas e amostras de tecidos, autênticos calhamaços da penúltima moda criteriosamente dispostos em cima da mesa da sala de entrada. A Milinha era uma mestra enciclopedista, exigente e severa com as suas pupilas.
Na sala de costura, as aprendizas aprendiam sentadas em banquinhos ou cadeirinhas de madeira e infantário, trabalhando em cima de uma tábua ou prancha tenteada em cima dos joelhos, uma tábua ou prancha digamos hoje em dia que ergonómica, com recorte em meia-lua para a reentrância da barriga, e que decerto até teria nome técnico mas eu não sei qual. Na cozinha, as aprendizas cozinhavam todos os dias na máquina a petróleo e faziam pelo menos uma vez por semana fanecas fritas com batatas fritas, um oxímoro culinário, a bem dizer, cozinhavam mas não comiam, e sei disto tudo porque era visita regular talvez para recados e porque a minha irmã Nanda também por lá andou, coitadinha, antes de ir para a Fábrica do Ferro, que foi a sua salvação.
A Milinha era "dos do Santo", irmã do Sr. José e do Sr. António, lavradores filósofos e meus mestres de vida, e tia do David Alves. Tinha um feitio desgraçado, a mulher. Mal ouvia uma bola a pinchar da rua, saía como um raio de tesoura de costura em riste, a tesoura maior, de corte, e mais algumas caralhadas, ameaçando estraçalhar o esférico à menor tangente, à mínima corrente de ar que sentisse ou adivinhasse junto aos seus vidros, pelos quais nutria uma estima que efectivamente só vista. Se por acaso me descortinava lá no meio da moçarada e do jogo, eu a tentar esconder-me, a Milinha ficava um tudo-nada constrangida, notava-se, mas o que estava dito, estava dito, virava costas e ia para dentro, não sem antes nos lançar um derradeiro e definitivo - Fodei-vos!...

A Milinha adorava-me e eu gostava muito dela. Convidei-a e ela veio ao meu casamento, no Porto. Quando, nos anos seguintes, a minha mulher e eu íamos a Fafe, e íamos frequentemente, não tornávamos a casa sem antes passarmos pelo Santo e visitarmos a Milinha, que nos recebia cheia de orgulho e com uma alegria imensa, sentando-nos à volta da velha mesa dos antigos figurinos. A alegria era recíproca, nós também tínhamos muito gosto em estar com a Milinha. Uma vez, nesses reencontros, estive para lhe explicar que fanecas fritas com batatas fritas não é coisa que se faça, mas contive-me e falei antes do tempo. Fiz bem. Na verdade, confesso, tive medo de ser corrido à vassourada...

P.S. - Publicado ontem no meu blogue Fafismos, assinalando o Dia do Alfaiate e da Modista.

terça-feira, 23 de julho de 2024

Como mandava o figurino

Foto Vintage Everyday

Um homem saía de casa com fato novo, sapato engraxado, talvez flor na lapela e até chapéu, que eu ainda sou desse tempo, e na rua diziam-lhe - Eh pá, estás todo tirone! E quereis saber? Era um elogio, melhor cumprimento era impossível para começar bem o dia. Falava-se assim em Fafe, mas este aqui não era um falar exclusivo nosso, fafês autêntico, seria, antes, de uso particularmente nortenho, isso estou em crer que digo bem.
O termo, tirone, remonta certamente a meados do século passado e virá do cinema, do famoso e elegantérrimo actor americano Tyrone Power, que fazia então um enorme sucesso sobretudo entre o público feminino. A estrela apagou-se, o galã acabou por desaparecer, mas ficou o nome, a alcunha, esta espécie de adjectivo a calhar tão bem aos vaidosos sessentões fafenses, tirone, sinónimo de elegante, bem-posto, aprumado, chique, catita, peralta, peralvilho, casquilho, janota, pimpão, boneco, emperiquitado, dândi, indivíduo bem vestido com o seu quê de preciosismo, bem ajambrado, que veste à moda, nos trinques, como se diz agora no português das telenovelas brasileiras.
Em Fafe, naquele tempo, as pessoas ricas vestiam muito bem. Ou então as pessoas ricas vestiam bem em todo o lado, mas eu não sabia, porque eu só conhecia Fafe e, como mundo, Fafe bastava-me. A minha mulher ri-se quando repetidamente lhe conto, com todos os pormenores e mais um, como as pessoas ricas de Fafe vestiam bem, os casacos assertoados ou em tweed ou em linho, os blazers azuis, as calças em lã, com pinças e dobra em baixo, muito vincadinhas, ou em terilene cinzento, que era uma novidade, as camisas triple marfel, os sapatos italianos clássicos, com sola alta de Inverno e com sola baixa de Verão, os sobretudos impecáveis, esculturais, colados ao corpo, as gabardinas double-face, o guarda-chuva irrepreensivelmente enrolado, londrino até dar com um pau, porém comprado na selecta Chapelaria Antunes, e os lenços e as gravatas e os perfumes e a cigarreira e o isqueiro pelo menos de prata e às vezes a boquilha, eles realmente todos tirones, como mandava o figurino, e nós de calças de cotim remendadas no cu e nos joelhos, os pés arrastando chancas e uma vergonha enorme de sermos pobres.
Regra geral, os homens de Fafe eram uns fidalgos, por assim dizer ou parecer, pelo menos aos domingos, feriados e dias santos, casamentos, comunhões e baptizados, ida às sortes, idas à feira, visitas à madrinha, idas às putas, excursões a Fátima e ao Portugal dos Pequenitos, e muito particularmente, por maioria de razão, nas datas maiores dos 16 de Maio e da Senhora de Antime. Aí então, não é para os gabar, apresentavam-se como manda o figurino e com todos os matadores.

É preciso que se diga que Fafe tinha uma colecção de alfaiates de altíssimo coturno, e espero falar deles com mais vagar um destes dias. Os nossos tirones iam ao alfaiate, tinham alfaiate privativo, escolhiam modelo, cor e tecido, e vestiam-se por medida. Mas não iam à Riopele comprar o corte, atenção, isso era para os remediados. Por outro lado, os fatos prontos a vestir chegaram às excelentíssimas Lobas já em plena década de setenta, eram Corte Inglés, eu bem lhes namorava a montra, como boi olhando para palácio, mas aquilo também ainda não era para nós. Nem para os tirones fafenses, que, classe acima de tudo, continuaram a preferir a exclusividade, o serviço personalizado e impecável da nobre alfaiataria local, honra lhes seja. Só depois é que vieram as calças vermelhas, os pulôveres amarelos ou cor-de-rosa pelas costas e os sapatos com berloques...

Em todo o caso, Tirone também foi um nome regularmente usado em Fafe para cães. Mas, quanto a isso, não sei que diga.

P.S. - Hoje é Dia do Alfaiate e da Modista.

La poubelle, for her

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 22 de julho de 2024

O topa-a-tudo

Viu um anúncio a pedir idiotas e lá foi ele. Estava no fundo do desemprego e respondia a todos os anúncios.

Dão-se alvíssaras

Perdeu a cabeça e pôs anúncio no jornal. Faz-lhe muita falta.

Quem sai aos seus

Deixe de ser parvo, disse o palerma. E você deixe de ser palerma, disse o parvo. Palerma é melhor que parvo, disse o palerma. Parvo é que é melhor que palerma, disse o parvo. Quem disse, perguntou o palerma. O meu pai, respondeu o parvo. O seu pai é parvo, disse o palerma. E o seu é palerma, disse o parvo. Mas o meu pai é mais palerma que o seu, disse o palerma. E o meu é mais parvo que o seu, disse o parvo. Mas não é palerma, disse o palerma. Nem o seu é parvo, disse o parvo. Dah!, disse o palerma. Dah!, disse o parvo.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Cérebro.

domingo, 21 de julho de 2024

Havia de ir longe, mas não fui...

