Foto Hernâni Von Doellinger |
terça-feira, 31 de janeiro de 2017
Abençoado juiz
- Levante-se o réu - disse o juiz. O réu levantou-se e andou, perante o espanto e a comoção gerais. Abençoado juiz! Só naquela semana já era o quarto milagre...
Luís de Montalvor
Baby!
Baby! Sossega a tua voz. Não digas mais
Essas canções do Mundo. Deixa que eu esqueço
Que fui menino ao colo de seus pais.
Deixa! Que o coração em si mesmo o adormeço...
Com olhos de criança olho os desiguais
Dias e nuvens, sós, passando, e empalideço...
Canto de Prometeu todo desfeito em ais!
E a vida, a vida até, brinquedo que aborreço...
Mundo dos meus enganos como a desventura!
Experiência, - pobre fumo! Anela o meu cabelo
E põe-me o bibe azul e antigo da Ternura...
Que a vida, essa Babel desfeita que se embala,
ainda é para mim - criança de Deus, pesadelo
Da infância das fanfarras, fogo de Bengala!
Luís de Montalvor
(Luís de Montalvor nasceu no dia 31 de Janeiro de 1891. Morreu em 1947.)
Baby! Sossega a tua voz. Não digas mais
Essas canções do Mundo. Deixa que eu esqueço
Que fui menino ao colo de seus pais.
Deixa! Que o coração em si mesmo o adormeço...
Com olhos de criança olho os desiguais
Dias e nuvens, sós, passando, e empalideço...
Canto de Prometeu todo desfeito em ais!
E a vida, a vida até, brinquedo que aborreço...
Mundo dos meus enganos como a desventura!
Experiência, - pobre fumo! Anela o meu cabelo
E põe-me o bibe azul e antigo da Ternura...
Que a vida, essa Babel desfeita que se embala,
ainda é para mim - criança de Deus, pesadelo
Da infância das fanfarras, fogo de Bengala!
Luís de Montalvor
(Luís de Montalvor nasceu no dia 31 de Janeiro de 1891. Morreu em 1947.)
Joaquim Esteves da Silveira
A noviça
Ei-la prostrada, tão sozinha e triste,
No silêncio do templo - humilde, orando!
Ei-la a rir-se com os anjos, arroubada,
Um riso só dos lábios - que no peito
Açoita imensa dor, que a mata aos poucos!
[...]
Joaquim Esteves da Silveira
(Joaquim Esteves da Silveira nasceu no dia 31 de Janeiro de 1832. Morreu em 1855.)
Ei-la prostrada, tão sozinha e triste,
No silêncio do templo - humilde, orando!
Ei-la a rir-se com os anjos, arroubada,
Um riso só dos lábios - que no peito
Açoita imensa dor, que a mata aos poucos!
[...]
Joaquim Esteves da Silveira
(Joaquim Esteves da Silveira nasceu no dia 31 de Janeiro de 1832. Morreu em 1855.)
segunda-feira, 30 de janeiro de 2017
Orquestra de Jazz Matosinhos, 20 anos
Foto Hernâni Von Doellinger |
A Orquestra de Jazz Matosinhos assinala o seu vigésimo aniversário com um concerto na Real Vinícola, hoje, a partir das 21h30. A entrada é livre mas limitada à lotação do espaço. A Real Vinícola, quase pronta para acolher a Casa da Arquitectura, fica na Avenida Menéres, 456, Matosinhos Sul. Mais informação, aqui. E acerca da foto, aqui e aqui e aqui e aqui.
Lições de História 14: Carlos Magno
Carlos Magno nasceu em 742, filho de Pepino o Breve e de Berta de Laon, também conhecida como Berta dos Pés Grandes. Foi rei dos Francos e imperador do Ocidente, entre outros empregos e honrarias. Mais papista do que o Papa quando lhe dava jeito, conquistou meia Europa e teve, que se saiba, pelo menos quatro mulheres: Desiderata, Hildegarda de Vinzgouw, Fastrada e Luitgarda. Parece impossível que hoje seja apenas presidente da ERC, Entidade Reguladora para a Comunicação Social.
Castelao 4
Aínda eu era estudante cando se criou no meu maxín a idea de facer un cabezudo, e, como na mocedade todo semella ledo e facedeiro, busquei o tipo máis laído da vila para que tódolos veciños escachasen de risa, sen facerme cargo da miña falla de caridade.
Traballei de firme para remata-la obra, que xa era sonada polo meu creto de mañoso, e xa figuraba en letras de molde no programa de festas.
E chegou o día. Na praza non collía unha agulla. No adro da eirexa un rapaz toco portaba un feixe de foguetes debaixo do brazo, e o fogueteiro soplaba na mecha, agardando a primeira badalada das doce.
De súpeto tanxeron os sinos, estalaron os foguetes e unha «ben afinada banda» rompeu a tocar. A cousa xa non tiña remedio. Saíu o meu cabezudo e no mesmo intre a xente escachou a rir, como facía nas comedias dos titiriteiros.
- ¡É Peito de Lobo! ¡É Peito de Lobo!
I entón nun curruncho da praza xurdiron chíos firentes de mulleres que non daban atafegado un orneo que chegou a min coma un tremer de terra. Era Peito de Lobo que quería esnaquizarnos: ó cabezudo e mais a min.
Co medo que papei non puden gorenta-lo carneiro da festa. A cousa non era para menos. Peito de Lobo nunca quixo poñerlle man ós fillos por medo de romperlle os ósos, e contan que unha vez, querendo botar un barco ó mar, afundeulle o costal co lombo. Era moito home para min, que xa me sentía desfrangullado nas súas poutas de ferro.
