terça-feira, 31 de maio de 2022

O problema dos meios-irmãos

O problema dos meios-irmãos é que, por exemplo, pegamos em dois e não conseguimos fazer um irmão inteiro. O que é realmente aborrecido.

O mundo é pequeno. E um bocado bacoco...

- Perdoar-me-á que o interpele assim sem mais nem menos, sem o conhecer de lado nenhum, mas o caro senhor é um bocado parvo, não é?
- Sou, com efeito, um bocado parvo, mas como é que o caro senhor adivinhou?
- Um pressentimento. É que eu também sou...
- O caro senhor também é um pressentimento?
- Não, não, caro senhor: também sou um bocado parvo.
- Como o mundo é pequeno! Somos então praticamente primos...
- Parentes, pelo menos...
- E, mal que lhe pergunte, o caro amigo é um bocado parvo por parte da senhora sua mãe ou por parte do senhor seu pai?
- Por parte do senhor meu pai.
- Mas isso é extraordinário, caro amigo, porque eu também sou...
- O caro amigo também é um bocado parvo por parte do senhor meu pai?
- Não, não, caro amigo: sou um bocado parvo mas por parte do senhor meu pai.
- Oh, que pena! Afinal quase que éramos irmãos, não é?... 

P.S. - Hoje é Dia dos Irmãos.

Maus hálitos

Ele tinha muitos maus hálitos. O tabaco e o vinho, por exemplo. E também coçava os testículos...

Algo de definitivo

Havia algo de definitivo no que ele dizia. Ele dizia: - Já não se fazem cigarros como antigamente...

P.S. - Hoje é Dia Mundial de Combate ao Fumo e Dia Mundial sem Tabaco.

domingo, 29 de maio de 2022

O Evereste e o Evaristo

Diz o chinês: - Além disso, temos o Evereste, que é o maior monte do mundo!
E diz o português: - E nós temos o Evaristo, que, não desfazendo, também é uma jóia de pessoa...

P.S. - O cume do monte Evereste foi atingido pela primeira vez pelos alpinistas Edmond Hillary, da Nova Zelândia, e Tenzing Norgay, do Nepal, no dia 29 de Maio de 1953.

Sabendo-se de antepé

Incomoda-me que treinadores e jogadores de futebol prevejam sempre o próximo desafio "sabendo-se de antemão". Isso não é mais conversa de andebol?

P.S. - O primeiro jogo internacional de andebol em Portugal realizou-se no Porto no dia 29 de Maio de 1949, com a selecção de Acácio Rosa a bater a França por 7-6. No dia 29 de Maio de 2010 o Sporting venceu a Taça Challenge, trazendo pela primeira vez um troféu europeu para o andebol português.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 221

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 28 de maio de 2022

No meu tempo havia respeito

As crianças hoje em dia só aprendem porcarias. É a televisão, é o computador, é a internet, é o face, é o tablet, é o android, é o ipod tudo. Mas só aprendem porcarias, é uma pouca-vergonha. Não há educação, não há respeito, não há tabuada, não há catequese nem mocidade portuguesa. No meu tempo era outra louça, vinho de outra pipa: jogávamos à macaca, ao moche e ao mamã-dá-licença, brincávamos ao esconde-esconde e aos médicos, levávamos umas reguadas, rezávamos padre-nossos, cantávamos os reis de porta em porta, os mais velhos ensinavam-nos coisas bonitas, apresentáveis, lengalengas e versinhos didácticos, alguns até com música, para ficarem no ouvido, e ficaram. Lembro-me, por exemplo:

- Preta, mulata, nariz de batata, rouba galinhas e mete prà saca.
- Ruço de mau pêlo, quer casar, não tem cabelo.
- Viva quem tem pêlos na barriga, e quem os abaixo tem que viva também.
- Enganei-te, enganei-te, com uma pinga de leite, à porta da missa, a comer uma chouriça.
- Três vezes nove, vinte e sete, quem morreu foi o valete, enterrado na retrete.
- Indo eu, indo eu, a caminho de Viseu, encontrei um burro morto a cagar e a mijar prò primeiro que falar.
- Pipa nova, pipa velha, foi ao mar, não afogou, com licença, meus senhores, aqui está quem se cagou.
- O Manel e a Maria foram ambos passear, o Manel deu um peido e mandou a Maria ao ar.
- Vinho na pipa, couves na horta, se não nos der nada, cagamos na porta.
- Cagarim, cagarou-se, há dois modos de cagar, se o cagalhoto foi grosso, fica o cu o fumegar.
- Ó Mila, o teu pai tem pila; se não fosse a pila, não havia a Mila.
- Sanica o cu, sanica a gaita; sanica o cu e a serigaita.
- Afina a guitarra, a viola toca, afina a guitarra e também a piroca.
- Quem te fosse ao cu e não te pagasse.
- Sexta-feira, sexta-feira, tararam tararam, sexta-feira da paixão, tararam tararam, foram dar com os padres todos, tararam tararam, a ir ao cu ao sacristão. Tararam tararam. Eram sete matulões, tararam tararam, com bigodes no colhões. Tararam tararam. Pontapés e bofetadas, tararam tararam, nas parrecas das criadas. Tararam tararam.
- A puta da minha amiga não tinha que pôr na mesa, cortou as beiças da cona, fez cozido à portuguesa.

Ai que saudades, rapaziada! No meu tempo havia respeito, instrução. Brincavam-se brincadeiras educativas, respeitosas e saudáveis. Quer-se dizer: brincava-se A Bem da Nação e conforme manda a Santa Madre Igreja.

P.S. - Publicado originalmente no dia 25 de Julho de 2015. Hoje é Dia Internacional ou Mundial do Brincar.

Menino também brinca com boneca

Factos reais como punhos. Manhã de sábado, A28, direcção Matosinhos-Viana do Castelo, um pouco antes da saída para Vila do Conde. À minha frente segue uma velha carrinha Renault 4L, de um cor-de-rosa altamente suspeito e vagaroso. Aproximo-me, com o fastio próprio dos condutores domingueiros que já não têm paciência para os condutores domingueiros, mas arrebita-se-me a atenção quando, mesmo em cima dela, leio os dizeres da viatura. São uns dizeres sugestivos e muitos, reclames açucarados a um loja de prazeres - sex-shop em português.
E vejo finalmente os ocupantes, ainda por trás: é o do volante e, ao lado, uma louraça da fazer parar o trânsito. Mas eu avanço. Avanço cuidadosamente para a ultrapassagem, olho para o gajo e o gajo sorri malandro. E eu continuo a olhar (eu posso olhar e continuar a olhar, porque eu não conduzo, não sei conduzir, nem sequer tenho carta) e o gajo continua a sorrir. Brincalhão. A gaja não sorri, não me liga nenhuma, olha sempre em frente, tomando sentido à estrada, ainda mais loura do que há bocado e, reparo agora, tem uns lábios vermelhos e escarrapachados.
A minha mulher desliga o pisca e então é que se me faz luz. A gaja da catrel é uma boneca. Uma boneca mesmo, de plástico, uma boneca insuflável, de carregar pela boca. O gajo olha para mim e sorri cada vez mais, está a gostar da coisa. Malandro. Não sei onde é que a gaja tem a mão.

A geração H (H de hambúrguer)

Um dos maiores problemas dos nossos supermercados é que põem a cortar bacalhau uma malta muito gira e muito porreira que nunca na vida comeu bacalhau e nem sabe de que árvore é que aquilo vem. Resultado: trazemos para casa postas de bacalhau com as dimensões de um selo dos correios...

