quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Os colossos gostam de bacalhau frito

Desenho Nestinho

E daquela vez em que o Chico Varandas andou à pancada com o macaco do Homem Mais Forte do Mundo e a coisa só não acabou aos tiros porque o macaco não quis? Assim, palavra de honra. O desagradável episódio não veio nas notícias, porque ainda não havia CMTV, mas passou-se sem sombra de dúvida, porque eu estava lá, e podia ter sido uma tragédia, como dizem agora os jornalistas todos por tudo e por nada.

Vou contar. Eram as Festas da Vila, e as Festas da Vila, em Fafe, naquele tempo, eram de rebimba o malho. Acima de tudo a procissão, sim senhora, que ainda hoje é a alma da festa toda, mas à roda da procissão, um pouco mais abaixo, estava montada uma criteriosa programação cultural e artística que nos enchia de orgulho, só do bom e do melhor, bife de primeira, embora nós não víssemos nada porque as entradas eram a pagar e, posto que as festividades fossem realmente muito ricas, os fafenses eram geralmente muito pobres. E bife, mesmo de terceira, era raro.
Portanto naquele ano trouxeram-nos O Homem Mais Forte do Mundo. Não o Segundo ou o Terceiro Homem Mais Forte do Mundo, mas "O" Homem Mais Forte do Mundo, é preciso que se note. E era "O" não porque o nosso Homem tivesse ganho o título num campeonato contra esses mostrengos gordos que andam agora por aí a empurrar pneus de camião e a levantar tonéis, mas apenas porque sim. O Homem Mais Forte do Mundo levava muitos anos daquilo, era-o por usucapião. Louis Cyr, aliás falecido, que tivesse paciência...
O Homem Mais Forte do Mundo teria participado, porventura como figurante ou duplo, no filme "O Colosso de Rodes", um peplum de 1961 de Sergio Leone que por acaso eu vi no nosso Cinema. Nas montras da vila havia cartazes daqueles como os do circo que atestavam o desempenho digno de Óscar, e contra isso nada. Nos reclames, O Homem Mais Forte do Mundo era O Colosso de Rodes. E que se segue? Ao Homem Mais Forte de Mundo, o povo foi. Era no estádio, só podia ser no estádio para tamanha empreitada, e a bancada encheu. Mais meio ano sem bife, que se foda...
Estão a ver Hércules? Estou a ver Dwayne Johnson? Era exactamente assim O Homem Mais Forte do Mundo quando entrou em campo, mas em baixinho. Ou por outra, O Colosso de Rodes apresentou-se em Fafe bem constituído, musculado e seco, bronzeado, quem sou eu para afirmar o contrário, mas confesso que defraudou as minhas acho que justificadas expectativas no que diz respeito a colosso. E também me pareceu um bocadinho fora de prazo aquele senhor de barbas bíblicas, grisalhas e crespas, como se O Homem Mais Forte do Mundo fosse mesmo Sansão, mas reformado e apenas das orelhas para baixo.
E deslumbrou. Apareceu vestido, ou despido, como um gladiador romano, quiçá herói ateniense ou troiano. A publicidade dizia que O Homem Mais Forte do Mundo era grego. E ele trazia as bandeiras de Portugal e da Grécia. E dirigiu-se ao público em delírio numa língua estranha, para mim era grego, referindo "Portogalía" a uma certa altura, o que só demonstra que fez os trabalho de casa, sabia muito bem onde estava, em Fafe, ali a dois passos do Picotalho e de Portugal, que era do que ele certamente falava, do nosso Largo de Portugal, ou Platýs de Portogalía, como eles dizem lá na terra deles. Ficou-lhe bem, mostrou educação e conhecimento, e o público em delírio adorou.
O resto da tarde foi O Homem Mais Forte do Mundo a ser O Homem Mais Forte do Mundo. Isto é, a levantar uma dúzia de pessoas penduradas numa barra de ferro, a vergar a barra de ferro propriamente dita, a içar pesos com os dentes, a segurar duas camionetas, uma de cada lado e ele no meio, inteiriço e como o aço, e as rodas dos veículos comprovadamente pesados sem sequer saírem do sítio, acelerando em seco no saibro do campo de futebol, levantando pó, gravilha e aplausos. E que mais? Ah!, e a pedir que lhe partissem um bloco de granito, à marretada, em cima da barriga. E partiram. Para mim, esta parte foi a cereja em cima do bolo. A pedra era realmente enorme e verdadeira, contrastada, confirmou-mo o meu tio Zé de Basto, pedreiro de mão cheia, que foi quem me levou ao espectáculo que, aviso já, esteve quase a não acontecer. E as marretas também eram a sério, pesadas e maciças, via-se à vista desarmada e o meu tio disse que sim. Para terem uma ideia do perigo implicado neste número, basta referir que foi preciso colocar um pano de cozinha entre o pedregulho e a barriga do artista, não fosse o artista esfolar-se um bocadinho numa lasca ou algo assim...

Ora bem. O Homem Mais Forte do Mundo deslocava-se numa carrinha de caixa aberta por acaso bastante velha. Não vou dizer que foi nestes preparos que O Colosso de Rodes veio da Grécia, ou de Rio Tinto ou de Vila Franca de Xira, que é de onde vêm geralmente os artistas de circo estrangeiros, não estou informado a esse propósito nem quero levantar falsos testemunhos, posso é garantir que nesse preciso dia, horas antes da função, que aliás foi um sucesso, como se viu ali atrás, o referido veículo estacionou no Santo Velho, ao lado do Zé Manco, no sítio onde costumava estabelecer-se a Mocha mailas suas sardinhas amestradas, mas admito que O Homem Mais Forte do Mundo tenha ida em frente, ao Paredes, comer uma posta de bacalhau frito pelas mãos abençoadas da Dolorzinhas, seria mais razoável. E acrescento: a carrinha tinha matrícula portuguesa e na caixa aberta viajava um macaco, um macaco pequeno e irrequieto como os macacos, preso por uma corrente ao pescoço.
Estava tudo a correr bem, isto é, não se estava a passar nada, quando chegou o Chico Varandas, meu querido vizinho, uma jóia de pessoa, e, como acontecia regularmente, vinha contentico, digo bem, contentico, com a sua pinguinha. E, boa alma que era, foi fazer festas ao macaco.
Aqui, a verdade é só uma. O macaco do Homem Mais Forte do Mundo podia ser o Macaco Mais Forte do Mundo, mas não se sabia, e, se se sabia, o Chiquinho não fez caso dessa prudente suposição. E quilhou-se bem quilhado. Fez festas ao macaco e o macaco fez-lhe festas a ele, isto é, rabunhou-lhe a cara e, pior do que isso, rasgou-lhe o bolso da camisa praticamente nova e salpicada de sangue.
O Chiquinho começou a discutir com o macaco, que eventualmente só percebia grego, foi preciso vir o chofer da carrinha, que fazia a tradução e era também manager do Homem Mais Forte do Mundo, o Chiquinho jurou matar o macaco ali mesmo, foi a casa buscar a Kalashnikov, apareceu com a pressão de ar, "Ai que te mato! Ai que te mato, meu macaco!", palavras não eram ditas, ainda estava o Chico a rematar o ultimo ponto de exclamação e já O Homem Mais Forte do Mundo saía do Paredes a escabichar os dentes, que fariam parte do programa, como se viu acima, "Ai que te desgraças, Chico, ai que te desgraças, deixa-te de macacadas, vai mas é embora que o gajo é O Homem Mais Forte do Mundo e ainda te enfia a espingarda pelo cu acima!", disse não sei quem da nossa rua, e o Chiquinho deixou-se e foi-se, não por medo mas porque era, eu já disse, uma jóia de pessoa, uma boa alma e, por norma, muito bem mandado.
E foi a nossa sorte.