Traballei de firme para remata-la obra, que xa era sonada polo meu creto de mañoso, e xa figuraba en letras de molde no programa de festas.
E chegou o día. Na praza non collía unha agulla. No adro da eirexa un rapaz toco portaba un feixe de foguetes debaixo do brazo, e o fogueteiro soplaba na mecha, agardando a primeira badalada das doce.
De súpeto tanxeron os sinos, estalaron os foguetes e unha «ben afinada banda» rompeu a tocar. A cousa xa non tiña remedio. Saíu o meu cabezudo e no mesmo intre a xente escachou a rir, como facía nas comedias dos titiriteiros.
- ¡É Peito de Lobo! ¡É Peito de Lobo!
I entón nun curruncho da praza xurdiron chíos firentes de mulleres que non daban atafegado un orneo que chegou a min coma un tremer de terra. Era Peito de Lobo que quería esnaquizarnos: ó cabezudo e mais a min.
Co medo que papei non puden gorenta-lo carneiro da festa. A cousa non era para menos. Peito de Lobo nunca quixo poñerlle man ós fillos por medo de romperlle os ósos, e contan que unha vez, querendo botar un barco ó mar, afundeulle o costal co lombo. Era moito home para min, que xa me sentía desfrangullado nas súas poutas de ferro.
"Retrincos", Castelao
(Castelao nasceu no dia 30 de Janeiro de 1886. Morreu em 1950.)
(Castelao nasceu no dia 30 de Janeiro de 1886. Morreu em 1950.)
Mário de Alencar
Depois de ler a Ode I de Horácio
Nem tudo, sábio Horácio, o que aspiravas
E a Mecenas pedias, é o que aspiro.
A mim basta-me um plácido retiro,
Entre árvores, ao pé da água corrente,
Ouvindo a voz das musas que invocavas.
Com isso apenas viverei contente.
Longe da turba inquieta que aborreço,
Nem teria ambições, nem cuidaria
De haver glórias da terra. Na poesia
É o grande prêmio dela o vago sonho,
Com que eu, vivendo embora, a vida esqueço
E num mundo melhor viver suponho.
Tão alto não irei no imenso espaço
Que toque os astros como tu, amigo.
Mas sei que astros e céus tenho comigo
Enquanto com estes sonhos bons me iludo;
E como as aves cantam, versos faço.
Isso - que vale o mais? - vale-me tudo.
"Versos", Mário de Alencar
(Mário de Alencar nasceu no dia 30 de Janeiro de 1872. Morreu em 1925.)
Nem tudo, sábio Horácio, o que aspiravas
E a Mecenas pedias, é o que aspiro.
A mim basta-me um plácido retiro,
Entre árvores, ao pé da água corrente,
Ouvindo a voz das musas que invocavas.
Com isso apenas viverei contente.
Longe da turba inquieta que aborreço,
Nem teria ambições, nem cuidaria
De haver glórias da terra. Na poesia
É o grande prêmio dela o vago sonho,
Com que eu, vivendo embora, a vida esqueço
E num mundo melhor viver suponho.
Tão alto não irei no imenso espaço
Que toque os astros como tu, amigo.
Mas sei que astros e céus tenho comigo
Enquanto com estes sonhos bons me iludo;
E como as aves cantam, versos faço.
Isso - que vale o mais? - vale-me tudo.
"Versos", Mário de Alencar
(Mário de Alencar nasceu no dia 30 de Janeiro de 1872. Morreu em 1925.)
Jayme Caetano Braun
Meu verso
Quando te vejo, meu verso,
Junto à multidão que passa,
Entre os fidalgos de raça
Da poesia aristocrata,
Meu coração se desata
E se larga campo a fora,
Paleteado pela espora
Da emoção que me arrebata.
Pois tu nasceste num rancho
Barreado de chão batido...
E assim desapercebido
Foste piá, e homem depois,
Sempre havendo entre nós dois,
Alma de um no corpo de outro,
Amor à china e ao potro,
E ao berro amigo dos bois!
Eu fui tudo que tu foste
Antes de ser o que sou.
Pois a vida nos ligou
No velho ajoujo da sorte,
Esse tento rijo e forte,
Sovado a custa dos anos
Que acolhera os desenganos
Do nascimento até a morte.
Porém, meu verso crioulo
Contrariando a velha lei,
Eu de ti me seperei;
Já não sou mais como tu,
Que te conservaste cru,
Pois já estou domesticado,
Povoeiro, civilizado,
E, tu, ficaste xiru.
Por isso é que tenho inveja
De ti, meu verso bagual,
Que soubeste ser igual
Depois que os anos passaram,
Pois jamais te embuçalaram
Cerceando-te a liberdade,
Nem conheceste a saudade
Dos que a querência deixaram.
E agora enquanto me paro
Numa fila de cinema
Tu escutas a seriema
Junto a barranca da sanga...
E enquanto comes pitanga
Nalgum capão solitário
Eu vou chinchando o horário
Mais preso que boi na canga!
Dá de rédeas no teu pingo,
Na direção da querência,
Se alguém notar tua ausência
Não faz mal, isso tem cura.
Vai rever a saracur
E o quero-quero alarmento
Banhando o corpo emplumado
Nas restingas de água pura.
E um dia, quando souberes
Que este gaúcho morreu,
Nalgum livro serás eu
E nesse novo viver
Eu somente quero ser
A mais apagada imagem
Deste Rio Grande selvagem
Que até morto hei de querer!
