domingo, 31 de maio de 2020

O novo normal 11

Foto Hernâni Von Doellinger

A importância do retrovisor na luta contra o vírus

O espelho retrovisor central é um instrumento da máxima importância dentro de um veículo automóvel. Serve para pendurar coisas. Não coisas quaisquer, à sorte, mas coisas próprias de pendurar num retrovisor. Por exemplo, seria impensável pendurar num retrovisor uma gabardina molhada ou um guarda-chuva aberto, porque o retrovisor não é um cabide, é um retrovisor. E no retrovisor penduraram-se, ao longo da história, terços e senhoras de Fátima fosforecentes, relíquias sagradas da Terra Santa contrafeitas, árvores mágicas ambientadoras, castanholas, galhardetes dos Bombeiros de Montalegre, da Junta de Canas de Senhorim, da Câmara de Nelas, do Real Madrid e do Benfica, fitinhas vermelhas do Leixões, miniaturas de casais minhotos e folclóricos, óculos de sol e óculos de chuva, porta-chaves, porta-aviões, trevos de quatro folhas, estrelas de cinco pontas, cornos de besouro ou escaravelho e cornos em geral, patas de coelho, figas, ferraduras, CD, mesmo largos anos depois de ter passado a novidade, e agora penduram-se as máscaras. Exactamente: o sítio da máscara higiénica e sanitárica que nos protege da pandemia e da morte é o retrovisor, o que só lhe medra a relevância - ao retrovisor.
Ora bem: eu não tenho carta de condução, não sei conduzir e não tenho carro. E faço questão de elencar estas três fundamentais asserções, porque elas, as asserções, parecendo sinónimas e redundantes, não o são, não o são. Não o são. Na verdade, há quem não tenha carta de condução, saiba conduzir e não tenha carro; há quem não tenha carta de condução, saiba conduzir e tenha carro; há quem tenha carta de condução, não saiba conduzir e não tenha carro; há quem tenha carta de condução, saiba conduzir e não tenha carro; e até há quem tenha carta de condução, saiba conduzir e tenha carro - o que é uma raríssima coincidência. O mais certo é eu não ter esgotado todas as variáveis possíveis, mas desconfio que já perceberam o meu ponto de vista: não tenho carta de condução, não sei conduzir e não tenho carro. Portanto não tenho retrovisor.

Chegados aqui - de transporte público, evidentemente -, a grande dúvida que se me coloca é a que se segue: onde é que eu penduro a máscara? Na cara com certeza que não, porque me corta o ar e ainda ontem estive para morrer três vezes quando fui à peixaria, uma, e à padaria, duas. Por outro lado, e agora é uma dúvida mais pequena, alguém me saberá informar se haverá alguma brecha legal que me permita, vá lá, dar a volta às normas da Direcção-Geral da Saúde (DGS, como a pide), dispensando-me liminarmente do uso da máscara sufocante e substituindo-a, digamos, por um CD, com o nariz enfiado no buraco, o que já seria algum arejo? Haverá? Era o que eu gostava de saber...

P.S. - Mais sobre retrovisor, mas de outro ângulo, aqui.

Diz que vamos todos ficar bem... 6

Foto Hernâni Von Doellinger

Walflan de Queiroz 4

A Tânia, numa tarde de crepúsculo místico

Esta tarde meus olhos estão cansados de te esperar
E de te desejar na tranquila paisagem do porto,
Onde os barcos balançam mansamente sob o crepúsculo.
Esta tarde eu te ouço no murmúrio das águas, no voo
Da gaivota, quando desfalece em mim a visão da retirada ilha.
Esta tarde meu coração adormece docemente em tuas mãos
E penso no silêncio das estrelas e dos teus olhos.


"O Livro de Tânia", Walflan de Queiroz

(Walflan de Queiroz nasceu no dia 31 de Maio de 1930. Morreu em 1995.)

Hoje também é dia do ceramista 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Foi comprar tabaco e não voltou (a outra versão)

Era uma esposa exemplar, uma esposa à moda antiga. Em apenas duas palavras imediatamente seguidas de ponto de admiração: uma esposa! Todos os dias de manhã ela ia comprar tabaco para o marido. Um dia foi e não voltou. 

P.S. -  Hoje, 31 de Maio, é Dia Mundial sem Tabaco. É, portanto, um dia que não existe. E, não existindo, é também Dia dos Irmãos, Dia do Espírito Santo e, já agora, Dia do Tripulante de Cabina. Há dias assim...

Também faço isto muito bem 403

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 30 de maio de 2020

Tito, imperador e artilheiro

Faz hoje exactamente mil novecentos e cinquenta anos que Tito e as suas legiões romanas derrubaram a segunda muralha de Jerusalém. Lá dentro, os judeus fugiram à rasca para a primeira muralha, mas os romanos, copiando o Porto de muitos séculos depois, construíram uma circunvalação, cortando vazas aos sitiados e todas as árvores num raio de quinze quilómetros, o que foi considerado um escândalo ambiental. A circunvalação de Tito era também conhecida como muralha de cerco, mais uma vez plagiando por antecipação a Invicta, mas sem bairro. Tito era o filho mais velho de Vespasiano e foi imperador entre 79 e 81. A mãe de Tito chamava-se Domitila, a Maior, para se diferenciar da filha Domitila, a Menor, irmã de Tito.
Tito dedicou-se com sucesso à construção civil em Roma, à presidência da antiga Jugoslávia e ao futebol no Atlético, onde começou a dar os primeiros toques, em 1962. Esqueceu as obras e fez bem, aquilo está tudo em ruínas, e abandonou a política. Deixou a Tapadinha e apostou a sério na bola: mudou-se para o União de Tomar e depois, por quinhentos contos, para o Vitória da Guimarães. É daí que o conheço.
Na década de setenta do século passado, Tito fez sete épocas na Cidade-Berço e marcou 82 golos. Era, e não sei se ainda é, o melhor marcador de sempre do Vitória na primeira divisão. Fisicamente falando, Tito pode ser visto como um monovolumezinho, baixote, entroncado da cabeça aos pés, uma espécie de Müller que os antigos percebem, uma espécie de Miccoli que os menos antigos sabem, e aos mais novos não sei o que lhes diga.
Tito, na área, era imperial. Fino. Até de cabeça. E de fora da área também. Mas não de cabeça. Como muitos craques de hoje em dia, Tito gostava de treinar livres e remates espontâneos atirados propositada e directamente à barra. E tinha uma elevada taxa de acerto. O extraordinário é que, mais difícil ainda, gostava de fazer o número também de costas para a baliza ou de olhos fechados. E acertava. Palavra de honra, acertava!
Claro, não havia YouTube. Conto assim tal qual porque eu vi. E de olhos bem arregalados.

P.S. - Publicado originalmente no dia 30 de Maio de 2019.

Hoje também é dia do ceramista

Foto Hernâni Von Doellinger

O grande prestidigitador

Era um mágico extraordinário: em vez de coelhos da cartola, tirava macacos do nariz.