P.S. - Desenho e texto publicados originalmente no meu blogue Fafismos.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Um tubarão na sopa

O título tinha tudo para ser um bom título, tirando o facto de ser um título de merda. Dizia o jornal de referência: "Vale mais um tubarão no mar do que na sopa". Um tubarão na sopa? Um tubarão? Com cabeça e tudo? Ou a cabeça é para cozer à parte, com grão? Desculpem-me meter o bedelho, mas chamar a mosca ao assunto não seria mais credível? Quero eu dizer: mais vale uma mosca no ar do que na sopa. Isto é que está certo, ou não? É que os nossos pratos, ainda que peguemos nos sopeiros, são muito pequeninos. E cada vez mais. Por causa dos tubarões - os outros.

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Tubarão-Baleia. Bom proveito!

Já fica para o ano...

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Pó menino e pá menina...

"Pá comida!", escreveu o jovem escultor de areia na caixinha de cartão estrategicamente colocada junto à sua mais recente criação e já com quatro ou cinco moedas pré-depositadas. "Pó caralho!", dizia um papelinho que lá foi enfiado pouco depois não sei por quem.

Espreitadores de marés, navegadores de areias

Foto Hernâni Von Doellinger

O mais alto magistrado

De acordo com a constituição, o mais alto magistrado da nação deve medir para cima de 1,73 m, considerada a altura média dos portugueses homens. Se o mais alto magistrado da nação for por acaso uma mais alta magistrada da nação, então basta medir para cima de 1,62 m, considerada a altura média das portuguesas mulheres. Luís Marques Mendes, que é homem do sexo masculino, mede 1,61 m calçado e, há quem diga e quem me dera, aspira à presidência da república. Nesse caso, eu sou por ele, e só por ele. Aproveitando a maré política, defendo até, a este propósito, uma revisão constitucional por medida. Uma revisãozinha, vá lá. Coisa de doze ou treze centímetros...

E agora a sério. À séria, se improvavelmente lido em Lisboa. O textinho acima, publiquei-o aqui no  Tarrenego! no dia 18 de Maio de 2022, sob o título "Revisãozinha constitucional", e republiquei-o no meu outro blogue, Fafismos, no dia 27 de Novembro de 2022, sob o título "Uma cunha por Luís Marques Mendes". Ora bem. Na sua habitual homilia dominical, na televisão SIC, o ex-presidente do PSD admitiu ontem uma candidatura presidencial "se vir que tem alguma utilidade para o país e um mínimo de condições para se concretizar". Nada mais natural. Luís Marques Mendes há muito que faz o caminho. A presença televisiva, o comentário moderado, a bonomia na crítica, a abrangência de valores, fazem parte. A ida, outro dia, à Festa do Pontal foi mais um passo e a declaração de ontem foram dois. Ontem, tudo muito bem combinado, foi para fazer reserva, para marcar posição. Para mim, grande surpresa será se Luís Marques Mendes não se candidatar a Belém, para suceder a Marcelo, o comentador anterior. Surpresa e desilusão. E também um desperdício. Pelo menos do meu voto, que, então, provavelmente não irá para mais ninguém. Em Fafe, não vejo quem mais possa ser...

Sol na eira e chuva no nabal

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Excelentíssimos senhores jogadores de futebol

Foto enviada por Adelino Teixeira, ex-jogador da AD Fafe

Esta fotografia, esta extraordinária fotografia que o Adelino Teixeira fez o favor de enviar-me, vai dar-nos pano para mangas. Voltará aqui certamente mais vezes para ser dissecada até à exaustão, porque ela bem o merece, mas por hoje foco-me apenas na primeira coisa racional que me veio à cabeça logo que me passou a emoção de a ter recebido. "Olha-me estes tipos! Olha-me que categoria! Que classe!", pensei, sem me ter apercebido de que tinha falado alto, e a minha mulher acudiu aflita a ver o que era e concordou logo comigo, que nem é a sua especialidade.
Este é um documento de 1966 e apresenta a comitiva da AD Fafe posando nas escadarias de Santa Luzia certamente antes de um jogo contra o Vianense que acabaríamos por perder por 5-0, mas esta última parte não interessa para nada. O Adelino, que consta no retrato, atrás do Gil Lobo e do Costa, quis que eu tivesse finalmente um registo do Nelinho, como era meu desejo antigo, fez-me a gentileza e o grande Nelinho cá está na primeira fila, com o Dr. Marques Mendes, o Barrinhos e o Zeca Barros.
No pólo oposto, lá em cima, ainda dá para reconhecer o menino Berto Dantas na galhofa com o João Americano, realmente um pândego que se ouvia a quilómetros, tanto que até foi para o Riopele. E o Toneca. O Toneca, com quem tive a honra de acamaradar anos mais tarde numas belas saltadas à Pica para despacharmos numa fervurinha dois ou três quartilhos de tinto. O Toneca tomava conta da piscina e eu, moço de 21 ou 22, fazia a secretaria do Fafe. Fechávamos portas e lá íamos de motorizada com aqueles capacetes de plástico cómicos e irrelevantes enfiados na cabeça, o velho Toneca à frente e eu atrás, agarrado a ele. Era ir num pé e vir no outro. Mas isso já é outra história e por acaso dá-me saudades...
A fotografia, que é o que aqui interessa. A fotografia e os jogadores de futebol. Que conjunto perfeito! Um grupo onde nem faltam o motorista da Mondinense nem, espero estar a ver bem, o bom do Silvino, todo tirone. Num tempo em que não havia "fatos oficiais", em que os jogadores corriam por gosto, num amadorismo quase perfeito, assim se apresentavam, asseados por conta própria, os formidáveis representantes da AD Fafe, da vila e do concelho de Fafe, em última instância, por esse país fora. Não me lembrava disto assim, juro. Reparem na magnífica planta destes jovens! Que aprumo! Que pinta! Todos eles, a equipa completa, sem excepção, mas permitam-me que volte ao Costa, porque sobressai. O Costa, que toda a vida foi um homem elegante, em todos os sentidos, olhem bem para ele, é o primeiro da direita de quem vê na segunda fila, façam o favor de notar a presença, apreciem a pose - parece um modelo de catálogo, um artista de cinema. Tomaram muitos...

