quarta-feira, 16 de julho de 2025

Afugentadores de gaivotas

Foto Hernâni Von Doellinger

Como as cobras

Ele era mau como as cobras. E como as moscas tsé-tsé e como os cães e como os escorpiões e como os crocodilos e como os hipopótamos e como os elefantes e como os tigres e como os leões. Era realmente do piorio.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Cobra.

Cobras e lagartos

Ele dizia cobras e lagartos. E dizia sanguessugas e borboletas e gaivotas e cangurus e macacos e sardinhas assadas com salada de pimentos vermelhos, nomeadamente. Enfim, dizia o que lhe apetecia...

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Cobra.

terça-feira, 15 de julho de 2025

Profissão: jovem!

Juventude é, basicamente, o período que vai da infância à maturidade. É a puberdade, a adolescência. Um tempo de aprendizagem e de formação de carácter. É-se jovem, grosso modo, entre os 15 e os 24 anos. Este é o entendimento geral. As excepções são, curiosamente, as organizações "juvenis", nomeadamente as jotas partidárias, geralmente governadas por matulões e matulonas bem acima dos trinta anos e que fazem da mocidade um cómodo e lucrativo modo de vida.

P.S. - Hoje é Dia Mundial das Competências dos Jovens.

As gaivotas

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Pensamento do dia

Por dia, faça chuva ou faça sol, cada vaca deve comer, em média, 50 quilos, entre forragem e ração, idealmente numa percentagem de 60 para 40, respectivamente. E deve beber 150 litros de água. De acordo com especialistas, este é o pensamento do dia, mais coisa menos coisa.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Liberdade de Pensamento.

O despertar do filósofo

- A vida é uma imensa linha recta cheia de curvas, e cada subida concomita-se numa irrefutável descida, vice-versando - disse o filósofo, ao pequeno-almoço.
- Chega-me o açúcar - disse a mulher do filósofo.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Liberdade de Pensamento.

Contraditório

- Mas há ou não há contraditório?
- Há, sim senhor.
- Bem. É que eu acho que...
- Calou! 

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Liberdade de Pensamento.

A raiz ao pensamento

Quando o poeta disse "Não há machado que corte", trouxeram-lhe uma serra.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Liberdade de Pensamento.

domingo, 13 de julho de 2025

Fafe cheirava a sabão amarelo

Ele era muito cuidadoso com a ferramenta. Todos os dias, de manhã e à noite, lavava as intimidades com um bom naco de sabão azul. Lavava, lavava, lavava. O sabão, se não me engano, é um poderoso desinfectante e antibacteriano. Um dia, faltando sabão azul em casa, lavou-se com sabão rosa. Nunca mais foi o mesmo homem.