Diz que vamos todos ficar bem... 5

Foto Hernâni Von Doellinger

Anne Marie Morris 4

Ceibe

Quero ficar ceibe
pra correr cô vento
pra enredar meus cabelos nas estrelas


Quero ir na noite
pra bailar no luar
nas orelas do mar escumante


Quero cantar nas sombras
cantares moi tristes
encol dos vellos amores
que deixéi algures no pasado


Perciso de perdel-o mundo
Perciso de voar no ceo
Cediño os momentos chegaron
de andar no fondo do mar


Quero ficar ceibe
pra correr cô vento
pra enredar meus cabelos nas estrelas


"Voz Fuxitiva", Anne Marie Morris

(Anne Marie Morris nasceu no dia 30 de Maio de 1916. Morreu em 1999.)

Caminho 807

Foto Hernâni Von Doellinger

Xavier Costa Clavell 5

O Manoliño era un rapaz intelixente e cheo de curiosidade. Inda non tiña dez anos e xa coñecía o pobo e a bisbarra de Vimianzo mellor que moitos veciños adultos nados naquelas terras. Recorrera unha e outra vez o belido e rico val que se extende entre os montes Sangro e Faro. Éralle familiar a imaxe da mámoa, a cuxa beira pasara horas e máis horas imaxinando fantásticas aventuras nas que el era o protagonista. Estivera máis dunha vez no castelo de Vimianzo. O seu pai adoptivo - a verdade é que don Fernando, pola súa condición de crego, non o era legalmente, pero sí na práctica - procuraba sempre que tiña ocasión estimular a afección do Manoliño polo devir da historia. Así o neno soubo que no castelo, moi ben conservado por certo, estivera preso por orde de Pedro Madruga o bispo de Tui don Diego de Muros.
   
"Fillo do Vento", Xavier Costa Clavell

(Xavier Costa Clavell nasceu no dia 30 de Maio de 1923. Morreu em 2006.)

In american way 8

Foto Hernâni Von Doellinger

De mestre

"Pinocar ou pinoquiar?", perguntou o jovem mestrando em Carpintaria & Outras Artes Sexuais. "Depende", respondeu o velho professor de nariz adunco e face testicular.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Interlúdio fotográfico 252

Foto Hernâni Von Doellinger

O papão

A culpa foi do Camões. No canto V de "Os Lusíadas", o nosso Épico fala do aterrador gigante do cabo das Tormentas (ou Cabo da Boa Esperança, como lhe chamou D. João II, após a passagem de Bartolomeu Dias) que afundava naus sem dó nem piedade e se desfazia em lágrimas depois da maldade feita. Primeira dica: as "lágrimas" eram as águas salgadas e revoltas da assanhada confluência do oceano Atlântico com o oceano Índico, a sul da Cidade do Cabo, na África do Sul.
É sabido, Luís de Camões foi buscar o nosso Adamastor à mitologia greco-romana. O Poeta queria representar as grandes forças da natureza, o poder dos elementos, as violentas tempestades que, naquela zona do mundo, tentavam impedir o avanço heróico dos Portugueses rumo à Índia. E pintou-as como um mostrengo vigilante e vingativo, espécie de porteiro de discoteca que não deixava passar ninguém: De disforme e grandíssima estatura, / O rosto carregado, a barba esquálida, / Os olhos encovados, e a postura / Medonha e má, e a cor terrena e pálida, / Cheios de terra e crespos os cabelos, / A boca negra, os dentes amarelos.
Mas era apenas um cabo, senhores, nem sequer sargento. Um cabo e geográfico. Por sinal, bem difícil de dobrar e com muitos naufrágios para contar. 

Bartolomeu Dias, o navegador português que abriu o caminho marítimo para a Índia ao contornar o Cabo da Boa Esperança, morreu no dia 29 de Maio de 1500.
O textinho acima saquei-o de um trabalho que escrevi para a revista de fim-de-semana do jornal 24horas, em Março de 2007, introduzindo-lhe as necessárias adaptações temporais e porventura, involuntariamente, alguns erros de transcrição. Era um ranking, "Os 10 maiores mitos da História de Portugal", e, para o fazer, pedi a ajuda de especialistas reputados: Manuela Mendonça, historiadora e presidente da Academia Portuguesa de História, os historiadores e professores catedráticos António Manuel Hespanha, Fernando de Sousa e Francisco Ribeiro da Silva, o escritor e historiador portuense Hélder Pacheco e o arqueólogo, historiador e actual figura da TV Joel Cleto.

Também faço isto muito bem 402

Foto Hernâni Von Doellinger

O maxismo, do cooperativismo à columbofilia

Depois de ter inventado o comunismo, Marx fez comédia em Hollywood, cantou "A mula da cooperativa" e a "Pomba branca", candidataram-no à Presidência da República, abriu um restaurante em Fafe, foi inspector canino numa série da TVI e jogou a defesa direito no Benfica e no FC Porto. Actualmente diz piadas na rádio.

P.S. - O ilustre funchalense Maximiano de Sousa, mais conhecido como Max, artista sem comparança e certamente o primeiro one-man show das variedades nacionais, morreu no dia 29 de Maio de 1980.

Diz que vamos todos ficar bem... 4

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 209

Teletrabalho
Os restaurantes reabriram e o arrumador de automóveis saltou imediatamente para a rua, apresentando-se ao serviço. Estava farto de orientar estacionamentos a partir de casa...

Teledesemprego
"Isto sem futebol, o teledesemprego é uma seca!", queixava-se o Acúrsio, e suponho que com razão.

Teledesemprego 2
Está em casa em teledesemprego. Faz horário das dez da manhã às oito da noite. Perguntem-lhe sobre programação da RTP1! Sabe tudo.

Telessexo
É muito à frente, ele. Não esperou pela pandemia nem precisou das indicações do Governo. Há mais de trinta anos que pratica, e com resultados francamente satisfatórios.

E tenho o mar
Notícias do des-con-fi-na-men-to. E tenho o mar. Não sei o que seria da minha quarentena, que já vai em quase dois anos e meio, se não tivesse o mar todos os dias. Seguramente estaria ainda mais avariado da cabeça e do resto. O mar, gosto de o ouvir, gosto de lhe sentir o silêncio, gosto de o ver, gosto de o cheirar, mesmo que cheire mal, gosto de o pensar, gosto de o adivinhar. Gosto do mar com sol, com chuva, com nevoeiro, com vento, sem vento, gosto do mar com todos como o bacalhau. Gosto do mar azul, às vezes verde e sobretudo azul e branco. Gosto do mar manso, gosto do mar bravo. Gosto do mar salgado e ainda que fosse insosso. Gosto do mar. E tenho sorte, na minha rua passa o mar. Tenho o mar se for à varanda, de caras. Escuto-o no quarto de dormir, e sossega-me a alma, ajuda-me ao sono cada vez mais difícil. Continuo a passear-lhe as bordas todas todas as manhãzinhas, cada vez mais cedo, cada vez mais cedo, porque preciso do resto do dia para tomar conta e porque o povo é burro, como se diz em Fafe, e cuida que esta merda já passou, e não passou nada.