P.S. - Foto e texto publicados originalmente no meu blogue Fafismos.

Com sabor a ketchup

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Brothers in arms

Já restavam poucos, cada vez menos, mas juntavam-se ano após ano, vindos do país inteiro: o Aguiar da Beira, o Ferreira do Alentejo, o Vieira do Minho, o Miranda do Douro, o Castanheira do Ribatejo, o Costa da Caparica, o Nogueira da Maia, o Oliveira de Azeméis, o Vale de Cambra, o Canas de Senhorim, o Leça da Palmeira, o Figueira de Castelo Rodrigo, o Freixo de Numão, o Sobral de Monte Agraço, o Lajes do Pico, o Santiago do Cacém, o Vila Nova de Cerveira e o Antunes de Pevidém, que nem sequer foi à tropa e ninguém sabe como é que começou a aparecer...

P.S. - Hoje é Dia do Soldado. No Brasil.

Crédito malparado

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Ia-se ao Largo ver os retratos

Houve um tempo em que as fotografias eram tiradas por fotógrafos. Fotógrafos profissionais, competentes, conhecedores, eficazes regra geral, artistas às vezes. Por outro lado, nesse tempo ainda não havia telemóveis e portanto, quando era preciso falar com alguém que não estivesse presente, ligava-se da máquina fotográfica, nada mais simples. Os antigos sabiam tudo e antigamente é que era, estou farto de dizer. Naquele tempo tínhamos dois fotógrafos e nevava em Fafe. Não era preciso ir mais longe. Em Fafe, mesmo no centro da vila. Não era necessário alongar vistas para os cumes da Lameira ou da Lagoa e sonhar modestas aventuras impossíveis. Era ali nas nossas mãos, aos nossos pés, a realidade. O nosso Santo Velho pintava-se de branco, contavam-se os centímetros de altura do "nevão", faziam-se bonecos, pelo menos boneco, com nariz de cenoura e tudo, declaravam-se guerras de bolas de neve, ensaiavam-se trambolhões de criar bicho, chorar era proibido, ou levávamos no focinho.
Os campos nas traseiras da nossa casa, onde hoje está o Pavilhão Municipal, encontravam-se de vago e enchiam-se de moçarada brincalhona e apressada, porque a neve era efémera e sabia-se lá quantos anos depois estaríamos outra vez à espera que ela tornasse. Lembro-me de uma ocasião, um acontecimento: o Foto Victor com os filhos a fazerem uma festa tremenda, e o Foto Victor a tirar retratos atrás de retratos, fotografias sorrateiramente alpinas que depois expôs, algumas, nas montras da loja em frente aos Correios. Foi um sucesso.
Fafe também tinha disto, nomes assim, esdrúxulos. O Sr. Victor era fotógrafo com porta aberta e o estabelecimento chamava-se Foto Victor. Portanto o Sr. Victor passou a chamar-se Foto Victor. Aliás, como o Foto Jóia, mas este no Largo, à beira do Talho, do Romeu e do Fernando da Sede. Foto Jóia era simultaneamente o nome do "estúdio" e do seu proprietário. "Vem aí o Foto Jóia!", dizia-se, e era a coisa mais natural do mundo.
Curiosamente, nunca apanhei o Foto Jóia no meio da neve, mas lembro-me de que foi ele quem me fez as fotografias para o meu primeiro bilhete de identidade, que era preciso para irmos para França ter com o nosso pai, mas acabámos por não ir, porque o nosso pai morreu no Natal antes da viagem programada e a minha vida deu então esta volta que é assim.
As lojas dos dois fotógrafos, os seus escaparates, eram locais sagrados de peregrinação na vila de antanho. Aos finais de tarde ou no fim-de-semana, era à pinha. Era famoso o átrio do Foto Jóia. Ali se ficava a saber quem casou, os padrinhos e convidados, quem baptizou, os padrinhos e convidados, quem tirou retrato novo mais ou menos atiradiço sabe-se lá com que fim, amiúde para mandar para a guerra. Ali se revelavam namoros a estrear, paulnewmans de trazer por casa, misses que nunca seriam. As bodas de ouro, as juras de amor, o fato feito por medida, o carro na rodagem, a filha recém-doutora, a vida dos outros ali escarrapachada atrás do vidro impenetrável, na arte exigente e discreta do preto e branco ou no exagero quase pornográfico da cor, novidade em folha. A vida retocada à mão, porque o photoshop ainda não tinha sido inventado. Era. Ainda faltavam muitos anos para a javardice dos reality shows e para os despudores de todos os facebooks, mas não estávamos mal servidos...
Havia uma certa rivalidade entre o Foto Victor e o Foto Jóia, e, estranhamente, também entre as respectivas clientelas, coisa sem sentido, nós éramos Foto Jóia!, mas Fafe tinha essa mania de ser terra de antagonismos pascácios, com os dois grupos de futebol - o Sporting Clube de Fafe e o Futebol Clube de Fafe -, que já não são do meu tempo, com as duas bandas de música - Revelhe e Golães -, que persistem, com a Escola Industrial e o Colégio, com o PS de Fafe pim e o PS de Fafe pam e o PS de Fafe pum, isso para além da Rua de Baixo e da Ponte de Ranha, que de vez em quando também faziam faísca e, noblesse oblige, andavam à coiada. Uma coisa é certa, porém: Foto Jóia e Foto Victor frequentavam ambos o Nacor, o que, já agora, só lhes abona a respeito, e não me consta que haja notícia de confrontos ou baixas a registar.