Era uma vez uma hamburgueria gourmet

O caro leitor lembra-se (sim, caro leitor, é consigo, o caro leitor é o único leitor que eu tenho), dizia, o caro leitor lembra-se de eu aqui atrasado ter escrito um coisada chamada "O gourmet não se dá na minha zona"? Não se lembra, pois não? Não faz mal. Era assim:

Moro em Matosinhos, na famosa zona dos restaurantes e marisqueiras, que se acotovelam porta sim, porta sim. Pensava portanto que não lembraria ao diabo estabelecer-se aqui no meu território com uma dessas autoproclamadas hamburguerias gourmet, mas a alguém lembrou. Quando, ainda de vidros tapados, vi cá fora os letreiros, pensei: isto nem sequer vai abrir. Mas abriu, e tornei a pensar: daqui a quantos dias é que isto vai fechar? Porque a verdade é esta: o gourmet não se dá à minha volta, e juro que a culpa não é minha. Evidentemente não o frequento, mas, tirando isso, mais nada...
Lembra-se o caro leitor da história do fumeiro, faz agora quatro anos? Não se lembra, pois não? Não faz mal. Foi assim:

Do outro lado da minha estrada (o caro leitor já reparou que, nas nossas cidades, as ruas agora não são ruas, são estradas, e estradas com engarrafamentos e perigosas?), dizia: do outro lado da minha estrada há uma daquelas pequenas lojas tipo "regional gourmet". Azeitonas em frasco, cogumelos em frasco, meles em frasco, geleias em frasco, licores em frasco, frascos em frasco, dois presuntos em fraco, azeites e vinhos em caro, prateleiras um fiasco. Num benévolo gesto de boas-vindas, mal abriu o estabelecimento fui lá cheirar e avisar que o conceito é uma treta e que gourmet a sério é em minha casa, mesmo em frente, porque aqui a comida é muito boa, e gourmet deveria ser isso, mas não estamos abertos ao público. O gourmet - a ver se eu me sei explicar - quer-se da boca para dentro e não da boca para fora, mas não faço concorrência.
Estas lojinhas abrem e infelizmente não vendem nada. São "regionais" porém franchisingvery tipical e very vazias, de produtos e clientes. O toque de "qualidade" é dado em palavras "estrangeiras", o que só abona a favor do produto made in Portugal. A loja da minha estrada tinha primeiro uma menina, que passava a vida na ombreira da porta a fumar, fumar, fumar.
A loja não abria desde que o ano entrou. Pensei que tinha sido o fim. Mas graças a Deus enganei-me, que de desemprego já basto eu. A loja reabriu hoje: não está lá a menina, mas um rapaz. Que passa a vida na ombreira da porta a fumar, fumar, fumar. Nas costas, os dois presuntos pendurados no cabide tisicam e agradecem - assim se produz o genuíno fumeiro nacional.

Entretanto. Passou-se uma semana e a lojinha fechou de vez: veio uma carrinha limpar as escanzeladas prateleiras, três sacos de plástico bastaram e lá se foi mais um posto de trabalho, por assim dizer, que é o que a mim me importa. Fico infeliz por ter razão: o conceito era realmente uma treta. Esta gente não sabe o que é massa com bacalhau e o prato a esbordar...

Por falar nisso, hora de almoço: 
espreito a hamburgueria gourmet, dando-lhe uma última oportunidade. Os únicos "clientes" que vejo são o pessoal da casa, à mesa. Já foste!, digo cá para comigo. É o raio deste microclima sul-matosinhense...

Pois meu dito, meu feito. A coisada acima é do princípio do ano, 11 de Janeiro. Hoje passei pela hamburgueria gourmet da minha zona e, fatal como o destino e com ponto de exclamação e tudo, lá estava afixado o aviso na porta fechada: "Trespasse!"...
 
P.S. - Publicado originalmente no dia 14 de Julho de 2018. Hoje é Dia Mundial do Hambúrguer. Portanto vou aí a um sítio comer um bacalhauzinho assado na brasa...

Pode o mar ser mais belo?

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Junho vem aí, ponha-se a pau!

Junho ao dobrar da esquina e todos os cuidados são poucos. O Borda D'Água manda cavar, estrumar e semear os campos. No minguante, ceifa do trigo, centeio e cevada. Na horta, semear em viveiro alface, alho-porro, repolho, couve-flor, couve-de-bruxelas, couve-nabo, couve-rábano e couve-galega. Em local definitivo semear cenoura, chicória, nabo, rabanete e salsa. Colher a batata de Fevereiro. Cuidar de milheiral, batatal e morangal. Continuar a sementeira do feijão para consumo em verde. Plantar batata, pimento e tomate. Colher cebola, alho, alface e aipo da sementeira de Janeiro. Apanhar as cerejas e nêsperas. Extrair mel e cortiça. Na vinha continuar com os tratamento e aplicar o enxofre quando se manifestar o oídio. No jardim semear begónias, calêndulas, gipsófilas e goivos, e colher rosa e cravos. Quanto aos animais: o gado, bem bebido, sai dos estábulos na alba ou ao entardecer.

Ao pé-coxinho

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 26 de maio de 2022

O andar de John Wayne

O que ele queria mesmo era ter um andar como o do John Wayne. Aquele andar, estão a ver? O andar inteiro. Doze quartos, duas cozinhas, piscina com escorrega e evidentemente marquise.

P.S. - Marion Michael Morrison (ou Marion Robert Morrison, de baptismo), conhecido profissionalmente como John Wayne e apelidado de Duke, nasceu no dia 26 de Maio de 1907.

Na ponta da unha

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Eu vi o autogolo de Manaca

Eu estava lá. No estádio, em Guimarães. Eu vi ao vivo o autogolo de Manaca que deu o triunfo por 0-1 e o título de campeão ao seu Sporting, sendo ele naquela altura jogador emprestado pelos leões ao Vitória. Faz hoje anos. Foi no dia 25 de Maio de 1980, e eu portista estava lá, mesmo atrás da baliza em questão. Vi tudo, sou testemunha, lembro-me como se fosse ontem. E se querem que lhes diga: não sei, não tenho a certeza...

Mataram os vizinhos

É. Mataram os vizinhos e agora somos condóminos. Éramos vizinhos, lembram-se? E a palavra vizinho queria dizer coisas boas: proximidade, amizade, companhia, ramo de salsa, comunidade, confiança, solidariedade, serões à soleira da porta, copinho de vinho novo partilhado, malga de marmelada, frasquinho de geleia, as primeiras uvas, cumplicidade, visita ao hospital, dar a camisa, porta aberta, conselho pedido e dado, comadre, quase família, melhor que família, tu cá, tu lá. Agora somos condóminos. E a palavra condómino tem uma carga que é um pesadelo: propriedade, despesa, individualidade, indiferença, reunião, ausência, chatice, discussão, impessoalidade, porta fechada a sete chaves (três, pelo menos), queixinha, fracção, má-língua, elevador, o tempo, bom dia e boa tarde, eu cá, tu lá.
E é irónico. Há mais de trinta anos que eu sou um condómino exemplar, um condómino da melhor pior espécie - não apareço, só pago -, mas hoje deram-me as saudades de ser vizinho. Sei que já vou tarde. Estamos todos condenados a sermos condóminos para o resto das nossas vidas. Se ainda ao menos fôssemos conDominus nobiscum...

Weather report

- Isto é que tem estado!...
- Realmente...
- E então hoje!...
- Lá isso...
- O que é que eles dão para amanhã?
- Eu...
- Pois. Então até logo, vizinho.
- Vá pela sombra, vizinha.
É, o elevador aproxima muito as pessoas. O elevador e o boletim meteorológico.

P.S. - Hoje é Dia Mundial dos Vizinhos.

Aldeias verticais

Foto Hernâni Von Doellinger

O complexo

Trabalhadores despedidos e abandonados, falência fraudulenta, fábrica encerrada, dívidas ardilosamente insolúveis, fortunas abafadas, putas e vinho verde, Ferraris e Jaguares à porta da mansão com piscina, menino da lágrima e campo de ténis, missinha todos os domingos e rotários às sextas-feiras. Os psicólogos não têm dúvidas: é o chamado complexo industrial...

Papelão e papelões

O industrial foi ao banco pedir um empréstimo. Quantia avultada. Pretendia construir e montar de raiz uma fábrica de papel canelado, investimento para cima de diversos milhões de euros e emprego garantido para cerca de 23 pessoas, talvez vinte e duas e meia ou vinte e três e meia, ainda não sabia bem. O senhor do banco riu-se: "Fábrica de cartão canelado? Vê-se logo que é golpe, vigarice das antigas". "Golpe, não, caríssimo senhor, e faça o favor de reparar que eu disse caríssimo sem saber sequer a taxa de juro. Em todo o caso, se eu fosse vigarista, e dos antigos, ter-lhe-ia indicado que precisava do dinheiro para abrir um banco", ripostou o industrial, sem se rir, e foi roubar carteiras para outro lado.

P.S. - Hoje é Dia da Indústria. No Brasil.

Pendura

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 24 de maio de 2022

Parque natural

Era um parque natural. Um excelente parque natural. Descampado, chão de terra, pedra e erva, e nem precisou de obras, cabiam ali para cima de cem carros.

P.S. - Hoje é Dia Europeu dos Parques Naturais.

À sombra

"Vá pela sombra!", disse o juiz. E ferrou-lhe com 25 anos.  

Evasão

- Mais vale só do que mal acompanhado - disse o recluso n.º 14.112. E fugiu.

P.S. - Hoje é Dia do Detento. No Brasil. É também Dia da Infantaria, Dia do Datilógrafo e Dia do Telegrafista. Também no Brasil.

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Meu caro Chester: aqui na terra estão jogando futsal

Foto Tarrenego!