Do que eu gostava mais em Fafe, do que eu realmente sinto falta? Do cheiro. Fafe tinha o seu próprio cheiro, distintivo, memorial. Fafe cheirava a esmero, cheirava a limpo, a lavado. Fafe cheirava a sabão amarelo. E era isto o ano inteiro, mais ainda na semana da Páscoa, quando as nossas mães asseavam a casa especialmente para receber o Senhor. Fafe, em boa verdade, era uma acolhedora mistura de cheiros bons, um bouquet requintado, mas o honesto odor do sabão amarelo pairava sobre tudo e sobre todos. Sobretudo.
Parecia penitência, castigo. As nossas mães, dobradas horas a fio com os desgraçados joelhos enfiados naquele caixote de madeira a que uns chamam tacoila e outros chamam cunco ou outro nome qualquer, conforme a região, em todo o caso instrumento de suplício, ou então com um simples farrapo servindo de rodilha ou joelheira, as nossas mães, dizia, lavando, lavando, esfregando, esfregando, água, sabão amarelo e palha de aço, e depois chupar e secar, e depois, e só depois, talvez no dia seguinte, outra vez o castigo, outra vez a penitência, a cera regrada, o lustro puxado e repuxado, até que o soalho brilhasse como um espelho, como o sol. E ficava o cheiro. Aleluia!
E pelos 16 de Maio também. E igualmente pela Senhora de Antime, pelo Corpo de Deus. De resto, os domingos em Fafe cheiravam que era uma categoria. Os domingos em geral. Cheiravam a desodorizante, a perfume, a brilhantina, a laca, a graxa, a sebo e a naftalina - tudo misturado, na missa das onze, com a Igreja Nova à pinha, dava uma certa vontade de gomitar, não vou mentir -, mas o melhor era o que se passava entretanto nas ruas da vila antiga, logo desde as primeiras horas da manhã, aquele extraordinário aviso dos velhos fogões de lenha, tão de confiança, tão competentes, tão autónomos, assando vitela tenra e dourada com todos os vagares, com todos os matadores, o cheiro e o fumo magníficos escapulindo-se pela chaminé carbonizada ou pelo telhado mal aparelhado e alastrando de porta em porta, como maldição de filme de mortos-vivos de hoje em dia, mas em bendição, que outros eram os tempos, graças a Deus.
Fafe cheirava. Embora hoje possa não parecer, Fafe era uma povoação rural, íntima, pacata, território de lavradores teimosos e polivalentes - tirante o Largo, isto é, o por Cima e o por Baixo da Arcada, e para além da Fábrica do Ferro e do Bugio, que eram outras vidas. Só por exemplo, toda aquela zona envolvente da Torralta, onde agora estão o bairro tão bem tratado, as várias escolas, o Pavilhão Municipal, as vivendas, as estradas e avenidas, os semáforos, as rotundas, a Biblioteca, os Bombeiros, a Feira, a Central de Camionagem e por aí fora, aquilo era tudo campos, terrenos agrícolas particularmente fecundos, os campos do Santo, Granja e São Gemil, campos, caminhos, quelhas, noras e minas, levadas e poças, com muito milho, fruta e umas quantas pipas de vinho. Era zona de carros de bois, aquela, e actualmente abunda de automóveis e tem o chão pintado a furta-cores. Fafe realmente cheirava. E à semana metia a cotio o cheiro a eido, a estrume, a lavadura, a gado, a galinheiro, a couves cegadas, a erva acabada de cortar, a terra seca acabada de regar, a medas húmidas, a chuva era farta e cheirava muito bem em Fafe.
Fafe tinha o cheiro doce das glicínias, cheirava a alfádega, a cidreira, a amoras, às tílias do Santo Velho, a uvas americanas, aos pinheiros de São Jorge e Castelhão, a castanhas assadas pela Maria Barraca à beira do tasco do Zé Manco, ao azeite do Moniz e ao bacalhau frito da Dolorzinhas no tasco do Paredes. Cheirava a maçãs guardadas nos barrotes secretos dos tectos, cheirava a geleia e a marmelada, a vinho novo, a aletria quente, a canela. Fafe cheirava todo o ano a Natal. Cheirava ao incenso da procissão do Corpo de Deus. E cheirava a piche derretido ao sol das tardadas de Verão, e cheirava a cano de escape de motorizadas sem cano de escape na noite atolambada da passagem de ano. Fafe cheirava à aguardente e ao engaço do fantástico alambique do Cinema, copiosamente manobrado pelo Sr. Zé dos Alhos, parece que ainda o estou a ver e ouvir. A cheirar.
Fafe cheirava a roupa a corar. Cheirava ao avental sempre lavado da minha mãe, que cheirava tão bem a sabão, a segurança e a felicidade, e eu, criança, pequenito, abraçava-me a ele, a ela, com quanta força tinha, e fechava os olhos à espera que o tempo à minha volta não passasse. É. Fafe cheirava à minha mãe.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada do meu blogue Mistérios de Fafe. As Festas de Fafe, ou da Senhora de Antime, arrancaram no passado dia 5 e encerram hoje, domingo da tremenda procissão.

sábado, 12 de julho de 2025

Provavelmente a melhor vitela assada mundo

Assim e assado
- Há dias assim.
- E dias assado?
- Assado? Foi tempo...