Quem foi à feira, perdeu a cadeira

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 20 de agosto de 2023

O Febras levava tudo à frente

O Febras, o Armando Febras de Fafe, guiava um velho camião geralmente cheio de areia e era a única pessoa que eu conhecia que "fez a guerra" em Timor, se não me engano. Diga-se, para princípio de conversa, que o Febras era um tipo porreiro, bom amigo, e tinha uma grande pancada naquele tempo. Uma vez falhou a gasolina em Fafe e no resto do País, segundo as notícias, e os carros faziam longas filas que davam duas ou três voltas ao Largo para abastecer. Os condutores desligavam os carros, saíam e empurravam a respectiva viatura consoante a fila ia avançando a conta-gotas. O Febras tinha o camião apontado àquelas bombas muito bem estabelecidas ali entre o Monumento e o Martins da Avenida e não largava o volante, até porque lhe faltava disposição para descer e levar o veículo pelas orelhas. Aquilo era preciso madrugar para garantir um bom lugar na fila, havia até quem fosse para lá de véspera, portanto é bom de ver que pelo meio da manhã já estava tudo com os nervos em frangalhos. E o que é que acontece? Assim que tal, a fila anda um bocadinho, metro, metro e meio, mas o carro imediatamente à frente do Febras nem se mexe. O Febras buzina. E o carro, nada. O Febras torna a buzinar. E o condutor do carro faz aquele sinal internacional descrito no código da estrada como "passa por cima". E o Febras arranca. Evidentemente não passa por cima do carro, isso só ocorre nos filmes americanos, mas leva-o à frente, empurra-o de zorra, um metro, metro e meio. O Febras sai então do camião, disposto à pancadaria, a polícia, que rondava por ali, faz de conta que intervém para evitar males maiores, mas nem toma conta da ocorrência, e fica tudo em águas de bacalhau, porque, lá está, era o Febras, e o que é que se havia de fazer?...

Curiosamente, anos mais tarde, o Armando Febras viria a ser agente da autoridade local e parece que ainda emigrou para a América, onde não sei se realmente chegou a passar por cima de automóveis. Mas antes disso, em Abril de 1977, ele fez parte de um extravagante grupo de fafenses que foi a Lisboa de camioneta para apoiar a AD Fafe no famoso jogo com a CUF para a Taça de Portugal. Desse bando, que viveu uma noite maluca pelas ruas do Bairro Alto, com a polícia atrás e tudo, constavam também, entre outros, o meu irmão Pimenta, que certamente organizara a excursão, o Machadinho e o Manel Caixeiro maila sua inseparável pistola. Eu não podia faltar, mas era o mais novo e inocente de todos, posso talvez dizê-lo. Esta parte da história fica, porém, para outra vez.
Quero contar é do amigo do Febras que veio ter connosco ao Campo das Cebolas, que era o sítio onde as camionetas das excursões pernoitavam. Um velho camarada de armas do Armando e a segunda pessoa que eu conheci que "fez a guerra" em Timor, se não estou em erro. Falava com cerrado sotaque lisboeta, alfacinha, malandro, gingão, "gajas" acima, "gajas" abaixo, tinha ouro ao pescoço, anéis, camisa havaiana, botas de cobói, navalha de ponta e mola e um suspeitíssimo Ford Capri que fazia piões de porta aberta.
Isso. Piões de porta aberta. Tantos, tão apertados e a tal velocidade, que no decurso de um deles o indivíduo saiu disparado do automóvel, caiu violentamente no chão, bateu com a cabeça, levantou-se de imediato como uma mola, num improvável pulo de kung fu, soltou um grito de guerra, sacudiu o pó da roupa, entrou no carro, que continuava a andar em círculo, fechou a porta e arrancou a todo o gás em direcção ao sol poente.
E eu passei a compreender muito melhor o Armando Febras.

Na pole position

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

O Animal e os animais

Foto Hernâni Von Doellinger

O cidadão Fernando Alves. O Animal, chamam-lhe, ou o Emplastro, que, segundo o Expresso em 2008, foi contratado pelas agências turísticas para acompanhar os passeios pelo menos bêbados de mais de 15 mil finalistas universitários portugueses a Espanha. Quinze mil doutores, em dinheiro de hoje em dia. O extraordinário Emplastro que até foi ao Herman SIC e teve direito a dentes novos, dados por um desinteresseiro benemérito.
O campeonato de futebol está aí outra vez, o fabrico de chouriços em directo na TV também, e o nosso Fernando apresentou-se ao serviço. A televisão sem ele é uma seca, e com ele também, mas o Fernando tem pinta. Tudo voltou, portanto, ao normal. O pior é o defeso. No defeso, como o próprio nome indica, ninguém quer saber se o Fernando é filho do Pinto da Costa ou do Luís Filipe Vieira, ou pai do Frederico Varandas ou sócio do António Salvador, e então o que é que se passa? Isto: o Emplastro monta base à porta de um restaurante de Matosinhos, não sei se convidado ou somente tolerado pela gerência, e abrilhanta, à saída, copos de brutos, hic!, quero dizer, fotos de grupos, gente bem. Nos intervalos das suas pertinentes intervenções (faz cara de Emplastro, só lhe pedem isso), o Fernando deita-se na soleira da porta ao lado e então faz papel de famélico de Calcutá, o que lhe fica um bocado mal, estando ele gordo como um chino. E pede, se vê uma máquina fotográfica, "Uma moedinha, é para comer, é para comer..." - o número do costume. Não sei quem é que actualmente lhe está a cuidar da imagem e da carreira, o superagente Jorge Mendes não é de certeza, mas há ali qualquer coisa que não bate certo. Eu sei, já disse, é no defeso, mas isso não explica tudo.
O Fernando fez-se Emplastro a pulso, porque não é tolo nenhum - ao contrário do que muitas pessoas possam pensar -, mas também deu jeito a certas e determinadas televisões que ele fosse assim. E aos jornais. E às revistas. Pois se até o "entrevistavam" e lhe fizeram o "perfil"! Por outro lado, também já mete nojo, não é? Às tantas ainda o mandam para a Arábia Saudita.
Posso dar um palpite? Posso e é o seguinte: ninguém vai querer saber do Emplastro, quando o Fernando estiver deitado na soleira e for a sério (à séria, se lido em Lisboa). Quem ousará sobressaltar-se quando o Animal for realmente abandonado?...