Jayme Caetano Braun
(Jayme Caetano Braun nasceu no dia 30 de Janeiro de 1924. Morreu em 1999.)
Quando te vejo, meu verso,
Junto à multidão que passa,
Entre os fidalgos de raça
Da poesia aristocrata,
Meu coração se desata
E se larga campo a fora,
Paleteado pela espora
Da emoção que me arrebata.
Pois tu nasceste num rancho
Barreado de chão batido...
E assim desapercebido
Foste piá, e homem depois,
Sempre havendo entre nós dois,
Alma de um no corpo de outro,
Amor à china e ao potro,
E ao berro amigo dos bois!
Eu fui tudo que tu foste
Antes de ser o que sou.
Pois a vida nos ligou
No velho ajoujo da sorte,
Esse tento rijo e forte,
Sovado a custa dos anos
Que acolhera os desenganos
Do nascimento até a morte.
Porém, meu verso crioulo
Contrariando a velha lei,
Eu de ti me seperei;
Já não sou mais como tu,
Que te conservaste cru,
Pois já estou domesticado,
Povoeiro, civilizado,
E, tu, ficaste xiru.
Por isso é que tenho inveja
De ti, meu verso bagual,
Que soubeste ser igual
Depois que os anos passaram,
Pois jamais te embuçalaram
Cerceando-te a liberdade,
Nem conheceste a saudade
Dos que a querência deixaram.
E agora enquanto me paro
Numa fila de cinema
Tu escutas a seriema
Junto a barranca da sanga...
E enquanto comes pitanga
Nalgum capão solitário
Eu vou chinchando o horário
Mais preso que boi na canga!
Dá de rédeas no teu pingo,
Na direção da querência,
Se alguém notar tua ausência
Não faz mal, isso tem cura.
Vai rever a saracur
E o quero-quero alarmento
Banhando o corpo emplumado
Nas restingas de água pura.
E um dia, quando souberes
Que este gaúcho morreu,
Nalgum livro serás eu
E nesse novo viver
Eu somente quero ser
A mais apagada imagem
Deste Rio Grande selvagem
Que até morto hei de querer!
Jayme Caetano Braun
(Jayme Caetano Braun nasceu no dia 30 de Janeiro de 1924. Morreu em 1999.)
domingo, 29 de janeiro de 2017
Barão de Itararé 2
Eu Cavo, Tu Cavas, Ele Cava, Nós Cavamos, Vós Cavais, Eles Cavam. Não é bonito, nem rima, mas é profundo…
Barão de Itararé
(Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, autodenominado Barão de Itararé, nasceu no dia 29 de Janeiro de 1895. Morreu em 1971.)
Barão de Itararé
(Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, autodenominado Barão de Itararé, nasceu no dia 29 de Janeiro de 1895. Morreu em 1971.)
José Manuel Capêlo
Quem me dera poder voar
Que falem de mim os gestos, amor,
que falem de mim os gestos deste entardecer e da noite
longo silencio, estranha penumbra a mascarar-se
com a manhã que nasce só.
Mais belo é misturar-me com o sorriso
dessa tua alma cheia de alma
flor única que beijo e transporto nos dedos
que me fizeram à tua imagen
como um pequeno deus transformado em homem.
E nada se compara ao teu sorriso
a esse teu sorriso como linha de horizonte
fumo duma nave elíptica a passar
pelo arredondado da terra, a surcar o veio do mar
abrindo as fontes das serras e os eixos das plantas
os olhares dos homens e o geométrico dos telhados
as grandes quilhas suspensas e o mar a não ter fim
nesse fim a não ter mar ou o teu sorriso ou o teu destino.
Quem dera ser pena ou asa ou algo muito parecido
como um grande manto de nuvens ou a plena claridade
duma madrugada a despontar nos meus olhos.
Ah! Quem me dera poder voar no meio dos teus olhos
queimar-me nas chamas que irrompem do seio dos teus lábios
fustigar-me com o suor que sai em cascatas de vida
em flores de lilás de entre os teus dedos
e adormecer no sonho infinito no meio dos teus abraços.
Não pretendia mais. Tudo o resto poderia nascer igual
com salpicos de todas as formas e olhares
nos gestos idênticos de quem estende as mãos
oferece o corpo. De quem dá a boca.
As manhãs, que viessem floridas, estivais, outonais
primaveris, frígidas. Não me importava. Nada me importava.
Mas que viesses tu, unicamente tu
com o sorriso nas mãos e a alma nos olhos.
Depois, que aparecesse a Natureza e o seu manto.
José Manuel Capêlo
(José Manuel Capêlo nasceu no dia 29 de Janeiro de 1946. Morreu em 2010.)
Que falem de mim os gestos, amor,
que falem de mim os gestos deste entardecer e da noite
longo silencio, estranha penumbra a mascarar-se
com a manhã que nasce só.
Mais belo é misturar-me com o sorriso
dessa tua alma cheia de alma
flor única que beijo e transporto nos dedos
que me fizeram à tua imagen
como um pequeno deus transformado em homem.
E nada se compara ao teu sorriso
a esse teu sorriso como linha de horizonte
fumo duma nave elíptica a passar
pelo arredondado da terra, a surcar o veio do mar
abrindo as fontes das serras e os eixos das plantas
os olhares dos homens e o geométrico dos telhados
as grandes quilhas suspensas e o mar a não ter fim
nesse fim a não ter mar ou o teu sorriso ou o teu destino.
