sábado, 30 de abril de 2022
O país que temos
De pequenino é que se arrebita o pepino
Foi há quase dez anos, lembro-me bem, na Curia. Deu na televisão em directo, para o País e mundo inteiro. Foi no programa Verão Total, da manhã da RTP1, com Sónia Araújo e Jorge Gabriel. Foi há quase dez anos e até hoje nada. Parece que só eu é que vi. Se calhar as audiências andavam certas.
Os bois chamam-se pelos nomes
Assim se chamam os bois pelos nomes.
sexta-feira, 29 de abril de 2022
É matá-los, a ver se aprendem!
A hipótese campo de concentração chegou a ser ponderada pelo departamento governamental, mas acabou por cair, derivado aos custos envolvidos, em ração e choques eléctricos, optando-se então pelo extermínio directo. A solução final e barata.
Este era um trabalho desenvolvido até aqui por snipers locais em regime de freelance, sem o mínimo de condições, agora o Estado toma conta da pasta e tudo passa a ser feito como manda a lei.
Trata-se, de acordo com a DGAV, de uma medida "coerciva e pedagógica" e de combate ao pastoreio livre. Exactamente. Pode ser que, depois de abatidos, os animais aprendam finalmente a respeitar a propriedade privada. Porque estes animais são uns animais. E para animais, animais e meio - assim se pensou na Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária. O director-geral de Alimentação e Veterinária chama-se Nuno Vieira e Brito. Veterinária.
Este projecto de vanguarda, já no terreno, é a rampa de lançamento de um mais vasto e ambicioso programa interministerial de limpeza de "vadios", que prevê, numa segunda fase, o abate de pilha-galinhas daltónicos, ladrões de melancias que calcem mais de 43, sem-abrigo embrulhados em caixas de cartão de frigoríficos Indesit e peões atropelados em passadeiras e que ainda mexam.
Cuidam que é mais uma das minhas? Não é, lamentavelmente. É assunto sério, notícia de ontem a que cheguei através do blogue Mais pelo Minho, que cita a Rádio Vale do Minho.
P.S. - Publicado originalmente no dia 23 de Outubro de 2012. Não sei como é que a coisa está, se já mataram os garranos todos e o que faz actualmente Nuno Vieira e Brito, que entretanto até já passou por secretário de Estado, vejam lá!
Reservado o direito de admissão
O amigo dos animais
É veterinário porque gosta muito de animais. Coelhos, perdizes, tordos, javalis e sobretudo toiros. E só lamenta que em Portugal não sejam de morte.
P.S. - Hoje é Dia Mundial da Medicina Veterinária.
Aqui jazz, ali blues
quinta-feira, 28 de abril de 2022
Mas com respeito...
- Valso.
- E polca?
- Polco.
- Tuísto.
- E foxtrota?
- Foxtroto.
- E bolera?
- Bolero.
- E vira?
- Viro.
- E tanga?
- Olha o respeito!...
A sagrada comunhão...
Os ponteiros do relógio andaram um quarto de hora, mas a televisão não: a missa continuava no mesmo sítio. A fila de comungantes não havia maneira de chegar ao fim. A minha sogra agitava-se, os impasses incomodam-na sobremaneira, especialmente se meterem rancho. Levantou-se então do trono e ordenou: - Vamos mas é comer, que isto é povo sem jeito para a sagrada comunhão!...
Ambos os dois
- E agora, quer fruta ou bolo?
- Pode ser - respondeu-me a minha sogra.
- Pode ser o quê? - insisti, até porque a minha sogra é um bocadinho surda quando quer.
- Fruta e bolo - esclareceu a minha sogra, sem sequer olhar para mim.
A minha sogra, eu, o canídeo e a porca
A minha sogra pensava que era eu, para lhe fazer desfeita não sei de quê. E não foi fácil convencê-la de que, com vossa licença, aqueles saralhotos eram evidentemente, com vossa licença, saralhotos de canídeo. E eu sou balança.
Uma vez quase apanhei o infractor com as calças na mão: a merda, com vossa licença, ainda a fumegar, mas o canídeo já a descer o fim da rua com a dona pela trela, e dissesse eu o que dissesse estaria a falar para a central. Calei-me, portanto.
Portanto, calei-me, mas pus-me à tabela, agarrei-me ao Excel, recolhi e cruzei informações, fiz um horário e hoje apanhei-os em flagrante. À horinha, nem mais cedo nem mais tarde, abri de rompante o portão e lá estava a acontecer à minha frente: merda ao vivo, como eu previa e com vossa licença.
Fiz a cara de nojo que trago ensaiada há mais de um ano, e disse:
- Então és tu, minha porca?!...
- Não é uma cadela, é um cão... - empertigou-se-me a dona, histericamente professoral.
- Mas eu não estava a falar para o canídeo, minha senhora...
A invenção da sogra
Consta que os muçulmanos introduziram a nora em Portugal. Gostaria de saber: e quem terão sido os filhosdeputa que nos introduziram a sogra?
P.S. - Hoje é Dia da Sogra. No Brasil.
Desconstrução civil
Cada macaco no seu galho
terça-feira, 26 de abril de 2022
E a baliza era o circo
David Alves ensinava: o melhor guarda-redes do mundo era Clemence, o inglês. Nem o checo Plánicka, nem o russo Yashin, nem o alemão Sepp Maier, nem outros que tais - antes, durante e depois. Era Ray Clemence, que nos anos setenta e oitenta do século passado brilhou ao serviço do Liverpool e da selecção inglesa. E o David sabia do que falava: ele próprio tinha atrás de si uma interessante carreira como guarda-redes, posto que de recatados recursos. Sendo de Fafe, fizera a sua formação nos juniores do FC Porto, passou algumas temporadas no Paços de Ferreira, se não me engano, e ainda o vi jogar pelo Desportivo das Aves, creio que no tempo em que por lá andava também (ou andou pouco tempo depois) um famoso defesa central chamado Kentucky, que só me lembrava os Definitivos, pecados velhos. Por outro lado, o David Alves foi o primeiro José Mourinho que eu conheci. O David era inteligente, culto e visionário, tinha mundo, era um estudioso e metódico transgressor, promovia a acção psicológica: com décadas de avanço, inventou em Portugal aquilo que hoje em dia é corriqueiro em todo o lado. Ele passava o futebol ao papel, e do papel passava o futebol ao campo. E no campo era bonito de se ver. O treino era ciência, os treinos eram aulas - ele levava-me muitas vezes. E era uma prazer ouvi-lo. Se não me engano, o David começou a carreira de treinador no Maria da Fonte, da Póvoa de Lanhoso, e eu pressentia que ele iria longe, muito longe, primeira divisão, estrangeiro até. A vida, porém, não lhe deu tempo para levantar voo...