Aquela altura do ano

Meados de Agosto de 2015. "Cão deixado no lixo dentro de um saco gera onda de solidariedade em Vila Real", anunciava o jornal Público, em título fim-de-semaneiro. E acrescentava: "Plataforma Proanimal alerta que nesta altura do ano há mais animais abandonados e menos pessoas disponíveis para os acolher." Meados de Julho de 2023 e insiste o público, que nisto não brinca em serviço: "O Verão é, cada vez mais, sinónimo de abandono animal." Verdade como punho, ontem como hoje. Embora não gere nenhuma "onda de solidariedade", está curiosamente a acontecer o mesmo com os velhos e com os recém-nascidos, por assim dizer, humanos - cada vez mais abandonados e com cada vez menos pessoas disponíveis para os acolher, e então no Verão morrem como tordos, não sei se será do tempo. É. Vivemos realmente uma "altura do ano" filhadaputa. Mas os cãezinhos, Senhor...

P.S. - "Portugueses já gastam mais com cães do que com bebés", dizia a capa do semanário Expresso, em Outubro de 2011. Hoje é Dia Internacional do Animal Abandonado. O abandono de animais é considerado crime, o abandono de pessoas às vezes também. E está certo.

terça-feira, 15 de agosto de 2023

A tona

Perguntam-me: mas afinal o que quer dizer tona? E eu respondo: tona quer dizer pele ou casca de fruto, sobretudo laranja se for em Fafe. Tona é uma camada fina, película, é rolha tipo batoque, ave do Brasil e embarcação de transporte goense. É a superfície, mergulha-se e vem-se à tona, é o sítio da verdade que se descobre como azeite sobre a água. Tona é também a mulher do Tono.

Uma ponte para a eternidade

Foto Ana Luísa Alvim, CML


Na sua infinita insensatez, o presidente da Câmara de Lisboa resolveu baptizar a inefável ponte com o nome do cardeal Manuel Clemente, enfiando-lhe na toponímia ó meu deus o Dom e tudo. Inebriado decerto pelos vapores ainda quentinhos do que meio país atira à cara do outro meio país como tendo sido o extraordinário sucesso da Jornada Mundial da Juventude, Carlos Moedas estendeu-se ao comprido entre a capital e Loures, exactamente sobre o Trancão, arrastando desnecessariamente para a lama a graça do patriarca emérito, já enterrado em lixo até às orelhas mas por razões de força maior.
Moedas perdeu a noção por momentos, esqueceu-se da agenda, obliterou-se da realidade, entaramelou-se-lhe o entendimento, pedofilia deve ter-se-lhe confundido com columbofilia, encobrimentos soou-lhe a descobrimentos, Moedas, o presidente-padrão, perdeu de repente os sentidos, sobretudo o sentido de oportunidade, só pode ter sido, uma corrente de ar.
O meio país que atira à cara do outro meio país o extravagante desastre que terá sido a Jornada Mundial da Juventude levantou-se em armas contra a aleivosia monetária. Isto é, contra o heresia de Moedas, dar uma ponte a um homem que nunca viu abusos sexuais dentro da Igreja portuguesa, e se viu foi só um bocadinho, e portanto nada digno de registo. Um país levantar-se em armas, hoje em dia, quer dizer as alegadas pessoas irem para as chamadas redes sociais dizerem mal uma das outras, se possível insultarem-se e agredirem-se. Em nome da indignação. É assim que as nações se resolvem modernamente, muito em breve dispensaremos eleições. E as alegadas pessoas das chamadas redes sociais foram inclementes a respeito da ponte. Porque a questão era a ponte, não era?
Clemente desta vez percebeu, e, embora ainda outro dia tenha agradecida "a generosidade" da inesperada prenda autárquica, acabou por desistir e afinal já não quer a ponte para nada. Ficou tudo em águas de bacalhau. E Carlos Moedas mandou dar o caso por "encerrado" e fez saber, urbi et orbi, que depois do dia santo de ontem, vai à procura de um nome novo e inatacável, desta vez é que há-de ser.
Que tolo outra vez, o presidente da Câmara de Lisboa. Ele ainda não percebeu que a ponte já tem nome, e a culpa é só dele, Carlos Moedas, e não havia necessidade. A ponte ciclopedonal sobre o rio Trancão, entre Lisboa e Loures, chama-se Ponte Anti-Cardeal Dom Manuel Clemente em Memória de Todas as Vítimas de Pedofilia e de Outros Abusos Sexuais na Igreja Portuguesa Contra a Omissão o Encobrimento e o Esquecimento. Para todos os efeitos e para toda a eternidade.

Por outro lado. Já se terminava com os "balanços" sobre a Jornada Mundial da Juventude, não lhes parece? Toda a gente tem "O balanço que faltava", diariamente uns atrás dos outros, e já lá vão quase quinze dias desde que a coisa encerrou. De repente, em Portugal, o país inteiro é doutorado em Deus, Teologia, Fé, Religião, Igreja, Ateísmo, Agnosticismo, Indiferentismo, Laicidade, Beatismo, Concordata, Desconcordata, Clericalismo, Anticlericalismo, até parece que falamos de futebol, uns amém e outros contrém, morra o Papa, viva o Papa! E no DN, pairando sobre tudo e sobre todos, Fernanda Câncio e a Verdade.

domingo, 13 de agosto de 2023

Antigamente era por épocas

"Notícia em França: Mbappé pondera renovar com o PSG por duas razões", anuncia o jornal desportivo O Jogo, como se estivesse a revelar a invenção da pólvora, e não anda muito longe. Antigamente, creio que ainda há coisa de um ou dois dias, os jogadores de futebol renovavam por épocas.

sábado, 12 de agosto de 2023

A vida não é só bacalhau. Mas podia ser!

