segunda-feira, 31 de agosto de 2015
Talhão de fumadores ou não fumadores?
Bonifácio Terrafunda era coveiro no cemitério da Junta de Freguesia de Sabugal do Meio há mais de quarenta anos. Funcionário exemplar, pai de duas famílias. Um dia, para o que lhe havia de dar, resolveu dividir o campo-santo em dois talhões devidamente assinalados, um para "Fumadores" e outro para "Não fumadores", como nos aviões antigamente. A coisa veio nos jornais, quer-se dizer, no Correio da Manhã. Anacleto Boavida, jovem presidente da autarquia, passou-se dos carretos, instaurou inquérito e competente processo disciplinar, meteu advogado e testemunhas, imagens do YouTube, e o velho coveiro foi inapelavelmente remetido para o olho da rua, por indecente e má figura, isto é, despedido com justa causa. "É que não se admite, com os mortos não se brinca - justificava o fulgurante autarca, alto e bom som, para quem o quisesse ouvir, que era a esposa. - Aquela gente, se lá está, é porque, por definição, deixou toda de fumar".
Já um homem não pode ser feminista?
Feminista convicto, Eleutério Ribaquente apresentou-se todo pimpão à porta do congresso, distribuindo babosos sorrisos à direita e à esquerda, para a frente e para trás. As porteiras barraram-lhe o caminho, matulonas. Que era só para mulheres, disseram-lhe...
domingo, 30 de agosto de 2015
sexta-feira, 28 de agosto de 2015
Realmente, não há nada que chegue ao estrangeiro
A criança chorava com acrisolada pertinácia. Gritava, gritava, gritava. Ranhava, ranhava, ranhava. E esperneava, esperneava, esperneava. Dava mesmo gosto ouvê-la. Que competência! Que performance! Que espectáculo! Que profissionalismo! Que categoria! Que pulmões! Que ginástica! Via-se logo que era uma criança estrangeira, alimentada desde a barriga da mãe a iogurtes, papas e boiões.
Situemo-nos, porém, porque isto não é ficção: estamos na chamada rotunda do Castelo do Queijo, também desconhecida como Praça Gonçalves Zarco, no Porto, exactamente na paragem dos autocarros descapotáveis para turistas de mapa nas mãos, e assim estavam os pais babados do seu magnífico filho chorão. Não era, portanto, difícil de adivinhar, mas eu quis tirar a coisa a limpo, por defeito profissional, e perguntei no meu melhor inglês: vosotros être camones, iesse ol raite? E eles responderam-me que efectivamente, camones, mas versão bife, de Bristol.
(Para quem não sabe, Bristol é uma habitadíssima cidade do sudoeste inglês e foi uma sapataria muito jeitosa em Fafe, a sapataria do Magalhães "Bristol", onde o Senhor Ferreira do Hospital me mandou uma vez ir lá escolher um par de sapatos que ele depois pagaria. O Senhor Ferreira do Hospital foi meu mestre e amigo, e era um homem extraordinário.)
Ora bem. Os pais da criança confirmaram-me o que eu já sabia. Eram ingleses, os pais, e o pequeno ranhoso também. E era a primeira vez que estavam em Portugal, há dois dias. O que fez aumentar ainda mais (como se "aumentar ainda mais" fizesse algum sentido), dizia, o que fez aumentar ainda mais a minha estupefacção, para não dizer uma palavra mais simples: é que aquela criança - criança inglesa retinta, filha de pais ingleses retintos, de Bristol - chorava em fluente português, perfeito, sem pontinha de sotaque. O que é extraordinário. Em apenas dois dias...
É o que eu digo: não há nada que chegue ao estrangeiro.
Situemo-nos, porém, porque isto não é ficção: estamos na chamada rotunda do Castelo do Queijo, também desconhecida como Praça Gonçalves Zarco, no Porto, exactamente na paragem dos autocarros descapotáveis para turistas de mapa nas mãos, e assim estavam os pais babados do seu magnífico filho chorão. Não era, portanto, difícil de adivinhar, mas eu quis tirar a coisa a limpo, por defeito profissional, e perguntei no meu melhor inglês: vosotros être camones, iesse ol raite? E eles responderam-me que efectivamente, camones, mas versão bife, de Bristol.
(Para quem não sabe, Bristol é uma habitadíssima cidade do sudoeste inglês e foi uma sapataria muito jeitosa em Fafe, a sapataria do Magalhães "Bristol", onde o Senhor Ferreira do Hospital me mandou uma vez ir lá escolher um par de sapatos que ele depois pagaria. O Senhor Ferreira do Hospital foi meu mestre e amigo, e era um homem extraordinário.)
Ora bem. Os pais da criança confirmaram-me o que eu já sabia. Eram ingleses, os pais, e o pequeno ranhoso também. E era a primeira vez que estavam em Portugal, há dois dias. O que fez aumentar ainda mais (como se "aumentar ainda mais" fizesse algum sentido), dizia, o que fez aumentar ainda mais a minha estupefacção, para não dizer uma palavra mais simples: é que aquela criança - criança inglesa retinta, filha de pais ingleses retintos, de Bristol - chorava em fluente português, perfeito, sem pontinha de sotaque. O que é extraordinário. Em apenas dois dias...
É o que eu digo: não há nada que chegue ao estrangeiro.
Apolinário Porto-Alegre 2
Era no dia 14 de julho.
O sol cambava. O raio do crepúsculo, círio que vela um ataúde, lambia a face da Terra. Expressão de agonia, lampejo precursor da morte, ia deitar-se o pai da natureza.
Quem então o visse diria que buscava o leito de descanso, numa sepultura imensa como ele próprio, às profundezas do infinito. O cenário sobre que pairamos não recendia menos tristeza.
Eram os campos de Vacaria.
Ao norte o rio Pelotas arquejava, descontando, febrilmente, um réquiem, ao sul o Taquari o acompanhava em notas não menos lúgubres; de um lado o lombro verde-negro da serra Geral, interceptando o horizonte; do outro o Mato Português, cuja respiração simulava o paroxismo cruel de leviatãs que estrebucham. O teto - o céu, cujas fímbrias eram as brumas alvacentas de leve coloridas.
Ajuntai o efeito dos troncos quase desnudos de roupas em pé no lusco-fusco da tarde, fantasmas dos séculos estendendo longos e musculosos braços para todas as direções, sacudindo, ao sopro do pálido arrebol, as barbas grisalhas e venerandas, ajuntai mais o mio, ora profundo e cavernoso da onça, ora estrídulo e agudo da jaguatirica, o solfejo áspero e atroador do itanha, o piar agoureiro das corujas, o bramido do minuano que fazia ranger os estípites e galhada da selva, que revolvia os capinzais como oceanos, e tereis o quadro senão completo, em miniatura ao menos.
"O Vaqueano", Apolinário Porto-Alegre
(Apolinário Porto-Alegre nasceu no dia 29 de Agosto de 1844. Morreu em 1904.)
O sol cambava. O raio do crepúsculo, círio que vela um ataúde, lambia a face da Terra. Expressão de agonia, lampejo precursor da morte, ia deitar-se o pai da natureza.
Quem então o visse diria que buscava o leito de descanso, numa sepultura imensa como ele próprio, às profundezas do infinito. O cenário sobre que pairamos não recendia menos tristeza.
Eram os campos de Vacaria.
Ao norte o rio Pelotas arquejava, descontando, febrilmente, um réquiem, ao sul o Taquari o acompanhava em notas não menos lúgubres; de um lado o lombro verde-negro da serra Geral, interceptando o horizonte; do outro o Mato Português, cuja respiração simulava o paroxismo cruel de leviatãs que estrebucham. O teto - o céu, cujas fímbrias eram as brumas alvacentas de leve coloridas.
Ajuntai o efeito dos troncos quase desnudos de roupas em pé no lusco-fusco da tarde, fantasmas dos séculos estendendo longos e musculosos braços para todas as direções, sacudindo, ao sopro do pálido arrebol, as barbas grisalhas e venerandas, ajuntai mais o mio, ora profundo e cavernoso da onça, ora estrídulo e agudo da jaguatirica, o solfejo áspero e atroador do itanha, o piar agoureiro das corujas, o bramido do minuano que fazia ranger os estípites e galhada da selva, que revolvia os capinzais como oceanos, e tereis o quadro senão completo, em miniatura ao menos.
"O Vaqueano", Apolinário Porto-Alegre
(Apolinário Porto-Alegre nasceu no dia 29 de Agosto de 1844. Morreu em 1904.)
quinta-feira, 27 de agosto de 2015
Sá de Miranda 3
O sol é grande, caem com a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que de alto cai acordar-me-ia
do sono não, mas de cuidados graves.
Ó coisas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração que em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.
Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam de amores.
Tudo é seco e mudo; e, de mistura,
também mudando-me eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!
Sá de Miranda
(Sá de Miranda nasceu no dia 28 de Agosto de 1481. Morreu em 1558.)
