quarta-feira, 30 de abril de 2014

Devia ser proibido escrever proíbido

A minha junta de freguesia, que agora se chama de Matosinhos e Leça da Palmeira, parece nome de nobreza, colocou ali em baixo um contentor para recolha de roupa e calçado usados. É uma boa ideia. Mas o contentor, sendo novo em folha, veio com defeito de fabrico. Traz palavras que não existem na língua portuguesa: diz que "É proíbido o acesso ao interior" do dito e alerta para a "Afixação proíbida" no mesmo. "Proíbido"? "Proíbida"? Onde caralho foram buscar o acento? Isto não é distracção, é apenas um dos erros mais comuns do famigerado analfabetismo institucional - é burrice. Porque, se pensarmos um bocadinho e não fizer doer muito a cabeça, dá mais trabalho pôr o acento do que não pôr. O acento que não é preciso é, então, intencional. Trata-se, portanto, de ignorância militante. Oficial e registada.
E era tão fácil perceber que é proibido e proibida. Antes até da gramaticazinha, bastava ouvir o que se escreve...

Em todo o caso, realce-se a pertinência do aviso contra a "Afixação". Está bem visto. Olhar afixamente seja para onde for e sem pestanejar faz realmente muito mal aos olhos.

Foto Hernâni Von Doellinger

Matosinhos bate lev, levemente


Mais Matosinhos. Oitava edição do LEV - Literatura em Viagem, de 9 a 11 de Maio, na Biblioteca Municipal Florbela Espanca. De José Sócrates a Nuno Camarneiro, passando por Mafalda Veiga e Eduardo Lourenço, há de tudo como na farmácia. Informação oficial e programa, aqui.

Lugares-(in)comuns 74

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 29 de abril de 2014

Fazer a Festa em Matosinhos


Festival Fazer a Festa nas Ruas de Matosinhos. Na praia, no mercado, no parque. Próximos dias 2, 3 e 4 de Maio (sexta, sábado e domingo). Ver programa aqui.

O meu barbeiro 2

O meu barbeiro atacou-me à traição. Falou-me de barcos. Tínhamos uma combinação tão antiga e cómoda, de só comunicarmos um com o outro por sinais, e ele apanha-me o ponto fraco e obriga-me à conversa. Barcos. Nós sabíamos que tínhamos também isso em comum, os barcos, mas era como se não soubéssemos, disfarçávamos silenciosamente, numa cumplicidade camarada, coisa de velhos embarcadiços. O Sr. Fernando, que é um artista de mão cheia, foi, no seu tempo, escanhoador-mor a bordo da Sagres; e eu há 1.324 dias que sou contador de navios a bordo da minha varanda com vista para o mar (se me puser de lado).
Foi assim. Diz-me o meu barbeiro, sem mais nem menos, "Aquilo agora em Leixões os cruzeiros são uns atrás dos outros". Parece coisa de nada, não é?, apenas deixada no ar, mas oh palavras que me disseste! Leixões e cruzeiros. Senha e contra-senha. Ao ataque!, pensei eu mais com a língua do que com a cabeça, esquecendo-me de que queria estar calado. Esqueci-me também da bóia e afoguei-me no relambório. Que "Pois de facto, para aí 80 durante este ano" e que "Eu é que os vejo passar, estou lá em cima a tomar conta" e que "Até os fotografo" e que "Até já conheço alguns ao longe, como por exemplo o Albatroz, o Aurora, o Azura que é irmão do Ventura, o Boudica, o Crystal Symphony, o Queen Victoria, o Marina, o Celebrity Constellation ou o Costa Pacifica", que ainda outro dia me passou à porta,

Foto Hernâni Von Doellinger

e que "O Porto de Leixões é um sucesso, um batedor de recordes que despeja milhares de turistas nas cidades de Matosinhos e Porto, só não vê quem não quer", e que "Só nos primeiros seis meses de 2012 Leixões mais que duplicou (aumento de 118 por cento) o número de passageiros em relação ao período homólogo de 2011" - e eu disse mesmo período homólogo e, sim, expliquei a percentagem entre parênteses - e que "Um dia destes um filho da puta qualquer vai foder isto tudo, sentado numa secretária em Lisboa". Foi assim que eu falei. Mas em ponto grande.
O meu barbeiro, que aqui atrasado não acreditou em mim quando eu lhe disse que não era mudo, estava o barbeiro mais feliz do mundo. Pasmado, de pente e tesoura suspensos no ar, como bailarina sevilhana pronta a tocar castanholas. O paleio ia de vento em popa. O meu barbeiro servia à pinta. Os barbeiros são óptimos a servir à pinta. Que "Sim" e que "Sim" e que "Sim" e que "Sim", "Sim senhor", "Não me diga", "Parece impossível". Falámos por quase 30 anos de silêncio. Mas conversa sobre barcos leva longe. Já íamos nos fados, vejam bem. Olhei para trás e não vi terra, a minha varanda. Tive medo e parei ali. Levantei a mão direita numa saudação índia atabalhoada, fiz "Ugh!", paguei e nadei até casa.

À roda da cadeira do meu barbeiro começavam a sair os primeiros acordes de La Boda de Luis Alonso. (ver e ouvir)

(Texto escrito e publicado no dia 11 de Outubro de 2012. Mudo-lhe hoje a fotografia e faço uma alteraçãozinha de nada. Quem tiver vagar, pode ler mais do mesmo em O meu barbeiro.) 

A pedido de várias famílias

Foto Hernâni Von Doellinger

Jaime Cortesão 2

Romance do homem da boca fechada

- Quem é esse homem sombrio
Duro rosto, claro olhar,
Que cerra os dentes e a boca
Como quem não quer falar?
– Esse é o Jaime Rebelo,
Pescador, homem do mar,
Se quisesse abrir a boca,
Tinha muito que contar.


Ora ouvireis, camaradas,
Uma história de pasmar.

Passava já de ano e dia
E outro vinha de passar,
E o Rebelo não cansava
De dar guerra ao Salazar.
De dia tinha o mar alto,
De noite, luta bravia,
Pois só ama a Liberdade
Quem dá guerra à tirania.
Passava já de ano e dia…
Mas um dia, por traição,
Caiu nas mãos dos esbirros
E foi levado à prisão.