Caminho 806

Foto Hernâni Von Doellinger

Agustín Fernández Paz 5

Sen embargo, o meu desexo máis intenso é ben distinto: que entren canto antes as máquinas escavadoras, as padeadoras, os camións. Que troncen as árbores, que rebaixen o monte polo medio e medio, que derruben os restos que a xente chama prerromanos. Que non quede nada en pé, que desfagan canto hai, que non deixen unha pedra no seu sitio. E que logo o sepulten todo baixo toneladas de rocha e de cascallo, e boten por riba ben capas de cemento e alcatrán. É o destino mellor para ese lugar maldito, ese lugar que ningún día da miña vida puiden expulsar do territorio dos meus soños.

"O Enigma do Menhir", Agustín Fernández Paz

(Agustín Fernández Paz nasceu no dia 29 de Maio de 1947. Morreu em 2016.)

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Também faço isto muito bem 401

Foto Hernâni Von Doellinger

Levantamento das Caldas

O Levantamento das Caldas, tentativa de golpe militar contra o Estado Novo caetanista, ocorreu no dia 16 de Março de 1974 e, apesar de falhado, serviu de rastilho para a Revolução de 25 de Abril. É também chamado Intentona das Caldas, Revolta das Caldas ou Golpe das Caldas - tudo nomes bem menos sugestivos e mais ajuizados. É. Deixem-se de malandrices! Levantamento e Caldas, na mesma expressão, trazem logo à conversa fradinhos malacuecos...

P.S. - Publicado originalmente no dia 16 de Março de 2020. O Brasil festeja hoje, 28 de Maio, o Dia do Ceramista. Em Portugal a nova horda racista e fascista celebra o 28 de Maio apenasmente.

Diz que vamos todos ficar bem... 3

Foto Hernâni Von Doellinger

A Caixa: de Pandora a Paulo Macedo

Pandora era a primeira mulher, a mulher perfeita, criada por Hefesto e Atena, com a mãozinha de todos os outros deuses, cada qual conferindo-lhe um dom, sob régua e esquadro de Zeus. Pandora era "a que tudo dá", "a que possui tudo", "a que tudo tira". Pandora foi feita de encomenda para agradar aos homens. Depois tomou conta da Caixa, ou da Boceta, como dizem os cultos e alguns depravados, e hoje em dia é Paulo Macedo.

Traz a corda e vem saltar

Foto Hernâni Von Doellinger

José Craveirinha 7

A cadeira

Ajeito na velha mesa a toalha aos quadradinhos.
Ponho-me os pratos, os talheres e um copo.
Eu mesmo me estendo a travessa do arroz.
Levanto-me por causa da garrafa de água.
Torno a levantar-me em busca de um garfo.

Solitários cotovelos fincados na mesa
nos punhos contraídos apoio o mento.
Entretanto, de mim vai-se esquecendo o almoço.

Engulo um nó de saliva. É insulso o jejum.
Em outro lado dos quadradinhos da toalha
completamente desprovida de sentido
observa-me compassiva
uma cadeira vazia.

Pela terceira vez me levanto.
Mas onde é que está o raio do saleiro?

José Craveirinha

(José Craveirinha nasceu no dia 28 de Maio de 1922. Morreu em 2003.)

Caminho 805

Foto Hernâni Von Doellinger

Xoán Cuveiro Piñol 3

Unha corrida de arroaces

[...]

Hai na devandita cividade, na mesma beira dela, un sitio que chaman "as Corbaceiras", onde no tempo de que vou a falar, había unha barca pra pasala xente e mailo gando á parroquia de Poio: pois ben, neste barrio da Moureira onde viven os pescadores e xente probe, non falta quen garda unha rede feita de cordas de esparto, pro grosas e fortes, e anque cando hai que usala, arroméndase e repárase polos desprefeutos que sole ter, e que costa bos cartos, esta rede esténdese dende o muelle das Corbaceiras astra a beira de Poio na orela do mar, de sorte que quedan drento, río arriba, tódolos arroaces que coa rubida da marea, soben ó río, no que se folgan os peixes astra a debalada da dita marea, e entón, é cando comeza a festa, que ben merece unha discriución.
[...]

Xoán Cuveiro Piñol

(Xoán Cuveiro Piñol nasceu no dia 28 de Maio de 1821. Morreu em 1906.)

Mobiliário urbano (propriamente dito 176

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 27 de maio de 2020

O Correio da Manhã, a ignorância e o Google Maps

João Gonçalves Zarco, da nobre família dos Zarcos de Valdevez, foi um navegador português e cavaleiro fidalgo da Casa do Infante D. Henrique, que o encarregou de organizar o povoamento e administrar a zona funchalense da Ilha da Madeira enquanto Alberto João Jardim não chegasse. Dito e feito. Quando se reformou, o velho Zarco, que não era tolo e tinha agasalhado uns cobres, abriu uma escola em Matosinhos mas escolheu a Foz, no Porto, para morar, instalando-se desafogadamente na famosa Rotunda do Castelo do Queijo, a que também chamam Praça de Gonçalves Zarco exactamente em homenagem à estátua equestre de D. João VI que está lá no meio.

P.S. - Publicado originalmente no dia 21 de Novembro de 2019. O Correio da Manhã propagandeou ontem o despiste de uma "condutora de 20 anos alcoolizada" que foi "contra um poste" na "praça Gonçalves Zarco, junto ao Sea Life, em Matosinhos". Exactamente. Em Matosinhos. Na Praça de Gonçalves Zarco do Porto, ao fundo da Avenida da Boavista do Porto, junto ao Sea Life do Porto, no Castelo do Queijo do Porto, entre o Edifício Transparente do Porto e a marginal da Foz do Porto - evidentemente em Matosinhos.

Interlúdio fotográfico 251

Foto Hernâni Von Doellinger

Do garibaldismo

Garibaldi foi um general italiano que ficou muito famoso por usar blusão vermelho. Mais tarde o ilustre mercenário e patriota, alcunhado Herói de Dois Mundos por certas e determinadas razões, transformou-se em camisola de fora ou casaco curto de mulher e numa espécie de guindaste geralmente improvisado e ainda hoje usado nas obras.

P.S. - No dia 27 de Maio de 1860, Giuseppe Garibaldi iniciou o seu ataque a Palermo, Sicília, na luta pela unificação italiana.

Também faço isto muito bem 400

Foto Hernâni Von Doellinger

Vendemos para fora

Intrigado com a novidade estrangeira que de repente tomou conta das portas, janelas e montras dos restaurantes da cidade, entrou na velha casa de pasto, sem vez, sem distância e sem máscara, porque "era só para fazer um pergunta", e perguntou:
- Aquilo do Take away é o quê?
- Quer dizer que vendemos para fora.
- Há mais de trinta anos que todos os sábados venho aqui buscar um tachinho de tripas. Qual é a diferença agora?
- O coronavírus...