Por aquela altura, o meu Fafe padecia de um guarda-redes suplentíssimo que tinha o insuspeito nome de Queimado. E, diga-se em abono da verdade, o rapaz era realmente um frangueiro de créditos firmados. Era uma acrobata voador, um contorcionista, um funambulista, um malabarista, um ilusionista até - guarda-redes é que não! O Queimado, que equipava muito bem, adelgaçado, exuberante, calção de licra comprido e justinho, à ciclista, e camisola verde dos pontos, voava de um poste ao outro leve como pluma em bico de pomba branca, pomba branca, inventava cabriolas impossíveis, pinchos sobejamente desnecessários, golpes de rins praticamente incapacitantes, e a bola, ignorada e ressentida, pimba!, sempre no fundo das redes. A baliza, com o Queimado, era um circo sem fundo.
Pois o inglês Clemence era exactamente como o nosso Queimado, mas ao contrário. Era esse o exemplo, era essa a comparação absurda que o David nos apresentava para explicar. Clemence vestia à antiga. Na baliza, era elegante, fleumático, sóbrio, poupado e sobretudo eficaz. Simples. Tinha a bola sempre debaixo de olho, e nunca ninguém o viu voar para ela se ele podia dar um passo ao lado e agarrá-la definitivamente e sem outros sobressaltos. "Um passo ao lado", esta me ficou. Fácil, não é? E era assim que o David Alves ensinava.
Raymond Neal "Ray" Clemence pertence ao restrito clube dos jogadores que fizeram mais de mil jogos oficiais durante a carreira. Morreu em 2020, tinha 72 anos. E deram-me saudades do David Alves, que morreu estupidamente muito mais cedo na idade, e ficámos todos a perder. Portei-me mal com o David, e nunca lhe agradeci como devia todo o bem que ele me quis e fez, tudo o que me ensinou da vida, das vidas. É um dos meus maiores arrependimentos, e oh se tenho tantos! Ia escrever quatro linhas sobre o Clemence, e vejam no que isto deu...
Qualquer dia, quando eu estiver pronto, conto escrever a sério sobre David Alves, o português.
P.S. - Publicado originalmente no dia 5 de Agosto de 2020. Hoje é Dia do Goleiro. No Brasil.
Os fundamentos do jogo e a solidão do guarda-redes
Antes da extraordinária invenção de Luís Freitas Lobo, há registos de quem chamasse futebol àquela coisa simples dos onze contra onze, mas era apenas premonição, um por acaso feliz, um long shot que correu bem, porém sem base científica nem atestado da Junta de Freguesia. Falava-se então nuns tais "esquemas tácticos", como se isso quisesse dizer alguma coisa, mas ninguém sabia nada de entre linhas, de entrefolhos, de verticalidade, de horizontalidade, de diagonalidade, de palavras cruzadas, de sopas de letras, de soduku, de transições rápidas como pensos ou lentas como valsas, da ocupação do espaço, do triângulo invertido, do ménage à trois, do losango, do ângulo recto e da circunferência, do poliedro, da táctica do quadrado, de Aljubarrota, das linhas subidas e da Linha da Beira Baixa, do ADN, da tibiotársica, do conceito, do preconceito, do duplo pivô, sim, do duplo pivô e do implante, do último terço do terreno e do quarto segredo de Fátima. Este avanço no tutano da inteligência universal, um pequeno passo para o homem mas um passo de gigante para a humanidade, devemo-lo a Luís Freitas Lobo e seus discípulos, e não tem preço.
Por exemplo, o guarda-redes. O guarda-redes nunca teve lugar nos tais "esquemas tácticos" amadoristicamente experimentados ante-Luís Freitas Lobo. Eram "onze contra onze", mas o guarda-redes, nem que fosse "o melhor do mundo", não contava para o totobola. O guarda-redes, naquele tempo de trevas, era uma espécie de Santa Bárbara (embora esse fosse do andebol), só se lembravam dele quando acontecia penálti. De resto, havia o 1-1-8, o WM, o 4-2-4, o 3-4-3, o 4-3-3 e o 3-5-2. Sobretudo. E é só fazer as contas, somar os algarismos e ver que dá dez, não onze. Até W mais M é igual a dez. O "onze contra onze" é uma fraude - eram dez contra dez e era um pau, e a bola era redonda mas nem sempre. O guarda-redes realmente não era levado a sério (à séria, se lido em Lisboa) naquele curioso entretimento, eu sei que é entretenimento, e nós, os que só servíamos para a baliza nos muda-aos-seis-e-acaba-aos-doze de miúdos, eu no recreio da Feira Velha ou no Largo do Santo, em Fafe, sabemos muito bem do que estou a falar...
No meu estudo, estribado na vasta obra de Luís Freitas Lobo, tentarei responder à questão magna e que se impõe: o que é que o guarda-redes faz na baliza. E à questão mínima e que nem por isso deixa de se impor: se o guarda-redes souber jogar com os pés deve ser lançado, no período complementar, a extremo direito, quero dizer, a ala, a ala bem aberto? Na faixa?...