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que de alto cai acordar-me-ia
do sono não, mas de cuidados graves.
Ó coisas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração que em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.
Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam de amores.
Tudo é seco e mudo; e, de mistura,
também mudando-me eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!
Sá de Miranda
(Sá de Miranda nasceu no dia 28 de Agosto de 1481. Morreu em 1558.)
quarta-feira, 26 de agosto de 2015
A táctica do duplo pivô
- Ora muito bem: vamos jogar com dois pivôs, quatro caninos, três incisivos e um molar, e sobretudo com muito siso - disse o treinador aos seus rapazes. Era um treinador em part-time, dentista encartado a tempo inteiro.
Florencio Delgado Gurriarán
Preguntade a calquer neniño pera
dos que a feixes se atopan pol-as vilas,
qué opinión é a que ten da nosa fala,...
e diravos axiña:
"Yo te soy más gallego que cualquiera,
mas, ¡caray! ¿voy hablar cual los paisanos?
¡no en mis días!, yo te soy hombre fino,
no te soy ordinario".
dos que a feixes se atopan pol-as vilas,
qué opinión é a que ten da nosa fala,...
e diravos axiña:
"Yo te soy más gallego que cualquiera,
mas, ¡caray! ¿voy hablar cual los paisanos?
¡no en mis días!, yo te soy hombre fino,
no te soy ordinario".
Falade con calquera señorote
(barba, facheda, calva cintilante)
orgulo do casi do seu pobo,
a asín expricaráse:
"El dulce dialecto de Galicia
está bien para hacer bonitos versos,
mas querer emplearlo a todo pasto
es utópico y necio"
Falade con calquera rapariga
(linda cara, feituca testa oca)
encol do emprego da galega fala
e ha dicir a fermosa:
"La Casa de la Troya"... te me gusta,
tan solo por sus frases en gallego,
encantiño, vidiña, tierra meiga.
¡Es tan dulce y tan bello!"
Seguide preguntando inda a mais xente,
"horteriñas", barbeiros prefumados,
"cubanitos" côs seus dentiños douro,
todos eles diranvos:
"Mismo, mismo, no puedo afegurarme
q´haiga quien el gallego inda usar quiera.
¿Hablar como el labrego ¡Dios me libre!
¡Es un habla tan feia!"
"Además, en Madrí y en la Curuña,
Habana y Buenos Aires, non se emplea
mais habla quel hermoso castellano,
nunca el habla gallega"
"¿Y si acaso las gentes se decatan
por tu hablar que naciste nesta terra?
te caístes y nadie te alevanta,
todo dios te chotea.
.................................
¿A que seguir? Como estas opiniós
moitas mais acharedes de seguro,
pois, pol-a mala fada, inda hai a feixes
imbéciles e escuros.
Florencio Delgado Gurriarán
(Florencio Delgado Gurriarán nasceu no dia 27 de Agosto de 1903. Morreu em 1987.)
(barba, facheda, calva cintilante)
orgulo do casi do seu pobo,
a asín expricaráse:
"El dulce dialecto de Galicia
está bien para hacer bonitos versos,
mas querer emplearlo a todo pasto
es utópico y necio"
Falade con calquera rapariga
(linda cara, feituca testa oca)
encol do emprego da galega fala
e ha dicir a fermosa:
"La Casa de la Troya"... te me gusta,
tan solo por sus frases en gallego,
encantiño, vidiña, tierra meiga.
¡Es tan dulce y tan bello!"
Seguide preguntando inda a mais xente,
"horteriñas", barbeiros prefumados,
"cubanitos" côs seus dentiños douro,
todos eles diranvos:
"Mismo, mismo, no puedo afegurarme
q´haiga quien el gallego inda usar quiera.
¿Hablar como el labrego ¡Dios me libre!
¡Es un habla tan feia!"
"Además, en Madrí y en la Curuña,
Habana y Buenos Aires, non se emplea
mais habla quel hermoso castellano,
nunca el habla gallega"
"¿Y si acaso las gentes se decatan
por tu hablar que naciste nesta terra?
te caístes y nadie te alevanta,
todo dios te chotea.
.................................
¿A que seguir? Como estas opiniós
moitas mais acharedes de seguro,
pois, pol-a mala fada, inda hai a feixes
imbéciles e escuros.
Florencio Delgado Gurriarán
(Florencio Delgado Gurriarán nasceu no dia 27 de Agosto de 1903. Morreu em 1987.)
O explicador de baixo custo
Sob a eloquente divisa "A alegria e o prazer de aprender", o panfleto introduzido na minha caixa do correio promete apoio ao estudo "em ambiente acolhedor e familiar", para os 1.º, 2.º e 3.º ciclos. Promete também "Preços Low Cost". Vê-se logo que o douto explicador estima particularmente a língua portuguesa.
terça-feira, 25 de agosto de 2015
Meus queridos dezasseis avos-de-final
Toda a minha vida eu quis ir aos dezasseis avos-de-final. A final nunca me interessou, tampouco ser campeão. Os dezasseis avos-de-final é que sim, sei lá porquê, se calhar por gostar do nome - dezasseis avos-de-final. Mas nunca consegui.
Infelizmente, já não tenho, hoje em dia, idade para almejar a tão altas cavalarias. Sonho agora rasteirinho, e é se quero: contentar-me-ia com uma presença, vá lá, no play-off de apuramento...
Infelizmente, já não tenho, hoje em dia, idade para almejar a tão altas cavalarias. Sonho agora rasteirinho, e é se quero: contentar-me-ia com uma presença, vá lá, no play-off de apuramento...
Feira Medieval de Leça do Balio 2015 (programa)
De 10 a 13 de Setembro. Os Hospitalários no Caminho de Santiago - Feira Medieval de Matosinhos, à roda do Mosteiro de Leça do Balio. Toda a informação e programa, aqui e aqui.
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Dionisio Gamallo Fierros
Las dos madres
Quemad mi cuerpo cuando yo me muera
Dividid en dos partes mis cenizas
Una vaya a Ti, Madre, que aún me brizas
la cuna (Yo, muy niño. Tú, niñera).
Por la otra parte mi otra Madre espera:
Ría que con las aguas me bautizas
y en el mástil del viento mi voz izas
y me curtes la sombra con salmuera.
Mi sangre vuelve hacia la doble fuente:
la del misterio cantarín del Eo,
la de maternidad: miel y ternura.
Ya en el regazo de la Ría... siente
mi nada ¡como el dulce rumoreo
con que crecí en tu vientre, Madre pura!
Dionisio Gamallo Fierros
(Dionisio Gamallo Fierros nasceu no dia 25 de Agosto de 1914. Morreu em 2000.)
domingo, 23 de agosto de 2015
Nelson Rodrigues 3
Bocage no futebol
Quando eu tinha meus cinco, meus seis anos, morava, ao lado de minha casa, um garoto que era tido e havido como o anticristo da rua. Sua idade regulava com a minha. E justiça se lhe faça: não havia palavrão que ele não praticasse. Eu, na minha candura pânica, vivia cercado de conselhos, por todos os lados: - "Não brinca com Fulano, que ele diz nome feio!". E o Fulano assumia, aos meus olhos, as proporções feéricas de um Drácula, de um Nero de fita de cinema. Mas o tempo passou. E acabei descobrindo que, afinal de contas, o anjo de boca suja estava com a razão. Sim, amigos: cada nome feio que a vida extrai de nós é um estímulo vital irresistível. Por exemplo: os nautas camonianos. Sem uma sólida, potente e jucunda pornografia, um Vasco da Gama, um Colombo, um Pedro Álvares Cabral não teriam sido almirantes nem de barca da Cantareira. O que os virilizava era o bom, o cálido, o inefável palavrão.
Mas, se nas relações humanas em geral, o nome feio produz esse impacto criador e libertário, que dizer do futebol? Eis a verdade: retire-se a pornografia do futebol e nenhum jogo será possível. Como jogar ou como torcer se não podemos xingar ninguém? O craque ou o torcedor é um Bocage. Não o Bocage fidedigno, que nunca existiu. Para mim, o verdadeiro Bocage é o falso, isto é, o Bocage de anedota. Pois bem: está para nascer um jogador ou um torcedor que não seja bocagiano. O craque brasileiro não sabe ganhar partidas sem o incentivo constante dos rijos e imortais palavrões da língua. Nós, de longe, vemos os 22 homens correndo em campo, matando-se, agonizando, rilhando os dentes. Parecem dopados e realmente o estão: o chamado nome feio é o seu excitante eficaz, o seu afrodisíaco insuperável.
Exagero? Nem tanto, nem tanto. A propósito, vou citar aqui o caso de Jaguaré. No seu tempo, os clubes não tinham departamento médico e um jogador podia andar com a boca em petição de miséria, desfraldando cáries gigantescas. Assim era Jaguaré: não tinha dentes, só cáries. E seu riso sem obturações, docemente alvar, era largo, permanente e terrível. E acontece o seguinte: a época de Jaguaré coincidiu com a infância do profissionalismo. Morria-se de fome no futebol. O sujeito que tinha para a média, para o pão com manteiga, podia se considerar um Rockefeller, de tanga, mas Rockefeller.