Algemas de aço nos pulsos,
Vá de insultos ao entrar,
Palavra puxa palavra,
Começaram de falar
- Quanto sabes, seja a bem,
Seja a mal, hás de contá-lo,
- Não sou traidor, nem perjuro;
Sou homem de fé: não falo!
- Fala: ou terás o degredo,
Ou morte a fio de espada.
- Mais vale morrer com honra,
Do que vida deshonrada!

- A ver se falas ou não,
Quando posto na tortura.
- Que importam duros tormentos,
Quando a vontade é mais dura?!

Geme o peso atado ao potro
Já tinha o corpo a sangrar,
Já tinha os membros torcidos
E os tormentos a apertar,
Então o Jaime Rebelo,
Louco de dor, a arquejar,
Juntou as últimas forças
Para não ter que falar.
- Antes que fale emudeça! -
Pôs-se a gritar com voz rouca,
E, cerce, duma dentada,
Cortou a língua na boca.

A turba vil dos esbirros
Ficou na frente, assombrada,
Já da boca não saia
Mais que espuma ensanguentada!

Salazar, cuidas que o Povo
Te suporta, quando cala?
Ninguém te condena mais
Que aquela boca sem fala!
Fantasma da sua dor,
Ainda hoje custa a vê-lo;
A angústia daquelas horas
Não deixa o Jaime Rebelo.
Pescador que se fez homem
Ao vento livre do Mar,
Traz sempre aquela visão
Na sombra dura do olhar,
Sempre de boca apertada,
Como quem não quer falar.


Jaime Cortesão

(Jaime Cortesão nasceu no dia 29 de Abril de 1884.  Morreu em 1960.)

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Lugares-(in)comuns 73

Foto Hernâni Von Doellinger

O meu barbeiro

Foto Hernâni Von Doellinger

Eu e o meu barbeiro comunicamos por sinais. Ele sabe que comigo não há conversa. Entro, levanto a mão direita em saudação índia mas não digo "Ugh!", sento-me na zona de espera, espero, levanto-me quando chega a minha vez, que me é indicada com um semigesto de cabeça, coisa cá entre os dois, aproveito o caminho para apontar se é só barba ou é barba e cabelo, sento-me e está tudo dito. São muitos anos.
Conversa de barbeiro é uma seca. E um perigo. Os barbeiros sabem de tudo e nós, simples e indefesos clientes, não. Portanto, de navalha em punho, eles começam a falar na crise dos mísseis de Cuba de 1962 e só terminam, uma hora depois, já a socar-nos os tomates com a escova, quando chegam ao caso do dono do café ao lado que tem a mania de deixar a janela do carro aberta, "Qualquer dia ainda se fode, com sua licença, senhoreee...", e, depois de termos saído e já irmos longe, ainda vão à porta gritar: - O senhoreee... também deixa a janela do carro aberta? Deixa? Ai é motorizada? Pois, nesse caso...
O meu barbeiro não. Comigo, nem se atreve a pegar no espelho mostra-carecas para me perguntar, no final do serviço, se está tudo bem. Já sabe que não vale a pena. Vamos direitos à máquina registadora, espreito a ver se ainda é o mesmo preço, pago, recebo o troco, levanto a mão direita em saudação índia e saio sem dizer "Ugh!", que ele não estranha.
Mas para termos chegado a este superior estádio de entendimento silencioso, precisei de me começar a impor logo no princípio, há quase 30 anos. O meu barbeiro já sabe: som da televisão mais baixo quando chego, porque a Praça da Alegria é-me insuportável. Mais: lavagem da cabeça, não. Nunca. Somos amigos, mas nada de convívio. Nestas coisas, a minha costela homofóbica dá de si. É uma costela flutuante, mas está lá. Por exemplo, incomoda-me também que o estabelecimento se chame "salão" em vez de "barbearia", e, ainda por cima, "salão de cabeleireiros". O meu barbeiro sabe do meu incómodo, mas neste particular mandou-me dar uma volta. São os tempos que vivemos e merecemos. Até a Barbearia Tralhão, isso sim sítio para homens de barba rija, agora também já é Cabeleireiros Pereira Tralhão. O que é que se há-de fazer?

Não sei o que deu ontem ao meu barbeiro. Resolveu falar. E eu, que até já me tinha convencido de que éramos mudos, mandei-o calar com os olhos, quase o fulminei. Mas ele fez-se de ceguinho e continuou com o relambório. Os barbeiros são assim, falam sempre mesmo que a gente não lhes responda. E o meu barbeiro ontem estava igual aos outros barbeiros, abriu o livro. Porque conversa de barbeiro tem técnica.
O meu barbeiro começou pela política. O que até me veio a calhar para continuar calado, porque não percebo nada de política e, além disso, não gosto de dizer palavrões em público. Perante o meu militante silêncio, o meu barbeiro passou para o futebol, e eu nada. Não sei porquê, mas para aí há coisa de mês e meio que não gosto de falar de futebol. O meu barbeiro tentou-me, então, com o Duarte Lima. Valha-me Deus, antes de almoço não, lá se me ia o apetite. E a noticiazinha do jornal, os dois larápios que foram apanhados e quase linchados pela população ali para os lados de Guimarães? Também não. Mantive-me de boca fechada, até para não ter de lhe explicar o que está por detrás de acções e notícias daquelas.
O meu barbeiro pareceu desistir. Calou-se. E assim esteve, desistente, calado e ressentido, durante uma boa meia hora. Até que, indo ao fundo da sua alma, arrancou um imenso suspiro (e eu logo a pensar: vem-me este agora falar da emoção da visita de terça-feira à campa da mãezinha, coitadinha...), arrancou um grande suspiro, dizia eu, suspendeu a tesoura num gesto teatral e atirou-me, certeiro : - E este tempo?!...
Ah!, bom, o tempo. Assim já nos entendemos. Tivemos ali conversa até à hora do tacho.

(Texto escrito e publicado no dia 4 de Novembro de 2011. Junto-lhe hoje a fotografia, que apanhei na Foz. Quem tiver vagar, pode ler mais do mesmo em O meu barbeiro 2.)

_________________
"O Meu Barbeiro" é também título de um divertidíssimo livro do jornalista e escritor português Carlos Pinhão (1924-1993):

Capa
Contracapa

Alberto de Oliveira

O ídolo

Sobre um trono de mármore sombrio,
Em templo escuro, há muito abandonado,
Em seu grande silêncio, austero e frio
Um ídolo de gesso está sentado.