Beber, a bem da Nação!
(A minha avó Emília, que era pequerricha e bondosa com um anjo, e era um anjo, fazia uma broa escura, muito saborosa, que se mantinha fresca durante dias e dias. Naqueles tempos, negros de fome e de fascismo, o pão era o principal alimento dos portugueses. O pão e o vinho, como fazia questão de frisar, de forma propositadamente ambígua, a propaganda salazarista. Por ordem expressa de Salazar, beber vinho, naquela altura, era "dar de comer a um milhão de portugueses", e o patriótico e honrado povo de Passos, Cabeceiras de Basto, podia não saber o que era bife nem tinha electricidade nem água, mas sempre deu o litro para que o resto do País não passasse fome. E o resto do país já então era Lisboa.
Beber vinho era, à falta de outros horizontes, um honesto modo de vida. Podia faltar tudo na casa da Bó de Basto, e às vezes faltava muito, mas havia sempre broa com fartura e umas imensas malgas de "amaricano" às quais eu gostava de mandar umas pescoçadas até dizer ahhhhhh!...
Em Basto, as visitas eram recebidas com malgas de vinho e aparas de bacalhau salgado e falava-se como se fôssemos galegos, e a querida Tia Margarida felizmente ainda fala. O almoço era o "jentar", e o jantar era a ceia. E bebiam-se a acompanhar umas valentes pingoletas. Também se bebia durante a merenda, que era aquela meia dúzia de horas de sol que vai desde o "jentar" até à ceia. Bebia-se, portanto, apenas às refeições - quer-se dizer, o dia inteiro. E já agora: o almoço, assim dito, era o café da manhã. E a manhã era madrugada, com música de galos tenores e carros de bois ganindo por unto nas rodas. O café era cevada, feita ao borralho, numa velha chocolateira de barro e tampa tamborileira e dançarina. Que saudades tenho dessa vida e dessa idade, dessas ideias que graças a Deus me ficaram, ainda no outro dia o "dixe" outra vez ao meu tio Al Pacino, o meu querido tio "Jé".
Na Casa do Carreiro comia-se na cozinha, à volta da lareira. Os adultos sentavam-se em compridos preguiceiros, apetrechados com uma conveniente tábua-mesa de levantar e baixar, e os moços ajeitávamo-nos em pequenos bancos de três pernas, os mochos, obra de carpintaria simples e doméstica. Os cães também tomavam posição, anorécticos por conta de outrem, à espera dos ossos que não havia. Levavam troços de couves, cascas de batatas, espinhas de bacalhau de quarto e era um pau.
O chão da cozinha era mesmo chão, rupestre, uma terra negra do fumo e da fuligem, dos anos e vidas de uso e das águas entornadas que lhe davam uma consistência de betão. Sim, as águas dos potes ferventes ou da banca de lavar louça (atenção!, uma banca de madeira), quando já desnecessárias, eram ali mesmo esparramadas, voltando a reunir-se, acho que me estou a lembrar bem, numa espécie de rego que as levava finalmente até lá fora, até ao carreiro que dava o nome à casa. Como bilhar viciado, o chão da cozinha descaía para o lado do carreiro, e tudo ajudava à limpeza. Depois era só esperar que secasse um pouco e varrer com uma vassoura de giestas apanhadas no monte. (E já lá iremos, ao monte.)
Era neste chão que eu às vezes deixava cair o meu megalítico naco de pão, quase sempre um bom pedaço de côdea, que era do que eu mais gostava. A minha avó, mansamente, para que o meu avô não se zangasse comigo, dizia apenas:
- Apanha o pão. É pãozinho do Senhor. Dá-lhe um beijinho e já o podes comer...
E eu beijava o pão e comia-o, com todo o respeito, como se estivesse na igreja a comungar. E o meu avô nunca se zangou comigo. Ele, que tinha um zangar tão fácil com toda a gente...
Não sei de onde veio esta ideia antiga, se estará mesmo ligada à fé, à religiosidade popular, ao pão que é o corpo de Cristo. Acredito mais que era sobretudo a pobreza a defender-se, consciente da importância do pão na mesa, o pão que, ontem como hoje, era a única fartura, a última fronteira para a fome. O respeito pelo pão era o respeito pela fome. E ninguém respeita tanto a fome como os pobres.)
Mas a história prometida. Pois marido e mulher, os tais, esses, os do primeiro parágrafo, também bebiam a sua pinguinha, isto é, davam-lhe pesado e faziam horário completo, de domingo a domingo, que o regime político não admitia gazeta. Que se segue: de vez em quando, à noite, o caldo entornava-se. Fosse pelo vinho, fosse pela falta de petróleo na candeia, que se chamava "luz", fosse pelo empurrão traiçoeiro do lume da lareira, o casal desavinha-se. Nada de grave ou físico, apenas desconversa. Ralhava um, ralhava o outro, cada qual ameaçava que: "Caralho que!...", mas nada. Até que uma maré, ele - só podia ter sido ele -, sacramentalmente dono da última palavra e mortinho por ir para a cama, arrumou a questã da melhor maneira que soube e pôde, que foi, virando-se para ela: "Ora meta-me o cu pelo nariz acima". Para logo remendar, coçando as partes com um entusiasmo que só visto: "Ora vá bardamerda, que até me enganei". E depois foram fazer meninos um com o outro, que naquela terra era assim e muito.
Enciclopedista fortuita, inocente, alma fora da geografia e do tempo, a querida Bó de Basto alimentava-nos também o espírito. Lendas, contava-as que era uma categoria. Eram lendas mansas, de embalar, metiam mouras encantadas, príncipes, penedos. Penedos de morar, lembro-me bem e eu queria um. Eram contadas à lareira, depois da ceia, com o vermelho do fogo a bailar-nos nas caras espectrais, eu de olhos arregalados e boca aberta, uma e outra vez, como se fosse sempre a primeira. Os efeitos especiais das histórias da avó - esperta, santa sem diploma, anjo sem asas à vista - foram muitos anos mais tarde copiados pelo cinema americano. Até aquele famoso jogo de sombras manipulado pela irrequieta chama da candeia, coisa extraordinária e assustadora - era das histórias da minha avó. E o vinhinho aquecido ao borralho com uma maçã assada lá dentro também, mas isso parece que os filmes não aproveitaram.