Foto Tarrenego!

Descíamos no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo. Era aquela caloraça das ilhas, aquele esplêndido exagero de luz, o ar quase sólido que sufoca a respiração dos menos habituados, o bom odor de salsugem, que peço emprestado ao mestre. Eu de barrete branco enfiado na cabeça e lenço tabaqueiro atado ao pescoço, as barbas suando em bica, ele no seu fato impecável, o laço "de fazer" milimetricamente composto, dizia-me "Oiça lá, você parece o Hemingway!...", e soltava uma enorme gargalhada, exabundante, para ser ouvida pelos passantes e sobretudo pelas passantes, porque, estivesse onde estivesse, sempre fez questão de que se soubesse, sobretudo elas, que por ali andava o famoso Baptista-Bastos.
Andávamos ambos, mas evidentemente eu era invisível. Tínhamo-nos conhecido alguns anos antes, numa viagem à Irlanda. Eu iniciante no ofício e ele O Grande BB, nesse tempo ainda intrépido "praticante do desporto líquido", como gostava de dizer, e contador ininterrupto de extraordinárias histórias que outros jornalistas da capital desmereciam por inveja. Diziam-lhe nas costas que ele inventava reportagens e entrevistas. Não sei se inventava ou não inventava - isto é, caguei! Eu queria era ouvir o Senhor Baptista-Bastos. Aprender. Ouvia-o embatocado, reverente, assombrado, deliciado. Ouvia-o enquanto ele me apresentava abundantemente à Guinness e ao Jameson, e os invejosos também à roda, flatulando améns, onzeneiros e hipócritas. Ia eu apenas no segundo pint, ao balcão do Kitty O'Sheas's Bar, em Dublin, e já lhe pedia repetições: "E daquela vez?..."
Baptista-Bastos gostava, inchava. Dizia, como se estivesse a dar-me corda, "O puto vai longe". Enganou-se redondamente. O mais longe que fui foi aos Açores, e ali estávamos os dois, dizia, eu e o mestre, descendo no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo, ilha Terceira, invadida por poderosas pick-ups de matrícula americana e nas narinas o aroma intenso, miscigenado, a especiarias e a mundos libertados pelas portas provocantemente escancaradas do loja antiga e encantatória.
Eu num sino, se fosse visível, o coração aos saltos e a cabeça num turbilhão. "O Baptista não faz ideia da vaidade que tenho por ir aqui à sua beira", confessei-lhe de repente, atrapalhando palavras. "Baptista, não", corrigiu-me, "sou Armando para a família e amigos do peito ou Baptista-Bastos para o geral, mas você, que já é da minha equipa, chame-me Amigo Bastos, que é como eu prefiro". Percebi o generoso raspanete como se, para o BB, Amigo fosse nome próprio e Bastos o apelido. (Quer-se dizer: afinal, AB.) E creio que percebi bem.

- Mas oiça lá: "à sua beira", foi o que disse? Que expressão tão bonita! "À sua beira"...
- É assim que se fala na minha terra. Sou de Fafe...
- Fafe? Justiça de Fafe, não é? Grande terra, terra de gente vertical!

Por aqueles dias mantivemos longas conversas em que eu só ouvia. Baptista-Bastos contou-me de Soares, de Cunhal, de Salazar, de Caetano, do PCP, do PS, do pai, de tipografia, de Lisboa, do Bairro Alto, de jornais, de jornalistas e simpatizantes, de tertúlias, da boémia, da noite, de sábios, de analfabetos diplomados, de livros, de Aquilino, de Branquinho da Fonseca, de Carlos de Oliveira, de Manuel Mendes, de Eugénio de Andrade, do amigo Manuel da Fonseca. Da beleza da sua mulher, do orgulho nos filhos. E de freiras pentelhudas, e de mulheres, e de mulheres, e de mulheres...
Insistia nas suas basezinhas, que já então eram um clássico: que os jornalistas se tratam mutuamente por tu e são camaradas, porque colegas são as putas, e tratava-me por você. E não me lembro se me perguntou se eu sabia onde estava no 25 de Abril, e eu por acaso sabia.

Já no aeroporto de Lisboa, no regresso a casa, Baptista-Bastos fez questão de apresentar-me à mulher, que era realmente uma senhora muito bela, e a um dos filhos. Quando nos despedimos ofereceu-me o seu excelentíssimo livro de reportagens "As Palavras dos Outros", com um recadinho escrito ali na hora na terceira página, e, como se estivesse a chamar passageiros para o voo do Porto, repetiu tonitruante o essencial de tudo o que copiosamente me ensinara na ilha: - Doellinger, não se esqueça, ler e escrever todos os dias! Todos os dias!...
E eu não esqueço, Amigo Bastos.

P.S. - Publicado originalmente no dia 9 de Maio de 2018. O aventureiro e escritor norte-americano Ernest Hemingway, autor de "Por Quem os Sinos Dobram", "Adeus às Armas" e "O Velho e o Mar", Prémio Pulitzer de Ficção em 1953 e Prémio Nobel da Literatura em 1954, nasceu no dia 21 de Julho de 1899. Não curiosamente, o nosso Baptista-Bastos foi prefaciador de Hemingway em Portugal. E a loja antiga e encantatória, em Angra, chamava-se, se não estou em erro, Basílio Simões & Irmãos.

sábado, 20 de julho de 2024

O melhor dos normais

Foto Facebook João Almeida - Atleta

Se tudo correr dentro dos conformes no contra-relógio de amanhã, João Almeida ficará em quarto lugar na Volta à França deste ano. Isto é, o português João Almeida é o melhor ciclista do mundo. Do mundo dos ciclistas normais. Pogacar, Vingegaard e Evenepoel não contam, são de outro mundo, enormidades, talvez aberrações da natureza.

O meu amigo Jeremias

Encontrei ontem por acaso o Jeremias, o velho Jeremias, o grande Jeremias, o meu amigo Jeremias - aos anos que não nos víamos um ao outro, eu e o Jeremias. Fiquei tão contente! Recordámos os tempos antigos, falámos das nossas vidas, da família, dos filhos, dos netos, dos amigos que já morreram, daquela inesquecível excursão a Andorra, grandes malucos, da situação na Ucrânia e em Gaza, do tiro ao Trump, de Pinto da Costa e do Macaco, deste país que só neste país, do tempo para o fim-de-semana e de projectos para o futuro. Enfim, pusemos a conversa em dia, avivámos uma amizade que vem desde os bancos da escola. Despedimo-nos calorosamente trocando abraços da boca para fora e números de telemóvel e apalavrando a marcação de um almoço para um dia que não chova. Cada qual seguiu para o seu lado, e só então é que eu reparei que aquele não é o Jeremias, nem sequer é parecido com o Jeremias, de resto, pensando bem, ele também não me disse que era o Jeremias e eu nunca tive um amigo chamado Jeremias nem nunca na vida fui a Andorra. Na verdade, depois de muito puxar pela cabeça, cheguei à conclusão de que não conheço este indivíduo de lado nenhum e de certeza absoluta. Em todo o caso, gostei muito de falar com o Jeremias.

P.S. - Hoje é Dia do Amigo.