Matt Dillon era o xerife de Dodge City, e Chester o seu leal ajudante. Naquele tempo todos queriam ser Tarzan ou Mandrake, Buck Jones ou Fantasma, Mascarilha ou Cisco Kid. Os "artistas". Mas o Álvaro escolheu modestamente ser Chester, actor secundário, e assim se rebaptizou num involuntário equívoco cheio de ironia: na verdade, Álvaro Moreira Mendes nasceu para ser primeira figura, protagonista. E foi. No seu ofício de indústria, no movimento associativo, na intervenção cívica, na amizade fraterna e íntegra, foi sempre dos melhores, um fafense excelentíssimo, um homem maior do que o próprio nome, maior do que a alcunha sacada dos livrinhos de cobóis, maior do que o lugar que lhe queiram dar os menestréis da história recente de Fafe, tão desperdiçada em umbiguismos e bagatelas, maior do que melhor ou pior pensem dele. Acerca da opinião dos outros a seu respeito, creio, aliás, que o Chester não se coibiria de dizer, alto e bom som: caguei!!! E diria alto e bom som porque ele não sabia falar de outra maneira.
Onde o Álvaro chegasse, constava. Ele encarregava-se de avisar logo à entrada, por entre raios e coriscos, avançando como um tornado de grau cinco, a enorme mão calejada e aberta desbravando caminho, oferecendo-se para um abraço, para uma palmada nas costas à moda antiga. Ser imperfeito como todos nós, mas menos imperfeito do que a maioria de nós, e muito menos imperfeito do que eu, por exemplo, o Chester tinha um coração enorme, desmesurado, e uma boca do tamanho do coração. Fazia amigos com o dobro da facilidade com que fazia inimigos. E também deu alguns pontapés na vida.
O Chester era generoso, impulsivo, excessivo e puro. E amiúde foi a primeira e principal vítima da sua generosidade sem peso nem medida. Era um bom selvagem, uma força da natureza.
Era meu amigo. Forjámos a nossa cumplicidade no tasco, evidentemente. Nas tardadas de Inverno passadas à volta da braseira na cozinha da Dona Isabel, no Toninho Nacor, onde eu, com os bolsos cheios de cotão, ia levado pelo tio Américo. Em 1976, Barcelos acolheu o Campeonato da Europa de Hóquei Patins Sub-21 (juniores, chamavam-se então). O Chester falou do assunto. Comprámos duas assinaturas para o torneiro inteiro, e todas as noites lá íamos de Vauxhall até Barcelos por estrada nacional, que era o que havia, víamos os dois ou três jogos do programa, regressávamos a Fafe e eu chegava a casa já de madrugada. Fomos campeões.
Mais ou menos por essa altura o Grupo Nun'Álvares estava instalado no edifício que fora posto da GNR, em frente à Igreja Matriz, e que hoje é, creio não estar enganado, casa paroquial. Ali foi construído um rinque em cimento e organizado, em 1977, o primeiro torneiro de futebol de salão em Fafe. Salão ao ar livre, é preciso que se note. Nunca falhei um jogo. Um dia vou à bilheteira comprar o bilhete do costume, está lá o Chester (o Chester tinha o seu quê de Deus, também estava em toda a parte) e entregou-me um livre-trânsito passado em meu nome e que dizia "Convidado da Organização - Prémio Assiduidade". Coisa inventada por ele. Resultado: deixei de pagar para entrar e guardo religiosamente aquele cartão, como se fosse um santinho. E hoje por ser hoje, mostro-o ao fim destes anos todos, o que, se querem saber, me viola um bocado a intimidade...
Quando terminei a minha felizmente efémera passagem pela tropa, o Álvaro foi a primeira pessoa a oferecer-me um emprego a sério e até já tinha tratado de tudo para eu tirar a carta de condução. Apareceu-me melhor, o Álvaro incentivou-me a aceitar a outra proposta, e ainda hoje não tenho carta.
O Chester alegrava-se quando me via em Fafe. Fazia questão que se soubesse que gostava muito de mim. E a verdade é que eu também gostava muito dele. E no entanto falhei-lhe miseravelmente na altura da vida em que por certo ele mais precisou dos amigos...
O Álvaro era, regra geral, do contra. Era um inquieto espírito de contradição. Tanto que, só para chatear, resolveu deixar-me a falar sozinho, quando tínhamos ainda tanto para conversar. 
Felizes os ignorantes: quem não conheceu o Chester, não sabe o que perdeu. Trabalhador incansável, empreendedor contumaz, o Chester é uma história extraordinária e isto aqui é apenas um humilde lembrete. Álvaro Moreira Mendes. Uma vida que dava um livro, um nome que merece rua. Em Dodge City já teria.

P.S. - Publicado originalmente no dia 22 de Outubro de 2017. O Grupo Nun'Álvares inventou o "futebol de salão" em Fafe e o Chester era a alma daquilo tudo. 

As meninas... dançam?

Foto Grupo Nun'Álvares

Lembram-se do futebol de salão? O que é que nos vinha à cabeça quando se falava de futebol de salão? O salão. Uns cavalheiros vestidos de fraque e com um número nas costas e umas cavalheiras despidas nas costas e no resto, agarrados um ao outro e rodopiando pelo rinque árabe do Palácio da Bolsa como Fred Astaire e Ginger Rogers e uma bola pequenina no meio, um árbitro e o apito, um júri e tabuletas. Para evitar confusões, o futebol de salão passou a chamar-se futsal. E é o sucesso que se sabe...

P.S. - Publicado originalmente no dia 20 de Julho de 2015 e, repetido com todo o a-propósito, no passado dia 28 de Fevereiro. Pois bem. As moças do futsal do Grupo Nun'Álvares, de Fafe, repetiram ontem a façanha, agora ainda mais extraordinária, conquistaram a Taça de Portugal, e portanto viro o disco e toco o mesmo.

domingo, 22 de maio de 2022

Flûte de Portugal

O Três Marias, o Casal Garcia, o Magos e até o "champanhe", doméstico ou de alterne, eram à taça, prova rainha. Agora deu-lhes para o flûte. Ou flauta. Pfff...

sábado, 21 de maio de 2022

No tempo dos ralis

Havia o Carpinteiro Albino. E havia o Albino Carpinteiro. Carpinteiro Albino era de Elvas, corria em automóveis e ganhou o primeiro Rali de Portugal, em 1967. Albino Carpinteiro era nosso, de Fafe e do Fafe, artista de mão cheia e faz-tudo municipal. 

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Revisãozinha constitucional

De acordo com a constituição, o mais alto magistrado da nação deve medir para cima de 1,73 m, considerada a altura média dos portugueses homens. Se o mais alto magistrado da nação for por acaso uma magistrada, então basta medir para cima de 1,62 m, considerada a altura média das portuguesas mulheres. Luís Marques Mendes, que é homem do sexo masculino, mede 1,61 m calçado e, há quem diga e eu desejo que sim, aspira à presidência da república, defende, a este propósito, uma revisão constitucional. Uma revisãozinha, vá lá. Coisa de doze ou treze centímetros...

Os meus cromos 70: Fredrik Söderström

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 17 de maio de 2022

Era o Lopes (evidentemente o Lopes)

Eu levo os telemóveis muito a sério (à séria, se lido em Lisboa). Se o meu telemóvel toca, e é raro, eu atendo. Sempre. Ainda ontem: eu estava aqui nas traseiras, por acaso sem o telemóvel à mão, e ouvi-o tocar na cozinha, virada para a rua. Fui lá a correr: não era o telemóvel, era a máquina de lavar roupa, que as máquinas de lavar roupa agora também tocam. O que é que eu fiz? Atendi a máquina de lavar roupa, evidentemente, e era o Lopes...

A arte de saber estar

Isto devia ser ensinado desde os bancos da escola: o telemóvel ou o tablet não fazem parte do talher e portanto não devem ir à mesa. O talher é composto pelo conjunto de garfo, colher e faca e comando de televisão. Mais nada. 

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Internet. E Dia Mundial das Telecomunicações e da Sociedade de Informação.

O cu e cinco tostões

Ele tinha aquela mania tola de dizer repetida e inopinadamente, como se fosse um mero portanto, "dava o cu e cinco tostões". Nunca lhe aceitaram o dinheiro.

P.S. - Hoje é Dia Internacional de Luta Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia.

Vidro temperado, mas com parcimónia

O vidro temperado é aproximadamente quatro vezes mais duro do que o vidro normal, tem maior resistência térmica e estilhaça-se em pequenos fragmentos quando é partido. Por outro lado, é uma das principais causas da hipertensão arterial. Recomenda-se, por isso, o meio-sal...

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Hipertensão Arterial.