Até que, um dia, apareceu por aqui o emissário de um clube estrangeiro. E o homem esfregou na cara de Jaguaré propostas dignas de um rajá. A princípio, o nosso patrício opôs uma recusa inexpugnável. Não queria aceitar nem por um decreto. Acabou cedendo. Andou pela Espanha e até por Paris. Mas era outro, como homem e como craque. Como jogar sem a pornografia lusobrasileira? Sem as expressões obscenas que dinamizam, que transfiguram, que iluminam os jogadores? Traduzi-las seria uma traição. E Jaguaré vivia sob a persistente, a dilacerada nostalgia dos nomes feios intransportáveis. Finalmente, não pôde mais: voltou correndo para o Brasil. Aqui, agonizou e morreu na mais horrenda miséria. Mas feliz, porque pôde soltar, no idioma próprio, seus últimos palavrões terrenos.
"À Sombra das Chuteiras Imortais - Crónicas de Futebol", Nelson Rodrigues
(Nelson Rodrigues nasceu no dia 23 de Agosto de 1912. Morreu em 1980.)
Quando eu tinha meus cinco, meus seis anos, morava, ao lado de minha casa, um garoto que era tido e havido como o anticristo da rua. Sua idade regulava com a minha. E justiça se lhe faça: não havia palavrão que ele não praticasse. Eu, na minha candura pânica, vivia cercado de conselhos, por todos os lados: - "Não brinca com Fulano, que ele diz nome feio!". E o Fulano assumia, aos meus olhos, as proporções feéricas de um Drácula, de um Nero de fita de cinema. Mas o tempo passou. E acabei descobrindo que, afinal de contas, o anjo de boca suja estava com a razão. Sim, amigos: cada nome feio que a vida extrai de nós é um estímulo vital irresistível. Por exemplo: os nautas camonianos. Sem uma sólida, potente e jucunda pornografia, um Vasco da Gama, um Colombo, um Pedro Álvares Cabral não teriam sido almirantes nem de barca da Cantareira. O que os virilizava era o bom, o cálido, o inefável palavrão.
Mas, se nas relações humanas em geral, o nome feio produz esse impacto criador e libertário, que dizer do futebol? Eis a verdade: retire-se a pornografia do futebol e nenhum jogo será possível. Como jogar ou como torcer se não podemos xingar ninguém? O craque ou o torcedor é um Bocage. Não o Bocage fidedigno, que nunca existiu. Para mim, o verdadeiro Bocage é o falso, isto é, o Bocage de anedota. Pois bem: está para nascer um jogador ou um torcedor que não seja bocagiano. O craque brasileiro não sabe ganhar partidas sem o incentivo constante dos rijos e imortais palavrões da língua. Nós, de longe, vemos os 22 homens correndo em campo, matando-se, agonizando, rilhando os dentes. Parecem dopados e realmente o estão: o chamado nome feio é o seu excitante eficaz, o seu afrodisíaco insuperável.
Exagero? Nem tanto, nem tanto. A propósito, vou citar aqui o caso de Jaguaré. No seu tempo, os clubes não tinham departamento médico e um jogador podia andar com a boca em petição de miséria, desfraldando cáries gigantescas. Assim era Jaguaré: não tinha dentes, só cáries. E seu riso sem obturações, docemente alvar, era largo, permanente e terrível. E acontece o seguinte: a época de Jaguaré coincidiu com a infância do profissionalismo. Morria-se de fome no futebol. O sujeito que tinha para a média, para o pão com manteiga, podia se considerar um Rockefeller, de tanga, mas Rockefeller.
Até que, um dia, apareceu por aqui o emissário de um clube estrangeiro. E o homem esfregou na cara de Jaguaré propostas dignas de um rajá. A princípio, o nosso patrício opôs uma recusa inexpugnável. Não queria aceitar nem por um decreto. Acabou cedendo. Andou pela Espanha e até por Paris. Mas era outro, como homem e como craque. Como jogar sem a pornografia lusobrasileira? Sem as expressões obscenas que dinamizam, que transfiguram, que iluminam os jogadores? Traduzi-las seria uma traição. E Jaguaré vivia sob a persistente, a dilacerada nostalgia dos nomes feios intransportáveis. Finalmente, não pôde mais: voltou correndo para o Brasil. Aqui, agonizou e morreu na mais horrenda miséria. Mas feliz, porque pôde soltar, no idioma próprio, seus últimos palavrões terrenos.
"À Sombra das Chuteiras Imortais - Crónicas de Futebol", Nelson Rodrigues
(Nelson Rodrigues nasceu no dia 23 de Agosto de 1912. Morreu em 1980.)
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sexta-feira, 21 de agosto de 2015
quinta-feira, 20 de agosto de 2015
Josué Montello 3
Já fazia alguns anos que Damião vira aparecer na cidade aquela figura caricata, debaixo de uma cartola preta, casaca, sapatos cambados, a andar acima e abaixo, com uma pasta de couro, também preta, e apresentando-se no Largo do Carmo, no Palácio do Governo, na redação dos jornais, no Liceu, no Paço Episcopal, e também à porta das igrejas, nas missas dominicais e nos casamentos, como - o Ilusor Maranhense. Dias depois, apenas por curiosidade, tinha ido assistir, no Teatro São Luís, ao seu primeiro espetáculo, que daí em diante se repetia todos os anos: a caprichada mágica intitulada A queda da Bandeira. Sátiro subia uma escada, até o último degrau, bem no centro do palco, e dali, com uma bandeira desfraldada, recitava comprido bestialógico, cheio de palavras abstrusas, numa suposta língua de sua invenção, o gramazino, da qual proporcionava antes um pano de amostra com esta explicação: "O A do alfabeto gramazino é a mesma coisa que o A do alfabeto em português, com a diferença de que se escreve de cabeça para baixo e tem o som de bé." Em seguida, enrolava-se na bandeira. Um tiro de pólvora seca estrondava, assustando a platéia. E eis que o mágico se atirava lá do alto, em arremesso, como se fosse voar, e caía pesadamente cá embaixo, nas tábuas do chão.
"Os Tambores de São Luís", Josué Montello
(Josué Montello nasceu no dia 21 de Agosto de 1917. Morreu em 2006.)
"Os Tambores de São Luís", Josué Montello
(Josué Montello nasceu no dia 21 de Agosto de 1917. Morreu em 2006.)
Dora Vázquez
Por qué te fuches?
Paseniño vou seguindo meu sendeiro outonizo,
sen aves xá e sen sol
- porta aberta ás saudades -
sen ollos pra piñal nen praia…
Inda non podo decatarme ben…!
Qué inquedos, dourados ouriolos,
che acenearon gasalleiros
pra tropicales ceos enxardelándoche as azas?
Ise fuxir das antergas illas,
ise non acougar que te queima,
isa arca das saudades que te envenena,
isa arela voráxine que te abocaba,
isa ardência xentil que te leva...!
Non tiñas cantarolas de paxaros montesíos,
agrinaldadas rosas, acendidas mañás,
fecundas tardes, milagreiros ceos?
Quén, agora, percurará as roseiras
e prantará xeráneos nos parterres,
pra o enlevo animoso das primaveiras?
Quén, no vran, abalará nas ponlas,
i-espirá os árboresdo maturecido froito,
e vendimará nas uvas?
Quén rirá i-acenderá na casa
o fogo das ledas canturias...?
Irmá: que nos fuxiras esí,
cós nosos paxaros todos da ledicia!
"Irmá", Dora Vázquez
(Dora Vázquez nasceu no dia 21 de Agosto de 1913. Morreu em 2010.)
Paseniño vou seguindo meu sendeiro outonizo,
sen aves xá e sen sol
- porta aberta ás saudades -
sen ollos pra piñal nen praia…
Inda non podo decatarme ben…!
Qué inquedos, dourados ouriolos,
che acenearon gasalleiros
pra tropicales ceos enxardelándoche as azas?
Ise fuxir das antergas illas,
ise non acougar que te queima,
isa arca das saudades que te envenena,
isa arela voráxine que te abocaba,
isa ardência xentil que te leva...!
Non tiñas cantarolas de paxaros montesíos,
agrinaldadas rosas, acendidas mañás,
fecundas tardes, milagreiros ceos?
Quén, agora, percurará as roseiras
e prantará xeráneos nos parterres,
pra o enlevo animoso das primaveiras?
Quén, no vran, abalará nas ponlas,
i-espirá os árboresdo maturecido froito,
e vendimará nas uvas?
Quén rirá i-acenderá na casa
o fogo das ledas canturias...?
Irmá: que nos fuxiras esí,
cós nosos paxaros todos da ledicia!
"Irmá", Dora Vázquez
(Dora Vázquez nasceu no dia 21 de Agosto de 1913. Morreu em 2010.)
quarta-feira, 19 de agosto de 2015
Cora Coralina 3
Poeminha amoroso
Este é um poema de amor
tão meigo, tão terno, tão teu...