Os amigos são para as ocasiões

Um amigo em Lisboa mandou-me uma SMS. Dizia-me que precisava de falar urgentemente comigo. Não pensei duas vezes. Nem três. Meti-me no carro, saí de Matosinhos e lancei-me na auto-estrada a mais de 180 à hora. Só ao chegar a Vila Franca de Xira é que me lembrei que não tenho carro nem sei conduzir...

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Pontes que são pontes

Foto Hernâni Von Doellinger

Tínhamos a bó e tínhamos o bô. Eu e os meus irmãos tivemos bó e bô vezes dois, pela mãe e pelo pai, sorte a nossa! Bozinha era a bisavó, e tínhamos, em Basto, uma, muito velhinha, que certa vez deu-me uma batata assada no borralho que era muito saborosa, e é essa a extraordinária memória que guardo. Bô queria também dizer bom: binho bô; bô moço; estás bô? Depois, se calhar por soar a parolo não sei a que finaços de carregar pela boca, bô mudou para bu. Bu também mete medo, é susto. Buuu! Mas quem caralho teve a ideia?...

Para mim, e defendo-o de graça há muitos anos, o Minho começa em Fafe e acaba em Santiago de Compostela. E a Galiza também. Isto é: Galiza e Minho são-me o mesmo, chamem-lhe o que quiserem, mas Minho decerto fica-lhe melhor derivado ao rio que nos une. Somos a cara chapada uns dos outros, os minhotos e os galegos destes limites, labregos envernizados, crescemos das mesmas raízes, aprendemos de uma literatura comum, padecemos ainda hoje do mesmo ancestral atraso de vida, desfrutamos do mesmo amor à comida e à bebida, à água benta e à festa, partilhamos a maneira de falar, cheia de "ches", de "inhas" e de "inhos", de "xes" em vez de "ses", de "bes" em vez de "ves", não raro falamos até a mesma língua, consoante os sítios e a idade, repetimos nomes, palavras pândegas, debitamos caralhos atrás de caralhos como não há memória de tanto caralhar noutras latitudes deste mundo e de outros. Nós, os galegos do lado de cá, e eles, os minhotos do lado de lá, assim somos.
Em Fafe e nas terras de Basto chegadas a Fafe falava-se esse conversar comum quando eu era pequeno, aprendi-o naturalmente com os meus avós maternos, em Passos, Cabeceiras, com a minha mãe e com os meus tios. A querida tia Margarida ainda hoje o usa a cotio, com uma graça que me encanta e comove, e eu dou-lhe serventia da língua para fora sempre que posso, e hoje em dia, sem obrigações profissionais, posso quase sempre. Este modo de falar faz parte do nosso fafês.
E o fafês é a minha língua. Nasci no fafês, sou do fafês desde pequeninho, agora tanto ou mais do que então.

Imaginem então a minha alegria com o que se passou aqui atrasado, numa das nossas habituais saltadas ao lado do Minho a que outros chamam Galiza. Foi assim. Como de costume, aproveitámos para atestar o depósito do carro, ali à entrada de Tui, logo depois da velha ponte de Valença, a chamada ponte rodoferroviária com desenho Eiffel. "Ga-só-le-o!", digo eu ao senhor gasolineiro. E o senhor gasolineiro, nunca tal nos tinha acontecido, pergunta-me sem mais nem menos, como se anunciasse pipa nova: - Normal ou do bô?...
Caralho! "Do bô", o senhor gasolineiro perguntou-me se o gasóleo era "do bô", palavra de honra, "do bô", perguntou, como fosse a minha avó, o meu avô, a minha mãe ou a tia Margarida a perguntar-me. E eu fiquei tão contente, tão criança, de repente tão outra vez abraçado ao avental da minha mãe a cheirar tão bem a sabão e felicidade, a casa, a nós, a Fafe antigo, fiquei tão comovido que quase me descompus. Apetecia-me abraçar o homem...
Por outro lado, o gasóleo era do normal e fedia indecentemente. Mas o senhor gasolineiro perguntou se era "do bô", foi o que ele disse, e disse tão bem, e eu gostei tanto. "Do bô", caralho!...

P.S. - A "nova" Ponte Internacional Valença-Tui, na A3, foi inaugurada no dia 19 de Julho de 1993.

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Os cabeçudos

Cabeçudos é uma antiga freguesia, ali já em Famalicão, encostada a Santo Tirso. É também o que se chama ao que ou a quem tem cabeça grande, às pessoas que gostam de teimar, os casmurros ou teimosos, a todos os estúpidos de uma forma geral e às pequenas figuras antropomórficas com cabeçorras de papelão que acompanham os gigantones nas arruadas saltitantes e musicais pelas feiras e romarias particularmente minhotas. Cabeçudo é ainda nome de ave, de peixe e de larva, o girino dos batráquios, nomeadamente anuros. Mas, em Fafe, cabeçudos eram sobretudo os ricos, os poderosos, os importantes, os graúdos, os figurões, os de cima, os chefes, os manda-chuvas, enfim, como também se dizia, os cães-grandes. Exactamente, eram cabeçudos e, para mim, ainda são.

Nas nuvens

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Fafe e a Guerra dos Cem Anos

A Batalha de Castillon foi levada a efeito no dia 17 de Julho de 1453, faz hoje exactamente 571 anos, e ficou para a História como a derradeira e decisiva batalha da Guerra dos Cem Anos, que decorreu razoavelmente entre franceses e ingleses. A França ganhou, e félicitations à la cousine. A Guerra dos Cem Anos chama-se Guerra dos Cem Anos porque durou cento e dezasseis anos, mas chamar Guerra dos Cento e Dezasseis Anos à Guerra dos Cem Anos não dava jeito nenhum aos historiadores e contabilistas bancários, e assim começaram os arredondamentos, que saem sempre à casa. Por outro lado, a Guerra dos Cem anos ostenta este curioso e inusitado nome, Guerra dos Cem Anos, para se distinguir da Guerra dos Oitenta Anos, que se verificou não sem alguns sobressaltos entre os futuros holandeses, actuais neerlandeses ou, quiçá, países-baixistas, e Espanha, com a Guerra dos Dez Anos, entre cubanos e espanhóis, com a Guerra dos Treze Anos, entre prussianos e teutónicos, com a Guerra dos Trinta Anos, entre a Alemanha e quem lhe aparecesse à frente, com a Guerra dos Sete Anos, entre França mais aliados e Inglaterra mais aliados (incluindo Portugal), com a Guerra dos Seis Dias, entre árabes e israelitas, com a Guerra das Audiências, entre a SIC e a TVI, e até com a Guerra das Rosas, entre a Rosa Maria e a Rosa Beatriz, que não se dão nem à lei da bala e andam sempre à trolha uma contra a outra derivado ao Anacleto Lingrinhas, que por acaso é pintor de automóveis e aquece a cama a ambas. A História, assim maiusculada, não se compadece realmente com equívocos.
Ora bem. Eu cuido que a Batalha de Castillon ocorreu em Fafe, exactamente em Fafe, numa antiga elevação situada entre a Ponte do Ranha, o Socorro, a Alvorada, a Fábrica do Papelão, a casa da Dona Aurora e o Estádio, com os campos e bouças de Cavadas aos pés. Ali se alcandorava, com efeito, o famoso monte de Castelhão, como se diz em português corrente, ou Castilhom, como se diz em fafês correcto - e portanto está fácil de ver onde franceses e ingleses foram buscar local e nome para a refrega. O monte de Castelhão era, na verdade, um sítio aprazível para a realização de todo o tipo de batalhas, como por exemplo brincar aos cobóis, e tinha um belíssimo pionono, de que infelizmente não há muita certeza. Mas isso é outra história.