Ao menino e ao bolacho

A bolacha maria, torrada ou não, apareceu tarde na minha vida. Bolacha era luxo que não entrava lá em casa, e o mais parecido que a nossa mãe nos dava em pequenos era broa ou biju, e o biju já era um mimo. O caso só mudou de figura quando nasceu o nosso Lando. O Lando é o mais novo de quatro irmãos, decerto por isso teve direito a mordomias que os três anteriores nem sequer suspeitávamos, e as bolachas vieram com dele.
Entre outras alcavalas, o Landinho até fazia anos, coisa extraordinária, enquanto a nós só nos era permitido ficarmos mais velhos, somarmos dias, que remédio e a seco. Ao menino, a nossa mãe organizava-lhe uma festinha de aniversário, havia convidadozinhos, e do pequeno lanche constavam, só me lembro disso, umas curiosas sandes de bolacha maria com marmelada dentro, tipo oreos mas melhores e de fabrico caseiro. Eu, já espigadote, metia a mão sorrateira e rápida à passagem pela mesa, e foi assim que ficámos a conhecer-nos pessoalmente, eu e elas. As bolachas. Que estavam contadas, para mal dos meus pecados...
Mas não era de bolachas que eu queria aqui falar. É de bolachos. E o bolacho, faço deste já notar, é pitéu absolutamente indispensável, muito mais do que mero ornamento, nuns rojões à moda do Minho que se pretendam com todos os matadores. O bolacho é, versão curta e grossa, uma espécie de pão cilíndrico feito com farinhas de trigo, milho e centeio, a que se junta sangue de porco, fermento, caldo de carne, pimenta e cominhos. Depois de levedada, a massa é cozida em água temperada com sal, salsa, folha de laranjeira e louro. Cumprida a cozedura, o bolacho é cortado em rodelas e frito em pingue. O bolacho pode também chamar-se farinhato, pilouco, bica e, principalmente, beloura.
Mas também não era deste bolacho que eu queria aqui falar. É do bolacho de trigo. Do pão de cantos. Do pão de quatro cantos. Do trigo de ovelhinha. Do pão de padronelo. Desse. Esse fantástico pão, duro como cornos, que era vendido porta a porta em Fafe por umas senhoras que, dizia-se, vinham de Amarante. As abençoadas senhoras traziam enormes cestas à cabeça e dentro das cestas, carinhosamente envolto em toalhas de linho, o precioso pão. Um pão de longa duração que a minha querida avó de Basto guardava com todos os cuidados e também toalhas de linho na caixa de madeira que era o cofre e o frigorífico das coisas valiosas e boas numa terra por onde Jesus Cristo ainda não tinha passado e portanto não havia electricidade. Assim acondicionado, o pão aguentava-se bem uma semana ou mais e só era comido com o matinal café, que era cevada, aos domingos, feriados e dias santos. De resto, broa, que era o pãozinho do Senhor.
Leio agora que o bolacho é de ovelhinha porque teve a sua origem no lugar com aquele nome, Ovelhinha, na freguesia de Gondar, Amarante. E de padronelo porque decerto será sobretudo nesta outra freguesia amarantina, Padronelo, que hoje em dia ele é produzido e comercializado. Quanto a bolacho, é-o não sei porquê.

P.S. - Publicado originalmente no dia 4 de Dezembro de 2021.

Pastelaria e ordem unida

Comeu três brigadeiros de enfiada. Disse-lhes após, enquanto limpava a boca: - Informem o general que eu para a semana não venho. 

Pastelaria graças a Deus

Comeu um cardeal, dois jesuítas e três seminaristas. Bebeu quatro taças de Casal Garcia, persignou-se e deu graças a Deus. 

O melhor dos pastéis era o riso

Conhecia-os de vista. De passar pelas montras ou das mesas do Peludo, mas nunca me tinham sido apresentados. Até que uma vez o meu pai trouxe meia dúzia para casa. Vinham naquela caixinha de papel, obra de engenharia feita na hora, ali mesmo aos olhos do freguês, com a habilidade e o requinte de quem constrói um avião. Se me estou a lembrar bem, havia, naquele tempo, os bolos de arroz, as bolas de berlim, os queques, os jesuítas, os caramujos, os mil-folhas, as natas e os cocos. As tíbias apareceram depois, já na era das minissaias.
O meu pai chegou muito tarde "da música" e se calhar os pastéis vinham por isso, para adoçar a boca à minha mãe. Não tenho a certeza. Era pequeno demais para então perceber o que agora sei tão bem. Mas gostei da festa que foi: acordámos - a Nanda, o Nelo e eu -, sentámo-nos todos na beira da cama da frente, ao lado da nossa mãe, provámos a novidade, o nosso pai fez-nos rir e fomos felizes. Então pastéis era aquilo? Era bom. Para mim, quase tão bom como uma côdea de broa coberta com açúcar amarelo.

Fafe era um terra de antonomásias. No nosso imenso pequeno mundo, tínhamos o Largo, a Avenida, o Monumento, a Recta, o Campo, o Depósito, o Banco, os Serviços, a Bomba, o Jardim, a Quelha, o Santo e o Café, que era o Peludo, na verdade Cine-Bar. Mas cafés e tascos havia muitos. Uma mão-cheia de cafés, e tascos até dar com um pau, para ser mais preciso. Pastelarias, salões de chá ou snack-bares é que nada, até aparecer o Dom Fafe, mesmo no centro da vila, coisa fina e para clientela sem gases. O Dom Fafe passou a ser o Snack-Bar.

Eu era calisto. Calisto televisivo. A preto e branco e com muitos pedimos desculpa por esta interrupção. Para me fazer pagar a moina, o Sr. Avelino do Café, que era o Hoss do "Bonanza" em pessoa menos o chapéu, entregava-me umas moedas e mandava-me à cozinha do Hospital buscar uns enormes tijolos de gelo que ele depois partia e metia no barril de tirar finos (imperiais, se lido em Lisboa). No fim do recado dava-me o troco? É o davas. Oferecia-me um pastel? Fodias-te. Eu tinha para aí sete anos, o meu pai ainda não tinha trazido pastéis para casa e o Sr. Avelino (o tempo fez-nos amigos) punha-me à frente a merda de um cimbalino. Sete anos, e ele dava-me um café. Se ao menos fosse um cigarro...

Não sou de doces. E, dos pastéis que o meu pai trazia para casa, o que eu gostava mais era da festa, do riso. Daquela meia hora extra fora da cama. Da sensação de família e fartura, da felicidade antes do sono. Porque o meu doce preferido era outro: era a côdea de broa, "grande daqui até ao céu", enfiada às escondidas na lata do açúcar amarelo (tinha de subir à mesa da cozinha para chegar ao armário) e comida na clandestinidade do fundo do quintal. Isso, sim, era o meu bolo. Havia lá coisa melhor no mundo!? Por acaso até havia: era a gemada. Gemada simples e honesta: gema de ovo batida numa malga com muiiiiiito açúcar. Mas essa só podia ser duas vezes por ano, acho eu, pela passagem de classe e no meu aniversário. Com os ovos, lá em casa, todo o cuidado era pouco. Estavam contados, eram para deitar. E ao açúcar para a broa a minha mãe fechava os olhos.

P.S. - Publicado originalmente no dia 7 de Junho de 2012, sob o título "Eu era mais broa com açúcar amarelo". Hoje é Dia Mundial da Pastelaria.

O pecado mora aqui

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Tenho pena dos comboios

As notícias dizem que a greve na CP vai "afectar" ou "perturbar" os comboios, e eu fico com pena. Dos comboios, evidentemente. Os passageiros, isto é, as pessoas, também me incomodam um bocadinho, mas os comboios, realmente, coitados dos comboios...

Parado mas à tabela

Foto Hernâni Von Doellinger

Aprendendo a ser homem

Foto Hernâni Von Doellinger

Gari, que em Portugal quer dizer Almeida

Matosinhos cheira mal. Faz parte. E aos domingos mete nojo. Os restaurantes de peixe rebentam pelas costuras e pelas esplanadas, e isso é bom para o IVA, mas fedem e fumegam num alucinante aviso de como será decerto o fim do mundo de um modo geral. Aos domingos, Matosinhos cheira a sardinhas mal descongeladas e a grelhas que não vêem água desde a grande seca de 1948. Cheira também a lixo deitado alegremente à rua sem norma nem excepção. Cheira também aos escapes bronquíticos dos incendiários autocarros da Resende. Quer-se dizer: Matosinhos cheira mal, fede ao natural e ao gasóleo, tresanda a Matosinhos.
Com vista para o mar se me puser de lado, moro há mais de trinta anos ao dobrar da esquina da restaurantíssima e concorridíssima Rua Heróis de França, no epicentro exacto dos vapores e malinas gastronómicas matosinhenses. Por estes dias a Rua Heróis de França está praticamente impraticável, pelo menos desde Tomás Ribeiro até às funduras da Lota, mas suponho que depois da Lota continua. Ecopontos e contentores tresandam perigosamente, mesmo à distância: nauseabundam a comida estragada, a peixe podre, a vomitado, a fermentado, a ranço, a lavadura para porcos, a ácido, a tóxico, a bagaço, a estrume, a bosta. Matosinhos World’s Best Fish, iniciativa da Câmara Municipal para inglês ver, só pode ser um equívoco, uma piada. E o fedor corre pela rua e entranha-se nas casas e nas roupas. Nos pulmões.
O Senhor Varredor que se ocupa de Heróis de França e faz um trabalho impecável, e com quem dou, sempre que podemos, dois dedos de conversa, pediu-me que eu fosse deitando os olhos ali às redondezas dos ecopontos novinhos em folha, porque se calhar um destes dias lá estará ele estendido ao comprido, evidentemente gaseado por aquele fedor que não se aguenta.
Claro que Matosinhos não tem o melhor peixe do mundo. Tem um peixe honestinho, com que me vou regalando cá em casa, e não é peixe de restaurante. É outro peixe, de que a publicidade não sabe, e ainda bem para mim. Por outro lado, Matosinhos terá provavelmente o melhor pior fedor do mundo. Entre o peixinho e o fedor, às tantas nem me queixo. Na verdade, confesso, gosto de Matosinhos assim.