Quem dera ser pena ou asa ou algo muito parecido
como um grande manto de nuvens ou a plena claridade
duma madrugada a despontar nos meus olhos.
Ah! Quem me dera poder voar no meio dos teus olhos
queimar-me nas chamas que irrompem do seio dos teus lábios
fustigar-me com o suor que sai em cascatas de vida
em flores de lilás de entre os teus dedos
e adormecer no sonho infinito no meio dos teus abraços.
Não pretendia mais. Tudo o resto poderia nascer igual
com salpicos de todas as formas e olhares
nos gestos idênticos de quem estende as mãos
oferece o corpo. De quem dá a boca.
As manhãs, que viessem floridas, estivais, outonais
primaveris, frígidas. Não me importava. Nada me importava.
Mas que viesses tu, unicamente tu
com o sorriso nas mãos e a alma nos olhos.
Depois, que aparecesse a Natureza e o seu manto.
José Manuel Capêlo
(José Manuel Capêlo nasceu no dia 29 de Janeiro de 1946. Morreu em 2010.)
Xesús Calviño de Castro
Xa estades na Primavera
Tempos que eu gocei algún día,
Tempos que eu gocei algún día,
Oxe estoume lonxe de eles
Con que gusto eu os vería.
E por velos eu daría
Os aires eses, da terra,
Ese fogar esas prantas
E a xente que vive en ela
Daríalle a miña Alma
A quen trocalo quixera
Os que estades aínda alá
Xa estades na Primavera.
Xesús Calviño de Castro
(Xesús Calviño de Castro nasceu no dia 29 de Janeiro de 1893. Morreu em 1972.)
Xesús Calviño de Castro
(Xesús Calviño de Castro nasceu no dia 29 de Janeiro de 1893. Morreu em 1972.)
António Alçada Baptista
A letra de Deus nem
sempre á decifrável e ninguém conhece a língua em que escreveu a alma
humana. Às vezes, a gente julga que as palavras chegam para esclarecer a
vida mas, hoje, estou certo de que muitas coisas permanecem por detrás
de palavras que ainda não foram feitas e outras, por detrás de palavras
de que perdemos o uso.
(...)
Tudo me leva a crer que as marcações que nos deram para o desempenho da
vida passam ao lado do caminho por onde os nossos afectos continuam a
fluir conforme o que está escrito no mapa oculto do ser humano.
Pressinto que continuamos fora do essencial e que as razões das
circunstâncias - que, muitas vezes, são poderosas e reais - só servem
para nos afastar dos enigmas que estão à frente das coisas e que nos
caberia decifrar. Porque, algumas vezes, até parece que a simplicidade
emana do andamento da vida e que bastaria um pequeno gesto de espírito
para passarmos para o lado de lá de tantas
Today Deal $50 Off : https://goo.gl/efW8Ef
A letra de Deus nem sempre é decifrável e ninguém conhece a língua em que escreveu a alma humana. Às vezes a gente julga que as palavras chegam para esclarecer a vida, mas hoje estou certo de que muitas coisas permanecem por detrás de palavras que ainda não foram feitas e outras por detrás de palavras de que perdemos o uso. Today Deal $50 Off : https://goo.gl/efW8Ef
Quando penso na minha vida e nas circunstâncias atribuladas do tempo que me foi dado viver, pressinto o que será a incomodidade do bêbedo no dia seguinte ao da sua bebedeira, porque nos encharcámos de razão e esperança terrena e tudo ficou aquém de todas as promessas: tudo mais pequenino e mais cruel. Pior: é uma sensação de ressaca de bêbedo com uma certa forma de orfandade: um desamparo perante a perda da herança prometida no texto fundador que fixou o projecto da nossa condição, como se, ao decretar a morte de Deus, ele tivesse levado consigo todos os seus bens. É isso que me leva a olhar para tudo o que vivi como se fosse um ensaio falhado duma harmonia possível.
"O Riso de Deus", António Alçada Baptista
(António Alçada Baptista nasceu no dia 29 de Janeiro de 1927. Morreu em 2008.)
Xosé Fernández Ferreiro 2
O río nunca se irá de aquí. El non emigrará, como emigra a xente. O río é como a terra, coma as viñas, coma a fraga, coma o val: sempre estará aí.. Sempre serán igual. Eu si que me irei. Eu e mais tí. Peor o río non.
"Morrer en Castrelo do Miño", Xosé Fernández Ferreiro
(Xosé Fernández Ferreiro nasceu no dia 29 de Janeiro de 1931. Morreu em 2015.)
"Morrer en Castrelo do Miño", Xosé Fernández Ferreiro
(Xosé Fernández Ferreiro nasceu no dia 29 de Janeiro de 1931. Morreu em 2015.)
Rafael Dieste 2
Cando o primeiro cadullo de terra, bicado por un neno, petou dentro da cova nas táboas do ataúde, rubíronme ata a gorxa as verbas salvadoras... Estiveron a punto de xurdiren. Mais entonces acudiu novamente ó meu maxín a case seguranza do arrepiante ridículo, da rabia da familia defraudada, se o Bieito se topaba morto e ben morto. Ademais o dicilo tan tarde acrecía o absurdo desorbitadamente. ¿Como xustificar non o ter dito antes? ¡Xa sei, xa sei, sempre se pode un explicar! ¡Si, si, si, todo o que queirades! Pois ben... ¿e se tivese morto despois, despois de o sentir eu remexerse, como quizais puidese adiviñarse por algún sinal? ¡Un crime, si, un crime o me ter calado! Oíde xa o rebumbio da xente...
- ¡Pediu auxilio e non llo deron, malpocado!...
