Taciturno e absorto, muito embora esteja bem junto de meu velho tio-avô - um desembargador aposentado -, viajo rente à janela do vagão D do trem noturno, no último banco do lado direito.
Em dado momento aproximo o punho a fim de ver as horas, e então percebo que os olhos dessa criatura compreensiva se fixam no quadrantezinho do relógio que emergiu de sob a manga do meu sobretudo. Estendo-lhe cortesmente o antebraço para que veja melhor, e oscilamos de comum acordo nossas cabeças. Meu tio agradece calado mas atento, depois olha para fora através da vidraça fazendo da minha testa alça de mira; e por fim se acomoda, enquanto isso por duas ou três vezes estudando o meu feitio.
Percebo que vai travar conversa outra vez, porque uma fusão de analogias decorrentes do relógio, da escuridão e da velocidade está a exigir dele um exerciciozinho verbal.
E, de fato. Torna a ajeitar-se, a olhar para fora, até que diz não sei se para mim ou se para ele mesmo, com o queixo preso entre o polegar e o indicador - atitude antiqüíssima, dos tempos ainda de quando juiz.
- Não, a noite não é isto só.
"A Ladeira da Memória", José Geraldo Vieira
(José Geraldo Vieira nasceu no dia 16 de Abril de 1897. Morreu em 1977.)
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