Na manhã seguinte, pela fresca, íamos à lenha ao monte. Eu e e minha avó, maravilhosa guardadora de lendas e tudo. E a Bó mostrava-me o penedo, o exacto penedo da moura encantada, a frincha de entrada, não havia dúvidas. Ainda por cima, até as lendas da minha avó eram verdade. Como poderia mentir-se acerca do pão?
A querida Bó de Basto contava belas histórias. E éramos felizes para sempre.
Em Basto, no Inverno, era noite logo às cinco da tarde ou antes, mas ninguém se queixava e nasciam muitas crianças. Em Portugal era noite há mais de quarenta anos, e outros estariam em pior situação, suspeitava-se de bico calado lá naquele fim do mundo alumiado a "pitroil", e nunca percebi como é que aquele povo todo não morreu vítima de uma epidemia de incêndios vínicos e domésticos. Já agora: se a "luz" fosse a pilhas, uma novidade que chegou a Passos com o atraso considerado pelas autoridades como o mais conveniente, então chamava-se "foxe", devendo dizer-se "focse"...
segunda-feira, 25 de abril de 2022
Chorei por Marcelo e depois ri-me
Junho de 1973. De visita a Londres, Marcelo é recebido por uma manifestação de protesto contra a presença de Portugal nas então chamadas províncias ultramarinas e, de uma forma geral, contra a política africana do Governo português. "Portugal no more massacres. Get out of Africa now!", lê-se em alguns cartazes. Eu nem queria acreditar. Os meus olhos viam a preto-e-branco o que se passava no televisor do bar dos Bombeiros de Fafe, que eu tinha só para mim naquela hora do meio-dia, e a revolta transformava-se-me em choro. Chorei de raiva. Como se atreviam?! Que vergonha! Que falta de respeito! Angola é nossa e ponto final, ainda que o caso fosse Moçambique.
No regresso a Lisboa, Marcelo foi graças a Deus surpreendido por uma manifestação espontânea muito bem preparada, uma manifestação a bem da Nação, de desagravo pessoal e de apoio às políticas africanas do Governo, uma manifestação contra a manifestação de Londres, mas com muito mais povo, muitas mais camionetas, muitos mais letreiros, muitos mais garrafões de vinho e salpicões e muitos mais Vivas!, toma lá ò camone a ver se gostas..."Não esperava esta manifestação, mas compreendo-a", dizia modesto Marcelo, do alto da varanda do Palácio de São Bento, rodeado pelos pândegos mandadores de Vivas! E depois falou de política, mas isso já não me interessava. Eu estava outra vez comovido, agora de auto-satisfação patriótica, de respeitoso respeito a Sua Excelência. Quem me dera estar lá também com o garrafão. Ainda por cima eu nunca tinha ido a Lisboa e o vinho devia ser de graça. Chorei, pois claro que chorei, e as lágrimas já me toldavam o preto-e-branco do aparelho, mas saí dali de alma lavada e, se querem que lhes diga (e ainda que não queiram), também eu algo desagravado. E então ri-me. Junho de 1973. O Marcelo era Caetano e eu não sabia nada.
P.S. - Publicado originalmente no dia 17 de Agosto de 2020.
As paredes tinham ouvidos. E os soalhos também.
Tínhamos pontos de vista, prismas, ópticas, enfoques, perspectivas e até ângulos. Amontoávamo-nos em duas ou três mesas, perdíamo-nos noite dentro naquela conversa transversal, ecuménica, polifónica, finamente regada, em que toda a gente metia o bedelho, até os filhos da puta dos bufos da Pide, que aproveitavam para incendiar o assunto a ver o que aquilo dava. De uma forma geral, os bufos da Pide não eram nada bufos da Pide: autoproclamavam-se, faziam-se passar por bufos da Pide, salazares dos pequeninos, só para meterem medo, que era a coisa mais parecida com sexo que conheciam, ou para pavonearem um poder que nunca tiveram, nem em casa, onde levavam no focinho e bico caldo. Eram filhos da puta, isso é certo, e em Fafe havia.
O 25 de Abril de 1974 veio realmente liberalizar o paleio à roda do cimbalino, mas nós nem precisávamos. Já há muito que falávamos pelos cotovelos e comíamos tremoços. Ou cascas, à falta de conteúdo e de dinheiro no bolso. Mas não interessava - a conversa, para nós, era tudo.
Portanto agora dá-me pena: de conversa, que é livre e de graça, estamos conversados - acabou-se, até no café, parece-me impossível. Eu, que actualmente não frequento, passo pelas montras e vejo: uma pessoa em cada mesa, cabeça enfiada no computador portátil, telemóvel colado ao ouvido, dedo saltitante a gatafunhar mensagens analfabetas e com carinhas redondas e amarelas, ninguém conhece ninguém, ninguém fala com ninguém, parece que estão todos proibidos uns dos outros.
Nos restaurantes, o mesmo desconsolo. A família senta-se à mesa e ninguém pia. Vai-se ao bolso, rapa-se do telemóvel (permitam-me que continue com a generalização, para mim aqueles aparelhos que não distingo são todos telemóveis) e ignora-se com assinalável obstinação o irmão do lado direito, o padrinho do lado esquerdo, o pai e a mãe em frente, a avó na cabeceira para pagar a conta, ainda por cima. E não são só os miúdos. Também os graúdos, nomeadamente graúdas, cinquentonas, casadas assim assim ou tias praticamente por estrear, esfregando, esfregando o ecrã da lamparina mágica, vai ser desta que vão ser felizes...