- El sentía chorar, quíxose erguer, non puido…
- Morreu de espanto, saltoulle o corazón ó se sentir decer na cova...
- ¡Velaí o tendes, coa cara torta do esforzo!
- ¡E ese que o sabía, tan campante, aí a surrir coma un pallaso!
- ¿É parvo ou que?
Todo o día, meus amigos, andei tolo de remorsos.
"Dos Arquivos do Trasno", Rafael Dieste
(Rafael Dieste nasceu no dia 29 de Janeiro de 1899. Morreu em 1981.)
Antônio Geraldo Ramos Jubé
Descrição do Araguaia
O tempo inexiste. Dia e noite
são faces da mesma eternidade.
A eternidade da areia construída
de pequeninas coisas acumuladas.
Em dois braços o rio nos envolve.
Move-se em suas entranhas
um ser de frágível armadura.
O aço o rouba a seu elemento.
Despojado de seus atributos
em postas claras jaz.
A barbatana chicoteava
o crespo pelo da água.
Exploramos os indícios da praia.
Alguma fome esconsa nos consome
como se nos escapasse, a todo instante,
a essência do homem.
A gaivota se equilibra
aflita
no arame do ar.
E a noite de Matacoirá
é um jaó, incessante.
"Antologia Poética", Antônio Geraldo Ramos Jubé
(Antônio Geraldo Ramos Jubé nasceu no dia 29 de Janeiro de 1927. Morreu em 2010.)
O tempo inexiste. Dia e noite
são faces da mesma eternidade.
A eternidade da areia construída
de pequeninas coisas acumuladas.
Em dois braços o rio nos envolve.
Move-se em suas entranhas
um ser de frágível armadura.
O aço o rouba a seu elemento.
Despojado de seus atributos
em postas claras jaz.
A barbatana chicoteava
o crespo pelo da água.
Exploramos os indícios da praia.
Alguma fome esconsa nos consome
como se nos escapasse, a todo instante,
a essência do homem.
A gaivota se equilibra
aflita
no arame do ar.
E a noite de Matacoirá
é um jaó, incessante.
"Antologia Poética", Antônio Geraldo Ramos Jubé
(Antônio Geraldo Ramos Jubé nasceu no dia 29 de Janeiro de 1927. Morreu em 2010.)
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Francisco Xavier de Meneses
[...]
Conte a Poesia que por força, ou arte,
Nunca encontraste um ânimo invencível,
E que rendeste a Júpiter, e Marte,
Para que a todo o Céu fosses terrível;
Que em quando quis vencer-te, em toda a parte
Vi que ao meu alvedrio era possível,
Mas se em meu peito introduzir-te deixo,
Não de ti, fero amor, de mim me queixo.
[...]
"Henriqueida. Poema Heróico", Francisco Xavier de Meneses
(Francisco Xavier de Meneses nasceu no dia 29 de Janeiro de 1673. Morreu em 1743.)
Conte a Poesia que por força, ou arte,
Nunca encontraste um ânimo invencível,
E que rendeste a Júpiter, e Marte,
Para que a todo o Céu fosses terrível;
Que em quando quis vencer-te, em toda a parte
Vi que ao meu alvedrio era possível,
Mas se em meu peito introduzir-te deixo,
Não de ti, fero amor, de mim me queixo.
[...]
"Henriqueida. Poema Heróico", Francisco Xavier de Meneses
(Francisco Xavier de Meneses nasceu no dia 29 de Janeiro de 1673. Morreu em 1743.)
sábado, 28 de janeiro de 2017
Vergílio Ferreira
Sentia que o amor era uma luta e que eu, amarrado de preto, não poderia lutar. A bruscos golpes de cólera, eu erguia-me às vezes sobre o meu desalento. E atirado nela, como numa vergasta, parecia-me que era só abrir a mão para colher o meu sonho de liberdade. Mas o meu esforço esgotava-se antes do fim. Então eu recaía para o meu cansaço e sentava-me à beira da estrada a dizer adeus à vida com o olhar.
"Manhã Submersa", Vergílio Ferreira
(Vergílio Ferreira nasceu no dia 28 de Janeiro de 1916. Morreu em 1996.)
"Manhã Submersa", Vergílio Ferreira
(Vergílio Ferreira nasceu no dia 28 de Janeiro de 1916. Morreu em 1996.)
O arrependimento de Deus
Deus criou o homem por necessidade. Depois criou a mulher por capricho. E está muito arrependido.
António Feliciano de Castilho 4
Quão grande, meus amigos
Quão grande, meus amigos, não era o Povo em que um Poeta podia dizer isto, sem medo de que o mundo, nem a posteridade, o desmentisse!
E nós também, nós, os Portugueses, já houve um tempo, em que pouco menos fomos.
Ouvi como o nosso Camões o cantava:
Mas em tanto que cegos, e sedentos
andais do vosso sangue, ó gente insana,
não faltarão cristãos atrevimentos
nesta pequena casa Lusitana.
De África tem marítimos assentos;
é na Ásia mais que todas soberana;
na quarta parte nova os campos ara,
e, se mais mundo houvera, lá chegara.
Hoje… que são aquela Roma, e este Portugal?
Roma pereceu. Portugal, se não agoniza, enferma gravemente.
Mas para Roma não há já esperança; para nós há ainda uma. Sabeis qual?
Sois vós, vós mesmos, vós unicamente, ó Lavradores.
António Feliciano de Castilho
(António Feliciano de Castilho nasceu no dia 28 de Janeiro de 1800. Morreu em 1875.)