Eu às vezes temo pelo futuro da nossa vitela assada. A existência da confraria respectiva não me sossega e por acaso até já me preocupou. Isto é, não sei se a nossa vitela assada à moda de Fafe está realmente em boas mãos. O circo chegou à cozinha. Lembro-me das nossas Feiras Francas de 2013 e de uma programação toda modernaça que até meteu workshopping, showcasing e showcooking, e esta parte afligiu-me desde logo. Anunciava-se "a tradição e a inovação de mãos dadas", prometia-se a "elaboração de pratos tradicionais recriando com inovação", e eu, à rasca, só pedia aos Céus: - Com a nossa vitela, não! Senhor, fazei com que eles deixem estar tudo como está, que está tão bem, graças a Deus! São Lourenço, padroeiro dos cozinheiros, segundo uns, rogai por nós! São Benedito, padroeiro dos cozinheiros, segundo outros, rogai por nós! Minha rica Senhora de Antime, livrai-nos dos estragadores e salvai a nossa vitela assada, amém!
É. Eu sou muito religioso, embora amiúde não pareça, e levo a comida muito a sério, mas isso já se sabe. A honesta vitela assada à moda de Fafe até poderá ter os dias contados, porque os comedores de rúcula e outros tofus ainda nos vão proibir o consumo de carne, mas, enquanto não é crime, eu faço questão que a deixem em paz. Uma simples rodela de laranja a enfeitar, ainda que com a melhor das intenções, pode deitar tudo a perder.
E por isso digo e redigo: não mexam na nossa vitela assada! A vitela assada à moda de Fafe é o que é. É à moda mas não há modas. É, sem tirar nem pôr. Não tem variações, não admite inovações, dispensa recriações ou até interpretações. É vitela assada à moda de Fafe. Tal e qual como a recebemos dos nossos avós e dos avós dos nossos avós. Assim.

Sei muito bem o que fizeram à lampreia. A lampreia é, para mim, o supra-sumo da melhor gastronomia alto-minhota. Uma gastronomia apurada, robusta, variada, generosa, com personalidade, como eu gosto e como é, no geral, toda a honesta cozinha tradicional portuguesa. Há o arroz de lampreia, há a lampreia à bordalesa. E até admito mais duas ou três bondosas variantes (como a lampreia fumada, a lampreia recheada ou a lampreia assada), mas que, não desmerecendo, já não me são a mesma coisa. Eu fico-me pela arrozada a fugir do prato a todo o vapor e pela bordalesa intensa e substancial - embora, como a maioria dos portugueses, já só coma lampreia praticamente de memória.
No Alto Minho, a lampreia é justamente considerada "um prato de excelência" e de tradição. Sim, de tradição. "Para confeccionar um produto de qualidade com paixão e arte, nada melhor que as mãos de afamadas cozinheiras que receberam os testemunhos e segredos de gerações passadas, com raízes na ancestral tradição culinária do Vale do Minho", lia-se, uma vez, num opúsculo que chamava visitantes e promovia o consumo do apreciado ciclóstomo nos restaurantes da região.
E até aqui tudo bem. Só que, na capa do tal prospecto, a lampreia era apresentada num empratamento aguado e triste, desenxabido, somítico, obra certamente de um daqueles famosos jovens chefs da televisão que não cozinham nada mas têm muito jeito para as artes plásticas. Resultou assim uma coisa de snack-bar cantineiro, algures entre Nova Iorque e Bogotá, sem passar por Bouças, espécie de nouvelle cuisine pretensiosa e escusada, que envergonha a velha lampreia e a tradição gastronómica alto-minhota. Uma desgraça.
Assusta-me que venha a passar-se o mesmo com a nossa vitela. Quer-se dizer: temos provavelmente a melhor vitela assada do mundo, vamos agora inventar o quê?...