É uma oferenda aos teus momentos
de luta e de brisa e de céu...
E eu
quero te servir a poesia
numa concha azul do mar
ou numa cesta de flores do campo.
Talvez tu possas entender o meu amor.
Mas, se isso não acontecer,
não importa.
Já está declarado e estampado
nas linhas e entrelinhas
deste pequeno poema,
o verso;
o tão famoso e inesperado verso que
te deixará pasmo, surpreso, perplexo...
eu te amo, perdoa-me, eu te amo...
Cora Coralina
(Cora Coralina nasceu no dia 20 de Agosto de 1889. Morreu em 1985.)
Este é um poema de amor
tão meigo, tão terno, tão teu...
É uma oferenda aos teus momentos
de luta e de brisa e de céu...
E eu
quero te servir a poesia
numa concha azul do mar
ou numa cesta de flores do campo.
Talvez tu possas entender o meu amor.
Mas, se isso não acontecer,
não importa.
Já está declarado e estampado
nas linhas e entrelinhas
deste pequeno poema,
o verso;
o tão famoso e inesperado verso que
te deixará pasmo, surpreso, perplexo...
eu te amo, perdoa-me, eu te amo...
Cora Coralina
(Cora Coralina nasceu no dia 20 de Agosto de 1889. Morreu em 1985.)
terça-feira, 18 de agosto de 2015
Predestinação divina
Quando um gajo morre por engano, tipo erro médico ou bala que era para outro, como é que a coisa fica? Deus assume a responsabilidade e trata de tudo? Isso é que eu gostava de saber.
segunda-feira, 17 de agosto de 2015
O verbo estar faz-me falta, tão a ver?
Havia o verbo Estar, e eu dava-me muito bem com ele. Nunca conheci outro verbo que quisesse dizer tão bem ser presente, ser num dado momento, achar-se ocupado no desempenho de certas funções, achar-se em situação especial e transitória, ter atingido certo ponto ou local, pertencer a uma corporação ou classe especial, seguir uma carreira, ficar, esperar, permanecer, assistir, consistir, residir, condizer, julgar, tencionar, ser favorável, concordar, consentir, começar a verificar-se qualquer coisa, importar, custar, persistir, comparecer. Sou por este verbo desde pequeninho.
Mas depois chegou a "crise", e o velho verbo Estar foi despedido e substituído por um verbo novo, jovem e dinâmico, pau para toda a colher, e a recibo verde: o verbo Tar. O verbo Tar, que é dito por gente de várias marcas, sobretudo na televisão, dos treinadores de futebol aos políticos, dos produtores de cinema aos jornalistas. O verbo Tar, que até já saiu escrito nos jornais...
Não foi coisa de repente, é preciso que se note. Foi assim como aquele peido lento, manso, longo, solerte, que, vai-se a ver, acaba em merda - e não se armem em escandalizados: quem nunca passou pela curricular experiência das cuecas borradas, que meta o dedo pelo cu acima.
Dizia eu: o verbo. O caso é que o verbo Estar faz-me falta, foram muitos anos, eu estava muito afeito a ele, achei uma injustiça o que lhe fizeram, e deram-me as saudades. Fui à procura do meu verbo e fiz duas descobertas: primeira - o badaladíssimo verbo Tar não existe (parece impossível!); segunda - o bom e velho verbo Estar afinal não morreu, continua a bulir, intransitivo e irregular como sempre, mas no activo (e no passivo, já agora).
Portanto, ó mentes captas!, ó analfabetos militantes!, quando quiserdes dizer estar, dizei estar, porque dizeis bem. Porque o verbo Estar existe, é um bocadinho mais velho do que vós, mas aguenta-se, e, se não estou em erro, conjuga-se assim:
eu estou
tu estás
ele está
nós estamos
vós estais
eles estão
eu estava
tu estavas
ele estava
nós estávamos
vós estáveis
eles estavam
eu estive
tu estiveste
ele esteve
nós estivemos
vós estivestes
eles estiveram
Mas depois chegou a "crise", e o velho verbo Estar foi despedido e substituído por um verbo novo, jovem e dinâmico, pau para toda a colher, e a recibo verde: o verbo Tar. O verbo Tar, que é dito por gente de várias marcas, sobretudo na televisão, dos treinadores de futebol aos políticos, dos produtores de cinema aos jornalistas. O verbo Tar, que até já saiu escrito nos jornais...
Não foi coisa de repente, é preciso que se note. Foi assim como aquele peido lento, manso, longo, solerte, que, vai-se a ver, acaba em merda - e não se armem em escandalizados: quem nunca passou pela curricular experiência das cuecas borradas, que meta o dedo pelo cu acima.
Dizia eu: o verbo. O caso é que o verbo Estar faz-me falta, foram muitos anos, eu estava muito afeito a ele, achei uma injustiça o que lhe fizeram, e deram-me as saudades. Fui à procura do meu verbo e fiz duas descobertas: primeira - o badaladíssimo verbo Tar não existe (parece impossível!); segunda - o bom e velho verbo Estar afinal não morreu, continua a bulir, intransitivo e irregular como sempre, mas no activo (e no passivo, já agora).
Portanto, ó mentes captas!, ó analfabetos militantes!, quando quiserdes dizer estar, dizei estar, porque dizeis bem. Porque o verbo Estar existe, é um bocadinho mais velho do que vós, mas aguenta-se, e, se não estou em erro, conjuga-se assim:
eu estou
tu estás
ele está
nós estamos
vós estais
eles estão
eu estava
tu estavas
ele estava
nós estávamos
vós estáveis
eles estavam
eu estive
tu estiveste
ele esteve
nós estivemos
vós estivestes
eles estiveram
eu estivera
tu estiveras
ele estivera
nós estivéramos
vós estivéreis
eles estiveram
eu estarei
tu estarás
ele estará
nós estaremos
vós estareis
eles estarão
que eu estejatu estiveras
ele estivera
nós estivéramos
vós estivéreis
eles estiveram
eu estarei
tu estarás
ele estará
nós estaremos
vós estareis
eles estarão
eu estaria
tu estarias
ele estaria
nós estaríamos
vós estaríeis
eles estariam
tu estarias
ele estaria
nós estaríamos
vós estaríeis
eles estariam
que tu estejas
que ele esteja
que nós estejamos
que vós estejais
que eles estejam
se eu estivesse
que ele esteja
que nós estejamos
que vós estejais
que eles estejam
se eu estivesse
se tu estivesses
se ele estivesse
se nós estivéssemos
se vós estivésseis
se eles estivessem
eu estar
tu estares
ele estar
nós estarmos
vós estardes
eles estarem
eu tivera estado
tu tiveras estado
ele tivera estado
nós tivéramos estado
vós tivéreis estado
eles tiveram estado
se ele estivesse
se nós estivéssemos
se vós estivésseis
se eles estivessem
quando eu estiver
quando tu estiveres
quando ele estiver
quando nós estivermos
quando vós estiverdes
quando eles estiverem
quando tu estiveres
quando ele estiver
quando nós estivermos
quando vós estiverdes
quando eles estiverem
eu estar
tu estares
ele estar
nós estarmos
vós estardes
eles estarem
eu tenho estado
tu tens estado
ele tem estado
nós temos estado
vós tendes estado
eles têm estado
tu tens estado
ele tem estado
nós temos estado
vós tendes estado
eles têm estado
eu tinha estado
tu tinhas estado
ele tinha estado
nós tinhamos estado
vós tinheis estado
eles tinham estado
tu tinhas estado
ele tinha estado
nós tinhamos estado
vós tinheis estado
eles tinham estado
eu tivera estado
tu tiveras estado
ele tivera estado
nós tivéramos estado
vós tivéreis estado
eles tiveram estado
eu terei estado
tu terás estado
ele terá estado
nós teremos estado
vós tereis estado
eles terão estado
tu terás estado
ele terá estado
nós teremos estado
vós tereis estado
eles terão estado
eu teria estado
tu terias estado
ele teria estado
nós teríamos estado
vós teríeis estado
eles teriam estado
eu ter estado
tu teres estado
ele ter estado
nós termos estado
vós terdes estado
eles terem estado
-
está
esteja
estejamos
estai
estejam
-
não estejas
não esteja
não estejamos
não estejais
não estejam
estar
estado
estando.
tu terias estado
ele teria estado
nós teríamos estado
vós teríeis estado
eles teriam estado
que eu tenha estado
que tu tenhas estado
que ele tenha estado
que nós tenhamos estado
que vós tenhais estado
que eles tenham estado
quando eu tiver estado
quando tu tiveres estado
quando ele tiver estado
quando nós tivermos estado
quando vós tiverdes estado
quando eles tiverem estado
que tu tenhas estado
que ele tenha estado
que nós tenhamos estado
que vós tenhais estado
que eles tenham estado
se eu tivesse estado
se tu tivesses estado
se ele tivesse estado
se nós tivéssemos estado
se vós tivésseis estado
se eles tivessem estado
se tu tivesses estado
se ele tivesse estado
se nós tivéssemos estado
se vós tivésseis estado
se eles tivessem estado
quando eu tiver estado
quando tu tiveres estado
quando ele tiver estado
quando nós tivermos estado
quando vós tiverdes estado
quando eles tiverem estado
eu ter estado
tu teres estado
ele ter estado
nós termos estado
vós terdes estado
eles terem estado
-
está
esteja
estejamos
estai
estejam
-
não estejas
não esteja
não estejamos
não estejais
não estejam
estar
estado
estando.
domingo, 16 de agosto de 2015
António Botto 2
Se me deixares, eu digo
O contrário a toda a gente;
E, neste mundo de enganos,
Fala verdade quem mente.