Quão grande, meus amigos, não era o Povo em que um Poeta podia dizer isto, sem medo de que o mundo, nem a posteridade, o desmentisse!
E nós também, nós, os Portugueses, já houve um tempo, em que pouco menos fomos.
Ouvi como o nosso Camões o cantava:
Mas em tanto que cegos, e sedentos
andais do vosso sangue, ó gente insana,
não faltarão cristãos atrevimentos
nesta pequena casa Lusitana.
De África tem marítimos assentos;
é na Ásia mais que todas soberana;
na quarta parte nova os campos ara,
e, se mais mundo houvera, lá chegara.
Hoje… que são aquela Roma, e este Portugal?
Roma pereceu. Portugal, se não agoniza, enferma gravemente.
Mas para Roma não há já esperança; para nós há ainda uma. Sabeis qual?
Sois vós, vós mesmos, vós unicamente, ó Lavradores.
António Feliciano de Castilho
(António Feliciano de Castilho nasceu no dia 28 de Janeiro de 1800. Morreu em 1875.)
Berecil Garay
Rusga floral
O albilouro jasmim não me conquista.
Sentimental, requeiro: flor distinta,
perfumosa, por que a rejeito assim?
Talvez rusga de sons: aqui jaz mim...
Berecil Garay
(Berecil Garay nasceu no dia 28 de Janeiro de 1928. Morreu em 1996.)
O albilouro jasmim não me conquista.
Sentimental, requeiro: flor distinta,
perfumosa, por que a rejeito assim?
Talvez rusga de sons: aqui jaz mim...
Berecil Garay
(Berecil Garay nasceu no dia 28 de Janeiro de 1928. Morreu em 1996.)
sexta-feira, 27 de janeiro de 2017
Portugal uno e indivisível do Minho a Almancil
Moreirense e Braga vão disputar a final da Taça da Liga. O Estádio do Algarve estará evidentemente cheio.
Santo Souza
Ode órfica I
Era tão clara a tua voz, e tão
limpo o teu canto inaugural, ó noite,
que o tempo adormecia em tuas mãos!
De início, rejeitamos teus conselhos
dissimulados. Nautas fugitivos,
eis que a nave de Orfeu, que pilotávamos,
não nos pertence mais, pois a ofertamos
àqueles que hão de vir colher conosco
a treva e o medo, embora eles, no lago,
com a vida e as águas entre os braços, nos
surpreendam no triângulo da morte,
os olhos florescendo como peixes
que o teu milagre, ó noite, fecundou!
Transportamos pirâmides nos ombros,
para, sobre elas, construir o mundo
que nós, por sermos livres, sugerimos.
De música fizemos nossos mares,
para conter o céu que nos persegue.
Mas somos frágeis para suportar
a cabeça do Eterno, que se inclina
sonhando sobre nós, enquanto vamos,
ladrões famintos, carregando sombras.
Morrer? Não era a morte o que sonhávamos.
Somos pobres demais para morrer
com tanto ouro nas mãos, tanto arco-íris
nos olhos desta aurora que engendramos.
[...]
"Ode Órfica", Santo Souza
(José dos Santos Souza, que assinava Santo Souza, nasceu no dia 27 de Janeiro de 1919. Morreu em 2014.)
Era tão clara a tua voz, e tão
limpo o teu canto inaugural, ó noite,
que o tempo adormecia em tuas mãos!
De início, rejeitamos teus conselhos
dissimulados. Nautas fugitivos,
eis que a nave de Orfeu, que pilotávamos,
não nos pertence mais, pois a ofertamos
àqueles que hão de vir colher conosco
a treva e o medo, embora eles, no lago,
com a vida e as águas entre os braços, nos
surpreendam no triângulo da morte,
os olhos florescendo como peixes
que o teu milagre, ó noite, fecundou!
Transportamos pirâmides nos ombros,
para, sobre elas, construir o mundo
que nós, por sermos livres, sugerimos.
De música fizemos nossos mares,
para conter o céu que nos persegue.
Mas somos frágeis para suportar
a cabeça do Eterno, que se inclina
sonhando sobre nós, enquanto vamos,
ladrões famintos, carregando sombras.
Morrer? Não era a morte o que sonhávamos.
Somos pobres demais para morrer
com tanto ouro nas mãos, tanto arco-íris
nos olhos desta aurora que engendramos.
[...]
"Ode Órfica", Santo Souza
(José dos Santos Souza, que assinava Santo Souza, nasceu no dia 27 de Janeiro de 1919. Morreu em 2014.)
Ángel Lázaro 2
Anque sempre che cantéi,
e sempre estuviches, terra,
presente n’as miñas cousas
escritas en’a outra lengoa;
anque toda esta paixaxe
d’o corazón que te lembra
dichesmo ti, e de lembrarte
foi miña rima primeira,
nunca coma hastra d’agora
ándasme n’o peito, e a testa...
¡Qué traballo dá encontrar
Aquelo que está máis cerca!
"Lonxe", Ángel Lázaro
(Ángel Lázaro Machado nasceu no dia 27 de Janeiro de 1900. Morreu em 1985.)
e sempre estuviches, terra,
presente n’as miñas cousas
escritas en’a outra lengoa;
anque toda esta paixaxe
d’o corazón que te lembra
dichesmo ti, e de lembrarte
foi miña rima primeira,
nunca coma hastra d’agora
ándasme n’o peito, e a testa...
¡Qué traballo dá encontrar
Aquelo que está máis cerca!
