terça-feira, 11 de agosto de 2015

Miguel Torga 3

O Alma-Grande
 
Riba Dal é terra de judeus. Baldadamente, pelo ano fora, o Padre João benze, perdoa, baptiza e ensina o catecismo por perguntas e respostas.
- Quem é Deus?
- É um Ser todo poderoso, criador do Céu e da Terra.
Na destreza com que se desenvencilham do interrogatório, não há quem possa desconfiar que por detrás da sagrada cartilha está plantado em sangue o Pentateuco. Mas está. E à hora da morte, quando a um homem tanto lhe importa a Thora como os Evangelhos, antes que o abade venha dar os últimos retoques à pureza da ovelha, e receba da língua moribunda e cobarde a confissão daquele segredo - abafador.
Desses servos de Moisés, encarregados de abreviar as penas deste mundo e salvar a honra do convento, o maior de que há memória é o Alma-Grande.
Alto, mal encarado, de nariz adunco, vivia no Destelhado, uma rua onde mora ainda o vento galego, a assobiar sem descanso o ano inteiro. Quem vinha chamar aquele pai da morte já sabia que tinha de subir pela encosta acima a lutar como um barco num mar encapelado.
- Raios partam o vento!
Mas quê! Do mesmo modo que o Alma-Grande era certo na casa da esquina, sempre ao borralho, era certo o bafo da Sanábria a varrer a ladeira.
Diante da casa, bastava gritar-lhe o nome.
- Tio Alma-Grande! Ó Tio Alma-Grande!
- Lá vai…
Daí a nada a tenaz das suas mãos e o peso do seu joelho passavam guia ao moribundo.
Entrava, atravessava impávido e silencioso a multidão que há três dias, na sala, esperava impaciente o último alento do agonizante, metia-se pelo quarto dentro, fechava a porta, e pouco depois saía com uma paz no rosto pelo menos igual à que tinha deixado ao morto. Os de fora olhavam-no ao mesmo tempo com terror e gratidão. Às vezes, uma voz ou outra, depois do pesadelo, levantava-se do fundo da consciência e protestava; mas no dia seguinte acontecia ser essa mesma voz que no alto do Destelhado, sobrepondo-se à força do vento, o reclamava.
- Tio Alma-Grande! Ó Tio Alma-Grande!
- Lá vai…
E aparecia à porta logo a seguir.
[...]

"Novos Contos da Montanha", Miguel Torga

(Miguel Torga nasceu no dia 12 de Agosto de 1907. Morreu em 1995.)

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