E como à estranha mão, a paz silente
Quebrando em torno às funerárias urnas,
Ressoa um órgão compassadamente
Pelas amplas abóbadas soturnas.


Cai fora a noite - mar que se retrata
Em outro mar - dois pélagos azuis;
Num as ondas - alcíones de prata,
No outro os astros - alcíones de luz.


E de seu negro mármore no trono
O ídolo de gesso está sentado.
Assim um coração repousa em sono...
Assim meu coração vive fechado.


"Canções Românticas", Alberto de Oliveira

(Alberto de Oliveira nasceu no dia 28 de Abril de 1857. Morreu em 1937.)

Onde é que eu já vi este filme? 2

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 27 de abril de 2014

Vasco Graça Moura (1942-2014)

Lamento para a língua portuguesa

não és mais do que as outras, mas és nossa,
e crescemos em ti. nem se imagina
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, mera aspirina,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e repentina.
mas é o teu país que te destroça,
o teu próprio país quer-te esquecer
e a sua condição te contamina
e no seu dia-a-dia te assassina.
mostras por ti o que lhe vais fazer:
vai-se por cá mingando e desistindo,
e desde ti nos deitas a perder
e fazes com que fuja o teu poder
enquanto o mundo vai de nós fugindo:
ruiu a casa que és do nosso ser
e este anda por isso desavindo
connosco, no sentir e no entender,
mas sem que a desavença nos importe
nós já falamos nem sequer fingindo
que só ruínas vamos repetindo.
talvez seja o processo ou o desnorte
que mostra como é realidade
a relação da língua com a morte,
o nó que faz com ela e que entrecorte
a corrente da vida na cidade.
mais valia que fossem de outra sorte
em cada um a força da vontade
e tão filosofais melancolias
nessa escusada busca da verdade,
e que a ti nos prendesse melhor grade.
bem que ao longo do tempo ensurdecias,
nublando-se entre nós os teus cristais,
e entre gentes remotas descobrias
o que não eram notas tropicais
mas coisas tuas que não tinhas mais,
perdidas no enredar das nossas vias
por desvairados, lúgubres sinais,
mísera sorte, estranha condição,
mas cá e lá do que eras tu te esvais,
por ser combate de armas desiguais.
matam-te a casa, a escola, a profissão,
a técnica, a ciência, a propaganda,
o discurso político, a paixão
de estranhas novidades, a ciranda
de violência alvar que não abranda
entre rádios, jornais, televisão.
e toda a gente o diz, mesmo essa que anda
por tal degradação tão mais feliz
que o repete por luxo e não comanda,
com o bafo de hienas dos covis,
mais que uma vela vã nos ventos panda
cheia do podre cheiro a que tresanda.
foste memória, música e matriz
de um áspero combate: apreender
e dominar o mundo e as mais subtis
equações em que é igual a xis
qualquer das dimensões do conhecer,
dizer de amor e morte, e a quem quis
e soube utilizar-te, do viver,
do mais simples viver quotidiano,
de ilusões e silêncios, desengano,
sombras e luz, risadas e prazer
e dor e sofrimento, e de ano a ano,
passarem aves, ceifas, estações,
o trabalho, o sossego, o tempo insano
do sobressalto a vir a todo o pano,
e bonanças também e tais razões
que no mundo costumam suceder
e deslumbram na só variedade
de seu modo, lugar e qualidade,
e coisas certas, inexactidões,
venturas, infortúnios, cativeiros,
e paisagens e luas e monções,
e os caminhos da terra a percorrer,
e arados, atrelagens e veleiros,
pedacinhos de conchas, verde jade,
doces luminescências e luzeiros,
que podias dizer e desdizer
no teu corpo de tempo e liberdade.
agora que és refugo e cicatriz
esperança nenhuma hás-de manter:
o teu próprio domínio foi proscrito,
laje de lousa gasta em que algum giz
se esborratou informe em borrões vis.
de assim acontecer, ficou-te o mito
de haver milhões que te uivam triunfantes
na raiva e na oração, no amor, no grito
de desespero, mas foi noutro atrito
que tu partiste até as próprias jantes
nos estradões da história: estava escrito
que iam desconjuntar-te os teus falantes
na terra em que nasceste, eu acredito
que te fizeram avaria grossa.
não rodarás nas rotas como dantes,
quer murmures, escrevas, fales, cantes,
mas apesar de tudo ainda és nossa,
e crescemos em ti. nem imaginas
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, vãs aspirinas,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vidas novas repentinas.
enredada em vilezas, ódios, troça,
no teu próprio país te contaminas
e é dele essa miséria que te roça.
mas com o que te resta me iluminas.


"Antologia dos Sessenta Anos", Vasco Graça Moura

Só prato

Foto Hernâni Von Doellinger

Com comida é um bocadinho mais caro.

sábado, 26 de abril de 2014

Portugueses low-cost

São cada vez mais os portugueses que procuram a sobrevivência no fundo de um contentor do lixo. Sei, porque ando na rua. Ainda há bocado, de Matosinhos até à Foz, no Porto, passei por nove pontos de contentores de lixo: em seis deles estavam pessoas à cata dos nossos melhores restos. Não eram "drogados", nem "alcoólicos", nem "arrumadores" fora das horas de expediente - se querem saber. Eram pessoas como nós, certamente com mais azar na vida do que nós. Vi, por exemplo: uma família inteira, que podia ser a minha família; uma senhora arranjada e digna, puxando um carrinho de compras que ia compondo com critério, e podia ser a minha mãe; um cavalheiro com o velho orgulho alquebrado, que me olhou com olhos de pedir desculpa por necessitar, e quase posso jurar que ele era eu.
É. Portugal está pronto para a saída limpa. Os portugueses que afocinhem.

A ver navios 20

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Devolveram o 25 de Abril ao remetente

Sim, Vasco Lourenço acha que o 25 de Abril é dele. E não é. É nosso. Mas a jovem reformada Assunção Esteves arranjou maneira de que, a partir de hoje, passe ainda a parecer mais que o 25 de Abril é de Vasco Lourenço. Porque as celebrações do Dia da Liberdade, em Lisboa, foram no Carmo e na António Maria Cardoso, e não na Assembleia da República a que o país de pele e osso já há muito voltou as costas. E pôs-se a jeito.
Quando convidou os capitães de Abril e a seguir lhes recusou o direito à palavra, Conceição Esteves não decidiu por ela nem pelo Parlamento nem por nós, limitou-se a seguir as orientações do partido, que queria umas comemorações fofinhas e sobretudo sem desconseguimentos. Mas deu a Vasco Lourenço um protagonismo ainda maior do que se calhar ele queria. Viram as multidões que o abraçaram há pouco na rua? Viram a seca que foi a sessão oficial em São Bento? Percebem onde foi hoje realmente o 25 de Abril?
Na sua imensa graça e falta de jeito, Assunção Esteves devolveu o 25 de Abril ao remetente. Por amor à camisola e sem querer, a presidente da Assembleia da República fez aparentemente justiça. O que é, registe-se, uma salutar espécie de conseguimento.