Em todo o caso, não será certamente despiciendo relembrar mais uma vez que Fafe, o seu centro histórico e arredores consuetudinários, sempre dispôs das melhores e mais vantajosas condições naturais e estruturais para a realização de grandes eventos e mesmo certames de índole nacional e, como se vê, até internacional ou mais, nomeadamente batalhas e guerras de uma forma geral e dos mais diversos feitios. É uma terra que fica à mão e onde medram e farturam equipamentos a esse respeito e subsídios camarários. Não por acaso, suspeito que, como já aqui demonstrei, a própria Batalha de São Mamede, fundadora da nacionalidade, foi em Fafe que realmente se desenrolou, pelo menos um bocadinho, e ainda ninguém me conseguiu provar o contrário.

A piacere

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 16 de julho de 2024

Como as cobras

Ele era mau como as cobras. E como as moscas tsé-tsé e como os cães e como os escorpiões e como os crocodilos e como os hipopótamos e como os elefantes e como os tigres e como os leões. Era realmente do piorio.

Cobras e lagartos

Ele dizia cobras e lagartos. E dizia sanguessugas e borboletas e gaivotas e cangurus e macacos e sardinhas assadas com salada de pimentos vermelhos, nomeadamente. Enfim, dizia o que lhe apetecia...

O terceiro homem

O terceiro homem foi Abel. Adão foi o primeiro, como o próprio nome indica; Caim, o segundo; e Abel, o terceiro. A seguir veio Sete, que, pela ordem natural das coisas, deveria ter sido Quatro, mas a Bíblia é como é e quanto a isso nada. Caim matou Abel, numa história negra muito bem contada pelo jornalista, espião e escritor inglês Graham Greene, que morreu há coisa de trinta anos. O livro deu filme de Carol Reed, que meteu Orson Welles e ganhou Cannes, BAFTA e um Óscar da Academia. Óscar evidentemente acúrsio.

O pecado original

Corria tudo bem no Paraíso. Quer-se dizer: corria tudo na paz do Senhor. Poder-se-ia até afirmar, creio que sem forçar demasiado a nota, que o Paraíso era, naquele tempo, um autêntico paraíso. Estava escrito, porém, que Adão e Eva tinham de asnear. Podiam ter cometido um pecado qualquer, um pecadinho de nada, um pecado repetido, copiado, um que estivesse na moda. Mas não! - quiseram ser originais. E deu na merda que deu. Até hoje. 

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Cobra.

Bicéfalo

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Eu e os cães, desequivocando

Desfazendo um equívoco que por aí vai, eu e os cães. O cães gostam de mim, eu nunca disse o contrário. Mas gostam de mim como eu gosto de leitão ou cabrito. O que realmente me assusta, embora me pareça justo.

domingo, 14 de julho de 2024

Pensamento do dia

Por dia, faça chuva ou faça sol, cada vaca deve comer, em média, 50 quilos, entre forragem e ração, idealmente numa percentagem de 60 para 40, respectivamente. E deve beber 150 litros de água. De acordo com especialistas, este é o pensamento do dia, mais coisa menos coisa.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Liberdade de Pensamento.

O dia do anho na terra da vitela

Foto Hernâni Von Doellinger

Quatro ou cinco dias antes do domingo da Senhora de Antime, um pastor mailo seu rebanho davam entrada no largo do Santo Velho, mesmo em frente a nossa casa, e ali se estabeleciam, montando pasto, posto de venda e açougue, até que o último anho fosse despachado, isto é, até ao extermínio total. O pastor tinha cajado de pastor e cão de pastor, mas não era um verdadeiro pastor, era um senhor creio que da Rua de Baixo ou Santo Ovídio com faro para o negócio e habilidade para matar cabritos. Só era pastor naquela época do ano. E o rebanho também era um falso rebanho, os animais não se conheciam de lado nenhum, juntavam-se apenas para aquilo, naquela ocasião, mal eles sabiam, eram recrutados nos lavradores das redondezas e levados ao engano e ao altar do sacrifício, quer-se dizer, ao forno do fogão a lenha, de preferência, com batatinha dourada e arroz seco e solto, tudo muito bem comido e regado, na mesa grande e em família alargada, logo a seguir à procissão mas sem pressas. O fogão era amiúde na vizinha, por favor, bastava ir lá às horas certas para dar as devidas voltas à pingadeira.
Antes que me esqueça, para os de fora: o cabrito, generalizemos assim por bondade, era e suponho que ainda é o prato oficial da Senhora de Antime. Naquele tempo, entrava em nossa casa apenas uma vez por anho, e, é preciso que se note, em anhos bons...
No Santo Velho acontecia tudo, o Santo era um largo multiusos. Portanto também servia de matadouro e talho, escancarado e a céu aberto. O Santo era o centro do mundo. Os clientes vinham de toda a parte, da Feira Velha, da Fábrica do Ferro, do Retiro, da Ponte do Ranha, de onde calhasse. As pessoas escolhiam o animal que queriam levar para casa, vivo ou morto, com os bandidos procurados no Velho Oeste. O peso e o preço eram combinados a olho, entre vendedor e comprador, e mais tarde eventualmente ajustados, coisa de nada, após pesagem da carcaça numa balança de mola propriedade do magarefe e de certeza viciada.
Se era para seguir cadáver, o bicho morria logo ali, encostado ao muro do quintal da Senhora Carolina, avó do Naninho. O matador tinha um tenebroso conjunto de facas ou navalhas de diversos tamanhos e feitios mas todas muito bem afiadas. E tinha também um pequeno tubo de cana que usava para, soprando-lhe do fundo da alma, com a cara a passar perigosamente pelas três cores dos semáforos, amarela, verde e vermelha, por esta ordem, inflar grotescamente a pele do animal, separando-a da carne e dobrando-lhe o tamanho, aquilo tudo quase a rebentar, o homem e o odre, cuidava eu, e era realmente uma coisa extraordinária de se ver, para depois proceder à esfola, facilmente, com uma perna às costas, como quem limpa o cu a meninos. E antes assim.
Era uma mortandade que só vista, caíam uns atrás dos outros. O chão do Santo enchia-se de vísceras e tripas e peles vazias e varejas. O Santo era uma poça de sangue. O ar do Santo tornava-se irrespirável, cheirava a erva, a merda, a sebo, a azedo, a peste, e até as tílias se afligiam. O Santo fedia. Mas era por uma boa causa...
Por pobreza ou conveniência, havia quem comprasse o cabritinho a meias, ou até em quartos, mas quanto a isso os clientes é que se entendiam. Quem tivesse um galinheiro de vago ou um bocadinho de quintal, aproveitava para comprar o anho mais cedo, quando a possibilidade de escolha era maior, e levava o anho vivinho da silva para dois ou três dias de engorda. Na sexta-feira e não sei se ainda no sábado, o matador ia a casa e acabava de vez com a conversa.
Cá fora, o refugo aguardava pelos retardatários do costume.
Quem tinha de aparecer, por aqueles dias, era o Landinho. E aparecia, porque o Landinho aparecia sempre. O Landinho andava de porta em porta e navalha na mão oferecendo os seus préstimos como matador de cabritos. Isso. O nosso Landinho, que era, entre outros afazeres delirantemente encartados, fiscal da câmara, polícia de trânsito, passador de multas e até padre, também matava muito bem cabritos, embora nunca o tivesse feito, para sorte dele, dos cabritos e de nós todos.