O novo normal 10

Foto Hernâni Von Doellinger

Uma questão de anos

As notícias anunciam que uma "cientista diz que retardar o envelhecimento através da genética é uma questão de anos". Mas que assertividade! É disso que se trata exactamente: de uma questão de anos...

Repórter de guerra e pás

Foto Hernâni Von Doellinger

Luís Veiga Leitão 4

Resistência

Não. Digo à explosão de ameaça
e à rapada paisagem do desterro.
E não. Digo à minha carcaça
encalhada em bancos de ferro
e ao cordame dos nervos, fustigado,
a ranger no silêncio a sós:
Por cada nervo quebrado
que se inventem mais nós.


Luís Veiga Leitão

(Luís Veiga Leitão nasceu no dia 27 de Maio de 1912. Morreu em 1987.)

Mobiliário urbano (propriamente dito) 175

Foto Hernâni Von Doellinger

Um tal... es de Mileto

A água é o princípio de todas as coisas; o vinho é o fim - dizia o filósofo antigo. Um tal... um tal... um Tales de Mileto.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Sunrise party (para dois)

Foto Hernâni Von Doellinger

Mais vale Sá do que mal acompanhado

- Nome?
- Orlando Sá.
- Só?
- Sá.
- Sei. Mas só?
- Sá.

P.S. - O jogador de futebol Orlando Sá, que recentemente deixou os belgas do Standard Liège e acho que é meu vizinho, faz hoje 32 anos.

O novo normal 9

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 208

Hoje não há umas vagenzitas?
Empratei o jantar da minha sogra: uma posta de bacalhau cozido com três dedos de altura por um palmo de comprimento, um ovo aberto ao meio, cinco batatas médias partidas em quartos, um dilúvio de azeite e duas pingas de vinagre branco, como ela gosta. A minha mulher colocou-lhe à frente aquela reprodução dos Himalaias em tamanho natural, e a minha sogra, 88 anos, mal-humorada por princípio e por prazer, resmungou: - Hoje não há umas vagenzitas?...
Não havia. Era segunda-feira e à segunda-feira cá em casa é assim, uma tradição que vem de Fafe. A minha sogra limpou o prato em menos de cinco minutos, mas sob protesto, que fique registado.

P.S. - Vagem, neste caso, é feijão-verde. Ou, melhor dito, vage. As vages, posso esclarecer, são ao almoço de quarta-feira para uma pessoa, com pescada quase sempre fresca. E outra coisa: com bacalhau, a minha sogra bebe um fundinho de vinho. Diz que é dado: bacalhau, portanto vinho. Mas isso é lá uma tradição dela...

Mãos ao ar!
Notícias do des-con-fi-na-men-to. Fui à minha farmácia, à hora da abertura, e já se podia entrar. Dois de cada vez, mascarados como para um assalto e de mãos previamente desinfectadas por causa das impressões, e eu cheguei em segundo. Estava a contar com uma medalha mas as cerimónias protocolares foram suspensas derivado à pandemia. Entregaram-me o Losartan com todos os cuidados e na maior das confidencialidades, e isto que não saia daqui...

A máscara
Adaptou-se razoavelmente ao uso da máscara. Para comer é que era uma desgraça. Um chiqueiro...

De vaquinha para o desemprego
As viagens de casa para o desemprego e do desemprego para casa custavam-lhes os olhos da cara. Organizaram-se. Agora vão de vaquinha. Para e do desemprego.

Atrás das grades

Foto Hernâni Von Doellinger

Glória de Sant'Anna 4

Prece 

Senhora de pedra
de rosto suave,
há muito não vinha
para visitar-te. 

Já tinha esquecido
estes bancos negros
tão certos e graves.

Sei que não és essa,
exacta, parada
que se enche de pó
e olha no vácuo
- de pedra talhada.

Senhora, aqui estou.
(Não te peço nada).

Só quero voltar
a estar de joelhos.

"Um Denso Azul Silêncio", Glória de Sant'Anna

(Glória de Sant'Anna nasceu no dia 26 de Maio de 1925. Morreu em 2009.)

Também faço isto muito bem 399

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Eu vi o autogolo de Manaca

Eu estava lá. No estádio, em Guimarães. Eu vi ao vivo o autogolo de Manaca que deu o triunfo por 0-1 e o título de campeão ao seu Sporting, sendo ele naquela altura jogador emprestado pelos leões ao Vitória. Faz hoje anos. Foi no dia 25 de Maio de 1980, e eu portista estava lá, mesmo atrás da baliza em questão. Vi tudo, lembro-me como se fosse ontem. E se querem que lhes diga: não sei.

Interlúdio fotográfico 250

Foto Hernâni Von Doellinger

As Grilas, as Turicas e um par de mamas

Eu também fui preso antes do 25 de Abril. Sim, no meu tempo de estudante, em pleno turbilhão da crise académica de 1969, andava na quinta classe e ia para a Escola da Feira Velha quando fui detido pelo polícia, preso pelo cachaço. (A quinta classe que fiz com o professor Fernando - "Conhé" para os alunos -, e não há engano, houve realmente um tempo em que a quinta e a sexta classes eram o liceu dos pobres). Mas o meu o crime, é isso que querem saber, não é? Pois bem: achei um bocado de giz no chão e escrevi "Senhoras Donas Grilas" na parede da casa das Grilas propriamente ditas. Há horas do diabo e o cívico estava lá, pontual e flagrante, mesmo atrás das minhas costas. Apanhei um susto que ainda hoje tremo, e digo isto sem peneiras: ia-me borrando todo.
A história precisa de ser melhor contada, não precisa? Vamos lá então ver se sei, e por partes:

Primeiro, para que nos situemos, é essencial não confundir as Grilas com as Turicas, erro crasso e muito comum entre os especialistas locais. As Grilas eram mesmo ao lado do prédio do Café Chinês, que então se construía. Irmãs, velhas no meu critério de criança, solteironas, desgrenhadas, professoras e misteriosas. Raramente vistas na rua, espreitavam apenas à porta, defendida por um portão baixinho em ferro forjado, e quando meteram telefone em casa ligaram ao meu avô a perguntar se o telefone dos Bombeiros "também tocava em português" como o delas. Eu morava ali à beira, ao dobrar da esquina, no Santo, e as senhoras até gostavam de mim. Mesmo depois da tratantada que lhes perpetrei e que graças a Deus nunca lhes chegou aos ouvidos. Sabiam que eu era filho da "viúva da Bomba" e isso valia muito em Fafe. Quando eu passava, as Grilas diziam-me sempre qualquer coisa simpática, só com a guedelha grisalha e o nariz de fora, e uma vez deram-me um santinho. Obviamente não mereciam a traição que lhes cometi...
Isto as Grilas. Agora as Turicas, na mesma Rua Monsenhor Vieira de Castro e do mesmo lado, direito para quem desce para o Picotalho ou para a Recta, mas depois do cruzamento dos tascos do Paredes e do Zé Manco, nem 50 metros de distância entre umas e outras, e daí a lamentável e inexplicável confusão numa terra tão prenhe de historiadores. As Turicas eram também irmãs. Costuravam. Pequeninas e idosas, resmungonas e prendadas para os mais delicados lavores, faziam renda de bilros sentadas num banquinho junto às enormes portadas que davam para a rua. Tinham uma loja mais antiga do que elas e que cheirava a um mofo muito bom. Vendiam botões e tafetás, fitas de nastro, fechos, linhas, lãs, chitas, agulhas e flanelas. Vendiam também vinho ao garrafão nas traseiras do estabelecimento. As boas senhoras tinham uma "criadita" que abria a porta a quem ia comprar vinho. E a miúda tinha umas mamas. A minha mãe mandou-me ao vinho e eu pedi à rapariga se me deixava apalpar-lhe as mamas. Ela não deixou e eu apalpei. As mamas eram de papel e foi um desgosto muito grande.