Tu dizes que a minha boca
Já não acorda desejos,
Já não aquece outra boca,
Já não merece os teus beijos;
Mas, tem cuidado comigo,
Não procures ser ausente:
- Se me deixares, eu digo
O contrário a toda a gente.
"Canções", António Botto
(António Botto nasceu no dia 17 de Agosto de 1897. Morreu em 1959.)
O contrário a toda a gente;
E, neste mundo de enganos,
Fala verdade quem mente.
Tu dizes que a minha boca
Já não acorda desejos,
Já não aquece outra boca,
Já não merece os teus beijos;
Mas, tem cuidado comigo,
Não procures ser ausente:
- Se me deixares, eu digo
O contrário a toda a gente.
"Canções", António Botto
(António Botto nasceu no dia 17 de Agosto de 1897. Morreu em 1959.)
Millôr Fernandes 3
Chapeuzinho Vermelho
Era uma vez (admitindo-se aqui o tempo como uma realidade palpável, estranho, portanto, à fantasia da história) uma menina, linda e um pouco tola, que se chamava Chapeuzinho Vermelho. (Esses nomes que se usam em substituição do nome próprio chamam-se alcunha ou vulgo). Chapeuzinho Vermelho costumava passear no bosque, colhendo Sinantias, monstruosidade botânica que consiste na soldadura anômala de duas flores vizinhas pelos invólucros ou pelos pecíolos, Mucambés ou Muçambas, planta medicinal da família das Caparidáceas, e brincando aqui e ali com uma Jurueba, da família dos Psitacídeos, que vivem em regiões justafluviais, ou seja, à margem dos rios. Chapeuzinho Vermelho andava, pois, na Floresta, quando lhe aparece um lobo, animal selvagem carnívoro do gênero cão e… (Um parêntesis para os nossos pequenos leitores - o Lobo era, presumivelmente, uma figura inexistente criada pelo cérebro superexcitado de Chapeuzinho Vermelho. Tendo que andar na floresta sozinha, natural seria que, volta e meia, sentindo-se indefesa, tivesse alucinações semelhantes.).
Chapeuzinho Vermelho foi detida pelo Lobo, que lhe disse: (Outro parêntesis; os animais jamais falaram. Fica explicado aqui que isso é um recurso de fantasia do autor e que o Lobo encarna os sentimentos cruéis do Homem. Esse princípio animista é ascentralíssimo e está em todo o folclore universal.) Disse o Lobo: "Onde vais, linda menina?" Respondeu Chapeuzinho Vermelho: "Vou levar estes doces à minha avozinha que está doente. Atravessarei dunas, montes, cabos, istmos e outros acidentes geográficos e deverei chegar lá às treze e trinta e cinco, ou seja, a uma hora e trinta e cinco minutos da tarde”.
Ouvindo isso o Lobo saiu correndo, estimulado por desejos reprimidos (Freud: "Psychopathology Of Everiday Life", The Modern Library Inc. N.Y.). Chegando na casa da avozinha ele engoliu-a de uma vez - o que, segundo o conceito materialista de Marx indica uma intenção crítica do autor, estando oculta aí a idéia do capitalismo devorando o proletariado - e ficou esperando, deitado na cama, fantasiado com a roupa da avó.
Passaram-se quinze minutos (diagrama explicando o funcionamento do relógio e seu processo evolutivo através da História). Chapeuzinho Vermelho chegou e não percebeu que o Lobo não era sua avó, porque sofria de astigmatismo convergente, que é uma perturbação visual oriunda da curvatura da córnea. Nem percebeu que a voz não era a da avó, porque sofria de otite, inflamação do ouvido, nem reconheceu nas suas palavras, palavras cheias de má-fé masculina, porque, afinal, eis o que ela era mesmo: esquizofrênica, débil mental e paranóica, pequenas doenças que dão no cérebro, parte súpero-anterior do encéfalo. (A tentativa muito comum da mulher ignorar a transformação do Homem é profusamente estudada por Kinsey em "Sexual Behavior in the Human Female". W. B. Saunders Company, Publishers.) Mas, para salvação de Chapeuzinho Vermelho, apareceram os lenhadores, mataram cuidadosamente o Lobo, depois de verificar a localização da avó através da Roentgenfotografia. E Chapeuzinho Vermelho viveu tranqüila 57 anos, que é a média da vida humana segundo Maltus, Thomas Robert, economista inglês nascido em 1766, em Rookew, pequena propriedade de seu pai, que foi grande amigo de Rousseau.
"Lições de Um Ignorante", Millôr Fernandes
(Millôr Fernandes nasceu no dia 16 de Agosto de 1923. Morreu em 2012.)
Era uma vez (admitindo-se aqui o tempo como uma realidade palpável, estranho, portanto, à fantasia da história) uma menina, linda e um pouco tola, que se chamava Chapeuzinho Vermelho. (Esses nomes que se usam em substituição do nome próprio chamam-se alcunha ou vulgo). Chapeuzinho Vermelho costumava passear no bosque, colhendo Sinantias, monstruosidade botânica que consiste na soldadura anômala de duas flores vizinhas pelos invólucros ou pelos pecíolos, Mucambés ou Muçambas, planta medicinal da família das Caparidáceas, e brincando aqui e ali com uma Jurueba, da família dos Psitacídeos, que vivem em regiões justafluviais, ou seja, à margem dos rios. Chapeuzinho Vermelho andava, pois, na Floresta, quando lhe aparece um lobo, animal selvagem carnívoro do gênero cão e… (Um parêntesis para os nossos pequenos leitores - o Lobo era, presumivelmente, uma figura inexistente criada pelo cérebro superexcitado de Chapeuzinho Vermelho. Tendo que andar na floresta sozinha, natural seria que, volta e meia, sentindo-se indefesa, tivesse alucinações semelhantes.).
Chapeuzinho Vermelho foi detida pelo Lobo, que lhe disse: (Outro parêntesis; os animais jamais falaram. Fica explicado aqui que isso é um recurso de fantasia do autor e que o Lobo encarna os sentimentos cruéis do Homem. Esse princípio animista é ascentralíssimo e está em todo o folclore universal.) Disse o Lobo: "Onde vais, linda menina?" Respondeu Chapeuzinho Vermelho: "Vou levar estes doces à minha avozinha que está doente. Atravessarei dunas, montes, cabos, istmos e outros acidentes geográficos e deverei chegar lá às treze e trinta e cinco, ou seja, a uma hora e trinta e cinco minutos da tarde”.
Ouvindo isso o Lobo saiu correndo, estimulado por desejos reprimidos (Freud: "Psychopathology Of Everiday Life", The Modern Library Inc. N.Y.). Chegando na casa da avozinha ele engoliu-a de uma vez - o que, segundo o conceito materialista de Marx indica uma intenção crítica do autor, estando oculta aí a idéia do capitalismo devorando o proletariado - e ficou esperando, deitado na cama, fantasiado com a roupa da avó.
Passaram-se quinze minutos (diagrama explicando o funcionamento do relógio e seu processo evolutivo através da História). Chapeuzinho Vermelho chegou e não percebeu que o Lobo não era sua avó, porque sofria de astigmatismo convergente, que é uma perturbação visual oriunda da curvatura da córnea. Nem percebeu que a voz não era a da avó, porque sofria de otite, inflamação do ouvido, nem reconheceu nas suas palavras, palavras cheias de má-fé masculina, porque, afinal, eis o que ela era mesmo: esquizofrênica, débil mental e paranóica, pequenas doenças que dão no cérebro, parte súpero-anterior do encéfalo. (A tentativa muito comum da mulher ignorar a transformação do Homem é profusamente estudada por Kinsey em "Sexual Behavior in the Human Female". W. B. Saunders Company, Publishers.) Mas, para salvação de Chapeuzinho Vermelho, apareceram os lenhadores, mataram cuidadosamente o Lobo, depois de verificar a localização da avó através da Roentgenfotografia. E Chapeuzinho Vermelho viveu tranqüila 57 anos, que é a média da vida humana segundo Maltus, Thomas Robert, economista inglês nascido em 1766, em Rookew, pequena propriedade de seu pai, que foi grande amigo de Rousseau.
