sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Realmente, não há nada que chegue ao estrangeiro

A criança chorava com acrisolada pertinácia. Gritava, gritava, gritava. Ranhava, ranhava, ranhava. E esperneava, esperneava, esperneava. Dava mesmo gosto ouvê-la. Que competência! Que performance! Que espectáculo! Que profissionalismo! Que categoria! Que pulmões! Que ginástica! Via-se logo que era uma criança estrangeira, alimentada desde a barriga da mãe a iogurtes, papas e boiões.
Situemo-nos, porém, porque isto não é ficção: estamos na chamada rotunda do Castelo do Queijo, também desconhecida como Praça Gonçalves Zarco, no Porto, exactamente na paragem dos autocarros descapotáveis para turistas de mapa nas mãos, e assim estavam os pais babados do seu magnífico filho chorão. Não era, portanto, difícil de adivinhar, mas eu quis tirar a coisa a limpo, por defeito profissional, e perguntei no meu melhor inglês: vosotros être camones, iesse ol raite? E eles responderam-me que efectivamente, camones, mas versão bife, de Bristol.

(Para quem não sabe, Bristol é uma habitadíssima cidade do sudoeste inglês e foi uma sapataria muito jeitosa em Fafe, a sapataria do Magalhães "Bristol", onde o Senhor Ferreira do Hospital me mandou uma vez ir lá escolher um par de sapatos que ele depois pagaria. O Senhor Ferreira do Hospital foi meu mestre e amigo, e era um homem extraordinário.)

Ora bem. Os pais da criança confirmaram-me o que eu já sabia. Eram ingleses, os pais, e o pequeno ranhoso também. E era a primeira vez que estavam em Portugal, há dois dias. O que fez aumentar ainda mais (como se "aumentar ainda mais" fizesse algum sentido), dizia, o que fez aumentar ainda mais a minha estupefacção, para não dizer uma palavra mais simples: é que aquela criança - criança inglesa retinta, filha de pais ingleses retintos, de Bristol - chorava em fluente português, perfeito, sem pontinha de sotaque. O que é extraordinário. Em apenas dois dias...
É o que eu digo: não há nada que chegue ao estrangeiro.

2 comentários:

  1. O senhor Ferreira do Hospital , meu avô.

    Grande abraço

    Carlos Rui Abreu
    Jornalista

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    1. Pode e deve orgulhar-se muito do seu avô. Tenho a certeza de que ele também tem muito orgulho em si.
      Grande abraço,
      h.

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