P.S. - Publicado originalmente no dia 9 de Agosto de 2015, e o fedor continua. Entretanto o meu amigo Senhor Varredor - um dos meus amigos Senhores Varredores, senhoras e senhores - mudou de emprego. Continua no ramo das limpezas e jardins, mas já há uns anos que passou a funcionário público, tiraram-no da zona dos restaurantes e portanto salvaram-lhe a vida praticamente. E já agora: hoje é Dia do Gari. No Brasil. Se fosse em Portugal, seria Dia do Almeida. Muitos parabéns, em todo o caso!

domingo, 15 de maio de 2022

De afocinhanço em afocinhanço

Foto Hernâni Von Doellinger

Directo ao assunto: quando fiz 21 anos comi 21 gafanhotos. Vivos. Obrigaram-me. E não me estou a queixar, embora tenha sido uma canseira andar a persegui-los e a apanhá-los um a um no mato, eles aos saltinhos e eu de cócoras, um sol do caraças, a risota do maralhal, os insultos do tenente, o corpo moído, uma sede que eu sei lá, mas antes isso do que passar o dia inteiro a levar pancada. O dia e a noite. Por outro lado, apesar de ter comido 21 gafanhotos vivos no dia exacto e triste em que fiz 21 anos, passei aqueles dias todos a levar pancada. Aqueles dias e aquelas noites. As noites também. O que tinham de bom as noites é que só muito raramente propiciavam "golpes de calor", ou insolações, como se diz quando se quer que se perceba o que se diz.
Mas os gafanhotos. Os gafanhotos eram absolutamente essenciais, alimentavam heróis em construção, forjavam homens de aço, oleavam máquinas de guerra que haveríamos de ser. Eram, repito, absolutamente essenciais, naturalmente curriculares. Os gafanhotos e a pancada.

Assim eram os Comandos, tropa dita de elite para onde não fui voluntário, é preciso que se note. "Mais logo afocinharemos!", ameaçava o tenente por tudo e por nada, só porque lhe apetecia. E afocinhávamos. Passávamos a vida a afocinhar. Havia um cuidado muito grande com a nossa alimentação. Por vontade de quem mandava, nós, os desprezíveis instruendos, estaríamos sempre a comer, às mãos desabridas de sargentos e cabos com idade para serem coronéis, com poderes de general, práticas de verdugos descontrolados e tremendas saudades ultramarinas. Consta que, mais de quarenta anos passados, os Comandos ainda são assim. E que às vezes "as coisas correm mal". Há mortes, mesmo sem guerra.
Em 1978 correu mal uma aula de morteiros. Um instrutor jactante e incompetente, como se exige que sejam os instrutores, apontou para o infinito, despoletou a granada e, sem querer, deixou-a escorregar tubo abaixo. Pum! O morteiro só parou em cheio num centro comercial da Amadora, por acaso com pessoas dentro. Sei disto porque estava lá, do lado do morteiro e do instrutor palerma. E, para evitar problemas com a população, não me deixaram vir a casa nesse fim-de-semana.
Quanto aos gafanhotos, fritos e de escabeche decerto marchavam melhor. Pelo menos parece ser esse o entendimento da nossa Direção-Geral de Alimentação e Veterinária, que anunciou em Junho de 2021 a autorização para a produção, comercialização e utilização na alimentação em Portugal de sete espécies de insectos - duas de gafanhotos, duas de grilos, duas de larvas e um besouro.

Naquele tempo, no meu breve tempo de Comandos, eu já tinha visto na televisão a preto e branco a série Kung Fu, com David Carradine, mas ainda não conhecia a anedota "O Mestre e o Gafanhoto", que haveria de ouvir anos mais tarde contada numa cassete pelo menestrel brasileiro Juca Chaves e que, se bem me lembro, é mais ou menos assim:
Gafanhoto, aprendiz de Shaolin, era pequenininho e perguntou ao seu velho Mestre, que era cego e sabia tudo:
- Mestre, quando é que eu me tornarei um homem?
E o Mestre respondeu-lhe:
- Gafanhoto, quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir duas bolas, então você será um homem. Mas quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir quatro bolas, não pense que é super-homem. É que tem alguém lhe enrabando...

P.S. - Este texto é tão velho como o velho mestre de kung fu. O meu gastronómico encontro com os gafanhotos desenrolou-se durante a chamada "semana maluca" dos Comandos, em que o dia é noite e a noite é dia, com horários e afazeres trocados, incluindo as refeições e a instrução, ainda por cima abrilhantada pelas famosas prova da sede, prova de choque ou prova de sobrevivência. E relembro aqui essas lamentáveis peripécias porque hoje é Dia Internacional do Objector de Consciência. Eu não fui objector nem voluntário, a tropa aconteceu-me, mas lembro-me de, anos depois da minha malograda passagem pelos Comandos, já jornalista e com responsabilidades administrativas e editoriais, ter ido a tribunal militar defender um camarada de profissão que objectava. Defendi-o como defendo os ex-combatentes, voluntários ou involuntários, gente marcada pela guerra e de quem o Estado tem uma certa queda para se esquecer.

A última a morrer

Era uma família convencional. Morreram, naturalmente por esta ordem, o Acúrsio, a Adelaide, o Tibério, a Catarina, a Rosa, o Celestino e finalmente a Esperança. É daí que vem.

sábado, 14 de maio de 2022

Como uma bala...

Foto Hernâni Von Doellinger

Atrás do solidó

Já sabem, eu não posso ver na rua bandas de música ou grupos de zés-pereiras, que me perco. Sigo-lhes os passos, esqueço-me da vida, já não sei que recado ia fazer. (Eram quatro ou cinco pães? Ou seriam bananas?) Os "trampolineiros" da minha infância alegram-me os dias da madureza, descompassam-me o bater do coração, tornam-me a Fafe e à pureza original, comovem-me. Queria que houvesse discos pedidos para poder encomendar todos os dias o "Resineiro" cantado de mansinho mas bem picada de tasco em tasco. Queria pedir desculpa por ignorantemente lhes ter chamado "trampolineiros", coisa feia. Eram, são, tamborileiros. Os tamborileiros da minha alegria triste. E portanto cá vai mais uma vez, versão refinada e aumentada:

O meu avô Bernardino Neques, que nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria, tinha o seu lado musical. Desunhava-se satisfatoriamente com a concertina e o acordeão, e já velhinho veio-lhe a mania do violão, lembro-me que com alguma falta de jeito, Deus me perdoe se estou a ser injusto. Esqueçamos, porém, o violão, o acordeão e a concertina, que foram só para meter conversa. Tornemos aos bombos, à caixaria.
O Neques do meu avô Bernardino não era de baptismo. O verdadeiro nome do meu avô de Basto era Amigo Pereira - assim lhe chamava toda a gente por essas feiras e romarias ali à beira, a começar pela Lagoa, onde ele varria o terreiro com o varapau de lódão girando por cima da cabeça como ventoinha de helicóptero, e suponho que não é preciso dizer mais nada para que se perceba de que marca era o homem. (Mas vou dizer: quando fazia de jogador do pau e estava decentemente avinhado, o meu avô tinha um grito de guerra que era "Olraitecamoniésse!". E tinha um cão de pele e osso ao qual dera o nome de Tuísta, que queria dizer Twist. O meu querido avô era anglófilo americanado e não sabia. De americano, o Bô só conhecia o vinho, e talvez o João Massagista, mas desta parte não tenho a certeza.) A alcunha que ficou famosa, Neques, veio-lhe do seu tempo de moço, contava-se, quando rufava a bom rufar na caixa, honesto instrumento por onde começou na arte. E tocava naquele ritmo manso e exacto que ele gostava de explicar como neque-neque-neque, neque-neque, neque-pum. Neques, pois.
O meu avô era apaixonante. Obviamente Banda Revelhe, por causa do meu pai e por bom gosto natural. E o toque de caixa, para o Amigo Pereira, tinha ciência, solfejo. Gostava de perguntar-me, por exemplo, "Quantas pranas tem uma rana?", como se estivéssemos a elaborar sobre fusas e semifusas. Eu dizia que não sabia, que era o que o velho Neques queria ouvir, para logo a seguir me ensinar, matreiro e mais uma vez, "Conta-as, rapaz: rana-catrapana-catrapana-pana-pum; quantas são?..."
Já não há Bernardinos assim. E faz-me diferença. Pum.