Que se segue: o prédio do Café Chinês estava a ser construído e as Grilas, que já lá moravam resvés, queixavam-se das obras e dos operários. Queixavam-se do barulho e da insegurança, de tudo e de nada, barafustavam que a casa ia abaixo, era berraria o dia inteiro, guinchos de um lado e palavrões do outro, que até foi preciso chamar a Polícia. A Polícia veio e ficou. Dias e dias. Um agente sempre a rondar e a deitar os olhos ao conflito durante as horas de expediente, não fosse a coisa passar a vias de facto.
Ora, foi exactamente o desprezo por este pequeno pormenor que me tramou. Quando o toco de giz me apareceu aos pés a tentar-me e eu não resisti a apanhá-lo e a sarrabiscar "Senhoras Donas Grilas" na parede das ditas, palavras não eram escritas e já estava a ser levantado por um potente garibalde que me agarrou em tenaz pelo cachaço e perguntou - O que é que o senhor está a fazer?
Olhei para trás e o garibalde era um polícia. O senhor era eu mais os meus onze anos, o que me fez desconfiar que estava metido em caso sério. Com o giz na mão e a última perninha do "s" final ainda a fumegar, respondi - Nada...
Ainda hoje acho que respondi com grande categoria.
E o polícia - Onde é que o senhor mora? E eu, que não queria a minha mãe metida na ocorrência, até porque era melhor para mim - Moro longe. E ele - Então, vamos para a esquadra.
(Para a esquadra? Mais polícias? Isso é que não me dá jeito, pensei, rápido como um fósforo, derivado ao que se ouvia dizer. Porque a Polícia daquele tempo.... bem, a Polícia daquele tempo vestia uma farda de terilene cinzento, que era a cor da Autoridade e do País. Os carteiros também vestiam de cinzento, mas em cotim. A outra diferença é que os carteiros eram nossos amigos.)
E eu - Enganei-me, senhor polícia, desculpe, moro já aqui no Santo...
O polícia deixou-me finalmente aterrar, empurrou-me para casa, ainda com a tenaz no meu cachaço, o João do Zé Manco viu, veio a correr acudir por mim e foi à frente avisar a minha mãe de que eu não tinha feito mal nenhum. Fiquei a dever uma ao João. Dessa vez a minha mãe não me bateu. E ainda agora me diz que, para além da cunha do João, levou em devida conta o facto de eu ter escrito "Senhoras Donas Grilas" e não "Grilas" simplesmente. "Senhoras", evidentemente. Para a minha mãe, respeito e educação acima de tudo.
Fui condenado a limpar a parede com um pano molhado, cumpri pena e segui para a escola, de coração a mil e tremente como varas verdes. As varas verdes eram também uma especialidade da minha mãe. Livrei-me de boa...

P.S. - Hoje, 25 de Maio, o Brasil assinala o Dia da Costureira. Lembrei-me das Senhoras Donas Turicas.

Quando éramos vizinhos

Foto Hernâni Von Doellinger

Mataram os vizinhos. Agora somos condóminos.
Éramos vizinhos, lembram-se? E a palavra vizinho queria dizer coisas boas: proximidade, amizade, companhia, ramo de salsa, comunidade, confiança, solidariedade, conversa no passeio à noite, copinho de vinho novo, cumplicidade, visita ao hospital, dar a camisa, porta aberta, comadre, quase família, melhor que família, tu cá, tu lá. Agora somos condóminos. E a palavra condómino tem uma carga que é um pesadelo: propriedade, despesa, individualidade, indiferença, reunião, ausência, chatice, discussão, impessoalidade, porta fechada a sete chaves (três, pelo menos), queixinha, fracção, má-língua, elevador, o tempo, bom dia e boa tarde, eu cá, tu lá.
E é irónico. Há mais de trinta anos que eu sou um condómino exemplar, um condómino da melhor pior espécie, mas hoje deram-me as saudades de ser vizinho. Sei que já vou tarde. Estamos todos condenados a sermos condóminos para o resto das nossas vidas. Se ainda ao menos fôssemos conDominus nobiscum...

Weather report
- Isto é que tem estado!...
- Realmente...
- E então hoje!...
- Lá isso...
- O que é que eles dão para amanhã?
- Eu...
- Pois. Então até logo, vizinho.
- Vá pela sombra, vizinha.
É, o elevador aproxima muito as pessoas. O elevador e o boletim meteorológico.

A falta de ar é opcional
As pessoas vivem fechadas em caixotes. Em caixinhas dentro de caixotes. E cada caixinha tem um respiradouro chamado varanda. E as pessoas fazem marquises.

Minha varanda, meu castelo 
No prédio onde eu moro, o meu apartamento é o único que não tem marquise ou paramarquise na varanda. Dá nas vistas, é verdade, destoa, incomoda os vizinhos, aliás condóminos, e todos os dias tenho a caixa de correio assediada por uns quantos panfletos em quadricromia e papel couché que me oferecem o sufoco a xis euros o metro quadrado. Muito agradecido, mas passo: a varanda faz-me falta tal qual está.
Gosto de correntes de ar, que hei-de fazer? Gosto de terra e gosto de mar. E gosto de levar com a terra e com o mar nas ventas. Gosto dos cheiros. Gosto de pensar (ou de pensar que penso), gosto de refrescar ideias. A minha varanda é o meu retiro. E é o meu quintal, a minha esplanada, o meu posto de vigia. Gosto de semear, de regar os vasos, de espreitar o nanocrescimento dos coentros, da salsa e do tomilho, e até tenho um loureiro e um carvalho, gostava de fumar a minha cachimbada e de beber o meu CRF "em balão previamente aquecido", que já não fumo e bissextamente bebo, gosto de ver passar navios. Condenaram-me a isso, a ver navios, mas eu gosto. Sou um gajo cheio de sorte: moro mesmo em frente ao mar, se me puser de lado.
Estão a ver a cabeça daquele cromo assamarrado e de chapéu enfiado até às orelhas, sentado na varanda, ignorante da chuva e do frio, de braço de fora e olhando o mar? A cabeça é minha, o cromo sou eu. Não podem ver, mas tenho uma manta a agasalhar-me as pernas. Estou muito bem, não se preocupem.
E estão a ver a gaivota belíssima, empoleirada no parapeito e quase em cima de mim? É a tal, a cagona que não me larga. A gaivota também sabe que ali é santuário, lugar de pensamento e liberdade. Somos cúmplices, praticamente almas gémeas. Mas a gaivota abusa, caga na varanda propriamente dita, o que enfurece a minha mulher. Eu, no que me diz respeito, tomo nota de mais um barco que entra no Porto de Leixões.