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada do meu blogue Mistérios de Fafe. As Festas de Fafe, ou da Senhora de Antime, arrancaram no passado sábado, dia 5, e vão até amanhã, dia 13, domingo, o tal da inigualável procissão.

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Ia-se a São Bentinho

Para cima e para baixo
Para baixo, todos os Santos ajudam. Para cima, costumam ser os Antunes.

Ir a São Bentinho, era assim que se dizia em Fafe. E queria dizer: ir a pé ao Santuário de São Bento da Porta Aberta, considerado o segundo maior santuário português. Ia-se geralmente em promessa, em pequenos ou grandes grupos, numa peregrinação de uma noite, por estrada, carreiros, atalhos e montes. Havia sempre um guia. O "xerpa" do grupo do Santo Velho, que acolhia alegremente povo doutros lados - da Fábrica do Ferro, do Retiro, da Ponte do Ranha, da Cumieira, da Pegadinha ou da Granja, de onde calhasse, sem discriminação -, era o imprescindível Agostinho Cachada, que conhecia o melhor caminho, ele e só ele, e levava pistola. Saía-se de Fafe ao fim da tarde e chegava-se lá acima, ao São Bentinho, ao amanhecer do dia seguinte. Acertavam-se contas, velas, esmolas, orações, às vezes de joelhos à roda da igreja, e tornava-se a casa, naquele tempo, de camioneta de carreira, com o corpo feito num oito. Em Fafe havia e creio que ainda há, folclore à parte, uma grande e genuína devoção a São Bento da Porta Aberta. Havia quem lá fosse uma vez por ano, todos os anos. Havia quem lá fosse várias vezes por ano, todos os anos. Consoante as necessidades, os percalços da vida, os remedeios e o tamanho da gratidão de cada qual. E havia quem lá fosse apenas por turismo ou simplesmente por namoro, que decerto o santo também não levaria a mal...

A minha avó de Basto tinha uma sociedade infalível com São Bento da Porta Aberta. Em questões de pele e outras coisas ruins, os dois juntos eram uma limpeza. E há acontecimentos espantosos que são fáceis de explicar. Por exemplo. Ali pelos meus vinte anos, eu tinha uma plantação de cravos no cotovelo do braço direito, que até nem me incomodava grande coisa, mas uma vez a minha avó viu, pediu-me licença e disse que ia falar com São Bentinho sobre o assunto. Quando queria falar com São Bentinho, a minha querida avó Emília ia pessoalmente, a pé, pequerricha e já velhinha, desde Passos, Cabeceiras de Basto, até Rio Caldo, em Terras de Bouro, onde o santo morava. Os cravos desapareceram.
Anos depois, o meu filho era criança e apareceu-lhe um cravo numa pálpebra. Uma vez a minha avó viu, pediu-me licença e disse que ia falar com São Bentinho sobre o assunto. Quando queria falar com São Bentinho, a minha doce avó Emília ia pessoalmente, a pé, ainda mais pequerricha e ainda mais velhinha, desde Passos, Cabeceiras de Basto, até Rio Caldo, em Terras de Bouro, onde o santo morava. O cravo desapareceu.
A minha avó era uma santa. Se eu puxasse pela cabeça, tenho a certeza de que me lembraria de um terceiro e definitivo milagre da minha avó em promessa com o "glorioso" São Bentinho, mas não quero arranjar problemas ao Vaticano.
O Vaticano tem muito mais que fazer do que ocupar-se com a comezinha história da Bó de Basto, que, cada vez mais velhinha e e cada vez mais pequerricha, continuava a ir a pé entender-se pessoalmente com São Bentinho sempre que era preciso - até morrer. O Vaticano tem coisas muito mais importantes a tratar, e mesmo assim não trata, que faria se tivesse de tomar conta do assunto da minha avó...

P.S. - Versão revista e (bastante) aumentada, publicada do meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia de São Bento. 