P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Abril de 2014.

E o rio Grande passava na minha rua

O Texas era um tasco e era em Fafe. Chamava-se também Quiterinha, derivado ao nome da dona, senhora respeitável, ou Pensão Império, e isso eu nunca soube derivado a quê. Estão a ver a Rua Monsenhor Vieira de Castro, quem vai para o Picotalho, do lado do Cinema, depois da padaria e encostado ao Noré, mesmo em frente à cabine, antes de chegar às Grilas e ainda mais às Turicas, nas barbas da procissão da Senhora de Antime? O Texas era exacta e geograficamente aí, previamente a ter-se instalado de armas e bagagens no sul dos Estados Unidos da América, resvés com o México, segundo vi depois nos filmes a cores.
O Texas, o nosso Texas, o verdadeiro Texas, era a preto-e-branco e tinha, após o balcão, um reservado com vista para a cozinha e para os campos do Santo, onde hoje se ergue o cimento do Pavilhão Municipal. Foi no nosso Texas, na sala da frente, que eu vi na televisão os jogos de Portugal no Mundial de 1966. Eu e a RTP éramos miúdos da mesma idade. Ao Texas fui com o meu pai, no Texas confraternizei com os músicos antigos da Banda de Revelhe, que tinha casa de ensaio ali a dois compassos, coisa tão a calhar, com o querido Senhor Ferreira do Hospital ou com o Queirós, meu camarada bissexto na fábrica e provavelmente o melhor tintureiro do mundo, desse-se o caso extraordinário de ele aparecer ao trabalho...

(Isso. O Texas era como se fosse uma segunda casa de ensaio da Banda de Revelhe, centro de convívio líquido, a verdadeira sede da colectividade. Músicos e apaixonantes reuniam-se e discutiam ali, à volta de umas valentes infusas de vinho verde. Falava-se de música, cortava-se na casaca, celebrava-se a vida. Quando o meu pai foi para França, os camaradas que ficaram, incluindo o meu padrinho e tio Américo, irmão do meu pai, escreviam-lhe de vez em quando mandando-lhe novidades de Fafe, da banda e do tasco, e, malandros, castigadores, costumavam carimbar a assinatura colectiva da missiva com um fundo de caneca esborratado de tinto matão, acirrando-lhe saudades e apetites. Lembro-me como se fosse hoje.)

Vamos dizer, então, que o Texas, o nosso, era uma casa de pasto - sem ofensa para todos os verdadeiros americanos do faroeste, incluindo gado cavalar e vacum. As portas do Texas eram verdes, mas não eram de saloon. Cobóis, apareciam alguns, sobretudo às quartas-feiras, porém não me lembro de tiros. Naquele tempo em Fafe, terra de paz e amor, matava-se mais à sacholada e a Justiça de Fafe era um postal com quadras bairristas do Zé de Castro, poeta-cauteleiro, o nosso Aleixo. Borracheiras havia-as, e eram acontecimento de alta patente, é preciso que se note. Não tínhamos xerife, mas tínhamos o Chester, tínhamos o regedor de pistolete à cinta e tínhamos o Miguel Cantoneiro, que padecia de uma questão com os erres e, para todos os efeitos, também era autoridade. Às vezes, quando não era precisa, também tínhamos polícia.
Em todo o caso: o Texas foi sempre um sítio pacífico enquanto esteve nas nossas mãos. Quando foi para a América é que se tornou perigoso.

P.S. - Publicado originalmente no dia 19 de Novembro de 2017.

Molhando a palheta

O boleto é uma ordem oficial escrita que requisita alojamento para militares numa casa particular ou o próprio alojamento assim conseguido. É também salvo-conduto, a parte superior do carril sobre o qual rolam comboios e eléctricos, um género de cogumelos comestíveis e a articulação da perna do cavalo acima da ranilha, dizem uns, ou acima da quartela, dizem outros. No Brasil, boleto é ainda papelinho de aposta nas corridas de cavalos, registo de dados de uma operação bolsista, bilhete de acesso a espectáculos e similares ou impresso de factura-recibo.
Posto isto, que não interessa para nada, mudemos de assunto. Falemos de uma coisa completamente diferente. Falemos do boleto.
O boleto que, pelo menos aqui há uns anos e em Fafe, era praticado pelas bandas de música e consistia numa módica quantia em dinheiro vivo que o contramestre da filarmónica distribuía pelos músicos provavelmente a título de ajuda de custo ou, talvez melhor dizendo, como subsídio de alimentação - o que salvava o dia sobretudo aos jovens aprendizes, que passeavam muito bem a farda e faziam número na procissão mas "ainda não ganhavam".
De uma certa maneira, o boleto era também uma das peças do concerto. Enfim, uma bagatela, como lhe chamariam os românticos. Peça curta e despretensiosa mas de sucesso garantido, faço questão de acrescentar, para contar tudo como deve ser contado. Se não parecesse um rematado disparate, suponho até que seriam os próprios músicos a pedir bis. O dinheiro saía em notas puídas e renitentes de um gordo envelope cada vez mais magro e era entregue em mão, uma mão atrás da outra, no dia mesmo da "festa", em pleno coreto, com o povo ao redor, durante um intervalo que desse jeito.
Posso ter inventado esta memória, mas cuido que o mais das vezes o bodo era repartido já da parte da tarde do "serviço". E que se segue? Não sei porquê (sei, sei!), a minha cabeça começou então a associar boleto a merenda, como se fossem palavras sinónimas, e até hoje. Boleto igual a merenda. Exactamente. Merenda ao "balcão" de uma barraca beduína, periclitante e malcheirosa, espécie de estendal armado às três pancadas entre varas de choupo e toldos de pano, com bacalhau frito, orelheira salgada, frango abusivamente churrascado, moscas e sardinhas assadas que eram uma desgraça. Uma desgraça bem bebida, afogada em vinho até ao nariz.

Vinho, como quem diz. Bastas ocasiões bebia-se "receita", isto é, juntava-se cerveja e açúcar ao alegado vinho para disfarçar o pique a vinagre...

P.S. - Publicado originalmente no dia 18 de Março de 2020, sob o título "O boleto".

Filarmónicos e outros copofónicos

Encostados ao coreto, de mão em concha na orelha, seguem a música com gestos semibreves de deleite e aprovação, procurando com um sorriso de conhecedor e olhos piscos a cumplicidade do povo todo ali à roda. E pedem chiu!, semiconfusos e comovidos até às lágrimas, à espera dos ribombos do grand finale, para então se desfazerem em aplausos. Eles estão a ouvir a melhor banda do mundo, a sua banda, e pouco importa que, na verdade, até nem tenham bom ouvido. Não precisam dos ouvidos sequer. Eles ouvem a música com o coração. Eles são os apaixonantes.
Regra geral, são homens, reformados e musicalmente analfabetos. Mas também são sábios, quando conseguem reduzir a sublime arte que tanto os apaixona à sua simplicidade essencial. "Perceber de música é gostar do que se ouve", dizem. Eles, sim, são os verdadeiros filarmónicos, fazendo jus à explicação da origem grega da palavra: phílos = amigo + harmonikós = de harmonia. Exactamente: eles são os amigos da música.
Eles vão ouvir os ensaios, da parte de fora, na rua, por respeito. Trazem na carteira o calendário dos concertos. Seguem a banda para todo o lado, se possível de boleia na camioneta que transporta o material e os músicos. É verdade, como eles apreciam a proximidade e o convívio com os seus artistas! Oferecem mais um copo a troco de dois dedos de paleio, discutindo clarinetes e bombardinos, marchas e fantasias, com demonstrativos e desafinados terululi-fá-dó-mi-rol-fé-poropopó-trró-pum! pelo meio. Pedem "mais peso", querem "peças pesadas" para afogar sem misericórdia a banda do outro coreto no emocionante despique que apenas intervala. Entusiasmados, metem na conversa o Tchaikovsky e o Giménez, num tu cá, tu lá mais próprio de quem evoca uma famosa dupla de defesas centrais. Se eles sabem do que falam? Talvez não. E isso interessa?
Na terra onde eu nasci há duas bandas de música. E dois grupos rivais de apaixonantes. Qualquer observador independente dirá que, objectivamente, uma banda é melhor do que a outra. Mas isso aqui também não interessa para nada. Para os apaixonantes, a qualidade absoluta é um valor irrelevante. A nossa banda é que é sempre a melhor. O ouvido dos apaixonantes, para além de geralmente duro, é um ouvido selectivo, faccioso: surdo às fífias da casa e inventor de desafinações na concorrência. "Estão fraquinhos este ano"...
Portugal deve ser o único país do mundo que tem apaixonantes. E os apaixonantes são uma raça em vias de extinção. Alguns dos poucos sobreviventes podem ainda ser vistos numa festa ou romaria perto de si, em grupos de dois ou três, encostados ao coreto, de mão em concha na orelha. Se por caso os vir, respeite-os, mime-os, ajude à preservação da espécie.
Porque os apaixonantes e as bandas de música são como aqueles casais antigos, em que um não vive sem o outro. Ela morre e ele vai logo atrás. Ele morre e ela vai logo atrás. No dia em que desaparecer o último apaixonante, as filarmónicas também não ficam cá por muito mais tempo...