Américo Tomás, o Culto, costumava dizer de improviso, mal iniciava uma das suas benfazejas visitas às sucessivas terras de Portugal: - Esta é a primeira vez que estou cá, desde a última vez que cá estive...
Pois bem. Creio que este também é o primeiro fim-de-semana, depois dos dois últimos fins-de semana, em que eu não escrevo sobre bacalhau. Isso, bacalhau. E não escrevo sobre bacalhau, embora ontem tenhamos ido comer mais uma vez o melhor bacalhau assado na brasa do mundo aí a um sítio, mas não escrevo sobre bacalhau, dizia eu, porque recebi certas e determinadas críticas alegando que estou sempre a falar de bacalhau e que tanto bacalhau até enjoa e que há mais vida para além do bacalhau e não sei que mais...
A crítica é livre e serve geralmente para limpar o cu, mas devo dizer que o meu sogro tinha uma máxima a respeito de bacalhau que talvez não seja de deitar fora. O meu sogro, que faria 93 anos na passada sexta-feira se não me tivesse morrido nos braços num fim de tarde do fim de Novembro de 2015, declarava, na sua infinita simplicidade: - Se me derem bacalhau todos os dias, para mim está muito bem e até agradeço.
E o meu sogro só sabia de meia dúzia das mil e uma maneiras de cozinhar bacalhau. Mas não era esquisito, estava servido. E ontem fez-nos falta à mesa.
Já a minha sogra, que vai a caminho dos 92 e continua sem razões de queixa do apetite, tem um visão mais ampla do universo, outra sabedoria. E defende que a vida é composta por três qualidades. Costuma filosofar, aliás, a esse propósito: - Nem sempre carne e nem sempre peixe. De vez em quando também é preciso comer um bocadinho de bacalhau.
Exactamente. Carne, peixe e bacalhau, as três espécies sobreviventes após a liquidação dos dinossauros. A minha sogra, que nunca na vida deixou o meu sogro ter razão, é que está certa. Este mundo não é só bacalhau. Ainda por cima ao preço a que ele está.

Seja como for, já disse, sobre bacalhau, hoje, da minha boca, nada!

Bonjour, monsieur Charlot!

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

A cara com a careta

Ele tinha uma memória de elefante. E de tromba, verdade seja dita, também não estava mal servido.

Se um elefante

Celebra-se hoje o Dia Mundial do Elefante. Pegue no seu, tire-o da sala, faça-o sair de casa, leve-o a apanhar ar, a dar um passeio, a ver as montras. O dia é dele, caramba! Deixe-o entrar numa loja de porcelanas. Os elefantes adoram.

O cão, obviamente o cão

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

No acto

E há aquele sugestivo aviso à porta dos cafés que cada vez mais se espreguiçam até à rua: "Serviço de esplanada pago no acto". No acto. E ponho-me a imaginar o solícito empregado - de toalha turca no braço, bandeja na mão e com a mão de vago a fazer festas ao bolso das calças - ali à espera que o casalinho termine e ele também.

P.S. - Hoje é Dia do Garçom. No Brasil. Portanto, no ato.

Na alvorada da invasão dos bárbaros

Foto Hernâni Von Doellinger

Segurança acima de tudo

Foto Hernâni Von Doellinger

Cidadão exemplar, o homem da direita, preocupado, respeitador da saúde alheia, rigoroso observante da legislação em vigor. Fumar no interior da loja da estação de serviço, ainda por cima local de trabalho? Nem pensar! O cidadão exemplar veio cá para fora, encostou-se placidamente às botijas de gás e, todas as precauções tomadas, então, sim, acendeu o cigarrinho em segurança máxima. Fumou até ao filtro e depois foi para casa. A pé.
Agora, repare-se, por outro lado, no gesto negligente do indivíduo da esquerda: a abastecer o seu automóvel numa bomba de gasolina. Numa bomba de gasolina, reparem no nome, valha-nos Deus! Há lá sítio mais perigoso para meter combustível!?...
Quer-se dizer, não é por acaso que as estações de serviço se chamam bombas de gasolina. Bombas. De gasolina. E não é por acaso que a gasolina se chama combustível, isto é, inflamável, isto é, explosivo.
Ou por outra, as pessoas metem gasolina de manhã, a caminho do emprego, e depois andam todo o dia com o combustível no depósito do carro, como quem conduz um enorme cocktail molotov à espera que se lhe chegue o isqueiro. Eu acho isto tudo um perigo!

P.S. - Rudolf Diesel, engenheiro mecânico franco-alemão, realizou o primeiro teste com um motor de combustão no dia 10 de Agosto de 1893, abastecendo-se com óleo de amendoim. Hoje é Dia Internacional do Biodiesel, pelo menos no Brasil.

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Mário Cesariny ó meu deus de Vasconcelos

Se fosse vivo, Mário Cesariny festejaria hoje o seu centenário. O que, apesar de tudo, não deixa de ser extraordinário.

terça-feira, 8 de agosto de 2023

Apoios aos emigrantes, em Fafe

Em Fafe. No âmbito da Festa do Emigrante, realiza-se amanhã, quinta-feira, dia 10 de Agosto, uma sessão de apresentação dos apoios aos emigrantes, medidas de apoio fiscal e ao investimento da diáspora inscritos no programa Regressar.
O evento tem início pelas 17 horas, no auditório da Câmara Municipal de Fafe, e contará com a presença do Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, Paulo Cafôfo. Programa detalhado, aqui.

Uma amizade assim

Foto Hernâni Von Doellinger

Se as minhas notas estiverem certas e se Deus for realmente o porreiraço que o Papa andou por aí a apregoar, o meu amigo Senhor Hernâni fará hoje 90 anos certinhos, e eu tenho-lhe muitas saudades. Eu e ele, o Homem da Música, ou o Senhor Feliz, como prefere chamar-lhe a minha mulher, eu e ele, dizia, éramos accionistas maioritários de um banco no Parque da Cidade do Porto, alameda de entrada-saída da Avenida da Boavista, quase em frente às bombas da Galp, quem vai para a igreja de Nevogilde, mas as voltas da vida desviaram-me à falsa fé dos nossos encontros ecuménicos de fim de tarde. Ele adventista militante e eu católico sem frequência, falávamos de artes, de paz, das crianças e dos velhos, da família, do amor, de afectos, da memória, do mundo, do tempo, de tudo e de nada, de Deus, da alegria de viver com Deus. O Senhor Hernâni tentava missionar-me, converter-me, contava-me da sua Igreja, cantava-me hinos de louvor à vida e ao "Senhor Jesus". Enfeitava-os com um trejeitinho de fado, às vezes de folk americano, palavra de honra. Eu tinha para a troca o "Tantum Ergo" que aprendi no seminário e o "Queremos Deus" que trouxe das excursões do meu avô, mas guardava os latinórios para mim, e creio que era sensato, o meu amigo não merecia semelhante castigo...