Vida de cães

Foto Hernâni Von Doellinger

25 de Abril

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo


Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Mudança... de cartaz

Foto Hernâni Von Doellinger

Hoje é 24 de Abril. E depois de amanhã também.

Foto Hernâni Von Doellinger

Portugal tem: quase três milhões de pobres, Aníbal Cavaco Silva, milhão e meio de desempregados, Pedro Passos Coelho e Paulo Portas, meio milhão de trabalhadores a salário mínimo, a troika, milhares de sem-abrigo, uma massa de ar frio que vem da Alemanha, velhos imprestáveis aos cinquenta anos, a jovem reformada Assunção Esteves, números "oficiais" que nunca desceram às ruas, Miguel Relvas outra vez, falta de memória, António José Seguro. 
Quer-se dizer: estamos fodidos.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Lugares-(in)comuns 72

Foto Hernâni Von Doellinger

Chamei comas às aspas, e estou muito arrependido

Por exemplo, as aspas. Toda a minha vida chamei aspas às aspas. Aspas é um nome com o seu quê de palerma, mas aceita-se, não ofende ninguém, nomeadamente as aspas propriamente ditas, que são a parte mais interessada.
Que se segue:
Ontem, não sei o que me passou pela cabeça, chamei comas às aspas num e-mail que mandei ao meu irmão. Palavra de honra, nunca me tinha acontecido e foi sinceramente sem intenção. Comas. Devo confessar que me senti um bocado badalhoco. Pedi desculpa ao meu irmão e peço publicamente desculpa às aspas. Propriamente ditas.

Lugares-(in)comuns 71

Foto Hernâni Von Doellinger

Valentín Paz-Andrade 2

Cando ti volvas

Na matricial Galiza sempre túa, 
que dende a Torre de Hércules ao Miño
un facho acenderá por cada illa,
cando ti volvas polo mare;
de toxo unha fogueira en cada monte,
cando ti volvas polo mare;
dos castros na coroa unha cachela,
cando ti volvas polo mare;
unha loura candea en cada pino,
cando ti volvas polo mare;
o seu cirio de frouma os alciprestes,
cando ti volvas polo mare;
luces de ardora branca en cada mastro,
cando ti volvas polo mare;
un farol mariñeiro en cada dorna,
cando ti volvas polo mare;
veliñas á xanela en cada casa,
cando ti volvas polo mare;
e as perolas das bagoas derramadas,
cando ti chegues polo mare,
cando ti chegues polo mare...

 "Pranto Matricial", Valentín Paz-Andrade

(Valentín Paz-Andrade nasceu no dia 23 de Abril de 1898. Morreu em 1987.)

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Pinto da Costa em casa de Jorge Mendes

16h50. Pinto da Costa sai da casa-forte do superagente de futebol Jorge Mendes, algures na zona da Foz rica, Porto com vista para o mar. Sai sozinho, ao volante do BMW presidencial. (Faltam três horas para o jogo com o Rio Ave e uma eternidade para o fim de uma época lastimável a todos os títulos - e o pior ainda poderá estar para vir.) Anda cerca de cinquenta metros, dá delicadamente a volta e regressa à mansão dos três milhões. Manobra de reconhecimento do terreno, só para confirmar que não há mouro na costa? Talvez. Os portões de Shangri-La abrem-se de novo, as câmaras de vigilância são mais que as mães e estão atentas. Lá dentro, de quem se terá "esquecido" o presidente do FC Porto?

(Ler mais em Pinto da Costa em casa de Jorge Mendes 2)

Hilda Hilst 2

A cantora gritante

Cantava tão bem
Subiam-lhe oitavas
Tantas tão claras
Na garganta alva
Que toda vizinhança
Passou a invejá-la.
(As mulheres, eu digo,
porque os maridos
às pampas excitados
de lhe ouvir os trinados,
a cada noite
em suas gordas consortes
enfiavam os bagos).
Curvadas, claudicantes
De xerecas inchadas
Maldizendo a sorte
Resolveram calar
A cantora gritante.
Certa noite... de muita escuridão
De lua negra e chuvas
Amarraram o jumento Fodão a um toco negro.
E pelos gorgomilos
Arrastaram também
A Garganta Alva
Pros baixios do bicho.
Petrificado
O jumento Fodão
Eternizou o nabo
Na garganta-tesão... aquela
Que cantava tão bem
Oitavas tão claras
Na garganta alva.

Moral da estória:

Se o teu canto é bonito,
Cuida que não seja um grito.

"Bufólicas", Hilda Hilst

(Hilda Hilst nasceu no dia 21 de Abril de 1930. Morreu em 2004.)

Vida de cão 39

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 20 de abril de 2014

Rosa Lobato de Faria 2

E de novo a armadilha dos abraços

E de novo a armadilha dos abraços.
E de novo o enredo das delícias.
O rouco da garganta, os pés descalços
a pele alucinada de carícias.
As preces, os segredos, as risadas
no altar esplendoroso das ofertas.
De novo beijo a beijo as madrugadas
de novo seio a seio as descobertas.
Alcandorada no teu corpo imenso
teço um colar de gritos e silêncios
a ecoar no som dos precipícios.
E tudo o que me dás eu te devolvo.
E fazemos de novo, sempre novo
o amor total dos deuses e dos bichos.


"Poemas Escolhidos e Dispersos", Rosa Lobato de Faria

(Rosa Lobato de Faria nasceu no dia 20 de Abril de 1932. Morreu em 2010.)

A ver navios 19

Foto Hernâni Von Doellinger

Augusto dos Anjos

Versos íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo amigo é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

"Eu", Augusto dos Anjos

(Augusto dos Anjos nasceu no dia 20 de Abril de 1884. Morreu em 1914.)