P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Setembro de 2011, sob o título "Os apaixonantes". A correlação de forças entre as duas bandas fafenses já não será, porventura, a que era, mas isso não importa para aqui. Interessa é que: hoje, na programação das Feiras Francas de Fafe, é dia de ouvir ambas as filarmónicas, Golães e Revelhe. E deixo aqui um desafio ao caro leitor - olhe bem para os arredores do coreto e procure identificar os apaixonantes. Quero dizer: os verdadeiros e derradeiros apaixonantes...

Estava à toa na vida

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Fátima, em suaves prestações semanais

O meu avô da Bomba jurava que nunca pôs nem nunca na vida poria pé na praia. Que era muito sol ao desamparo, areia demais para a sua camioneta. Queixava-se: a água estava constantemente molhada e, ainda por cima, salgada. O meu querido avô era "uma pessoa muito doente" e precatada quanto ao sal. Portanto, o sol e o sal. "Se ainda ao menos houvesse a sombrinha de uma árvore", dizia, molageiro, aí que contassem com ele nem que fosse só para a soneca da tarde. Mas o meu avô era um exagerado, um mentirosinho sem tenção de ofensa - e aquela jura eu sabia que era a mangar...
Para o avô da Bomba, como para todo o fafense que então se prezasse, a palavra praia queria dizer Póvoa de Varzim. Exactamente. Ir à praia e ou ir para a praia (conceitos que importa diferençar) era ir à Póvoa ou ir para a Póvoa, via Famalicão. E no entanto o meu avô conhecia também satisfatoriamente os longínquos areais de Ofir, da Figueira da Foz e da Nazaré, o que já não era brincadeira! E de onde é que lhe vinha esta extraordinária mundivivência, este cosmopolitismo fafense tão antes do tempo? Pois bem: o meu avô organizava excursões - dois dias ao Alto Minho, com pernoita em Viana do Castelo, dentro do autocarro, no Largo da Agonia a esbordar de camionetas e parolos como nós, e umas senhoras cá fora a fazerem café de cafeteira em máquinas a petróleo, à luz do petromax até que o sol nascesse; três dias a Fátima, pelo 13 de Maio. Ano sim, ano não. Partida e chegada no quartel dos Bombeiros, sempre, então na Rua José Cardoso Vieira de Castro, ao lado da garagem do Zé Bastos e entre os dois palacetes. Com as estradas que tinha, Portugal era naquele tempo um país imenso. Ir de Fafe aos Arcos de Valdevez ou a São João da Madeira, por aquela altura, era como embarcar por engano numa expedição de Júlio Verne ao fim do mundo...

O meu avô era um videirinho, já aqui contei. Tinha casa e salário de quarteleiro dos Bombeiros, não sei se era muito ou pouco, mas não perdia oportunidade de fazer dinheiro extra no que lhe estivesse mais à mão: o tasquinho na cave do quartel, os tremoços, os bolinhos de bacalhau e o vinho na Festa da Bomba, a aguardente e o vinho, sempre o vinho, nas sessões nocturnas do cinema ao ar livre na parada das traseiras, muito antes de a sétima arte descer ao campo de futebol, a banca de sapateiro por baixo das escadas que subiam para o salão de festas, umas refeições especiais encomendadas por um certo grupo de amigos, respeitosos admiradores das mãos de ouro da minha avó para a cozinha. Uma vez há cinquenta anos o papa Paulo VI veio a Fátima e pouca gente tinha televisão em casa. No salão dos Bombeiros foram montados um projector e uma tela para a transmissão em directo e em "ecrã gigante", com entradas a pagar. A sala encheu, o dinheiro da receita revertia naturalmente para a Associação Humanitária, mas de certeza que o avô também conseguiu sacar dali algum, nem que fosse a vender rebuçados para a tosse ou cascas de amendoins...
Ora é aqui que encaixam as excursões, que os candidatos a excursionistas pagavam em suaves prestações semanais desarriscadas nuns cartõezinhos que o meu avô mandava fazer na tipografia. Isto para aí durante um ano. O avô da Bomba fazia a cobrança aos sábados ou domingos de manhã, não sei precisar. Ia de motorizada e às vezes levava-me, primeiro numa Florett e depois na Lambreta, uma Vespa azul, antes e depois de haver sentidos proibidos nas ruas de Fafe. Para o meu avô nunca houve, o caminho foi sempre o mesmo e tinha sempre razão quando lhe apitavam ou gritavam para não ir por ali. Eu, nem pio...

(A Florett tem muito que se lhe diga em Fafe, era um veículo de pecado, mas por ser verdade aqui declaro que o meu avô nunca foi dado a essas actividades por assim dizer extracurriculares. A Florett calhou-lhe, e só isso...)

Mas as excursões. Eram viagens épicas, cheias de cheirinho bom a merendeiro e muitas paragens para "mudar a água às azeitonas", enjoos e borracheiras de caixão à cova. Cheiravam também a gomitado, a  naftalina, a sapatos novos, a botas ensebadas de fresco, a chulé, a urina, a tabaco, a suor, a desodorizante Lander, a perfume barato, a brilhantina, a laca, a mundo. A coberto da noite soltavam-se uns traques enfeitados com risinhos solertes que ajudavam à festa. A camioneta avariava, pessoas perdiam-se. Cantava-se o "Treze de Maio", o "Queremos Deus" e "O carrapito da Dona Aurora". Rezava-se o terço ao passar a Ponte de Fão, sobre o rio Cávado, porque constava que a estrutura estava a cair de podre. Morreríamos todos muito bem. Na Póvoa as mulheres arregaçavam as saias, os homens arregaçavam as calças e os miúdos ficavam em cuecas ou em pelote, consoante a idade, e todos se agarravam com quanta força tinham à grossa corda que ligava o mar ao areal, brincando aos sustinhos e trambolhões de felicidade histérica ali no sítio onde o mar enrola na areia, que também se cantava.
Sei disto tudo porque estive lá. Que me lembre, fui uma vez a Fátima e outra ao Alto Minho, esta ainda com o meu pai. O meu irmão Lando ainda não tinha nascido. Eu, o Nelo e a Nanda queríamos ir sempre, mas não podia ser. O meu avô não dava borlas, nem aos netos. (Na verdade, o meu avô não dava nada a ninguém. Isto é: dava os bons-dias mas pedia recibo com número de contribuinte.) Ia portante só um, e no colo da mãe, mais do que isso seria prejuízo...
O meu pai, que gostava de fazer rir a minha mãe, dizia aos dois que ficavam: "Não é preciso chorar, vós também ides. Na sombra..."

Tanto relambório para chegar aqui: herdei do meu avô o horror à praia em dias de sol e gente, mas tenho a árvore que ele reclamava. Encontrei-a aqui em Matosinhos, mesmo ao pé da porta, encostada à esplanada do Lais de Guia. Passo por lá todos os dias e vejo o avô à sombrinha, com os pés mansamente enfiados na areia morna. Gosto de o ver assim, peço-lhe a bênção e beijo-lhe a mão. Sossego as saudades. O avô da Bomba era molageiro e videirinho, forreta do piorio, mas é meu.