O Homem da Música fez o favor de me deixar começar a ser seu amigo parece-me que há coisa de doze ou treze anos. Calhava perdermo-nos de vista por umas temporadas, mas felizmente lá tornávamos ao reencontro no banco do costume - um banco de confiança. Uma vez o Senhor Hernâni apareceu-me com instrumental novo e a superbicicleta cada vez mais artilhada: até já tinha relógio-despertador, peça fundamental em bicicleta que se preze. Acertámos a conversa em atraso. Contou-me que o jeito para as engenhocas lhe vinha do ofício antigo, mais de trinta anos como afinador de máquinas numa grande fábrica em Rio Tinto. E que o amor pela música era de sempre, desde que se lembra de começar a contar os 77 anos que então levava.
Falou-me da mulher, que tinha "menos dez anos" do que ele e doenças que chegassem para os dois. Dos filhos, três, um dos quais "trabalha numa agência e sabe as línguas todas". Da ventura de alma que lhe é "louvar e amar o Senhor". Do seu Bairro da Fonte da Moura. Da lambreta cor-de-laranja em avançado processo de tuning caseiro. Das viagens em bicicleta até Arcozelo, em Gaia, ou até São Mamede de Infesta, para tocar. Só para tocar. Tocar por tocar. E pelo caminho já cantava e tocava - o que houvesse a resolver com o trânsito era "pelos retrovisores"...
Outra vez, há meses que não o via, o Senhor Hernâni justificou as faltas. Contou-me que passou a ir alegrar as tardes da rapaziada da idade dele que frequentava o centro de dia da então Junta de Aldoar. Levava-lhes música, porque lhe apetecia e fazia gosto. Ninguém lhe encomendara o serviço, nada disso. Era bondade em estado puro. "Eles vêm cá para fora e eu toco", diz-me, quase envergonhado da felicidade serena que lhe baila nos olhos. "Quer ver? Quer ver?", e rapa da harmónica e do pandeiro e oferece-me uma bela modinha americana que, na verdade, é um hino religioso. Agradeço-lhe. Digo "Muito bem!", pigarreio, para esconder a comoção que também me embaraça. Lembro-me do verso de António Gancho, que diziam louco: "A música vinha duma mansidão de consciência", e ali vinha, meu Deus! Conto-lhe como tenho sentido a falta dele no banco do Parque e que andava preocupado. Não estou a mentir, o Senhor Hernâni diz-me respeito. O Homem da Música percebe, ri, rouba duas ou três notas ao teclado que tem em cima dos joelhos, para que eu saiba que a coisa funciona. E funciona. O Homem da Música tem um dom, dá vida a tudo o que toca, e toca tudo, acordeão, concertina, gaita, e até microfone e até rádio, e faz instrumentos de velhos rádios desactivados, transforma-os em artefactos musicais, amiúde "electrónicos". Toca. O meu amigo é tocador de corações. Isso. A coisa funciona.
Ele quer que eu fique mais um bocado. Fico. Gosto do Homem da Música. Ainda por cima tem um nome próprio que, não desfazendo, lhe calha muito bem - é Hernâni como eu. Senhor Hernâni. Senhor, verdadeiramente, que eu não sou.

De vez em quando eu ia sabendo do meu amigo Senhor Hernâni. Os recados, avulsos, diziam-me que ele estava bem. Isto é, assaltaram-no, roubaram-lhe os documentos e andava a tratar dos papéis novos, sobretudo da carta de condução, que era o que mais o afligia. Teve de ir à Junta de Aldoar e a minha mulher, que lá trabalhava então, tratou de apresentar-se-lhe. O meu amigo fez-lhe uma festa bonita e aproveitou para mandar-me um abraço que me soube pela vida, e repetiu a façanha dois dias depois, forçando novo encontro com ela, como quem não quer a coisa, mais um abraço para mim, e eu fiquei mais feliz ainda.
Portanto, o Senhor Hernâni esteve com a minha mulher em duas breves ocasiões, e foi talvez há cinco anos. Aqui há meses, já aposentada, a minha mulher precisou de ir ao antigo emprego, e quem é que ela encontra à porta, por extraordinário acaso? O Senhor Hernâni, que, ao vê-la, atira à queima-roupa: - A senhora é familiar do senhor Hernâni que mora em Matosinhos, não é? Ele como está? Quando chegar a casa, dê um abraço ao seu marido e diga-lhe que foi o Hernâni que mandou. Diga-lhe que eu estou bem, que vou fazer 90 anos, que continuo muito contente, porque acredito em Deus, diga-lhe que continuo a cantar e a tocar...
E cantou. Cantou. Ali! O meu amigo Senhor Hernâni cantou para a minha mulher, como costumava cantar para mim.

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Altas e baixas cavalarias

Foto Hernâni Von Doellinger

Talvez por ter nascido em Fafe

Talvez por ter nascido em Fafe, e pobre, e nos finais da década de cinquenta do século passado, conheci primeiro as sostras e só mais tarde é que soube das ostras. Não estou a queixar-me da minha sorte, é apenas uma confissão que eu precisava de fazer há tantos anos, e agora, dito isto, fiquei em paz.
Sostras, eu sabia. Desde pequenino, isto é, desde que tive noção. Sostras. Mulheres sujas e preguiçosas, badalhocas, regra geral o que elas se chamavam umas às outras quando disputavam homem ou coisa parecida. Putas, putéfias, vacas, vaconas, cabras, coirões, coironas. Fazia parte do léxico fafense metido a cotio, era o fafês no seu melhor. Aliás, a palavra sostra, para mim, já naquela idade, trazia com ela qualquer coisa de sexual, de lascivo, de atesoante, dito simplesmente. E, a esse respeito, é preciso que se note que eu, apesar de padreca, fui aquilo que se diz um rapaz precoce, outra palavra que por acaso também me arrebitava sobremaneira, mas eu, não desfazendo, ficava incomodado por tudo e por nada.
Já ostras, o mais parecido que eu lhes conhecia por aquela altura, sem sequer ter ideia da ligação, eram sardinhas fritas com arroz de tomate, e que bem que me sabiam. Assim pessoalmente, as ostras foram-me apresentadas teria eu talvez 24 anos, em Bordéus, França. Casado de fresco, cheio de vaidade, fui lá mostrar a minha bela mulher às minhas queridas tias São e Dores, que não puderam vir ao nosso casamento. Levei também a minha mãe e o meu irmão Lando e merendeiro para um regimento, fomos de comboio, de wagons-lits, num expresso do oriente para remediados e cagarolas, e tivemos um Natal bem porreiro.
Foi por aqueles gloriosos dias que eu finalmente provei as ostras, essa requintada francesice, assim achava, vinham nuns cestinhos muito jeitosos, deram-me a ferramenta para a mão, aprendi a abri-las sem desastre e a comê-las de imediato só com um esguicho de limão, coisa tão boa, coisa tão mar, em Bordéus, França, com champanhe evidentemente, o que eu andei para ali chegar, 24 anos de vida, e as ostras eram de Setúbal, Portugal, estava lá escrito, se calhar foram comigo no comboio, é preciso ser-se muito parolo, eu. E a verdade é só uma: as ostras eram realmente tão extraordinárias como sardinhas fritas com arroz de tomate, sardinhas compradas na Mocha, com sítio à beira da estrada, em frente ao tasco do Paredes e ao lado do Zé Manco, foi logo ali no estrangeiro que eu percebi pela primeira vez a inegável relação.