"Lições de Um Ignorante", Millôr Fernandes
(Millôr Fernandes nasceu no dia 16 de Agosto de 1923. Morreu em 2012.)
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António Nobre 3
Que aborrecido!
Meus dias de rapaz, de adolescente,
Abrem a boca a bocejar, sombrios:
Deslizam vagarosos, como os rios,
Sucedem-se uns aos outros, igualmente.
Nunca desperto de manhã, contente.
Pálido sempre com os lábios frios,
Oro, desfiando os meus rosários pios...
Fora melhor dormir, eternamente!
Mas não ter eu aspirações vivazes,
E não ter, como têm os mais rapazes,
Olhos boiando em sol, lábio vermelho!
Quero viver, eu sinto-o, mas não posso:
E não sei, sendo assim, enquanto moço,
O que serei, então, depois de velho...
"Só", António Nobre
(António Nobre nasceu no dia 16 de Agosto de 1867. Morreu em 1900.)
Meus dias de rapaz, de adolescente,
Abrem a boca a bocejar, sombrios:
Deslizam vagarosos, como os rios,
Sucedem-se uns aos outros, igualmente.
Nunca desperto de manhã, contente.
Pálido sempre com os lábios frios,
Oro, desfiando os meus rosários pios...
Fora melhor dormir, eternamente!
Mas não ter eu aspirações vivazes,
E não ter, como têm os mais rapazes,
Olhos boiando em sol, lábio vermelho!
Quero viver, eu sinto-o, mas não posso:
E não sei, sendo assim, enquanto moço,
O que serei, então, depois de velho...
"Só", António Nobre
(António Nobre nasceu no dia 16 de Agosto de 1867. Morreu em 1900.)
sábado, 15 de agosto de 2015
Vida de cão, vida de cão
Foto Hernâni Von Doellinger |
"Cão deixado no lixo dentro de um saco gera onda de solidariedade em Vila Real", anuncia o jornal Público, em título fim-de-semaneiro. E acrescenta: "Plataforma Proanimal alerta que nesta altura do ano há mais animais abandonados e menos pessoas disponíveis para os acolher."
Verdade como punho. Embora não gere nenhuma "onda de solidariedade", está curiosamente a acontecer o mesmo com os velhos e com os recém-nascidos, por assim dizer, humanos - cada vez mais abandonados e com cada vez menos pessoas disponíveis para os acolher. É. Vivemos realmente uma "altura do ano" filha da puta. Mas os cãezinhos, Senhor...
sexta-feira, 14 de agosto de 2015
Bernardo Guimarães
Era nos primeiros anos do reinado do Sr. D. Pedro II.
No fértil e opulento município de Campos de Goitacases, à margem do Paraíba, a pouca distância da vila de Campos, havia uma linda e magnífica fazenda.
Era um edifício de harmoniosas proporções, vasto e luxuoso, situado em aprazível vargedo ao sopé de elevadas colinas cobertas de mata em parte devastada pelo machado do lavrador. Longe em derredor a natureza ostentava-se ainda em toda a sua primitiva e selvática rudeza; mas por perto, em torno da deliciosa vivenda, a mão do homem tinha convertido a bronca selva, que cobria o solo, em jardins e pomares deleitosos, em gramais e pingues pastagens, sombreadas aqui e acolá por gameleiras gigantescas, perobas, cedros e copaíbas, que atestavam o vigor da antiga floresta. Quase não se via aí muro, cerca, nem valado; jardim, horta, pomar, pastagens, e plantios circunvizinhos eram divididos por viçosas e verdejantes sebes de bambus, piteiras, espinheiros e gravatás, que davam ao todo o aspecto do mais aprazível e delicioso vergel.
No fértil e opulento município de Campos de Goitacases, à margem do Paraíba, a pouca distância da vila de Campos, havia uma linda e magnífica fazenda.
Era um edifício de harmoniosas proporções, vasto e luxuoso, situado em aprazível vargedo ao sopé de elevadas colinas cobertas de mata em parte devastada pelo machado do lavrador. Longe em derredor a natureza ostentava-se ainda em toda a sua primitiva e selvática rudeza; mas por perto, em torno da deliciosa vivenda, a mão do homem tinha convertido a bronca selva, que cobria o solo, em jardins e pomares deleitosos, em gramais e pingues pastagens, sombreadas aqui e acolá por gameleiras gigantescas, perobas, cedros e copaíbas, que atestavam o vigor da antiga floresta. Quase não se via aí muro, cerca, nem valado; jardim, horta, pomar, pastagens, e plantios circunvizinhos eram divididos por viçosas e verdejantes sebes de bambus, piteiras, espinheiros e gravatás, que davam ao todo o aspecto do mais aprazível e delicioso vergel.
A casa apresentava a frente às colinas. Entrava-se nela por um lindo alpendre todo enredado de flores trepadeiras, ao qual subia-se por uma escada de cantaria de seis a sete degraus. Os fundos eram ocupados por outros edifícios acessórios, senzalas, pátios, currais e celeiros, por trás dos quais se estendia o jardim, a horta, e um imenso pomar, que ia perder-se na barranca do grande rio.
(Bernardo Guimarães nasceu no dia 15 de Agosto de 1825. Morreu em 1884.)
Como o mundo é pequeno (e um bocado parvo)
- Perdoar-me-á que o interpele assim sem mais nem menos, sem o conhecer de lado nenhum, mas o caro senhor é um bocado parvo, não é?
- Sou, com efeito, um bocado parvo, mas como é que o caro senhor adivinhou?
- Um pressentimento. É que eu também sou...
- O caro senhor também é um pressentimento?
- Não, não, caro senhor: também sou um bocado parvo.
- Como o mundo é pequeno! Somos então praticamente primos...
- Parentes, pelo menos...
- E, mal que lhe pergunte, o caro amigo é um bocado parvo por parte da senhora sua mãe ou por parte do senhor seu pai?
- Por parte do senhor meu pai.
- Mas isso é extraordinário, caro amigo, porque eu também sou...
- O caro amigo também é um bocado parvo por parte do senhor meu pai?
- Não, não, caro amigo: sou um bocado parvo mas por parte do senhor meu pai.
- Oh, que pena! Quase que éramos irmãos, não é?...
- Sou, com efeito, um bocado parvo, mas como é que o caro senhor adivinhou?
- Um pressentimento. É que eu também sou...
- O caro senhor também é um pressentimento?
- Não, não, caro senhor: também sou um bocado parvo.
- Como o mundo é pequeno! Somos então praticamente primos...
- Parentes, pelo menos...
- E, mal que lhe pergunte, o caro amigo é um bocado parvo por parte da senhora sua mãe ou por parte do senhor seu pai?
- Por parte do senhor meu pai.
- Mas isso é extraordinário, caro amigo, porque eu também sou...
- O caro amigo também é um bocado parvo por parte do senhor meu pai?
- Não, não, caro amigo: sou um bocado parvo mas por parte do senhor meu pai.
- Oh, que pena! Quase que éramos irmãos, não é?...
Festival da vitela assada à moda de Fafe 2015
No fim-de-semana de 18 a 20 de Setembro, II Festival Gastronómico da Vitela Assada à Moda de Fafe. Em Fafe, na Praça das Comunidades (espaço da feira semanal), vitela, vinho verde, pão-de-ló tradicional, doces de gema, exposição de produtos típicos da região - do artesanato às compotas. Mais informação, aqui.
quinta-feira, 13 de agosto de 2015
Jogue golfe com moderação
Depois do quinto shot, o famoso jogador de golfe já via tudo a dobrar. O buraco 17 parecia-lhe o 34, o que é manifestamente irregular.
quarta-feira, 12 de agosto de 2015
Carlos Malheiro Dias
Entregou-se a noite inteira, consolando-o, afogando-o de carícias, tratando de lhe curar toda a desgraça com palavras meigas de amor, aconchegando-o à macieza da carne, sumindo-se nele, terna, gemendo, calcando os seios ao seu peito. Mas naquela entrega não havia nem as sombras desses ardores antigos, que estremeciam o corpo da mulata, dos calcanhares às fontes. A posse insatisfeita, largada por ambos, num desalento, acabara de lhe varrer toda a poeira da esperança em que já se desfizera o esqueleto dessa fé, havia muito cadáver. Sobre eles caía uma fina chuva de pesar; uma desolação envolvia-lhe a alma, com um crepúsculo prenhe de trevas, no último período de uma gravidez hedionda do fim próximo. Ele tinha até medo de pensar, tratando os pensamentos como rondantes perigosos da sua noite, e por quem se sentia perseguido, apavorado, transido de susto. Desviava-se de toda a preocupação, quebrando esquina aos primeiros passos da razão, à primeira sombra de raciocínio.
"A Mulata", Carlos Malheiro Dias
(Carlos Malheiro Dias nasceu no dia 13 de Agosto de 1875. Morreu em 1941.)
"A Mulata", Carlos Malheiro Dias
(Carlos Malheiro Dias nasceu no dia 13 de Agosto de 1875. Morreu em 1941.)