P.S. - Publicado originalmente no dia 12 de Maio de 2017.

quinta-feira, 12 de maio de 2022

No princípio era uma azinheira

Foto Hernâni Von Doellinger

O tempo das parrecas

Gosto de nomes, gosto de palavras. Gosto do falar antigo: gosto de dizer que está "tudo na ponta da unha", quando me perguntam "como é que vai essa merda?", gosto de dizer que é "daqui, detrás da orelha", quando me perguntam "que tal?" a propósito de uma pinga de arrebenta que fazem o favor de dar-me a provar, verde tinto de preferência e cada vez mais bissexto.
Gosto da palavra parreca. Pachacha, não. Nem crica. Pito, cona, buceta, siririca, vulva, rata, pássara, passarinha ou perereca, apesar de legalmente registadas, então é que nem admito. Pior, só mesmo vagina, uma obscenidade que me tira do sério e absolutamente comparável à alarvidade de chamarem pénis ao pirilau. Pénis e Vagina (neste caso leia-se vajaina, se não for incómodo) até parecem nomes de um casal da Mattel, e se calhar ambos de virilhas vazias, como os outros dois, o Ken e a Barbie. Pila está muito bem. Mas...
Da parreca é que eu gosto. Para além de uns rebuçados de açúcar suponho que amarelo, formatados em pequenos ladrilhos e embrulhados em papéis de cores diversas e garridas, vendia-se antigamente nas barracas das feiras e festas de Fafe uma espécie de doce alegadamente em forma de pato, ou de pata, vá lá - e esse doce era a parreca.
Diga-se em abono da verdade, o doce resumia-se a uma somítica camada exterior de açúcar, agora branco, se não me engano, e o resto era um pedaço de massa castanha, azeda e dura como cornos, para lamber, lamber, lamber, lamber, até se desfazer à força de dentes, se a gente não desistisse antes. Era coisa para umas horas, se respeitada na íntegra. 
Quando nos vinha visitar, às quartas-feiras, pelos 16 de Maio e na Senhora de Antime, a querida Bó de Basto trazia-me sempre uma mancheia dos tais rebuçados e, infalível, uma parreca para me entreter a tarde. Foi decerto daí que eu fiquei freguês. 

P.S. - Publicado originalmente no dia 25 de Junho de 2015. E estamos no tempo delas...

Penso, logo...

Foto Hernâni Von Doellinger

Malandragem à moda de Fafe

No tempo em que Fafe era o Largo com árvores e os fafenses eram todos bons rapazes, "os" 16 de Maio e a Senhora de Antime eram festas de rebimba o malho. Havia de tudo: cestinhas, aviões, carrinhos de choque, carrossel, farturas, fome, apalpões às moças, estaladas de resposta, barracas de matraquilhos com jukebox, poço da morte, mulher-serpente, água fresca com longínquo sabor a limão e açúcar amarelo, parrecas e rebuçados, procissões, promessas, anho assado no forno, corridas de jericos e pilas. Pilas principalmente.
O bom povo de Fafe jogava ao quino, pelo Natal, no Peludo. Jogavam maus meninos bem, todo o ano, toda a noite, no Club Fafense, desperdiçando sorrateiras fortunas de berço. Jogavam os novos cavalheiros da indústria, desalinhados e ricos a estrear, toda a noite, todo o ano, no Fernando da Sede, de porta respeitosamente fechada. (Para entrar era preciso saber o santo-e-senha. Eu sabia, entrava, mas não jogava.) Jogava-se aos pinhões em casa, jogava-se ao bilhar, ao dominó, aos flippers, à sueca, à lerpa, às copas, ao sete e meio, ao montinho e à malha em todo o lado, a dinheiro, a cerveja ou a vinho, e até se jogava ao pau e à bola, mas isso já era para predestinados. Em Fafe jogava-se forte e feio. A tudo. Mas o pilas estava à frente. 
E nos 16 de Maio era fatal. E na Senhora de Antime também. E não tenho a certeza se no Corpo de Deus amém.

O Serafim Lamelas é que era o verdadeiro homem do pilas - a História nunca o poderá negar. O Serafim Lamelas era o nosso Stanley Ho e também um bocadinho o nosso Vito Corleone. Tinha a sua famiglia. Montava casino em todas as festas, grandes feiras e romarias da região, bastavam-lhe uma esquina, uma quelha, um desvão de escada, onde calhasse e parecesse invisível. O Senhor Serafim reconhecia-me e respeitava-me, sendo eu apenas miúdo, mas sabendo ele de quem.
O pilas é, para quem eventualmente o ignore, um jogo de mesa e de rua, de sorte e azar. Sorte para o banqueiro, azar para o apostador. Regra geral. É também um jogo evidentemente proibido, e por isso é que se jogava tanto. Os músicos das bandas filarmónicas eram naquele antigamente os melhores clientes do pilas, mas eu estaria capaz de jurar que muitas das vezes eles andariam por ali feitos com a casa, só para chamar patos.
O casino do Serafim consistia num resumido cavalete manufacturado com ripas de madeira ultraleve sobre o qual era estendido, a modos de tampo, um cartão, um papelão, um papel qualquer, uma toalha de mesa, sempre que possível um rectângulo em cabedal, tudo material facilmente dobrável, enrolável e sobretudo escondível.
O tampo estava dividido em quadradinhos pintados e numerados de 1 a 6 com tinta vermelha e de uma forma que parecia intencionalmente tosca ou então andaria ali a mão de Picasso. Apostava-se num número apenas, "singelo", ou dividia-se a aposta por dois números ou até por quatro, se bem me lembro, bastando para isso colocar o dinheiro da aposta em cima das setinhas que indicavam as múltiplas.
Havia depois o copo de plástico, dos de lavar os dentes, e o dado, provavelmente amestrado, que saíam como que por magia de um dos bolsos interiores do larguíssimo casaco do Serafim. O copo era agitado por mãos experimentadas, rápidas e enganadoras, virado ao contrário, suspense, saía o dado cansado, gasto, desilusão, este já está, não há nada para ninguém, só para mim, nova corrida, nova viagem. O Serafim era por acréscimo o nosso Luís de Matos.
O imenso casaco do Serafim Lamelas servia também para guardar o dinheiro da banca, num enchumaço que engrossava cada vez mais. E ninguém me tira da ideia: lá dentro estavam escondidas navalhas, pistolas e até metralhadoras, daquelas de carregadores redondos como nos velhos filmes dos ganguesteres de Chicago mas a cores.

Aquando da Senhora de Antime ou pelos 16 de Maio, que eram então dois dias, e daí decerto tão singular plural, o Serafim chegou a instalar-se encostadinho às escadas da Arcada, do lado mais esquerdo de quem desce, curiosamente o local onde ele e a mulher tinham lugar de feira, às quartas. Os jogadores apareciam ali num repente, como moscas não se sabe vindas donde. Amagotavam-se à volta da mesa, numa arriscada luta de cotovelos encasacados, nervosos, cheios de vício e de pressa, um olho nos números e o outro nas costas, não se desse o caso. O Serafim, que tinha mais olhos do que o Bruno de Carvalho, soberano no lugar de honra, reclamando espaço para a função, exibia molhos de notas dobradas no meio dos dedos lestos e, para desviar atenções, exercitava a lábia, muita lábia, debitando ladainhas encantatórias. Os seus lugares-tenentes à coca, um em cada dobrar de rua, tomando conta da polícia, que estava careca de saber daquilo tudo. Um polícia chegava a correr, dizia, num susto, "Vinte escudos no 3, rápido, rápido!", saía o 3, mas é claro que saía o 3, e o polícia desaparecia dali com os bolsos cheios e como se nunca lá tivesse estado.
Se a polícia fosse a sério, o Lamelas e seus acólitos desmontavam a banca num relâmpago e evaporavam-se com todo o dinheiro que estivesse em cima da mesa. Quando o dia estava a correr mal, faziam este número as vezes que lhes desse jeito. Fingiam que fugiam e mudavam de poiso. E os clientes ficavam num desconsolo burgesso, sem os cinquenta paus da quase aposta, sem o prémio que agora é que era e, não vamos mais longe, porventura também sem a carteira. Era um golpe bem ensaiado. E cinquenta escudos davam realmente para muito vinho naquela altura. Uma tragédia!
Outras vezes, por malandragem, era comum ouvir-se gritar de cima da Arcada, anonimamente, "Olha a polícia!", só para se meterem com o Serafim, e o Serafim, molageiro, aproveitava a deixa ou não, consoante sentisse o enchumaço do supercasaco.
Embora possa parecer o contrário, o pilas era um jogo muito completo. Para além do Lamelas e dos seus soldados, do cavalete e dos números, do copo e do dado, da polícia e do engano, revestia-se amiúde de pancadaria, navalhadas e tiros. Mortes, não posso jurar.
Eu joguei uma vez ao pilas. Em adulto praticamente. Apostei cinco coroas, mas partidas ao meio para dois números. E saíram-me cinco coroas. Do bolso.

P.S. - Publicado originalmente no dia 16 de Maio de 2020. Estamos outra vez nos 16 de Maio, este ano com a pandemia suspensa, seguindo dentro de momentos. E pilas, ainda há?...

Purinho porém matão

Foto Hernâni Von Doellinger