domingo, 9 de agosto de 2015

Jorge Amado 3

Quando chegavam ao meio-dia (o sol fazia de relógio), nós parávamos o trabalho e nos reuníamos ao pessoal da juntagem para a refeição. Comíamos o pedaço de carne seca e o feijão cozido desde pela manhã e a garrafa de cachaça corria de mão em mão.
Estalava-se a língua, e cuspia-se um cuspe grosso. Ficávamos conversando sem ligar para as cobras que passavam, produzindo ruídos estranhos nas folhas secas que tapetavam completamente o solo. Valentim sabia histórias engraçadas, e contava para a gente. Velho de mais de setenta anos, trabalhava como poucos e bebia como ninguém. Interpretava a Bíblia a seu modo, inteiramente diverso dos católicos e protestantes. Um dia contou-nos o capítulo de Caim e Abel:
- Vosmecês não sabe? Pois tá nos livros.
- Conte, véio.
- Deus deu de herança e Caim e Abel uma roça de cacau pra eles dividirem. Caim, que era home mau, dividiu a fazenda em três pedaços. E disse a Abel: esse primeiro pedaço é meu. Esse do meio, meu e seu. O último, meu também. Abel respondeu: não faça isso meu irmãozinho, que é uma dor do coração... Caim riu: ah! é uma dor do coração? Pois então tome. Puxou do revólver e - pum - matou Abel com um tiro só. Isso já foi há muitos anos...
- Caim deve ser avô de Mané Frajelo.
- Anda. A avó de Mané Frajelo era rapariga no Pontal.
- Você sabe, Honório?
- Sei. A mãe morreu de fome quando não pôde mais trepar com home. O fio nem aí...
- Miserave.
- Mas ele tinha vergonha da mãe.
- Mãe dele...

"Cacau", Jorge Amado

(Jorge Amado nasceu no dia 10 de Agosto de 1912. Morreu em 2001.)

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