P.S. - Hoje, 25 de Maio, é Dia Mundial dos Vizinhos e amanhã ou depois de amanhã é Dia Europeu do Vizinho. Isto é: talvez seja. Na verdade, as várias fontes consultadas pelo Tarrenego! não se entendem quanto a uma data certa nem tampouco quanto ao nome do Dia propriamente dito. Típico de condóminos, não é?...

I want to ride my bicycle 96

Foto Hernâni Von Doellinger

E se?

E se o 25 de Abril fosse a 25 de Maio e o 1.º de Maio fosse no dia 1 de Abril? Alguém nos tinha enganado, não é?

Diz que vamos todos ficar bem... 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Acontecimentos

Há acontecimentos épicos e acontecimentos hípicos. Às vezes coincidem.

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Foto Hernâni Von Doellinger

Barros Pinho 4

O retrato nas paredes

As casas como as pessoas
guardam cicatrizes
expostas no rosto do tempo.

Às casas sempre voltamos
nelas a vida anda por trás do que passou
existem na existência indo embora.

As casas onde morei para viver
na afoitosa e lúdica adolescência
abrem rugas na face branca das paredes.

De dentro delas saltam sonhos
que não querem envelhecer
e o menino açoitando o vento nas curvas do rio
que se arrasta na carne azul da paixão.


Barros Pinho

(Barros Pinho nasceu no dia 25 de Maio de 1939. Morreu em 2012.)

Arrebita-me essas orelhas!...

Foto Hernâni Von Doellinger

A piquena Annie

Ai o que ele gostava de traulitar a cantiga da piquena Annie! Traulitava mansinho, trampolinando os dedos no braço de mogno da poltrona de Magda: Tamóro, tamóro, ai labiá tamóro, Iori ou Li ha-dei auei...

domingo, 24 de maio de 2020

Come fly with me

Foto Hernâni Von Doellinger

Eram um grupo de cumplicidades antigas, chegados, presentes, amigos de carne e osso, uma irmandade, a bem dizer. Reuniam-se em pequenos tascos à volta de generosas canecas de verde tinto de estalo que passavam liturgicamente de mão em mão e de boca em boca. Era uma missa, meu Deus! Eram irmãos, meus irmãos! Oremos.
Agora, derivado ao coronavírus, acabou-se-lhes a fraternidade. As normas de bom comportamento e de afastamento entre pessoas do género humano doravante e para o futuro são bem claras e definitivas: partilhar a caneca é suicídio, homicídio, fratricídio, parricídio e outros cídios parcídios com os cídios anteriormente citados mas que de momento não me lembro. A partilha está absolutamente fora de questão. E só pode entrar no tasco um de cada vez. Os velhos camaradas passam a confraternizar por interposta pessoa. Isto é: o primeiro, tirado à sorte, confidencia ao tasqueiro a mais que batida piada broeira e o tasqueiro faz o favor de reproduzi-la com mais uns pozinhos aos seguintes, anexando-lhe os comentários que entretanto. O último elabora a acta para distribuir por todos os ausentes e paga a conta. O último é igualmente escolhido por sorteio e isso tem sido um problema, porque já calhou seis vezes seguidas ao Antunes Cagadalto. Isto em terra.
A partir do próximo dia 1 de Junho, o desconsolado grupo de cumplicidades antigas, chegados, presentes, amigos de carne e osso, uma irmandade, a bem dizer, e que gosta de comungar à volta de generosas canecas de um robusto verde tinto, vai passar a andar de avião, tudo ao molho e fé em Deus. Tasco com cinco pessoas: mau! Avião com 220 sardinhas, queria dizer, pessoas: bom! É outro aconchego, outro convívio...

As pombas, pela manhã

Foto Hernâni Von Doellinger

Todas as manhãs, faça chuva ou faça sol, dias úteis ou dias inúteis. Todas as manhãs, de saquinho na mão, sai de Matosinhos atravessando o Passeio Atlântico de uma ponta à outra, em passo leve e decidido, e entra breve no Porto. No saquinho leva comida para os pássaros - milho para as pombas e pedaços de pão para os patos mas pouco, para os corvos-marinhos às vezes e para as vorazes e cagonas gaivotas. Sim. Para as gaivotas, raça tão desprestigiada hoje em dia, vítima de perseguição e tentativa de genocídio perpetradas por alguns autarcas aqui da beira-mar. Ele, o homem do passo leve e decidido, dá-lhes o almoço.
E todas as manhãs acontece o extraordinário: por alturas da Rotunda da Anémona, fronteira municipal, as pombas saem-lhe da cartola, materializam-se do nada, fazem-lhe bando por cima da cabeça e acompanham-no em revoadas dançarinas até à distribuição geral, no charco mais ocidental do Parque da Cidade, à porta da Kasa da Praia. As pombas reconhecem o seu benfeitor? Identificam o saquinho? Vão apenas ao cheiro? Serão, por assim dizer, o Espírito Santo em pessoa? Não sei - mas aquilo comove-me. Espanta-me. Fosse em Fátima, e seria certamente milagre.
Servido o festim, o cuidador de pássaros volta para casa pelo mesmo caminho, sempre com uma pequena reserva de pão e de milho no fundo do saco, prevenindo emergências que as há. Pomba tresmalhada ou retardatária, gaivota de asa caída ou manca ou qualquer outra ave freelance também têm direito à sua dose individual, no respeito do espaço de cada qual. É. Os solitários entendem-se...

P.S. - Publicado originalmente no dia 22 de Fevereiro de 2018. Deixei de ver esta figura extraordinária, e desejo que seja apenas derivado a desencontro de horas. Hoje, 24 de Maio, o Brasil assinala o Dia Nacional do Milho. E o milho é como o sol, quando nasce é para todos...

Também faço isto muito bem 397

Foto Hernâni Von Doellinger

O extraordinário poder de observação dos barmen

Armado em parvo, o que lhe sucedia regularmente todas as primeiras sextas-feiras de cada mês, cerca das quatro e meia da matina, Quitério entrou no Bar Àluzdasvelas pendurado nuns óculos de sol Ray Ban de lentes enormes e escuríssimas que lhe tapavam cerca de 75 por cento da cara. Tacteou um lugar ao balcão e assim ficou. O homem do bar atentou e disse: - Boa noite, senhor Quitério. Está diferente, hoje. O que é? Cortou o cabelo?...

P.S. - A 24 de Maio o Brasil celebra o Dia do Barista.