Lugares-(in)comuns 70

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 19 de abril de 2014

Lugares-(in)comuns 69

Foto Hernâni Von Doellinger

Manuel Bandeira 2

Água-forte

O preto no branco,
O pente na pele:
Pássaro espalmado
No céu quase branco.

Em meio do pente,
A concha bivalve
Num mar de escarlata.
Concha, rosa ou tâmara?

No escuro recesso,
As fontes da vida
A sangrar inúteis
Por duas feridas.

Tudo bem oculto
Sob as aparências
Da água-forte simples:
De face, de flanco,
O preto no branco.


"Lira dos Cinquent'anos", Manuel Bandeira

(Manuel Bandeira nasceu no dia 19 de Abril de 1886. Morreu em 1968.) 

Aqui há gato 3

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Feliz Pásçoa çom o çoiso

Diz que o José Çastelo Branço vai a Fafe, abrilhantar a noite de Pásçoa. Lamento. Diz que é uma "presença espeçial". Perçebo.

Título e cartaz retirados do blogue GAZETA DE REGADAS

Monteiro Lobato 2

Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma - "dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral", dizia o reverendo.
Ótima, a dona Inácia.
Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:

- Quem é a peste que está chorando aí?
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero.
- Cale a boca, diabo!
No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer...
Assim cresceu Negrinha - magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a idéia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta.
- Sentadinha aí, e bico, hein?


"Negrinha", Monteiro Lobato

(Monteiro Lobato nasceu no dia 18 de Abril de 1882. Morreu em 1948.)

Lugares-(in)comuns 68

Foto Hernâni Von Doellinger

Antero de Quental 2

À Virgem Santíssima

Num sonho todo feito de incerteza,
De nocturna e indizível ansiedade,
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza...

Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as há na natureza...

Um místico sofrer... uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira...

Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa...
E deixa-me sonhar a vida inteira!


"Sonetos Completos", Antero de Quental 

(Antero de Quental nasceu no dia 18 de Abril de 1842. Morreu em 1891.) 

Vida de cão 38

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Chamam-lhe Protocolo de Manchester

Aqui atrasado passei dois dias na Urgência de um dos nossos maiores hospitais públicos. Não por mim, nem feliz nem infelizmente. E fiquei com esta impressão, que preferi amadurecer até hoje: no caos em que "funciona", a Urgência é uma indignidade para os doentes, incluindo os que vão só para o lanche; é uma indignidade para os acompanhantes dos doentes, incluindo os mirones e outros estorvadores; é uma indignidade para as enfermeiras e para os enfermeiros que lá trabalham até à exaustão e sem rede; é uma indignidade para as médicas e para os médicos que fazem o que podem e sabem, espreitam cortinas à procura de uma cadeira vaga e parecem baratas tontas no meio daquele circo; é uma indignidade para o hospital (um dos nossos maiores, já disse), para Portugal e para a Humanidade. Uma indignidade e uma violência. Entre mortos e feridos, salvam-se as auxiliares, que cantam e dançam, contam telenovelas e anedotas umas às outras e ao público em geral, destratam toda a gente e mandam naquilo tudo.

Claro que não tem nada a ver (falecer acontece a qualquer um e em todo o lado), mas: um cirurgião morreu ontem, no Hospital de Aveiro, quando estava a operar um paciente.

Lugares-comuns 140

Foto Hernâni Von Doellinger

O Rapaz do 147


O jornalista Joaquim Queirós celebra 80 anos de vida lançando a sua autobiografia - "O Rapaz do 147". Acto público no próximo dia 21 de Abril (segunda-feira de Pascoela), pelas 18h15, no Salão Nobre dos Paços do Concelho de Matosinhos. Isabel Lago fará a apresentação da obra.
Matosinhense dos sete costados, Joaquim Queirós trabalhou no Jornal de Notícias e no Comércio do Porto, de que foi director. Fundou e dirigiu, durante dez anos, o trissemanário A Gazeta dos Desportos e, em 1993, fundou o jornal Matosinhos Hoje, considerado, em 1995, pelo Clube de Jornalistas de Lisboa, como o melhor jornal regional português. Recebeu o prémio de jornalismo Joaquim Alves Teixeira e foi distinguido pelo Governo com a Medalha de Mérito Desportivo pelo seu desempenho na área da comunicação social. Entre 1989 e 1993, foi vereador na Câmara Municipal de Matosinhos.

(Texto escrito e publicado no dia 5 de Abril de 2014)

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Vida de cão 37

Foto Hernâni Von Doellinger

José Geraldo Vieira

Taciturno e absorto, muito embora esteja bem junto de meu velho tio-avô - um desembargador aposentado -, viajo rente à janela do vagão D do trem noturno, no último banco do lado direito.
Em dado momento aproximo o punho a fim de ver as horas, e então percebo que os olhos dessa criatura compreensiva se fixam no quadrantezinho do relógio que emergiu de sob a manga do meu sobretudo. Estendo-lhe cortesmente o antebraço para que veja melhor, e oscilamos de comum acordo nossas cabeças. Meu tio agradece calado mas atento, depois olha para fora através da vidraça fazendo da minha testa alça de mira; e por fim se acomoda, enquanto isso por duas ou três vezes estudando o meu feitio.
Percebo que vai travar conversa outra vez, porque uma fusão de analogias decorrentes do relógio, da escuridão e da velocidade está a exigir dele um exerciciozinho verbal.
E, de fato. Torna a ajeitar-se, a olhar para fora, até que diz não sei se para mim ou se para ele mesmo, com o queixo preso entre o polegar e o indicador - atitude antiqüíssima, dos tempos ainda de quando juiz.
- Não, a noite não é isto só.

"A Ladeira da Memória", José Geraldo Vieira

(José Geraldo Vieira nasceu no dia 16 de Abril de 1897. Morreu em 1977.)

terça-feira, 15 de abril de 2014

Primaverão (com lixo e tudo)

Foto Hernâni Von Doellinger

Decapitemos, pois, as flores

Foto Hernâni Von Doellinger

Bem bonitas que estavam aquelas flores ali juntinho ao mar. Cortaram-nas ontem, mecanicamente, sem dó nem piedade. A ideia há-de ter sido de alguém muito inteligente na Câmara do Porto. Cidade com flores silvestres é desleixo. Cagalhões de cão é que está certo.