É. As pessoas julgam que falam umas com as outras, mas não falam. Aquela ideia romântica de conversa morreu e foi enterrada. As pessoas hoje em dia são perfis, esgotam-se na "conversa" com os "amigos" do Facebook que não conhecem de lado nenhum, talvez valha uma pinadela. As pessoas esbanjam todas as suas doutas opiniões, todos os seus espertíssimos achismos, na Antena Aberta da rádio Antena 1 e no Fórum Sport TV. (Desculpem-me o parêntese: para mim nem é dia nem é nada se não ouço o que têm a dizer o senhor José Fonseca, 45 anos, informático, da Amadora, sobre a problemática do 4-1-3-2 de Jorge Jesus, ou o senhor Afonso Palheta, 53 anos, aposentado, do Marco de Canaveses, a propósito da política de reflorestação do País.). Depois, as pessoas chegam ao café, chegam à mesa do restaurante, ou chegam a casa, sítios da conversa antiga, cara a cara com outras pessoas de carne e osso, e ficam caladas e sós. Sós umas das outras. São criaturas sem assunto, estão vazias: já disseram tudo e não era nada.
(Atenção! As cascas de tremoços eram roubadas da mesa do lado e são, é preciso que se note, o melhor que há logo a seguir aos tremoços propriamente ditos, sobretudo em caso (e era o caso) de cotão nos bolsos. Melhor, só mesmo lamber e raspar com os dentes o papel do pão-de-ló, que era a segunda coisa melhor logo a seguir ao pão-de-ló propriamente dito, que eu via ao longe uma ou duas vezes ao ano...)
As visitas da Veneranda Figura
Foto Tarrenego! |
As visitas da Veneranda Figura ao Portugal corno manso eram, não raro, momentos de alto fervor nacionalista e profunda reflexão cultural. Sua Excelência o Senhor Presidente da República - ou O Padeiro, na versão abreviada - tinha o condão da palavra certa. Humanista dos sete costados, enciclopedista dado a calendário, geografia e contas de somar, Américo Tomás abria a boca para espirrar e saíam-lhe pérolas, orações de sapiência. Num país de troca-tintas e fala-barato de nascimento, o rigor e o donaire na afirmação são a superlativa herança que o marido de Dona Gertrudes fez o obséquio de nos deixar.
Por exemplos:
1. "Hoje visitei todos os pavilhões, se não contar com os que não visitei."
2. "É uma terra [Manteigas] bem interessante, porque, estando numa cova, está a mais de 700 metros de altitude."
3. "Comemora-se hoje em todo o país uma promulgação do despacho número cem, a que foi dado esse número não por acaso mas porque ele vem na sequência de outros noventa e nove anteriores promulgados."
4. "Neste almoço ouvi vários discursos, que o governador civil intitulou de simples brindes. Peço desculpa, mas foram autênticos discursos."
5. "Eu prolongo no tempo esse anseio de Vossa Excelência e permito-me dizer que o meu anseio é maior ainda. Ele consiste em que, mesmo para além da morte, nós possamos viver eternamente na terra portuguesa, porque se nós, para além da morte vivermos sempre sobre a terra portuguesa, isso significa que Portugal será eterno, como eterno é o sono da morte."
6. "Hoje tivemos um dia sumamente positivo: de manhã assistimos à santa missa e de tarde inaugurámos o monumento ao bombeiro."
7. "Pedi desculpa ao Senhor Engenheiro Machado Vaz por fazer essa rectificação. Mas não havia razão para o fazer porque, na realidade, o Senhor Engenheiro Machado Vaz referiu-se à altura do início do funcionamento dessa barragem e eu referi-me, afinal, à data da inauguração oficial. Ambas as datas estavam certas. E eu peço, agora, desculpa de ter pedido desculpa da outra vez ao Senhor Engenheiro Machado Vaz."
8. "A minha boa vontade não tem felizmente limites. Só uma coisa não poderei fazer: o impossível. E tenho verdadeiramente pena de ele não estar ao meu alcance."
9. "O Senhor Professor Oliveira Salazar, ao longo de mais de trinta anos, é uma vida inteiramente sacrificada em proveito do País, e, desconhecendo completamente todos os prazeres da vida, é um homem excepcional que não aparece, infelizmente, ao menos, uma vez em cada século, mas aparece raramente ao longo de todos os séculos."
10. "Esta é a primeira vez que estou cá desde a última vez que cá estive."
Convivi pessoalmente a uma distância razoável com Américo Tomás. Uma vez. Quando a Veneranda Figura foi a Fafe, num esplêndido Rolls-Royce descapotável negro como era a vida e guardado por uma matilha de impressionantes motos da GNR. Foi inaugurar por atacado a "nova" Câmara Municipal, o Tribunal, que tinha sido cadeia, e a escola do Santo Velho - estaríamos, se não me engano, nos finais da década de mil novecentos e sessenta. E decerto O Mais Alto Magistrado da Nação por lá deixou algumas das suas proverbiais patacoadas, mas não tenho a certeza: eu teria talvez onze anos porém já não lhe botava sentido. Preferia fazer pouco dele, O Padeiro, e a moçarada à minha volta, agitando impostas bandeirinhas nacionais presas por arames e muitos Viva o Senhor Presidente da República!, e eu escangalhava-se a rir, conferindo definitivamente ao acto o significado (ou a in-dignidade) que realmente lhe assistia.
Embora sem selfies, que ainda estavam por inventar, Tomás era o circo e mais nada. O Presidente da República nunca encontrou palavras de jeito para falar ao Portugal dos pequeninos. Ele não as sabia e ninguém lhas ensinou ou escreveu.