Foi de carrinho... 3

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 23 de maio de 2020

O meu nome é Moore, Roger Moore

Alexander Fleming - médico, farmacologista, biólogo e botânico britânico - foi o inventor da penicilina e ganhou o Prémio Nobel. A questão ainda não está devidamente estudada e as razões continuam incógnitas, mas a verdade é que, a dado passo, possivelmente em 1952, Alexander mudou o nome para Ian e desatou a escrever romances de espionagem.

James Bond nasceu no dia 4 de Janeiro de 1900 na cidade de Filadélfia, Pensilvânia, Estados Unidos da América, e foi um famoso ornitólogo especializado em pássaros das Caraíbas. Quando Ian Fleming o descobriu, naturalizou-o inglês, empregou-o no MI-6, deu-lhe o número 007, para o distinguir do 006 e do 008, e fez dele agente secreto ao serviço de Sua Majestade.

O primeiro 007 foi Barry Nelson, num telefilme que não conta para o totobola. E o segundo foi o grande David Niven, mas que também não tem direito a cromo na caderneta. Seguiram-se Sean Connery, o primeiro James Bond oficial e o meu James Bond, George Lazenby e Roger Moore. E era aqui que eu queria chegar, sem menosprezo pela esforçada mediocridade que se lhe seguiu: a Sir Roger George Moore, actor britânico algo canastrão que morreu no dia 23 de Maio de 2017, aos 89 anos, e que vestiu a pele de Bond em sete filmes. Antes de entrar no cinema, Moore já era famoso como O Santo na televisão - tanto que até deu nome à minha rua.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 174

Foto Hernâni Von Doellinger

Telessexo

É muito à frente, ele. Não esperou pela pandemia nem precisou das indicações do Governo. Há mais de trinta anos que pratica, e com resultados francamente satisfatórios.

Diz que vamos todos ficar bem...

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 207

O Ventura acumula
Tinha olho para a política. Um. Nascera zarolho, coitadinho, mas nunca se ficou. Na escola faziam pouco dele, diziam-lhe, no gozo, "Toma sentido: um olho no burro, outro no Ventura". Ele respondia, sem pestanejar, "Um olho chega: o Ventura acumula"...

Falou-se aqui atrasado, e pelas melhoríssimas razões, de Artur Quaresma, antiga glória do Belenenses, internacional português, homem vertical e limpo, e quase tio-avô de Ricardo Quaresma por engano. Conheci Artur Quaresma, vejam lá a sorte que tenho na vida! Escrevi duas insuficientes linhas sobre essa extraordinária figura no dia 3 de Dezembro de 2011: "Morreu Artur Quaresma, um senhor!, que treinou o meu Fafe na época de 1972/1973. É um pormenor, que as notícias vão certamente esquecer. Eu não."
Há quase nove anos.

Já há pão, já há peixe. Falta o milagre.
Notícias do des-con-fi-na-men-to. A minha peixaria reabriu. E era o que me fazia mais falta. Mais até do que o pão. Agora toda a gente faz pão em casa, um pão que não presta para nada, mas é moda e dá na televisão. Até a namorado do meu filho faz pão e traz, e por acaso, excepção que confirma a regra, até é um pãozinho que nos tem sabido muito bem. Infelizmente ainda não há máquinas para fazer peixes em casa. Que eu saiba.

Uma questão de tamanho
No dia 11 de Maio de 1672, o rei de França Luís XIV, o Grande, invadiu os Países Baixos. Quando lá chegou, os holandeses perguntaram-lhe, indignados: - Porque é que não te metes com alguém do teu tamanho?...

O Homem de Gelo
O calcanhar-de-aquiles do Homem de Gelo era o Verão. Assim um bocado como o Ferrero Rocher...

Também faço isto muito bem 396

Foto Hernâni Von Doellinger

Carlos de Assumpção 4

Inocência 

A menininha disse zangada
Que sua coleguinha ao lado
Me xingara de negro
E acrescentou:
"Deus vai castigar ela professor
Ela ainda vai casar com um negro".


"Quilombo", Carlos de Assumpção

(Carlos de Assumpção nasceu no dia 23 de Maio de 1927)

Music was my first love 62

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 22 de maio de 2020

O ténis, essa tão asseada modalidade desportiva

Gosto muito de ténis. De ver na televisão. Não sei jogar, nunca joguei. Suponho que nem seria capaz de acertar com a raquete na bola, quanto mais executar um approach ou um lob, meter um passing shot ou um slice, esmagar com um smash - logo eu que sou um zero a inglês. Mas há uma pancada do ténis moderno em que sou craque: a limpeza-do-suor-com-a-toalha. Como é do conhecimento de todos os seguidores da modalidade, a limpeza-do-suor-com-a-toalha é, hoje em dia, a principal pancada do ténis. Até há chegadores de toalhas, apanha-bolas nos tempos livres. Qualquer jogador que não limpe-o-suor-com-a-toalha de trinta em trinta segundos nem é jogador nem é nada. Num encontro que dure duas horas, por exemplo, hora e meia é gasta a limpar-o-suor-com-a-toalha. E os duelos de limpeza-do-suor-com-a-toalha são interessantíssimos. E as toalhas são de desenho exclusivo para cada torneio. Lembro-me de quando não era assim e era uma chatice. Não sei quando é que esta revolucionária pancada começou, mas podia ter sido inventada por mim. Haviam de me ver, pratico-a de forma exímia. Mesmo nesta idade. Principalmente nesta idade e com estes calores. Que pena o ténis não ser só limpar-o-suor-com-a-toalha.

P.S. - Publicado originalmente no dia 28 de Junho de 2012. O tenista sérvio Novak Djokovic, actual número um do mundo e um dos melhores de todos os tempos, nasceu no dia 22 de Maio de 1987. Festeja hoje 33 anos.

O novo normal 8

Foto Hernâni Von Doellinger

O que seria da culpa sem o mordomo?

Vinham chegando aos poucos e discretos. August Dupin, Dick Tracy, Miss Marple, Clouseou, Maigret, Poirot, Sam Spade, Nero Wolfe, Philip Marlowe, Perry Mason, Ironside, Kojak, Columbo e Pepe Carvalho. Sherlock Holmes apareceu enfim, atrasadíssimo e ofegante e com um restinho de farinha amparo na ponta do nariz. Disse que a culpa foi do mordomo.

P.S. - Arthur Conan Doyle, médico e escritor britânico nascido na Escócia, famoso criador do ainda mais famoso detective Sherlock Holmes, nasceu no dia 22 de Maio de 1859.

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Foto Hernâni Von Doellinger

Jorge Barbosa 2

Desejo louco

Aperta-me em teus braços torneados,
Aperta-me ao teu seio palpitante!
Ai! Deixa-me sonhar, a alma errante
Pelas regiões do Amor, sonhos dourados!

Vê como a noite é calma e enluarados
Os campos têm a cor esbranquiçante…
Aperta-me nos braços, minha amante,
Dá-me os teus lábios frescos e rosados…

Como dois pombos, nós assim unidos,
E lá no Céu, boiando, triste, a lua,
Terá a Vida encantos reunidos!...