"Lonxe", Ángel Lázaro
(Ángel Lázaro Machado nasceu no dia 27 de Janeiro de 1900. Morreu em 1985.)
quinta-feira, 26 de janeiro de 2017
Afonso Lopes Vieira 3
Pinhal do Rei
Catedral verde e sussurrante, aonde
a luz se ameiga e se esconde
e aonde ecoando a cantar
se alonga e se prolonga a longa voz do mar,
ditoso o Lavrador que a seu contento
por suas mãos semeou este jardim,
ditoso o Poeta que lançou ao vento
esta canção sem fim...
Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
que vedes no mar?
Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
rei Dom Denis, bom poeta e mau marido,
lá vem as velidas bailar e cantar.
Encantado jardim da minha infância,
aonde a minh'alma aprendeu
a música do Longe e o ritmo da Distância
que a tua voz marítima lhe deu;
místico órgão cujo além se esfuma
no além do Oceano, e aonde a maresia
ameiga e dissolve em bruma
e em penumbra de nave a luz do dia.
Por estes fundos claustros gemem
os ais do Velho do Restelo...
Mas tu debruças-te no mar e, ao vê-lo,
teus velhos troncos de saudades fremem...
Ai flores, ai flores do Pinhal louvado,
que vedes no mar?
Ai flores, ai flores do Pinhal louvado,
são as caravelas, teu corpo cortado,
é o verde pino no mar a boiar.
Pinhal de heróicas árvores tão belas,
foi do teu corpo e da tua alma também
que nasceram as nossas caravelas
ansiosas de todo o Além;
foste tu que lhe deste a tua carne em flor
e sobre os mares andaste navegando,
rodeando a terra e olhando os novos astros,
ó gótico Pinhal navegador
em naus, erguida, levando
tua alma em flor na ponta alta dos mastros!...
Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
que vedes no mar?
Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
que grande saudade, que longo gemido
ondeia nos ramos, suspira no ar!
Na sussurrante e verde catedral
oiço rezar a alma de Portugal:
ela aí vem, dorida, e nos seus olhos,
sonâmbulos de surda ansiedade
no roxo da tardinha,
abre a flor da Saudade;
ela aí vem, sozinha,
dorida do naufrágio e dos escolhos,
viúva de seus bens
e pálida de amor,
arribada de todos os aléns
de este mundo de dor:
ela aí vem, sozinha,
e reza a ladainha
na sussurrante catedral aonde
toda se espalha e esconde,
e aonde ecoando a cantar
se alonga e se prolonga a longa voz do mar.
Afonso Lopes Vieira
(Afonso Lopes Vieira nasceu no dia 26 de Janeiro de 1878. Morreu em 1946.)
Catedral verde e sussurrante, aonde
a luz se ameiga e se esconde
e aonde ecoando a cantar
se alonga e se prolonga a longa voz do mar,
ditoso o Lavrador que a seu contento
por suas mãos semeou este jardim,
ditoso o Poeta que lançou ao vento
esta canção sem fim...
Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
que vedes no mar?
Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
rei Dom Denis, bom poeta e mau marido,
lá vem as velidas bailar e cantar.
Encantado jardim da minha infância,
aonde a minh'alma aprendeu
a música do Longe e o ritmo da Distância
que a tua voz marítima lhe deu;
místico órgão cujo além se esfuma
no além do Oceano, e aonde a maresia
ameiga e dissolve em bruma
e em penumbra de nave a luz do dia.
Por estes fundos claustros gemem
os ais do Velho do Restelo...
Mas tu debruças-te no mar e, ao vê-lo,
teus velhos troncos de saudades fremem...
Ai flores, ai flores do Pinhal louvado,
que vedes no mar?
Ai flores, ai flores do Pinhal louvado,
são as caravelas, teu corpo cortado,
é o verde pino no mar a boiar.
Pinhal de heróicas árvores tão belas,
foi do teu corpo e da tua alma também
que nasceram as nossas caravelas
ansiosas de todo o Além;
foste tu que lhe deste a tua carne em flor
e sobre os mares andaste navegando,
rodeando a terra e olhando os novos astros,
ó gótico Pinhal navegador
em naus, erguida, levando
tua alma em flor na ponta alta dos mastros!...
Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
que vedes no mar?
Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
que grande saudade, que longo gemido
ondeia nos ramos, suspira no ar!
Na sussurrante e verde catedral
oiço rezar a alma de Portugal:
ela aí vem, dorida, e nos seus olhos,
sonâmbulos de surda ansiedade
no roxo da tardinha,
abre a flor da Saudade;
ela aí vem, sozinha,
dorida do naufrágio e dos escolhos,
viúva de seus bens
e pálida de amor,
arribada de todos os aléns
de este mundo de dor:
ela aí vem, sozinha,
e reza a ladainha
na sussurrante catedral aonde
toda se espalha e esconde,
e aonde ecoando a cantar
se alonga e se prolonga a longa voz do mar.
Afonso Lopes Vieira
(Afonso Lopes Vieira nasceu no dia 26 de Janeiro de 1878. Morreu em 1946.)