Portanto, meus amigos fafenses, hoje é agnus day, quer-se dizer, é dia do anho. Mas também da vitela. E se calhar das tripas, aquele meio tachinho que sobrou estrategicamente do almoço de ontem. E atenção: onde escrevi "tripas" e "vitela assada", deve falar-se "tripasss" e "bitela assada", com os ésses muito bem condimentados. Vitela e falar à moda de Fafe, sempre! Isto é, "sémpre"! A vitela assada à moda de Fafe, já disse, é provavelmente a melhor vitela assada do mundo. E isso nem tem discussão.

(Publicado originalmente no meu blogue Fafismos)

sábado, 13 de julho de 2024

Anjinhos, não!

Deveria querer dizer alguma coisa a nosso respeito, agora que penso nisso, mas não sei se diz. Já repararam, certamente. Não há procissão no mundo que leve e chame tanto povo como a procissão da Senhora de Antime, em Fafe. Um mar de gente, povo atafulhado, a rebentar pelas costuras, sem espaço sequer para descruzar os braços e coçar repentinas aflições. Isso, povo em barda e de todos os feitios. Nós. O povo da terra, inteiro e simples, ali na procissão como na vida. Povo, povo, povo. Mas anjinhos, não...

(Publicado originalmente no meu blogue Fafismos)

sexta-feira, 12 de julho de 2024

A filha do pai

Foto Miguel A. Lopes/Lusa

Leonor de Borbón y Ortiz, 18 anos, princesa das Astúrias e herdeira da coroa espanhola, foi condecorada pelo nosso Presidente da República com a grã-cruz da Ordem Militar de Cristo.
"É uma homenagem a vossa alteza, ao Reino de Espanha, à nossa amizade para sempre", declarou Marcelo Rebelo de Sousa, na ocasião, explicando o penduricalho à infanta.
A Ordem Militar de Cristo destina-se a distinguir destacados serviços prestados ao País no exercício de funções de soberania.
Tanto quanto percebo, Leonor foi condecorada porque é espanhola e filha do pai dela. Sinceramente, não me parece um serviço por aí além...

Os dias da Senhora de Antime

Foto blogue Morgado de Fafe

Fafe vive por estes dias os seus dias mais extraordinários. É tempo de Senhora de Antime. São as Festas de Fafe, que já foram da Vila, do Concelho e da Cidade. Os senhores da Câmara podem chamar-lhe o que quiserem, e até lhe chamam "certame" os tolos, mas toda a gente sabe que é a Senhora de Antime. Toda a gente, quero eu dizer, os fafenses do rés-do-chão. O programa promete. Pedro Abrunhosa, Richie Campbell, Calema, Plutonio, Dj Dadda, Mastiksoul, anunciados como cabeças de cartaz. E há despique entre as nossas duas bandas de música, e mostra de folclore, e fado de Coimbra, nunca percebi porquê, e espero que muitos bombos, cabeçudos e gigantones, não sei se pilas, mas matrecos certamente, e até encerra com um desfile alegórico, que também a mim me parece uma boa ideia.
A Senhora de Antime, no entanto, é a procissão. E isto é tão básico, valha-me Deus! Há anos que o digo, a procissão é que é cabeça de cartaz das nossas festas, mas não adianta. Domingo, o próximo domingo é a Senhora de Antime, a Senhora de Antime é domingo, o nosso domingo mais fafense, o domingo mais esperado do ano. O dia único de ir "ver a Senhora". O domingo da procissão que me leva às lágrimas. Não tem nada a ver com fé ou religião, é sentimento, fafismo tão-somente, fafismo puro, e fafismo não se explica, vive-se, e nem é preciso ter nascido em Fafe, dou isso de barato.
A procissão e a explosão do encontro das duas senhoras, das Dores e da Misericórdia, no Lombo. A sirene que toca à paragem dos pesados andores no cruzamento do Santo Velho, junto ao Palacete, o nosso sítio combinado, como se os Bombeiros antigos ainda ali estivessem ao pé. E a sirene não toca, é um pranto. As pombas atordoadas e os salamaleques e foguetes escusados à porta da Câmara. A procissão da Senhora de Antime, costumo ensinar a quem não sabe, é provavelmente a melhor procissão do mundo e certamente uma das maiores do mundo. Alguns chamam-lhe "Majestosa Procissão", mas ela é tudo menos majestosa. É popular, é simples e incomensurável, a olhos de fora, impreparados, poderá até parecer desorganizada, mas não. É o povo que desce inteiro com as duas senhoras até à vila a que agora chamam cidade, não vejo com que vantagem. O povo de pé-descalço e bico calado. Milhares de pagadores de promessas furando em marcha lenta pelo meio de milhares e milhares de devotos de bancada, apreciadores, preguiçosos, retardatários, curiosos ou simples mirones, famílias inteiras, reunidas, carteiristas, apalpadores e empernadores que se atravancam nas beiras da estrada e nos passeios das ruas. É uma procissão tremenda e comovente, multitudinária e única, uma procissão a sério - A Procissão -, como tenho a mania de explicar aqui aos meus vizinhos que ficam banzados com a meia dúzia de almas penadas e a dúzia e meia de cabeçudos autárquicos e outras autoridades civis, militares e religiosas, assim catalogadas, que todos os anos acompanham a imagem do Senhor de Matosinhos pelas ruas desta cidade que me acolhe, num deserto que só visto.
Dias extraordinários, dizia, e domingo da nossa procissão, o próximo. E depois na segunda-feira, de hoje a oito dias, se não for antes, lá estarão nos sítios do costume as fotografias e os vídeos dos senhores da Câmara mailos que são sempre os mesmos, como se a Senhora de Antime fosse só deles e Fafe também.

(Publicado originalmente no meu blogue Fafismos)

Toca a correr!

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 10 de julho de 2024

A cor da lei 2

A lei é muito clara. E é disso que se queixam as organizações anti-racistas.

A cor da lei

- A lei é muito clara! - declarou o juiz. E mandou pintar num tom um bocadinho mais abaçanado.

In vino veritas, in aqua planing

Compareceram todos. Ab Initio, Modus Operandi, Lapsus Linguae, Curriculum Vitae, Honoris Causa, In Dubio Pro Reo, E Pluribus Unum, Habeas Corpus, Ex Aequo, Ipso Facto, Mea Culpa, Per Capita, o casal Dura Lex, Sed Lex, Post Scriptum, Sine Die e Sine Qua Non, Ad Hoc, Statu Quo e Procol Harum, Sui Generis, Vade Retro, Totus Tuus e Deo Gracias, Data Venia, Ipsis Verbis e Ipsis Litteris, A Priori e A Posteriori, Apud, Carpe Diem, Grosso Modo, In Loco, In Memoriam e In Vitro, RIP, Dux Veteranorum, Alter Ego, Fac Simile, Verbi Gratia, Ibidem e os irmãos A Contrario Sensu, Lato Sensu e Stricto Sensu.
Honoris Causa abriu os trabalhos e foi directo ao assunto. Disse: - E se nos deixássemos de merdas e começássemos a falar como as pessoas?...

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Lei. Em Portugal parece que não...

Crime, disseram-lhe

Foi levado a tribunal por matar o vício. Ele não sabia que era crime.

Crime perfeito

Arranjou uma amante, contratou um mordomo, atrasou o relógio, matou a mulher e chamou a polícia. Por esta ordem.

TIR

Transporte internacional rodoviário. TIR. A mais leve das medidas de coacção. 

Mar, nem vê-lo!

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 9 de julho de 2024

O homem-bala

Cabisbaixo e de mala na mão, o homem-bala apresentou-se logo de manhãzinha na rulote da gerência. Deixava o circo. Ia embora para casa. Descobrira durante a noite que era objector de consciência e favorável ao desarmamento unilateral e total. 

P.S. - Hoje é Dia Mundial pelo Desarmamento.