O Ataque aos Milionários


"O Ataque aos Milionários", novo livro do jornalista Pedro Jorge Castro, é apresentado hoje no Porto. Apresentação a cargo de Rui Moreira, presidente da Câmara, na Fnac Santa Catarina, pelas 18 horas.
Depois de "Salazar e os Milionários" (2009) e "O Inimigo n.º 1 de Salazar" (2010), Pedro Jorge Castro escreve agora sobre como as famílias mais ricas de Portugal - os Espírito Santo, os Mello ou os Champalimaud - foram afectadas pelo 25 de Abril de 1974. A obra tem por base cerca de trinta entrevistas e documentos, na sua maioria inéditos.

Lugares-(in)comuns 67

Foto Hernâni Von Doellinger

Fernando Namora 2

Do alto das furnas via-se o burgo dormindo; uma névoa de Primavera, fria, engelhava as casas e o arvoredo. Era dia santo, com feira no Salgueiral. Tinha de se partir cedo, dando tempo à mula para arrastar a velhice e vencer os solavancos do caminho, a subida da serra escalvada, onde a urze e os corvos vigiavam a solidão.
Ainda chegariam à vila com o nariz arroxeado da geada. Apetecia encostar a cabeça nos xailes e adormecer ao embalo penoso e lento do carro. O patrão segurava as rédeas com moleza, descaindo a cabeça a cada ressalto das rodas, olhar fixo na estrada, a pensar sabia-se lá em quê. Não se lhe arrancava uma palavra. Abílio levara oito dias a moê-lo com o aceno de uma boa feira no Salgueiral - e ele ouvia, ouvia de olhos e ouvidos ensonados, até que, repuxando o cinto à altura das virilhas, como nos momentos das decisões arriscadas, acedera:
- Vamos lá então.

"Casa da Malta", Fernando Namora

(Fernando Namora nasceu no dia 15 de Abril de 1919. Morreu em 1989.) 

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Vida de cão 36

Foto Hernâni Von Doellinger

Aluísio Azevedo 2

Mal os carapicus sentiram a aproximação dos rivais, um grito de alarma ecoou por toda a estalagem e o rolo dissolveu-se de improviso, sem que a desordem cessasse. Cada qual correu à casa, rapidamente, em busca do ferro, do pau e de tudo que servisse para resistir e para matar. Um só impulso os impelia a todos; já não havia ali brasileiros e portugueses, havia um só partido que ia ser atacado pelo partido contrário; os que se batiam ainda há pouco emprestavam armas uns aos outros, limpando com as costas das mãos o sangue das feridas. Agostinho, encostado ao lampião do meio do cortiço, cantava em altos berros uma coisa que lhe parecia responder à música bárbara que entoavam lá fora os inimigos; a mãe dera-lhe licença, a pedido dele, para pôr um cinto de Nenen, em que o pequeno enfiou a faca da cozinha. Um mulatinho franzino, que até aí não fora notado por ninguém no São Romão, postou-se defronte da entrada, de mãos limpas, à espera dos invasores; e todos tiveram confiança nele porque o ladrão, além de tudo, estava rindo.
Os cabeças-de-gato assomaram afinal ao portão. Uns cem homens, em que se não via a arma que traziam. Porfiro vinha na frente, a dançar, de braços abertos, bamboleando o corpo e dando rasteiras para que ninguém lhe estorvasse a entrada. Trazia o chapéu à ré, com um laço de fita amarela flutuando na copa.
- Aguenta! Aguenta! Faz frente! clamavam de dentro os carapicus.
E os outros, cantando o seu hino de guerra, entraram e aproximaram-se lentamente, a dançar como selvagens.
As navalhas traziam-nas abertas e escondidas na palma da mão.

"O Cortiço", Aluísio Azevedo

(Aluísio Azevedo nasceu no dia 14 de Abril de 1857. Morreu em 1913.) 

Aqui há gatos

Foto Hernâni Von Doellinger

Soeiro Pereira Gomes

Fecharam os telhais. Com os prenúncios de Outono, as primeiras chuvas encheram de frémitos o lodaçal negro dos esteiros, e o vento agreste abriu buracos nos trapos dos garotos, num arrepio de águas e de corpos. Também sobre os fornos e engenhos perpassou lufada desoladora, que não deixava o fumo erguer-se para o alto. Que indústria como aquela queria vento, é certo; mas sol também. Vento para enxugar e sol para calcinar - sentenciavam os mestres. Mas o sol andava baixo: não calcinava o tijolo, nem as carnes juvenis da malta.
Menos por isso que pela fraqueza das vendas, os patrões não quiseram arriscar mais dinheiro nas fornadas. - Ano mau... Todos os anos se dizia o mesmo. Desde que apareceu a telha francesa, e o bloco de cimento levou tudo de mal a pior.
- Indústria pobre, Sr. Castro - chorava-se Zé Vicente ao pagar a renda do terreno. - Indústria pobre...

E era. Desde os garotos maltrapilhos aos valadores que vinham de muito longe - sete horas de comboio, a sonhar jornas impossíveis. Por isso, agora, o dia 7 de Setembro passava despercebido, sem festa. Dantes, era sagrado. Recebia-se a féria, pagava-se os fiados de três meses e festejava-se a despedida. Os moços queimavam o resto das energias na ornamentação do telhal; arranjavam instrumental de latas e cegarregas; desfilavam em cortejo. E, enquanto o caniço verde dos esteiros ondulava no alto dos fornos, as canas secas dos foguetes subiam ao céu. Patrões e mestres sorriam, seguros da conciliação; moços e valadores cantavam, ansiosos de melhor vida.
Bons tempos, aqueles! Os mestres ainda berravam, como dantes: - Eh, gente! Vamos ligeiro, que esta fornada é o resto. - Mas a cadência dos passos não se alterava, porque o pessoal já sabia que ia pagar o descanso com sete meses de privações.
Assim ficaram as eiras desertas. Apenas no Telhal Grande havia ainda algumas dezenas de tijolos que o mestre mandara pôr em fio, por causa do tempo ruim. E, mesmo esses, depressa iriam engrossar as arrumas, bem cobertas de telha, e mais volumosas que quaisquer duas moradias da malta dos telhais.

Ali se guardava o suor de um Verão de fadigas. Vento e sol; fadigas e suor - era o que os telhais queriam.