E eu hei-de-te despir, pra ver-te nua,
À luz do luar, os seios languescidos…
- Pra ver a tua carne como estátua!...

Jorge Barbosa

(Jorge Barbosa nasceu no dia 22 de Maio de 1902. Morreu em 1971.)

In american way 7

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Teledesemprego 2

Está em casa em teledesemprego. Faz horário das dez da manhã às oito da noite. Perguntem-lhe sobre programação da RTP1! Sabe tudo.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 173

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 206

O Filhodeputa anda de máscara
Já aqui falei dele. Do indivíduo que andava pelas ruas das minhas redondezas à cata de piriscas e que, filho da puta, batia na companheira que lhe fazia o serviço. A franzina senhora desapareceu de cena. De tão sumária e submissa que me parecia, temo, sinceramente temo, que lhe tenha acontecido o pior, só para não atrapalhar. Mas o bronco continua por aí, agora solitário e sempre bandalho, enfim obrigado a vergar a mola se quer matar o vício. Com o encerramento coronavírico de cafés e restaurantes, no chão da porta dos quais costumava abastecer-se, a vida corria-lhe mal, e é o que lhe estimo.
Continua, portanto, às piriscas, no outro dia sem mais nem menos malcriou com a minha mulher, que não lhe liga mas tem medo dele, mais cedo ou mais tarde vou ter de lhe foder o focinho, ao porco. O indivíduo continua às piriscas, que fuma acto contínuo, mas, actualizado com os tempos da pandemia, anda de máscara. A máscara padece de evidentes sinais de que foi sacada ao lixo. Mas de máscara, o burgesso. É outra limpeza, outra segurança.

Dor de corno
Foi ao médico e queixou-se de dor de cotovelo. O médico perguntou-lhe sintomas. Ele disse que a mulher tinha um amante. O médico explicou-lhe que não era dor de cotovelo, mas dor de corno. Ele ficou mais descansado.

Bastante desagradável
- Está bastante desagradável.
- Você também.
- Eu referia-me ao tempo.
- Eu não. 
 
Agora tenho duas padarias
Notícias do des-con-fi-na-men-to. Como já aqui contei, a nossa padaria fechou nos princípios de Março por causa do coronavírus. A nossa padaria era o sítio onde todos os dias comprávamos o pão que nos alimentava há mais de trinta anos, e era como se fôssemos da casa. Mas o pão é essencial e, que remédio, começámos a frequentar outra padaria, igualmente aqui à porta, que fez o favor de nos farturar a mesa naqueles dias mais complicados. Que se segue. A nossa velha padaria reabriu e estão todos de saúde, graças a Deus, fui lá saber com os próprios olhos e comprar com as próprias mãos. E máscara.
Mas e a nossa nova padaria? Que nos serviu tão satisfatoriamente em tempos de crise, bem sei que durante menos de dois meses, íamos agora voltar-lhe costas, muitíssimo obrigadíssimo, estava tudo muito bem mas já não precisamos, e façam favor de desculpar?
Não somos capazes de semelhante. Passámos a ter duas padarias. A minha mulher e eu dividimo-nos nas visitas. Porque a memória é fundamental mas a gratidão também.

Interlúdio fotográfico 249

Foto Hernâni Von Doellinger

O lado bom do coronavírus

Ele garantia que o novo coronavírus tinha um lado bom. Exigiram-lhe explicações. E ele explicou: - Não houve Queima das Fitas...

Interlúdio fotográfico 248

Foto Hernâni Von Doellinger

Olga Savary 3

Ser

Essa boca cúmplice e insensata
Tangendo a mais antiga e solitária ária
Na anfíbia flauta do teu corpo.


Olga Savary

(Olga Savary nasceu no dia 21 de Maio de 1933)

Também faço isto muito bem 394

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 20 de maio de 2020

O metro-padrão português

Contente como o caralho, rico como o caralho, bom como o caralho, gordo como o caralho, tolo como o caralho, chato como o caralho, distraído como o caralho, salgado como o caralho, fodido como o caralho. O caralho é a nossa unidade de medida, o termo de comparação que o português tem sempre à mão ou na ponta da língua, consoante. É o nosso metro-padrão. E devia estar guardado com todos os cuidados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

P.S. - A Convenção do Metro, também conhecida como Tratado do Metro, foi assinada em Paris no dia 20 de Maio de 1875.

Offshore, se fashavore 293

Foto Hernâni Von Doellinger

As celebridades do dia

O empresário americano Thomas Edison era uma inventor e pêras, posto que nem bigode tivera. No dia 20 de Maio de 1891, faz hoje anos, levou a efeito a primeira apresentação do cinetoscópio, aliás inventado pelo seu engenheiro-chefe William Kennedy Laurie Dickson, que isto na sétima arte, como no resto da vida, anda meio mundo a enganar o outro. O cinetoscópio era uma espécie de cinema aconchegadinho para uma pessoa só. Pouco mais de meio ano mais tarde, no dia 29 de Dezembro, Edison patenteou o rádio. Mas o mais curioso é que exactamente no dia 20 de Maio de 1987 o tractorista português Anacleto Felgueiras, de Montemor-o-Novo, fracturou o cúbito.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 172

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 205

Era uma pessoa muito dada
Era uma pessoa muito dada. Contra todas as recomendações, acolheu de braços abertos o novo coronavírus. Que descanse em paz!

Era de abraços
Abraçou o desemprego com o mesmo entusiasmo com que abraçara a profissão. Era realmente uma pessoa muito abraçadeira...

O Homem-Prazol
Apreciava o homem-aranha, o homem-formiga, o homem elefante, o homem-rã, o homem de gelo, o homem de ferro, o homem-bala, o homem invisível, o homem-estátua, o homem-sanduíche, o homem-crocodilo, o homem-tocha, o homem-máquina e até o homem-bata, que quase existia. Apreciava, sim senhor. Mas. Derivado a pecados velhos e por indicação médica, era mais dado ao homem-prazol.

Cuidado!, vou tirar a carta...
Cheguei a esta idade e vou finalmente tirar a carta. Atenção, muita atenção, estou a tirá-la neste exacto momento. Saiu-me o duque de paus. É bom?...

Os cães estavam exaustos
A verdade é estas: os cães já não conseguiam aguentar mais quinze dias de estado de emergência. Estavam exaustos! Regra geral nunca tinham saído de casa...

Não sei quem sou por dentro de mim
Pensou, líquido: - Não sei quem sou por dentro de mim. Olho-me no espelho do elevador, não tenho por onde fugir, e vejo-me apenas por fora. O espelho do elevador é o meu espelho único. Tento ser sincero com ele, justo comigo mesmo, olho-me olhos nos olhos mas só vejo os olhos que olham para mim. Vejo que os olhos que me olham vêem um velho sem passado e, parece-me, com pressa de envelhecer ainda mais. Saio à rua e caminho sem saber quem sou por dentro de mim.
E concluiu, sólido: - Acho que tenho a mania de que sou filósofo amador e um bocado poeta. Uma coisa é certa, sou parvo.