P.S. - Publicado originalmente no dia 29 de Julho de 2013.
domingo, 24 de abril de 2022
Era uma vez o fascismo
Mas vamos ao que interessa: Fafe. Fafe dos anos sessenta do século passado, no vestíbulo da Revolução. Naquele tempo Fafe era uma terra tão fascista como todas as outras terras de Portugal, mas, convém não esquecer, muito mais antifascista do que a maioria. Fafe tinha evidentemente Legião Portuguesa, Mocidade, Concordata, União Nacional, grémios, casas do povo, chapéu na mão, fascistas desde pequeninos, salazaristas mais que o próprio, bufos da Pide, falsos bufos da Pide, simples filhos da puta e regedores de pistola à cinta, mas tinha também a Fábrica do Ferro, o Bugio, operários informados, comunistas, associações culturais, grupos de teatro, jornais, o Senhor Teixeira e Castro, gente a querer saber, o Senhor Maciel, o Teatro-Cinema, a Dona Laura Summavielle, o Major Miguel Ferreira, dezenas de presos políticos, o Café Avenida, o Senhor Saldanha, o Senhor Ferreira do Hospital, outros senhores saldanhas e ferreiras do hospital de quem não sei ou não me lembro agora. Fafe teve mártires do fascismo. Procurem-nos na antiga Feira Velha: estão lá dois nomes importantes - Joaquim Lemos de Oliveira, o Repas, e Gervásio da Costa, fafenses que deram a vida pela Liberdade. Foram levados, torturados e assassinados pela Pide.
O nomes continuam lá, não continuam? A praça foi baptizada por causa deles, dos nossos, fafenses, Mártires do Fascismo. O Repas e o Gervásio. Não era uma homenagem urbi et orbi a todos os mártires de todos os fascismos, de todos os sítios e de todos os tempos. Os nomes dos nossos continuam lá na nossa praça, não continuam? Digam-me que sim, por favor, nem que seja mentira.
A Mocidade Portuguesa (Organização Nacional Mocidade Portuguesa) tinha bandeiras dos Heróis do Mar e as bandeiras chamavam-se pendões ou estandartes, tinha fardas catitas, toques de clarim e toque de caixa, cintos com S de Salazar na fivela, comandantes-de-castelo, saudação nazi-fascista e hino privativo, Lá vamos, cantando e rindo, levados, levados, sim. Tinha também umas mochilas de lona verde-acastanhada muito jeitosas e tinha tendas, pás, picaretas, cantis e acampamentos, e eu invejava o mundo de aventuras daquela moçarada. E tinha a Chama, assim com capitular.
A Chama era um sarau realizado ao ar livre e à volta de uma fogueira com as achas obsessivocompulsivamente organizadas num círculo mais que perfeito: diziam-se poemas, cantava-se, representava-se teatrinho, ensinavam-se urbanidades, exaltava-se o amor à Pátria. Uma vez houve uma Chama nas traseiras da Escola Industrial, aquele pequeno terreiro hoje esmagado pelo anfiteatro da Biblioteca Municipal de Fafe, o que demonstra mais uma vez que, como dizia o saudoso Eduardo Guerra Carneiro, "isto anda tudo ligado". Era do lado da frente da escola, actualmente jardim da Casa da Cultura, que a Mocidade montava formatura ao fim-de-semana, para depois arruar vila adiante, e eu atrás, de passo certo, levado, levado sim...
Mas a tal Chama. Eu fui ver. Do meu Santo Velho ao Santo Novo, onde ficava a Escola Industrial, eram campos de milho e quintais com árvores de fruta, para além de uma ou duas ramadas de uvas de onde, na época, gaipelávamos a bom gaipelar até nos desfazermos em tremendas caganeiras, com licença de vosselências. Por aí ia. A meio do caminho havia uma nora desactivada, mais à frente uma mina já com motor, creio que do Sr. Mijão, e o que eu gostava de carregar no botão verde e pôr a geringonça a aguar, sufocando-a logo a seguir com o botão vermelho, para fugir dali a cem à hora, antes que quem de direito desse pelo basqueiro e corresse a esticar-me o orelhame.
Queria também confessar o que se segue, porque esta memória não me larga: o casarão de lavrador anexo ao velho edifício onde funcionava a Escola Industrial tinha uma espécie de túnel, obra em arco, baixinho, esconso, escuro, por onde se passava de um lado para o outro, das traseiras para a frente ou vice-versa, e ali se faziam umas belas emboscadas para apalpar moças, infelizmente com mais vontade do que jeito. Hoje chamam àquilo tudo Avenida das Forças Armadas e é muito bem feito.
A Chama foi uma merda. Os miúdos (mais velhos do que eu, é preciso que se note) representavam muito mal, os poeminhas eram lengalengas, as cantigas desafinadas, e pela primeira vez na minha vida a começar assisti a uma branca: uma menina ou um menino tinha decorado qualquer coisa para dizer mas não se lembrava de quê - e, depois de várias tentativas a seco, encharcou definitivamente e desatou a chorar. Fiquei triste com ele (ou ela), mas não fiquei freguês.
(Especialistas em fivelas de cintos garantem que o S nas fivelas dos cintos da Mocidade Portuguesa não tinha nada a ver com Salazar, posto que quereria dizer, isso sim, "Servir no Sacrifício" ou somente "Servir". Ou Sabrina. Pois. E as SS eram a Segurança Social do Terceiro Reich, Hitler chamava-se assim para não se confundir com Hernâni e o Z não é de Zorro mas de Zeferino. A mim faz-me uma certa diferença: o Zorro sou eu, desde os livrinhos do Marreca, e Zeferino realmente não me dá jeito nenhum.)
P.S. - Publicado originalmente no dia 17 de Setembro de 2017.
Quando se perdia a mondinense
A Mondinense disputava então com a João Carlos Soares o negócio do transporte rodoviário colectivo de passageiros entre Porto e Fafe e vice-versa. Eu era passageiro. Sou passageiro. Os asmáticos autocarros da Mondinense, que, se não me engano, faziam a viagem pela serra da Agrela, via Santo Tirso, numa espécie de breve apresentação turística à Rota da Prostituição de Baixa Montanha, tinham escritório numa obscura garagem à beira do desabamento e tresandando explosivamente a mijo, vomitado, fumo e gasóleo, ali para os lados do portuense Jardim de São Lázaro. A Mondinense era isso. E a João Carlos Soares é Arriva.