Festival Internacional de Flamenco e Cultura Ibérica
Em Fafe, de 17 a 22 de Agosto, Festival Internacional de Flamenco e Cultura Ibérica. Espectáculos e oficinas artísticas na Praça 25 de Abril, com entradas e inscrições gratuitas. Mais informação e programa, aqui.
terça-feira, 11 de agosto de 2015
Ánxel Fole
Os lobos
Moitas veces ouvín decir que os lobos non atacan ás persoas. E isto non é certo. O segredario de Caldas foi comido por iles cando voltaba da feira de Viana. Algús dixeron que o mataran por arroubalo, e que despois o comeran os lobos; mais a douscentos metros de ondia o comeran foi atopado un lobo morto coa gorxa afuraiada por unha bala.
"Á Lus do Candil", Ánxel Fole
(Ánxel Fole nasceu no dia 11 de Agosto de 1903. Morreu em 1986.)
Moitas veces ouvín decir que os lobos non atacan ás persoas. E isto non é certo. O segredario de Caldas foi comido por iles cando voltaba da feira de Viana. Algús dixeron que o mataran por arroubalo, e que despois o comeran os lobos; mais a douscentos metros de ondia o comeran foi atopado un lobo morto coa gorxa afuraiada por unha bala.
Aquiles días viran os pastores unha manada de dez cunha loba con tres
lobecos. Era tempo de neve, e baixaran da serra da Moá. Ó parecer,
despois de esgotados os cartuchos, quixo subirse a un albre, mais non
puido. Alí estaba ó seu carón, o revólver con seis cartuchos baleiros no
lombo. Era un bon revólver americano. Ó sentirse feridos algús lobos,
todos se botaron enriba dil. Si tivera un bon foco eléutrico cecais se
salvara. Ós lobos se non se lles fire de morte é pior. Eu matei un con
dous tiros de postas. Foi morrer tres cantos máis aló de ondia o
asegundara. Atináralle na testa e no fuciño, e iba deixando un regueiro
de sangue. Arrincaba cos dentes os cañotos das xestas. Cecais non se me
arrepuxo porque era de día.
De noite médralles o corazón e son moi valentes. Non vos riades. Tamén
lles pasa iso ós lubicás. O señor cura de Peites tiña un. De noite íbase
ó monte e chamaba ós lobos. Viñan con il. Din que abría os tarabelos
das cuadras coma unha persoa. Unha noite velouno o señor cura. Era un
gran cazador. Tiña un rifle de dez tiros que lle trouguera un sobriño de
California. Meteulle dous tiros seguidos no entrecello ó galgar un
pasadelo. O crego estaba na xanela da reitoral cun foco, i o lubicán
voltaba do monte, polas tres da mañá, acompañado dos lobos. Abrírono i
esfolárono axiña, e viron que tiña o corazón finchado...
¿Sabedes cando se estreven os lobos cos homes? Cando teñen moita fame,
ou cando se decatan de que lles teñen medo. Por iso cáseque nunca atacan
a tres ou máis xuntos. Cando se atopan un home soio pola serra, póñense
a traballalo. Teñen moito distinto... Xa veredes coma o traballan. De
primeiro, acompáñano; despois, póñenselle diante; máis tarde, chéganlle a
zorrega-las pernas cos rabos... Asín, pouquiño a pouquiño. Vén un intre
en que o home xa non pode máis. O medo alporízalle os cabelos.
Parécelle que lle cravaran allambres na testa. Váiselle a voz, perde o
sentido. Xa está perdido. Bótanse os lobos enriba dil i esnaquízano.
Cada vinte anos ou menos, dáse por istas terras un caso dises.
Desaparece un home. Crese que o mataron ou que fuxiu prás Américas. Ó
cabo de dous ou tres anos ninguén fala dil. Un cazador atopa nunha
xesteira unha calivera. ¿De que sería? Así lle aconteceu ó Pastrán de
Vesuña fai moitos anos. Mais si o home non perde o coraxe non se atreven
coíl.
[...]
(Ánxel Fole nasceu no dia 11 de Agosto de 1903. Morreu em 1986.)
Miguel Torga 3
O Alma-Grande
Riba Dal é terra de judeus. Baldadamente, pelo ano fora, o Padre João benze, perdoa, baptiza e ensina o catecismo por perguntas e respostas.
- Raios partam o vento!
Mas quê! Do mesmo modo que o Alma-Grande era certo na casa da esquina, sempre ao borralho, era certo o bafo da Sanábria a varrer a ladeira.
Diante da casa, bastava gritar-lhe o nome.
- Tio Alma-Grande! Ó Tio Alma-Grande!
- Lá vai…
Daí a nada a tenaz das suas mãos e o peso do seu joelho passavam guia ao moribundo.
Entrava, atravessava impávido e silencioso a multidão que há três dias, na sala, esperava impaciente o último alento do agonizante, metia-se pelo quarto dentro, fechava a porta, e pouco depois saía com uma paz no rosto pelo menos igual à que tinha deixado ao morto. Os de fora olhavam-no ao mesmo tempo com terror e gratidão. Às vezes, uma voz ou outra, depois do pesadelo, levantava-se do fundo da consciência e protestava; mas no dia seguinte acontecia ser essa mesma voz que no alto do Destelhado, sobrepondo-se à força do vento, o reclamava.
- Tio Alma-Grande! Ó Tio Alma-Grande!
- Lá vai…
E aparecia à porta logo a seguir.
[...]
"Novos Contos da Montanha", Miguel Torga
(Miguel Torga nasceu no dia 12 de Agosto de 1907. Morreu em 1995.)
Riba Dal é terra de judeus. Baldadamente, pelo ano fora, o Padre João benze, perdoa, baptiza e ensina o catecismo por perguntas e respostas.
- Quem é Deus?
- É um Ser todo poderoso, criador do Céu e da Terra.
Na destreza com que se desenvencilham do interrogatório, não há quem possa desconfiar que por detrás da sagrada cartilha está plantado em sangue o Pentateuco. Mas está. E à hora da morte, quando a um homem tanto lhe importa a Thora como os Evangelhos, antes que o abade venha dar os últimos retoques à pureza da ovelha, e receba da língua moribunda e cobarde a confissão daquele segredo - abafador.
Desses servos de Moisés, encarregados de abreviar as penas deste mundo e salvar a honra do convento, o maior de que há memória é o Alma-Grande.
Alto, mal encarado, de nariz adunco, vivia no Destelhado, uma rua onde mora ainda o vento galego, a assobiar sem descanso o ano inteiro. Quem vinha chamar aquele pai da morte já sabia que tinha de subir pela encosta acima a lutar como um barco num mar encapelado. - É um Ser todo poderoso, criador do Céu e da Terra.
Na destreza com que se desenvencilham do interrogatório, não há quem possa desconfiar que por detrás da sagrada cartilha está plantado em sangue o Pentateuco. Mas está. E à hora da morte, quando a um homem tanto lhe importa a Thora como os Evangelhos, antes que o abade venha dar os últimos retoques à pureza da ovelha, e receba da língua moribunda e cobarde a confissão daquele segredo - abafador.
Desses servos de Moisés, encarregados de abreviar as penas deste mundo e salvar a honra do convento, o maior de que há memória é o Alma-Grande.
- Raios partam o vento!
Mas quê! Do mesmo modo que o Alma-Grande era certo na casa da esquina, sempre ao borralho, era certo o bafo da Sanábria a varrer a ladeira.
Diante da casa, bastava gritar-lhe o nome.
- Tio Alma-Grande! Ó Tio Alma-Grande!
- Lá vai…
Daí a nada a tenaz das suas mãos e o peso do seu joelho passavam guia ao moribundo.
Entrava, atravessava impávido e silencioso a multidão que há três dias, na sala, esperava impaciente o último alento do agonizante, metia-se pelo quarto dentro, fechava a porta, e pouco depois saía com uma paz no rosto pelo menos igual à que tinha deixado ao morto. Os de fora olhavam-no ao mesmo tempo com terror e gratidão. Às vezes, uma voz ou outra, depois do pesadelo, levantava-se do fundo da consciência e protestava; mas no dia seguinte acontecia ser essa mesma voz que no alto do Destelhado, sobrepondo-se à força do vento, o reclamava.
- Tio Alma-Grande! Ó Tio Alma-Grande!
- Lá vai…
E aparecia à porta logo a seguir.
[...]
"Novos Contos da Montanha", Miguel Torga
(Miguel Torga nasceu no dia 12 de Agosto de 1907. Morreu em 1995.)
segunda-feira, 10 de agosto de 2015
Tomás António Gonzaga 2
Com pesadas cadeias manietado,
Às vozes da razão ensurdecido,
Dos céus, de mim, dos homens esquecido,
Me vi de amor nas trevas sepultado.
Ali aliviava o meu cuidado
C’o dar de quando em quando algum gemido.
Ah! tempo! Que, somente refletido,
Me fazes entre as ditas desgraçado.