E pronto. Passaram-se quarenta anos, a minha mulher continua bela e eu ainda vaidoso e cada vez mais apaixonado por ela, coisa mais natural do mundo. Anteontem, sábado, foi Dia da Ostra. Mas anteontem não me apeteceu escrever e, por outro lado, assei bacalhau no forno, como fazia a minha mãe e como faz tão bem o minha irmã Nanda. Comidinha caseira, antiga, saborosa graças a Deus, e o Papa, coitadinho, na televisão em Lisboa e às tantas em jejum. Fomos felizes à mesa, a minha mulher e eu, como costumamos, e fizemos votos de longa vida ao Papa, porque, mal por mal, nós gostamos deste, deixem-no trabalhar! Estava tão bom o nosso bacalhau! Sabia a saudades e a futuro...

Lugar para um

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

O Jogo bem puxa, mas o Varela não há meio

"FC Porto: Alan Varela ainda em discussão", diz hoje o jornal desportivo O Jogo. Alan Varela é um jovem jogador argentino que o FC Porto quer e parece que o rapaz também. O jornal desportivo O Jogo, que não é menos do que A Bola e o Record, excepto nas vendas em papel, há mais de um mês que anda a fazer disto uma novela. E já concluiu o negócio mais de cem vezes, como se também fizesse parte. Varela já não é um médio defensivo, é um dom sebastião que nem vem nem a gente almoça, um salvador da pátria comprado a prestações. Para além de três mil e quinhentas chamadas de capa e dez mil títulos interiores sobre o assunto, só nos últimos quinze dias o jornal esgalhou cinco manchetes que não deixam dúvidas a ninguém. A saber:
- "Avanços por Varela", 31 de Julho
- "Varela na mão", 19 de Julho
- "Adeptos já se despedem de Varela", 17 de Julho
- "FC Porto sobe parada por Varela", 15 de Julho
- "5 anos à espera de Varela", 14 de Julho.
Depois de tanto relambório, depois deste empenho, desta autêntica lavagem cerebral à nação portista, se o Varela vem mesmo e não dá uma para a caixa, eu creio que o FC Porto devia despedir O Jogo.

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Ide pela sombra!, disse o Senhor

Hoje é o quarto dia da Jornada Mundial da Juventude. E é também Dia Internacional da Cerveja. As autoridades colocaram Lisboa sob aviso queima das fitas.

Capoeira que é bom, não cai

Foto Hernâni Von Doellinger

Trabalhador de 72 anos...

Vejo nas notícias sobre a minha terra que um trabalhador de 72 anos morreu "em acidente de trabalho", numa obra. "Um cilindro que capotou e o trabalhador ficou por baixo", explicou ao JN o comandante dos Bombeiros de Fafe. Um trabalhador de 72 anos. Nas obras. Mas que raio de país somos?...

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Capoeirista, eu?...

A sério. Não sei se posso ser considerado um verdadeiro capoeirista. A minha mãe mandava-me realmente dar de comer às galinhas e ver se havia ovos, recomendando-me sempre todo o cuidado ao entrar e ao sair do galinheiro, mas será isso suficiente?
E que se segue? Hoje é Dia do Capoeirista, e eu, sinceramente, não sei se deva festejar...

O rei da esplanada

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 1 de agosto de 2023

O velho Lourenço da Arrábida

O problema do Lourenço da Arrábida era o equívoco. Ou o gozo. O inocente equívoco ou o gozo premeditado, ele ainda não chegara à conclusão. O certo é que as pessoas estavam sempre a perguntar-lhe pelo Omar Sharif, pelo Anthony Quinn, pelo Alec Guinness, ou se realmente ele viu Judas a cagar no deserto, como se dizia em Fafe no tempo do Cinema. Chamavam-no à televisão para comentar a situação no Médio Oriente, mas admiravam-se por ele aparecer em pessoa e consequentemente ainda estar vivo, uma vez que para os devidos efeitos morrera num acidente de mota. Perguntavam-lhe também, se, por falar nisso, a Guinness deve ser bebida fresca ou à temperatura ambiente como alguns e determinados têm a mania. Enfim, já se sabe como são as pessoas.
O bom do Lourenço primeiro ia aos arames, afinava. Cego pelos nervos, num repente rapava da adaga e desatava a gritar "mouros!" e a matar a torto e a direito felizmente só da boca para fora. Quantas tragédias foram assim prometidas e adiadas, para enorme desconsolo da CMTV e assinalável prejuízo da indústria funerária da região. Mas com o tempo o nosso herói assentou, ganhou calo no cu, como se diz psicologicamente falando. Agora se o azucrinam com as tretas do costume, ele encolhe os ombros largos de desdém, pigarreia uma e outra vez, sacode duas valentes chibatadas no camelo de estimação e desaparece dali a galope, ondulando o manto branco por entre hordas descontroladas de turistas japoneses e outros infiéis que descem e sobem aos encontrões a completamente escangalhada Baixa portuense.

P.S. - O actor Peter O'Toole nasceu no dia 2 de Agosto de 1932. O seu desempenho no épico "Lawrence da Arábia" foi considerado pela revista Premiere como o maior de toda a história do cinema.

Eu penduro, two penduras

Foto Hernâni Von Doellinger