Desarmado em parvo

Era tão pacifista, tão pacifista, tão objector de consciência, tão objector de consciência, tão não-violento, tão não-violento, que havia quem dissesse que ele andava constantemente desarmado em parvo.

Tanques para a Ucrânia

Portugal mandou tanques para a Ucrânia. Para além dos tanques, Portugal vai também mandar estendais, cestos e molas.

Contra os canhões

"Às armas, às armas! / Sobre a terra, sobre o mar, / Às armas, às armas! / Pela Pátria lutar! / Contra os canhões marchar, marchar!", manda o Hino Nacional. E hoje é Dia Mundial pelo Desarmamento, parabéns à prima!

segunda-feira, 8 de julho de 2024

Maior e vacinado

Foto Hernâni Von Doellinger

Acreditam que ainda tenho comigo e em plena actividade o meu primeiro, e único, boletim de vacinas? As vacinas, naquele tempo, apanhavam-se no velho casarão em frente à Escola Conde Ferreira, na Rua Montenegro, com a escadaria mesmo ao lado da caixa do Mudo, engraxador e sportinguista de alto gabarito, irredutível fiscal no Campo da Granja e depois no Estádio, hoje chamar-lhe-iam steward, palermas, e era também exímio tocador dos sinos da Igreja Matriz, especializado em concertos para casamentos, baptizados e sobretudo funerais, pago à peça, portanto por fora. Era um extra. O Mudo. Quanto ao casarão, ali funcionavam ou funcionaram, não sei se coincidindo, o Centro de Saúde, os Serviços Municipalizados de Água e Electricidade, também não estou certo de que se chamassem exactamente assim, e a "cantina" ou o sítio da sopa para os meninos mais pobres da escola. Aquele tempo era porreiro porque podia-se dizer "vácina" sem que nos ralhassem pessoas que, relativamente a gramática e língua portuguesa em geral, só fazem ideia de emojis. Eu continuo a dizer "vácina" e "vácinas" e graças a Deus tenho-me dado muito bem.
O Centro de Saúde era de certeza um sítio maravilhoso porque trabalhavam lá o Aníbal Carriço, que sobreviveu à guerra cheio de balázios e escrevia nos jornais, tinha tudo para ser meu herói, e a Getinha, que era minha vizinha no Santo e gostava muito de mim e eu gostava muito dela. Quando andou na Escola de Condução Fafense para tirar carta, e não sei se concluiu, eu acompanhava a vanguardeira Getinha na aulas, sentado no banco de trás do então inevitável Carocha amarelo e preto, às voltas sem sentido pelo centro da vila só para a má-língua ver, a contorcer-me por todos os lados, enjoadíssimo, porque eu enjoava abundantemente a andar de carro, mas era por uma boa causa e com autorização da minha mãe, depois de fazer os deveres: uma menina de bem, uma donzela, nunca entraria sozinha na viatura de um cavalheiro, por mais cavalheiro que o cavalheiro fosse e ainda que o cavalheiro fosse o instrutor e a viatura fosse de instrução, olha o respeito! Quer-se dizer, eu, inocente guardador de virgindades, era ali uma espécie de pau-de-cabeleira, mas de uma espécie muito rara certamente, uma espécie talvez descontextualizada, abstrusa, porque a vida depois dá muitas voltas e até é de rir, às vezes, e de chorar, outras, o que acontece às pessoas e com as pessoas, mas isso já não é para aqui chamado. A querida Getinha era uma mulher extraordinária.
Tornando, então, às vacinas e ao velho boletim. A minha primeira vacina registada, perpetrada evidentemente em Fafe, foi uma "Anti-Poliomielítica Morta ou Viva", até parece dos filmes de cobóis, tem a data de 15 de Dezembro de 1965, lembro-me muito bem dela, e a mais recente foi-me aplicada ainda no outro dia, 23 de Maio, em Matosinhos, onde moro, porque, embora possa não parecer, eu levo isto das vacinas muito a sério. A próxima, se não for antes, está já agendada para 2034, isto é, o Serviço Nacional de Saúde, que eu tanto estimo, atribuiu-me pelo menos mais dez anos de vida, só tenho de apresentar-me no dia certo. Eu por acaso já não contava com semelhante bónus, nem sei sequer se o mereço ou justifico, mas, cá está, é a prova de que as vacinas realmente funcionam.

(Publicado originalmente no meu blogue Fafismos)

O intolerante

Era realmente uma pessoa com um feitio difícil. Tinha um problema com o álcool. E outro com o betadine.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Alergia.

Posto de trabalho (para o bronze)

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 7 de julho de 2024

Diz-me o que vestes

A forma de vestir diz muito acerca das pessoas. Vejamos, por exemplo, os nudistas: creio que não é preciso dizer mais nada.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Naturismo.

Ex-citações

Diz o roto ao nu: - Excitas-me, pá!...

Ele e a natureza

Era uma alma sensível e só. Comovia-se com a natureza, conversava com o vento. Gostava de subir ao monte para ver as vistas. E ouvir as audições. E cheirar os olfactos. Nu.

sábado, 6 de julho de 2024

Ah, se os cães soubessem ler...

Foto Hernâni Von Doellinger

A miúda era gira. Pelo menos vista por trás. Vestia um calçãozinho vermelho, resumido, e levava dois cães pela mão, cada cão por sua trela. Não sei de raças de canídeos, só distingo duas: a raça grande e a raça pequena. Estes dois eram dos grandes, dos que habitualmente gostam de meter-se comigo, dos que gostam de saber a que é que sabem as minhas pernas.
A miúda era gira, dizia eu, e preparava-se para entrar no Parque da Cidade do Porto. Via-se que andava a apalpar terreno, devia ser a sua primeira vez. E decerto foi por isso que fez o que eu nunca tinha visto ninguém fazer: parou a ler o painel com as "Normas de Circulação de Cães". Pelo tempo que demorou, deu para perceber que leu toda a informação, de uma ponta a outra. Depois pareceu-me que verificou se estava tudo ok - olhando por si abaixo, para as trelas e para os cães -, e só então é que avançou. Apeteceu-me aplaudir! Bater palmas à atitude cuidadosa, ao respeito pelos outros, à lição de cidadania, ao calçãozinho vermelho. Resumido.
Eu próprio fiquei curioso e fui dar uma vista de olhos ao painel. Há um igual em cada entrada do Parque. O painel explica sumariamente o que são "cães potencialmente perigosos" e "cães perigosos", ajuda a identificar, com fotos e notas explicativas, as "raças potencialmente perigosas" e, no seu corpo central, alinha as quatro normas fundamentais a observar. Que são:
"1. É obrigatório para todos os cães o uso de coleira ou peitoral, no qual deve estar inscrito, de forma visível, o nome e morada ou telefone do seu detentor.
2. Os cães devem circular com trela e sempre acompanhados pelo seu detentor.
3. Os cães perigosos ou potencialmente perigosos devem circular no Parque da Cidade acompanhados pelo seu detentor, maior de 16 anos, e com uma trela curta até 1 metro, que deverá estar fixa à coleira ou peitoral e açaimo funcional.
4. Os detentores dos animais deverão, em qualquer deslocação, fazer-se acompanhar do boletim sanitário dos animais com os quais circulam." 
Infelizmente os cães não sabem ler, e isso faz diferença a muitos donos.

P.S. - Publicado originalmente no dia 29 de Março de 2012. No dia 6 de Julho de 1885, Louis Pasteur testou com sucesso a sua vacina antirrábica em Joseph Meister, um rapaz que fora mordido por um cão com raiva.