P.S. - Publicado originalmente no dia 10 de Fevereiro de 2019. Hoje é Dia do Agente de Viagens. No Brasil.
sábado, 23 de abril de 2022
E apeteceu-me dar-lhe um abraço
O homem caminhava vagarosamente ao lado da mulher. Curvado pelo peso de, fiz as contas, setenta e tantos anos bem medidos, caminhava ainda assim com uma dignidade evidente. O homem velho, de casaco e digno, pé ante pé até ao café de praia e ao milagre do sol-pôr, levava as mãos atrás das costas. E nas mãos, reparei, um livrinho da Colecção Vampiro, a antiga: "O Imenso Adeus", de Raymond Chandler.
Caramba!, és cá dos meus - pensei. E apeteceu-me dar-lhe um abraço...
Sempre a destoar, eu
Entro no metro. Viagem curta, de Matosinhos Sul até à Senhora da Hora, apenas quinze minutos e mudança de linha para Vila do Conde. Sento-me num daqueles bancos frente com frente, éramos quatro, dois de cada lado e, se fosse futebol, a bola seria redonda. Ninguém conhecia ninguém. Os dois rapazes e a rapariga, os três mais para os trinta do que para os vinte, cabeças para baixo e graves, rapam dos bolsos os respectivos telemóveis como se se conhecessem de outras encarnações e estivessem combinados, e jogam, ela, e mensajam, eles, automaticamente, ignorantes uns dos outros, numa simbiose perfeita. Eu vou à mochila e tiro o livro. "Kafka à Beira-Mar", de Haruki Murakami. Pensei: é o que diz a minha mãe - sempre a destoar, eu.
Para ti flores, perfumes. Para mi, algunos libros.
Ameaçava ameaçar chover. Vi uma daquelas livrarias de campanha montada mesmo à frente do meu nariz, no largo da estação de metro da Trindade, e entrei. Lá dentro, o refugo do costume ao habitual preço da uva mijona, nada de razoavelmente interessante, mas às vezes nunca se sabe...
Uma simpática funcionária, diria entre os trinta e muitos e os quarenta e poucos, abeirou-se-me e perguntou, de sorriso engatilhado:
- Posso ajudá-lo?
- Ando só a ver, muito obrigado. Mas, já agora, diga-me, por favor: tem alguma coisa do Montalbán?
- De quem?
- Do Vázquez Montalbán, histórias do Pepe Carvalho...
- Quem?
- Pepe Carvalho.
- Saiu este ano?
- Não. No geral, são livros já com uns anitos...
- E o género?
- Policial, talvez. Mas dizer policial é dizer muito pouco. Policial literário e gastronómico, se for possível, e de repente não sei dizer melhor...
- Pepe Carvalho? Esse autor acho que não temos.
- Desculpe. O autor é Manuel Vázquez Montalbán. O herói dos livros é que se chama Pepe Carvalho, detective privado de origem galega e estabelecido em Barcelona, uma espécie de Sherlock Holmes espanhol, mas mais verosímil e versão séculos vinte-vinte e um.
- Então é conhecido em Espanha...
- Quem? Eu?
- Não. Esse tal Pepe....
- Acredito que sim, e em Portugal também. E no resto do mundo, se calhar. Não é que seja abonatório por aí além, mas até já fizeram filmes de um ou dois livros do Montalbán, quer ver?
Resolvi ser eu a ajudar a solícita porém desinformada funcionária. Ando exactamente a reler a Série Pepe Carvalho que as Edições ASA em boa hora começaram e em má hora interromperam, após a eucaliptal intervenção da Leya. Fui à mochila e saquei o "Assassinato no Comité Central", que por acaso acabei ainda na espera desse princípio de tarde. Expliquei à senhora:
- Vê?
- Ah! Montalbán é que é o autor. Eu estava a perceber que Pepe Carvalho é que...
- Esta era uma belíssima colecção da ASA que infelizmente...
- Ah! Livros da ASA não tenho.
- Mas Montalbán já foi publicado em português por outras editoras, pelo menos pela falecida Regra do Jogo e pela Caminho, se não me engano, há até uns livrinhos de bolso, tenho um, "As Termas"...
- "Assassinato no Comité Central", esse aí...
- Olhe, foi um dos que deram filme. Neste, quem faz de Pepe Carvalho no cinema é, veja lá, o Patxi Andión...
- Quem?
- O Patxi Andión, o famoso cantor espanhol, o cantautor, o poeta, o escritor...
- Não estou a ver...
- Então, o Patxi Andión, ainda outro dia esteve aqui na Casa da Música...
- Não, não conheço. E até gosto de música espanhola, mas não da música pimba...
- Minha senhora, o Patxi Andión...
Ia gastar mais um pouco do meu atamancado latim para explicar à gentil funcionária quem é Patxi Andión, que vem a Portugal desde o tempo do Zip Zip, contar-lhe da amizade antiga com Ary dos Santos e com Zeca Afonso, mas desisti. Preferi ser agradável e mentir com quantos dentes tenho, e são todos menos os sisos inferiores. Disse:
- ... Pois, evidentemente a menina é nova demais para conhecer o Patxi, o Pepe e o Montalbán. A menina é de uma geração tipo mais... tipo.
- Ai não se deixe enganar pela aparência. Estou é muito bem conservada... - devolveu-me a amável funcionária, enfim sorrindo, e corando de satisfação e vaidade.
Ficou cientificamente provado: a ignorância é óptima para a pele, muito melhor do que baba de caracol. A ignorância é o verdadeiro elixir da juventude. Por outro lado, as bifanas estavam di-vi-nais, como, em apenas três palavras, diria o meu irmão Nelo. E o Lopes, que me dá livros e parece que é bruxo, trouxe-me "O Seminarista", de Rubem Fonseca. "O Seminarista"! Só tenho quem me goze...