"Esteiros", Soeiro Pereira Gomes

(Soeiro Pereira Gomes nasceu no dia 14 de Abril de 1909. Morreu em 1949.)

domingo, 13 de abril de 2014

O futebol, essa ciência

Foto Hernâni Von Doellinger

A "primeira fase de construção de jogo", por exemplo. Dá que pensar, não dá? Desde logo: com quantas fases se constrói o jogo? Com quatro, como as fases que constroem a Lua? Com três, como na electricidade? Por outro lado: há um "terço do terreno" específico onde a "primeira fase de construção de jogo" deva preferencialmente ocorrer para ser assim chamada? Ou, dito de outra forma: uma "fase de construção de jogo" efectuada no segundo ou no "último terço do terreno" é tão "fase de construção de jogo" como tendo acontecido no primeiro "terço", ou, assim avançados, já estaremos no campo da desconstrução de jogo? E a desconstrução de jogo, a propósito, tem também fases ou é mais atinadinha?

Foi mais um momento de inteligência e reflexão. No próximo programa vamos debruçar-nos sobre a intrigante problemática da "transição rápida". Para tentarmos perceber, nomeadamente: a partir de que momento uma "transição" deixa de ser "rápida" e passa a ser assim-assim?

sábado, 12 de abril de 2014

Capoeirando

                                                                                        Foto Hernâni Von Doellinger

Raul Pompeia

"Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta."
Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico, diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso. Lembramo-nos, entretanto, com saudade hipócrita, dos felizes tempos; como se a mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto, não nos houvesse perseguido outrora e não viesse de longe a enfiada das decepções que nos ultrajam.
Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores. Bem considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas. Feita a compensação dos desejos que variam, das aspirações que se transformam, alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica de esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração cambiante das horas, um pouco de ouro mais pela manhã, um pouco mais de púrpura ao crepúsculo - a paisagem é a mesma de cada lado beirando a estrada da vida.
Eu tinha onze anos.

"O Ateneu", Raul Pompeia

(Raul Pompeia nasceu no dia 12 de Abril de 1863. Morreu em 1895.)

sexta-feira, 11 de abril de 2014

E se fossem lamber sabão?

Foto Hernâni Von Doellinger

A rede de carros eléctricos da STCP resume-se a três linhas e chama-se, hoje em dia, Porto Tram City Tour, está-se logo a ver porquê: é produto para camones. A STCP informa que o PTCT "é um ex-líbris incontornável da cidade do Porto". Do Porto - como o célebre vinho. E decerto por isso é que o eléctrico da Linha 18, ou Linha da Restauração, exibe garbosamente as cores do irlandíssimo uísque Jameson.
Que fique registado - eu não tenho nada contra o uísque Jameson, antes pelo contrário. Aliás, se o uísque em geral não soubesse a sabão e se eu gostasse de uísque, era Jameson que beberia. E bebi durante algum tempo, por armanço puro e sem gelo.
Aqui há coisa de 25 anos estive lá, na Old Jameson Distillery, em Dublin, ou na The Jameson Experience Midleton, em Cork - isso é que já não sei precisar, porque os ares da Irlanda, pelo que percebi daquela vez, para além de fazerem muito mal ao fígado, também não são grande coisa para a memória. Mas quase que posso jurar que estive lá, e fiquei convencido. O Jameson foi o único uísque que alguma vez pedi pelo nome, mais que não fosse para ex-pli-car ao resto do balcão que eu... estive lá. Depois cheguei à idade de ganhar juízo, e ganhei. Aprendi o vinho.

Havia o sabão azul, o sabão rosa e o sabão amarelo. O sabão azul era o sabão macaco, para lavar roupa de barba rija, o sabão rosa já naquele tempo era para peças mais delicadas e o sabão amarelo era para lavar as escadas e os soalhos, que, em muitas casas, depois eram encerados. E havia também o sabão para lamber, que eu nunca soube de que cor era nem que sabor tinha, mas era o que a minha mãe me mandava fazer, Vai lamber sabão, quando eu andava à roda dela a arengar conversa sem assunto.

Posto isto, permito-me continuar inclinado a afirmar, aguardando porém comprovação laboratorial, que é com sabão de lamber que se faz uísque. Anda portanto meio mundo a lamber sabão, e era também ao que se deveriam dedicar as cabeças da STCP que têm a distinta lata de deixar colar publicidade a uísque num "ex-líbris incontornável da cidade do Porto". Do Porto - como o célebre vinho. Nem que fosse o Três Velhotes.

Aqui há gato 2

Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 8 de abril de 2014

Basílio da Gama

A Uma Senhora Natural do Rio de Janeiro, Onde se Achava Então o Autor

Já, Marfisa cruel, que não maltrata
Saber que usas comigo de cautelas,
Qu'inda te espero ver, por causa delas,
Arrependida de ter sido ingrata.

Com o tempo, que tudo desbarata,
Teus olhos deixarão de ser estrelas;
Verás murchar no rosto as faces belas,
E as tranças d'oiro converter-se em prata.

Pois se sabes que a tua formosura
Por força há de sofrer da idade os danos.
Por que me negas hoje esta ventura?

Guarda para seu tempo os desenganos,
Gozemo-nos agora, enquanto dura,
Já que dura tão pouco, a flor dos anos.

"Obras Poéticas", Basílio da Gama

(Basílio da Gama nasceu no dia 8 de Abril de 1741. Morreu em 1795.)

Vida de cão 35

Foto Hernâni Von Doellinger

Guiné-Bissau, Um País Adiado


O livro "Guiné-Bissau, Um País Adiado", com texto do jornalista Manuel Vitorino e fotografia do fotojornalista Hugo Delgado, é lançado depois de amanhã, quinta-feira, dia 10 de Abril, pelas 18h30, no Palacete dos Viscondes de Balsemão - Praça de Carlos Alberto, n.º 71, Porto.
A apresentação da obra estará a cargo de Adriano Bordalo e Sá, investigador do ICBAS-UP.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Gregório de Matos

Necessidades forçosas da natureza humana 

Descarto-me da tronga, que me chupa,
Corro por um conchego todo o mapa,
O ar da feia me arrebata a capa,
O gadanho da limpa até a garupa.

Busco uma freira, que me desentupa
A via, que o desuso às vezes tapa,
Topo-a, topando-a todo o bolo rapa,
Que as cartas lhe dão sempre com chalupa.

Que hei de fazer, se sou de boa cepa,
E na hora de ver repleta a tripa,
Darei por quem mo vase toda Europa?

Amigo, quem se alimpa da carepa,
Ou sofre uma muchacha, que o dissipa,
Ou faz da sua mão sua cachopa.