Eles sabem a que é que eu saibo

Aramis andava à solta no Parque da Cidade. Também por lá andavam os espreitas do costume, no miradouro do costume, equipados de perversão e binóculos mal disfarçados, à cata de parzinhos no marmelanço. Mas do que eu quero falar agora é do Aramis, um cão, bem bonito por sinal, de raça... grande, que se afastou da alçada da dona e resolveu começar a rondar-me primeiro, a ladrar-me depois, e a ameaçar abocanhar-me logo que lhe apetecesse.
Eu fiz o que pude, dadas as circunstâncias: acagacei-me até mais não, a bem dizer paralisei, ainda por cima passou-me pela cabeça que de repente se desemboscassem por detrás das árvores o Porthos, o Athos e até o d'Artagnan para ajudarem o Aramis e então é que eu me borrava todo. Uma vergonha.
Portanto era nisto que nós estávamos: eu ali à rasquíssima, nem para a frente nem para trás, e o estupor do cão (eu já disse que era bem bonito por sinal?) com a dentuça cada vez mais arreganhada e mais próxima dos meus ricos calcanhares. A dona bem chamava por ele, aflita, "Aramis, anda cá, Aramis, anda cá", foi assim que eu fiquei a saber o nome do animal, mas ele deixa-te estar que eu já te atendo.
"Desculpe, ele só quer brincar", aproximou-se de mim a dona, a ver se lhe punha a mão no pêlo e é o pões. "Mas eu não, minha senhora", saiu-me numa vozinha de falsete e o coração quase que vinha atrás. Não consegui articular, mas eu tinha sérias dúvidas de que o cão estivesse informado de que só queria brincar.
Finalmente, num assomo de determinação e talvez desespero, a senhora gritou, dura, autoritária, "Aramis, anda já aqui à dona!", conferindo uma inflexão muito forte à palavra dona. E o cão acordeirou, deixou-se prender e levou um raspanete. Eu saí dali para fora logo que as minhas pernas me deixaram, dando graças a Deus por na verdade haver cães que conhecem o dono. A dona.
Agora, a minha ideia é esta: o Parque chega para todos, pessoas, cães e até outros animais mais ou menos selvagens, como, por exemplo, as bicicletas. Mas, tendo em vista uma convivência pacífica entre todas as espécies, impõe-se que alguém ande pela trela. Ou eles ou nós. A mim tanto me faz.

(Publicado originalmente no dia 29 de Julho de 2011)

sexta-feira, 5 de julho de 2024

Como é que eu hei-de?

Foto Hernâni Von Doellinger

Meados dos anos oitenta do século passado. Eu ia a Fafe pelo Verão e em cima da Arcada, infalível, uma banca de venda de cassetes passava sem parar o sucesso do momento, "Como é que eu hei-de" ou, melhor dito, "Azar na praia", do grande Nel Monteiro. Uma e outra vez, uma vez atrás da outra, dir-se-ia que praticamente sem tirar fora, de manhã, à tarde e porventura à noite, dias úteis e inúteis, durante todo o santo horário de expediente, com serão e tudo incluído. "Como é que eu hei-de, como é que eu hei-de" era o mantra, a banda sonora daqueles dois ou três verões caseiros e suadoiros, eu e o meu irmão Lando ríamo-nos bastante por causa disso, passou a febre e nunca mais pensei no assunto.
Acontece que apanhei a velha cantiga no outro dia, por acaso, no rádio do carro, pus mais alto, é claro que pus mais alto, cantei também, cheio de garbo e perdigotos, a minha mulher servia à pinta, gostei tanto daquele inesperado reencontro que o estupor da música chegou ao fim e eu fiquei ali à espera que ela, a música do Nel, entenda-se, voltasse automaticamente ao princípio, recomeçasse em delirante moto-contínuo, como naquele tempo de abraços e vinho em Fafe, e vieram-me umas saudades do caraças, chorei como se tivesse falhado um penálti, quer-se dizer, chorei apenas um bocadinho, quase a seco. 
O "Azar na praia" é hoje em dia, para mim, um clássico da verdadeira música popular portuguesa, quadrada e frequentemente desnecessária, paradoxal, convencida e ingénua, irrelevante e eterna, melodia simples e orelhuda, letra singela mas cheia de significado, como as homenagens no tempo do antigo regime e parece que agora outra vez também. A voz do Nel Monteiro, fraquinha, coitadinha, quase a fugir-lhe para parte incerta, aquela falta de ar no final das frases, os ésses rurais e honestos cantados como se trouxessem vento norte, não se arranjaria melhor nem por encomenda. E faço notar que não estou aqui no gozo. Acho esta canção realmente muito bem esgalhada, plenamente conseguida, sobretudo tendo em vista o público-alvo, tudo a bater no ponto, enfim, uma obra que só não digo que é prima porque lhe desconheço a parentela.
Manuel Teixeira Monteiro, natural de Barrô, Resende, e criado no concelho de Santa Marta de Penaguião, tem hoje 79 anos, feitos no passado mês de Maio. Para além do consagrado "Como é que eu hei-de", Nel Monteiro compôs e interpretou dezenas de outros temas que não lhe ficam muito atrás, entre os quais ouso destacar títulos igualmente inconfundíveis e paradigmáticos como "Alô, Alô, Maria Antónia", "Bronca na discoteca", "Esta miúda (dá-me cabo da cabeça)", "Bife à portuguesa", "Comboio do forró", "Santa Miquelina", "Milagre da burra", "É duro ser velho", "É duro ser mãe", "Kuduro é que é bom", "Tira o biquini amor", "Filha fizeste 18 anos", "Armanda sai da varanda", "Fico à rasca, fico à rasca" e, inesquecivelmente, "Puta vida merda cagalhões".
Nel Monteiro tem uma linda história de vida e disse uma vez que conheceu muito bem Marcelo Caetano e Salazar - "Fui sempre um ídolo dele", asseverou aliás, sem rodeios, em relação ao de Santa Comba. A extraordinária revelação entregou-a de borla à TVI, numa entrevista ao Manuel Luís Goucha, que em questão de importância, digo eu, também não é menos do que os outros dois figurões. A coisa passou-se no dia 1 de Abril de 2022. Em Dezembro do ano passado, Nel Monteiro voltou à TVI e ao Goucha para contar as necessidades que passaram, ele e a mulher, derivado à pandemia. Que "foi um sufoco muito grande", que até deixaram de levantar medicamentos da farmácia por falta de dinheiro - declararam e, naturalmente, choraram. Choraram, como é de lei nestas ocasiões.
Pronto. Hoje é Dia Mundial do Biquíni e por isso tornei a lembrar-me do nosso Nel Monteiro, especialista na matéria. Em sua honra, em honra do bom Nel Monteiro, meu fugaz ídolo estival, e em honra de todos os biquínis mais ou menos desocupados, segue-se a famosa letra do "Azar na praia", mas um azar nunca vem só. Estais à vontade e estamos no tempo: deixai-vos de merdas! Com ou sem camisa, em cuecas ou ao léu, puxai mas é o youtube, som no máximo, e cantai comigo e com ele, vozes e corações ao alto, e que se lixe a afinação e, já agora, a vizinhança também:

Banhar-nos à praia fomos tu e eu
Mas que grande bronca nos aconteceu:
A minha camisa, o vestido teu
Quando à noitinha nada apareceu.

Muito envergonhados saímos dali
Eu em tronco nu, tu em biquini.
Não tinha dinheiro, carro também não
Viemos a pé, fizemos serão.