Antônio Callado
Foi num estado de vago terror e de íntima náusea que Manuel Salviano se levantou no dia seguinte. Era dia de viajar para o sítio do João da Cancela, onde há meses reunia ao seu redor, uma vez por semana ou pelo menos por quinzena, os lavradores e lenhadores das redondezas. Os encontros eram marcados pelo Cancela quando vinha à marcenaria e, no dia combinado, Salviano levantava-se antes de qualquer galo pensar em cantar. O motivo ostensivo das suas madrugadas semanais era o fato de ir ele encomendar pessoalmente as madeiras de que estava necessitando - mesmo para Irma a explicação era esta. A mulher já sabia, e mesmo na cidade de Juazeiro se começava a saber que Manuel Salviano tinha grande influência entre os trabalhadores. Mas isto era preguiçosamente explicado pelo fato de ser ele um dos pouquíssimos que sabiam ler e escrever. Seja como for, sabia-se de sua influência, mas ignorava-se que ele houvesse estado nas zonas de distúrbios do norte do Paraná ou que, em suas visitas ao sítio de João da Cancela, não tivesse realmente o objeto único de escolher suas madeiras. Muito natural que nessas ocasiões - dizia-se dando de ombros - aqueles pobres ignorantes lhe viessem pedir notícias de Juazeiro e do mundo em geral. Nada havia nisto de estranho.
"Assunção de Salviano", Antônio Callado
(Antônio Callado nasceu no dia 26 de Janeiro de 1917. Morreu em 1997.)
quarta-feira, 25 de janeiro de 2017
Fafe mata mas não esfola
Foto Hernâni Von Doellinger |
Ao contrário (nunca se deve começar um texto com a expressão "ao contrário"), mas, como dizia, ao contrário de uns certos e determinados palermóides, fafenses ou nem por isso, que têm vergonha da Justiça de Fafe, eu não tenho. É verdade: tenho é orgulho. Gosto da lenda da Justiça de Fafe, acompanha-me desde que eu nasci, identifica-me pelo mundo fora, e até aprecio o monumento, embora o desejasse mais central.
Já aqui escrevi: a Justiça de Fafe é a metáfora folclórica de uma gente de paz que não gosta de levar desaforo para casa, ou que costumava não gostar. Nós, os fafenses. O resto é treta, mais ou menos erudita. Geralmente menos. "Com Fafe ninguém fanfe" quer dizer, tão-só, com Fafe ninguém se meta. Porque, quem se meter, quem nos ofender de graça, recebe o troco, e que mal tem isso? E, no entanto, muito boa gente confunde, hoje em dia, este velho sentido de verticalidade com fazer justiça pelas próprias mãos. Não é nada disso. A Justiça de Fafe deve ligar-se, antes, à defesa da honra. A coça é semântica.
É isto e mais nada. Nem luta de classes, nem administração de justiça privada, nem apologia da justiça popular, nem jogo do pau, nem fanfarronice, nem sacholadas, nem pistolas e navalhadas, nem Felizardos, nem bordoada por dá cá aquele copo. Tudo equívocos. As lendas têm costas largas, de toda a conveniência para o caso em apreço, mas saber ler antes de escrever também nunca fez mal a ninguém, e sobretudo aos alegados historiadores.
Não vamos mais longe. Podíamos ir à Porca de Murça, mas não vamos mais longe: deitemos os olhos a Guimarães, que após Arões é sempre ao baixo e sem portagens. A vaidade que os nossos vizinhos têm na estátua de D. Afonso Henriques, esse gandulo que usava saias e batia na mãe! Ainda por cima, existiu mesmo, e a nossa Justiça de Fafe é só bazófia, invenção - mas é a coisa mais bonita a que nos podemos agarrar, para além da forca de Moreira do Rei...
Os reis de Espanha vieram no outro dia a Portugal e o nosso presidente Marcelo levou-os a Guimarães e à estátua do tratante, do Afonsinho: a Letizia e o Felipe puseram-lhe flores. Em Fafe, a Câmara Municipal inventou um pedregulho Por Baixo da Arcada, no salão nobre da cidade, para poupar aos ilustres e televisivos visitantes o embaraço de se cruzarem com a Justiça de Fafe ela própria.
Que Fafe mata é verdade. Não por acaso, a Câmara Municipal faz questão de abrilhantar o programa das tradicionais Feiras Francas, lá pelos meados de Maio, com uma extraordinária largada de perdizes tontas, condenadas à matança à-seja-ceguinho. E organiza ou apoia também batidas à raposa e montarias ao javali. Atenção: raposas, javalis e ursos polares em Fafe são mato, uma verdadeira epidemia. Tal como as perdizes de aviário.
Por outro lado, a Câmara Municipal de Fafe gosta muito de animais, coitadinhos dos bichos. Acolheu há dias a 44.ª Exposição Nacional e Pré-Olímpica de Columbofilia e no próximo mês de Fevereiro fará o favor de nos deliciar com a X Exposição Canina Nacional de Fafe. Quer-se dizer: desde que (eventualmente) dê na televisão ou pelo menos no Facebook, para a Câmara está bem...
P.S. - Ainda sobre a Justiça de Fafe e sonsos programas de televisão a pagar pelos munícipes-contribuintes, recomendo a leitura deste texto, que está fresquinho. Com o jogo das cadeiras aí à porta, e com os aboletados e ex-aboletados do costume atarefados nas traições do costume (o PS é mesmo um saco de gatos, dasse!...), cada vez percebo menos que a minha terra se dê a luxo se desaproveitar as cabeças verdadeiramente pensantes e arejadas de homens de princípios e honra como, por exemplo, e sem ofensa àqueles de que me esqueço ou não conheço: Pedro Sousa, António Daniel, Miguel Summavielle ou Ricardo Gonçalves - já viram que equipa?! Há quatro ou cinco anos convenci-me de que o Ricardo haveria de dar, mais cedo ou mais tarde, um excelente presidente da Câmara de Fafe. Informo-me com regularidade acerca do seu trajecto, e não tenho razões para mudar de ideia...
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