Assim vivia, quando a falsidade
De Laura me tornou num breve dia
Quanto a razão não pôde em longa idade:
Quebrei o vil grilhão que me oprimia!
Oh! feliz de quem goza a liberdade,
Bem que venha por mãos da aleivosia!
Tomás António Gonzaga
(Tomás António Gonzaga nasceu no dia 11 de Agosto de 1744. Morreu em 1810.)
Às vozes da razão ensurdecido,
Dos céus, de mim, dos homens esquecido,
Me vi de amor nas trevas sepultado.
Ali aliviava o meu cuidado
C’o dar de quando em quando algum gemido.
Ah! tempo! Que, somente refletido,
Me fazes entre as ditas desgraçado.
Assim vivia, quando a falsidade
De Laura me tornou num breve dia
Quanto a razão não pôde em longa idade:
Quebrei o vil grilhão que me oprimia!
Oh! feliz de quem goza a liberdade,
Bem que venha por mãos da aleivosia!
Tomás António Gonzaga
(Tomás António Gonzaga nasceu no dia 11 de Agosto de 1744. Morreu em 1810.)
domingo, 9 de agosto de 2015
Carlos de Oliveira 3
Soneto
Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.
Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.
Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.
A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.
"Mãe Pobre", Carlos de Oliveira
(Carlos de Oliveira nasceu no dia 10 de Agosto de 1921. Morreu em 1981.)
Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.
Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.
Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.
A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.
"Mãe Pobre", Carlos de Oliveira
(Carlos de Oliveira nasceu no dia 10 de Agosto de 1921. Morreu em 1981.)
Jorge Amado 3
Quando chegavam ao meio-dia (o sol fazia de relógio), nós parávamos o trabalho e nos reuníamos ao pessoal da juntagem para a refeição. Comíamos o pedaço de carne seca e o feijão cozido desde pela manhã e a garrafa de cachaça corria de mão em mão.
Estalava-se a língua, e cuspia-se um cuspe grosso. Ficávamos conversando sem ligar para as cobras que passavam, produzindo ruídos estranhos nas folhas secas que tapetavam completamente o solo. Valentim sabia histórias engraçadas, e contava para a gente. Velho de mais de setenta anos, trabalhava como poucos e bebia como ninguém. Interpretava a Bíblia a seu modo, inteiramente diverso dos católicos e protestantes. Um dia contou-nos o capítulo de Caim e Abel:
- Vosmecês não sabe? Pois tá nos livros.
- Conte, véio.
- Deus deu de herança e Caim e Abel uma roça de cacau pra eles dividirem. Caim, que era home mau, dividiu a fazenda em três pedaços. E disse a Abel: esse primeiro pedaço é meu. Esse do meio, meu e seu. O último, meu também. Abel respondeu: não faça isso meu irmãozinho, que é uma dor do coração... Caim riu: ah! é uma dor do coração? Pois então tome. Puxou do revólver e - pum - matou Abel com um tiro só. Isso já foi há muitos anos...
- Caim deve ser avô de Mané Frajelo.
- Anda. A avó de Mané Frajelo era rapariga no Pontal.
- Você sabe, Honório?
- Sei. A mãe morreu de fome quando não pôde mais trepar com home. O fio nem aí...
- Miserave.
- Mas ele tinha vergonha da mãe.
- Mãe dele...
"Cacau", Jorge Amado
(Jorge Amado nasceu no dia 10 de Agosto de 1912. Morreu em 2001.)
Estalava-se a língua, e cuspia-se um cuspe grosso. Ficávamos conversando sem ligar para as cobras que passavam, produzindo ruídos estranhos nas folhas secas que tapetavam completamente o solo. Valentim sabia histórias engraçadas, e contava para a gente. Velho de mais de setenta anos, trabalhava como poucos e bebia como ninguém. Interpretava a Bíblia a seu modo, inteiramente diverso dos católicos e protestantes. Um dia contou-nos o capítulo de Caim e Abel:
- Vosmecês não sabe? Pois tá nos livros.
- Conte, véio.
- Deus deu de herança e Caim e Abel uma roça de cacau pra eles dividirem. Caim, que era home mau, dividiu a fazenda em três pedaços. E disse a Abel: esse primeiro pedaço é meu. Esse do meio, meu e seu. O último, meu também. Abel respondeu: não faça isso meu irmãozinho, que é uma dor do coração... Caim riu: ah! é uma dor do coração? Pois então tome. Puxou do revólver e - pum - matou Abel com um tiro só. Isso já foi há muitos anos...
- Caim deve ser avô de Mané Frajelo.
- Anda. A avó de Mané Frajelo era rapariga no Pontal.
- Você sabe, Honório?
- Sei. A mãe morreu de fome quando não pôde mais trepar com home. O fio nem aí...
- Miserave.
- Mas ele tinha vergonha da mãe.
- Mãe dele...
"Cacau", Jorge Amado
(Jorge Amado nasceu no dia 10 de Agosto de 1912. Morreu em 2001.)
Gonçalves Dias 2
A baunilha
Vês como aquela baunilha
Do tronco rugoso e feio
Da palmeira - em doce enleio
Se prendeu!
Como as raízes meteu
Da úsnea no musgo raro,
Como as folhas - verde-claro -
Espalmou!
Como as bagas pendurou
Lá de cima! como enleva
O rio, o arvoredo, a relva
Nos odores,
Que inspiram falas de amores!
Dá-lhe o tronco - apoio, abrigo,
Dá-lhe ela - perfume amigo,
Graça e olor!
E no consórcio de amor
- Nesse divino existir -
Que os prende, vai-lhes a vida
De uma só seiva nutrida,
Cada vez mais a subir!
Se o verme a raiz lhe ataca,
Se o raio o cimo lhe ofende,
Cai a palmeira, e contudo
Inda a baunilha recende!
Um dia só! - que mais tarde,
Exausta a fonte do amor,
Também a baunilha perde
Vida, graça, encanto, olor!
Eu sou da palmeira o tronco,
Tu - a baunilha serás!
Se sofro, sofres comigo;
Se morro - virás atrás!
Ai! que por isso, querida,
Tenho aprendido a sofrer!
Porque sei que a minha vida
É também o teu viver.
Gonçalves Dias
(Gonçalves Dias nasceu no dia 10 de Agosto de 1823. Morreu em 1864.)
Vês como aquela baunilha
Do tronco rugoso e feio
Da palmeira - em doce enleio
Se prendeu!
Como as raízes meteu
Da úsnea no musgo raro,
Como as folhas - verde-claro -
Espalmou!
Como as bagas pendurou
Lá de cima! como enleva
O rio, o arvoredo, a relva
Nos odores,
Que inspiram falas de amores!
Dá-lhe o tronco - apoio, abrigo,
Dá-lhe ela - perfume amigo,
Graça e olor!
E no consórcio de amor
- Nesse divino existir -
Que os prende, vai-lhes a vida
De uma só seiva nutrida,
Cada vez mais a subir!
Se o verme a raiz lhe ataca,
Se o raio o cimo lhe ofende,
Cai a palmeira, e contudo
Inda a baunilha recende!
Um dia só! - que mais tarde,
Exausta a fonte do amor,
Também a baunilha perde
Vida, graça, encanto, olor!
Eu sou da palmeira o tronco,
Tu - a baunilha serás!
Se sofro, sofres comigo;
Se morro - virás atrás!
Ai! que por isso, querida,
Tenho aprendido a sofrer!
Porque sei que a minha vida
É também o teu viver.
Gonçalves Dias
(Gonçalves Dias nasceu no dia 10 de Agosto de 1823. Morreu em 1864.)
O típico domingo de Verão em Matosinhos
Foto Hernâni Von Doellinger |
É um dos tais domingos. Matosinhos fumega e cheira que até mete nojo. Os restaurantes rebentam pelas costuras e pelas esplanadas, e isso é bom, mas fedem como peido podre, enevoam a rua e arredores à espera do tal sebastião que come tudo, tudo, tudo. Peido podre, disse eu bem. Peido e podre, estão a ver a terrível combinação? Conseguem snifar o desastre?
A campanha publicitária World’s Best Fish está muito bem caçada, mas evidentemente que Matosinhos não tem o melhor peixe do mundo. Tem um peixe honestinho, com que me regalo agora apenas bissextamente, e não é peixe de restaurante. É outro peixe, de que a publicidade não sabe, e ainda bem para mim.
A campanha da Câmara Municipal, para ser tão honesta como o peixe que tão bem apregoa, devia também avisar todos os camones e sabás e outros simpatizantes de que ao domingo não há sardinha fresca. Não há! E que o calor faz mal à sardinha ressessa, e que a sardinha descongelado, no Verão, é uma bosta - embora a correctíssima campanha possa explicar esta última parte por outras palavras. E que depois, aos domingos - porque ninguém me liga -, com a sardinha embalsamada a penar na brasa, é este smoke, este smell, enfim, cette merde.
A minha sorte é que gosto de Matosinhos assim.
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