"Poemas Escolhidos", Gregório de Matos

(Gregório de Matos nasceu no dia 7 de Abril de 1636. Morreu em 1696.)

Aqui há gato

Foto Hernâni Von Doellinger

Almada Negreiros 2

Ode a Fernando Pessoa

Tu que tiveste o sonho de ser a voz de Portugal
tu foste de verdade a voz de Portugal
e não foste tu!
Foste de verdade, não de feito, a voz de Portugal.
De verdade, e de feito só não foste tu.
A Portugal, a voz vem-lhe sempre depois da idade
e tu quiseste acertar-lhe a voz com a idade
e aqui erraste tu,
não a tua voz de Portugal
não a idade que já era de hoje.
Tu foste apenas o teu sonho de ser a voz de Portugal
o teu sonho de ti
o teu sonho dos portugueses
só sonhado por ti.
Tu sonhaste a continuação do sonho português
somados todos os séculos de Portugal
somados todos os vários sonhos portugueses
tu sonhaste a decifração final
do sonho de Portugal
e a vida que desperta depois do sonho
a vida que o sonho predisse.
Tu tiveste o sonho de ser a voz de Portugal
tu foste de verdade a voz de Portugal
e não foste tu!
Tu ficaste para depois
E Portugal também.
Tu levaste empunhada no teu sonho 
a bandeira de Portugal
vertical
sem pender para nenhum lado
o que não é dado pra portugueses.
Ninguém viu em ti, Fernando,
senão a pessoa que leva uma bandeira
e sem a justificação de ter havido festa.
Nesta nossa querida terra onde ninguém a ninguém admira
e todos a determinados idolatram.
Foi substituído Portugal pelo nacionalismo
que é maneira de acabar com partidos
e de ficar talvez o partido de Portugal
mas não ainda talvez Portugal!
 
Portugal fica para depois
e os portugueses também
como tu.


Almada Negreiros

(Almada Negreiros nasceu no dia 7 de Abril de 1893. Morreu em 1970.)

domingo, 6 de abril de 2014

As chancas estão de volta (a 69 euros e cinquenta)

Foto Hernâni Von Doellinger

As chancas eram de pobres. E de choro e ranho em casa, ó mãe eu tenho vergonha de ir para a escola, quero uns sapatos como os outros meninos. Efectivamente, os meninos ricos tinham sapatos, botas e sandálias, consoante a estação do ano no tempo em que havia estações do ano, e os paizinhos dos meninos ricos, depois de razoavelmente gastos os sapatos, as botas e as sandálias, vendiam o calçado aos pais dos pobres. Vendiam. Na minha terra, os paizinhos dos meninos ricos eram muito ricos e muito da religião e da missinha e das procissões e vicentinos, mas vendiam - não davam. Vendiam. Se calhar por isso é que eram ricos. Quem dá aos pobres empresta a Deus, quem vende aos pobres é que se safa. Alguns safaram-se, amém.

Chancas é calçado de pau, valha-me Deus! E no entanto chancas era bom. Porque abaixo de chancas eram socos e abaixo de socos era descalço. Sim, descalço. Andava-se descalço no Portugal pré-25 de Abril, tal qual como agora nos querem. Não é suspeito que se tenham deitado ao lixo estes 40 anos certos?
Mas, perdi-me, era apenas para dizer isto: as chancas, exactamente como as galochas, estão na moda. Suponho que os netos, as netas, os bisnetos e as bisnetas dos ricos da minha terra correm todos a comprar chancas. Anacrónicos por maldição, os pobres da minha terra calçam sapatinho dirópito - e choram. E eu só me dá para rir.

sábado, 5 de abril de 2014

Lugares-(in)comuns 65

Foto Hernâni Von Doellinger

Carlos Queirós

Canção grata

Por tudo o que me deste:
                     - Inquietação, cuidado,
(Um pouco de ternura? É certo, mas tão pouco!)
Noites de insónia, pelas ruas, como um louco...
- Obrigado, obrigado!

Por aquela tão doce e tão breve ilusão,
(Embora nunca mais, depois que a vi desfeita,
Eu volte a ser quem fui), sem ironia: aceita
A minha gratidão!

Que bem me faz, agora, o mal que me fizeste!
- Mais forte, mais sereno, e livre, e descuidado...
Sem ironia, amor: - Obrigado, obrigado
Por tudo o que me deste!


"Obra Poética", Carlos Queirós

(Carlos Queirós nasceu no dia 5 de Abril de 1907. Morreu em 1949.)

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Lugares-(in)comuns 64

Foto Hernâni Von Doellinger

Olá, cá está ele outra vez. E sou obrigado a reconhecer: a coisa melhora de ano para ano. A versão Primavera/Verão 2014 - que me agrada particularmente - até já vem com o ® de marca registada e tudo. Um pormenor delicioso, como agora se diz, e que enriquece Matosinhos - suponho. Quem passa a vida nas redes sociais em vez de procurar emprego, como muito bem avisa a Senhora Dona Maria Isabel Torres Baptista Parreira Jonet, pode ler mais sobre o famoso Olá's Monument (assim é referido em todos os roteiros turísticos internacionais) aqui e aqui.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Se não visse, não acreditava. Vi ontem.

É impressionante a quantidade de gente que se junta à porta do IPO-Porto para... fumar. À porta do IPO. Para fumar. Impressionante.

Lugares-(in)comuns 63

Foto Hernâni Von Doellinger

Luís de Sttau Monteiro

Gonçalo entrara um dia, à hora do almoço, em casa do porteiro dum dos seus prédios. A família estava reunida em torno da mesa. A mãe e os filhos comiam batatas fritas e o pai o único bife. Fora-lhe impossível não comentar.
- Então a carne é toda para si, João?
A mulher saltara logo a defender a casa portuguesa:
- Carne é para quem trabalha, Sr. Doutor.
O porteiro passara a manhã sentado numa poltrona, no átrio do prédio, lendo O Século, enquanto a mulher varrera a escada, limpara a casa, cozinhara e olhara pelas crianças.
- Parece-me que a Maria é quem mais trabalha nesta casa...
O porteiro, de pé, com o guardanapo na mão, esclarecera a situação:
- O marido sou eu, Sr. Doutor.


"Angústia para o Jantar", Luís de Sttau Monteiro

(Luís de Sttau Monteiro nasceu no dia 3 de Abril de 1926. Morreu em 1993.)