P.S. - Publicado originalmente no dia 10 de Abril de 2015. Entretanto Patxi Andión morreu no dia 18 de Dezembro de 2019.
Os livros
A teia da Leya
Novembro de 2006 bateu-me à porta com uma grande notícia: todos os livros do escritor catalão Manuel Vázquez Montalbán (1939-2003) com o detective privado Pepe Carvalho iam ser publicados, ou republicados, em português. Era um projecto das Edições ASA e, ao que foi então tornado público, uma aposta pessoal do seu director-geral, Manuel Alberto Valente, confesso admirador do autor de "Eu Matei Kennedy".
Montalbán tinha-me sido ensinado pelo meu amigo Luís Lopes, que me emprestara tudo o que Portugal conhecia da série Pepe Carvalho, que eram para aí uns cinco ou seis títulos, isto, se bem me lembro, lá pelos finais da década de 1980, princípios da década de 1990. E foi tiro e queda, tiro limpo, bem no meio do coração: tornei-me vázquez-montalbanista. Em 1999, pelos meus anos ou pelo Natal, alguém que sabia da minha paixão e que se me varreu fez o favor de me oferecer "O Quinteto de Buenos Aires". A esse respeito, aqui vai o meu mais sentido muitíssimo obrigadíssimo não sei a quem.
Com a minha mania de devolver ao dono o que me é emprestado, "O Quinteto" era tudo o que eu tinha de Pepe Carvalho quando soube da magnífica novidade. Fui logo a correr fazer a reserva de toda a colecção, 22 livros que deveriam ir saindo ao longo de uma meia dúzia de anos.
Saíram "Milénio I" e "Milénio II", trabalho que Montalbán revia quando foi acometido de um fulminante ataque cardíaco em Banguecoque, cenário de outro título da série que também foi publicado, "Os Pássaros de Banguecoque"; saíram ainda "Assassinato no Comité Central" e "Os Mares do Sul"; e não saiu mais nada.
Nos inícios de 2008, a Leya, de Miguel Pais do Amaral, abocanhou a ASA e mais não sei quantas editoras nacionais, Manuel Alberto Valente foi-se embora e o Pepe Carvalho de Manuel Vázquez Montalbán, que já passara por tantas e de todas se safara, morreu mesmo ali, sem direito a notícia no jornal, quanto mais missa de sétimo dia.
Fui às livrarias, procurei saber o que acontecera. Se vissem como eu vi o desconsolo com que as caras e os silêncios dos livreiros me falaram da Leya, do mal que o quase-monopólio da Leya está a fazer ao mercado do livro em Portugal, do sufoco imposto pela teia da Leya, então perceberiam porque me inquietei.
Passei dois anos a questionar directamente a Leya, por e-mail. Perguntava, respeitosa e repetidamente: vão retomar a publicação da série? Quando? Nunca me responderam. Dois anos, até desistir. Mas nunca me responderam. Os mesmos que, abusando do conhecimento do meu endereço electrónico, ainda ontem me enviaram o seu habitual folheto de supermercado livreiro, cheio de inutilidades editoriais mas "com descontos até 40%".
P.S. - Publicado originalmente no dia 24 de Agosto de 2011.
O livro
sexta-feira, 22 de abril de 2022
Pessoas estranhas
Dá-me para pensar cada uma...
Sempre alerta
Nas desbragadas palavras do humorista brasileiro Juca Chaves, os escuteiros são "um bando de garotos vestidos de idiotas, comandados por um idiota vestido de garoto". E consta que o famoso menestrel teve de pedir desculpas pela piada.
P.S. - Hoje é Dia Mundial do Escutismo.
A língua brasileira
A língua portuguesa, também designada português, é falada e escrita por uns quantos velhos e teimosos como eu.
Desorientação sexual
quinta-feira, 21 de abril de 2022
Abana mas não cai
A Terra tem diversos movimentos. Os mais famosos movimentos da Terra são o movimento de rotação, que é a Terra a andar egocentricamente à volta de si mesma, tipo Jorge Jesus, e o movimento de translação, que é a Terra, agora modesta e submissa, a andar à volta do Sol. Ora bem. O que me espanta é que tanto safanão não desequilibre a Terra nem a faça entornar os oceanos ou despencar por aí abaixo os desgraçados habitantes do hemisfério sul que praticam o pino durante o ano inteiro. Quer-se dizer: não desequilibra mas incomoda. E por estas e por outras é que a Terra anda ligeiramente chateada nos pólos.
P.S. - Hoje é Dia da Terra ou Dia Mundial da Terra ou Dia do Planeta Terra ou Dia da Mãe Terra. É também Dia Nacional do Património Geológico.
Intervenção siderúrgica
Submetido de urgência a uma intervenção siderúrgica, não sobreviveu, derivado a ferimentos e queimaduras de altíssimos e variegados graus. Quer-se dizer: a língua portuguesa é deveras traiçoeira...
P.S. - O projecto de lei que previa o estabelecimento da indústria siderúrgica em Portugal foi apresentado ao Parlamento no dia 21 de Abril de 1914. No mesmo dia e mês, mas em 1961, foi inaugurada a Siderurgia Nacional, que passaria a consumir os minérios de ferro de Moncorvo, Orada e Cercal, vindo a assimilar ainda a gusa produzida pelos altos-fornos de Canas de Senhorim. Curiosamente, o Brasil assinala hoje o Dia do Metalúrgico.
quarta-feira, 20 de abril de 2022
Stultorum infinitus est numerus
Declinando
No mecânico
A diferença
terça-feira, 19 de abril de 2022
O mundo e mais nada
O mundo divide-se em duas partes: polícias e ladrões, índios e cobóis. O resto é desculpa, distracção...
P.S. - Hoje é Dia do Índio. No continente americano.