E ela, coitadinha, muito aflitinha gritava assim:

Ai, como é que eu hei-de, como é que eu hei-de?
Como é que eu hei-de me ir embora?
Com as perninhas todas à mostra
E os marmelinhos quase de fora…

Muito envergonhados saímos dali
Eu em tronco nu, tu em biquini.
Não tinha dinheiro, carro também não
Viemos a pé, fizemos serão.

Contra a ditadura do biquíni

Hoje é Dia Mundial do Biquíni. Nas cidades de Lisboa e Porto, milhares de nudistas prometem sair à rua em protesto.

quinta-feira, 4 de julho de 2024

O almário

O almário era um móvel de madeira, metal ou outro material com prateleiras, gavetas e portas, utilizado para arrumar roupas, louças, livros e outras cangalhadas. Dir-me-ão: mas isso é armário! Sim, é armário, que por acaso também é o móvel onde se guardam armas, pessoa grande, larga e robusta e sítio de onde saem homossexuais, mas em Fafe os mais antigos e mais do povo chamavam almário ao armário, talvez embalados por ecos galegos. E chamavam bem, a palavra está correcta, devidamente registada, e ainda hoje tem bom uso quanto mais não seja literário.
Almário, digo agora eu, seria igualmente bonito se entendido como aquele cómodo da casa ou de nós onde guardamos os sentimentos, todos os nossos estados de alma, uma espécie de almazém. Isso mesmo, almazém, leram bem, não é engano. Almazém, que era como também se dizia armazém em Fafe. E estava certo, almazém. E está certo! E se, por outro lado, almazém pudesse ser, proponho, um armazém de almas? De almários?

(Publicado originalmente no meu blogue Fafismos)

Artur Soares Dias, até ao fim?

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 3 de julho de 2024

O nosso Biden

Cada um tem o Biden que merece. Os americanos andam à volta com o deles, o Joe, e o FC Porto lá conseguiu resolver-se do seu, Pinto da Costa. Portugal atura Cavaco Silva e a Selecção desfaz-se à volta de Ronaldo.

Quando os Tonys eram de Matos

Foto Hernâni Von Doellinger

Sou de Fafe e sou dum tempo. Frequentei os campos de milho do Santo, de Cavadas e do Sabugal, vindimei e pisei uvas, fui a desfolhadas e malhadas, andei em carros de bois e na carroça do Moniz Azeiteiro, fui à merda para selar o forno de cozer broa, ajudei a matar porco, arranquei batatas, depenei frangos, montei jericos, andei aos ninhos e aos pardais, andei à chinchada, guardei cabras no monte, tínhamos quintal, galinheiro e coelheira, meia dúzia de olhos de couves no tempo delas e um céu com estrelas. Tive feira todas as quartas. Cacei e comi gafanhotos, vivos. Fui uma vez ao mar, à pesca da faneca, e trouxe também cavalas e respeito. Eu e a natureza sabemo-nos. Quero campo, montes e rio, se possível com o Atlântico debaixo de olho. Sou um rústico e disto não saio. A cidade é-me modo de vida, mais nada.

Mas nem todos têm a minha sorte. Os lisboetas, por exemplo. Os lisboetas são uns infelizes, uns desgraçados, não sabem da vida, não sabem da terra, não sabem sequer de que terra são. Aqui atrasado, o Continente, esse, o dos supermercados, fazia de velho mestre-escola e, uma vez por ano, tomava conta dos lisboetas, assim ditos, e levava-os em gaiteira excursão de volta às suas raízes mais profundas. Às berças. Aos campos do Minho, de Trás-os-Montes, das Beiras, do Alentejo ou dos Algarves de onde eles partiram há duas ou três gerações, com a saca da merenda enfiada no cajado ao ombro, os pés descalços e as chancas nas mãos. Quer-se dizer: embora o ignorem, os lisboetas são tão parolos como os outros parolos todos à volta. Lisboa já não diferencia. Faz cada vez mais parte do resto que é paisagem neste país que não existe.

Naquele dia, os lisboetas, que são parolos mas não se lembram, aprendiam ou reaprendiam, por exemplo, que o leite não nasce em pacotes, que as galinhas estão vivas antes de estarem mortas (a senhora dona Lili Caneças saberá ainda explicar o fenómeno), que os ovos só podem ser produzidos com aquele feitio ou que o bife não é um animal, pelo menos um animal completo. E, com um bocadinho de sorte, até talvez pudessem descobrir o mais extraordinário segredo da vida, que é: a vaca não dá leite. Isso, a vaca não dá leite, ao contrário do que consta. A vaca não dá leite, não dá carne que serve para a nossa alimentação, não dá pele que serve para fazer sapatos nem dá chifres que servem para fazer pentes, como nos exigiam nas redacções da escola primária. A vaca não dá nada, porque a vida não é de graça. É preciso ir lá, à vaca, e dar-se ao trabalho e tirar e tratar e transformar e fazer - é assim que o Lopes ensina os netos.
Mas então, o Continente oferecia aos lisboetas uma espécie de circo rural onde não faltavam as vacas e os cavalos, os patos e os gansos, as ovelhas e os porcos, as avestruzes e os burros. E enfartava-os com um megapiquenique a que o analfabetismo vigente não se cansava de chamar "Mega Pic Nic". Um arraial dos antigos para recriar, em plena Avenida da Liberdade e no Parque Eduardo VII, o "espírito do campo", o "ambiente de uma grande quinta", com o patriótico desiderato - acrescentava a propaganda do Continente - de "chamar a atenção dos portugueses para a importância do apoio à produção nacional". Pois se calhar.
E os lisboetas juntavam-se aos milhares, aos milhares de milhares, de boca aberta, entusiasmados até mais não com a novidade, fresquinha e ao vivo, das cores, dos sabores e dos aromas do campo, como se o campo fosse aquilo. Mas, sobretudo, os lisboetas do país inteiro, do país que não existe, iam ao cheiro do concerto do Tony Carreira. À borla. Tony Carreira apresentado aos lisboetas como "o melhor da música portuguesa".
Ora bem. Honra lhe seja, Tony Carreira, isto é, António Manuel Mateus Antunes, 60 anos, natural de Pampilhosa da Serra, é um profissionalão, provavelmente um dos mais mais competentes do seu ofício, comprou uma receita com provas dadas ou eventualmente vendidas e fá-la render, mas não é "o melhor da música portuguesa", nem de perto nem de longe. Entendamo-nos: por mais multidões que congregue, por mais corações que despedace, por mais sutiãs ou cuecas de senhora que lhe atirem ao palco, Tony Carreira é apenas um cantor romântico com imeeeeeenso sucesso e acaba de fazer constar que o próximo disco pode ser o último, Deus o ouça. Mas a música portuguesa, desculpem-me a expressão, é outra coisa. E felizmente. O melhor da música portuguesa, sem aspas, é, por exemplo, Fausto. É! Fausto Bordalo Dias, que vai agora, imortal, por esse rio acima. Fausto, o nosso, devia ser aprendido em Portugal desde os bancos da escola.

Depois o Continente trouxe o arraial para o Porto, para os lisboetas do Norte, que não pensem que são melhores. O estardalhaço chama-se cá em cima Festival da Comida e continua a atafulhar o martirizado Parque da Cidade, aqui à porta, aproveitando alguma da parafernália montada para o já de si devastador Primavera Sound. E com Tony Carreira sempre!
Este ano é a sexta edição do hecatómbico evento, este fim-de-semana, sábado e domingo, dias 6 e 7 de Julho, e eu, ferrinho, mais uma vez não ponho lá os pés. Já disse. Sou de Fafe e doutro tempo. Do tempo em que os Tonys eram de Matos.