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Lapsus linguae

Foto Hernâni Von Doellinger

Entrei de rompante e gritei: mãos ao ar, isto é um assalto! Fiquei admirado. O que eu queria dizer era: alto e pára o baile! Eu andava desesperado e insone com aquele forrobodó todas as noites no apartamento de cima, bailarico até às tantas, cantoria sem norma nem excepção. E na hora agá, com tanto maldormir, a minha boca baralhou-se, fez confusão. Mas estava dito, estava dito: desci com um LCD de 100 polegadas, uma mesa de DJ, seis colunas de som surround, um globo espelhado, oito CD do Quim Barreiros, dois tablets, quatro telemóveis, sete relógios - um de sala -, seis pulseiras, cinco colares, doze pares de brincos, dois pacotes de batatas fritas, meia piza familiar de cogumelos e fiambre com extra queijo, um pacote de Sugus morango e framboesa, nove gramas de haxixe, garrafa e meia de vodka, duas canecas de sangria, vazias, três garrafas de Casal Garcia, treze cartões de crédito, um vale de reforma, 837 euros em numerário, um porquinho-mealheiro com a Justiça de Fafe por fora e 350 escudos em imprestáveis moedinhas de 1 escudo por dentro, um santinho da Senhora de Antime, um par de canadianas praticamente novas - uma professora de Toronto e uma enfermeira de Otava - e a empregada doméstica que também quis vir comigo.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada do meu blogue Mistérios de Fafe. As Festas de Fafe, ou da Senhora de Antime, arrancaram no passado sábado, dia 5, e vão até dia 13, próximo domingo, o tal da inigualável procissão. Hoje é Dia Mundial da Pizza.

A guardar-se para a vitela

À moda de Fafe
Podem-lhe pôr rodela de laranja. Podem. Podem pôr-lhe, até, rodela de ananás ou rodela de quivi ou fatia de abacate ou, se calhar, morangos com chantili, picles, frutas cristalizadas, farofa, "ketchup" ou mostarda de Dijon, claro que podem. Ponham! Mas, se é vitela assada à moda de Fafe, melhor fariam se não pusessem. Como diziam os antigos: não é dado...

Os domingos tinham esse pequeno problema, e quem for de Fafe e antigo sabe do que falo: tripas ou vitela assada? Era a verdadeira questão, o dilema do almoço dominical. Os fafenses de antanho, gente de bom comer e satisfatório beber, resolveram facilmente o assunto: isto é, em vez de tripas "ou" vitela assada, o almocinho de domingo passou a ser tripas "e" vitela assada. Até hoje. Nem o bíblico Salomão, nos seus melhores tempos, tomaria decisão mais acertada.
A vitelinha guiava-se em casa, com vagar e carinho, com as voltinhas todas, se possível em forno ou fogão de lenha, pingadeira de barro, velhinha, bem tarimbada, e as tripas, regra geral, iam-se buscar num tachinho à Esquiça ou à Pacata, consoante a ideia que cada um tinha acerca da sua própria posição social - o que agora até dá para rir, sabendo-se da história completa e vendo-se assim a coisa à distância...
Começava-se, portanto, pelas tripas, e a seguir vinha a vitela. O apetite era gerido ao milímetro, mais ou menos um bocadinho daquelas, mais ou menos um bocadinho desta - porque, como determina o princípio da impenetrabilidade da matéria, dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, e as vacas é que têm quatro estômagos, melhor para nós. Ora bem: a malta nova, pouco dada à tripalhada, reservava-se para a chicha com batatinha de ouro e arroz seco e solto. Mas, de quando em quando, reservava-se mal. Como daquela vez em que o nosso Zé não tocou no feijão. Perguntaram-lhe se estava doente, se tinha fastio, se queria um caldinho branco, se queria meter o termómetro. Que não, que não, que não e que não, respondeu respectivamente, e explicou todo gaiteiro: - Estou a guardar-me para a vitela!
Naquele domingo não havia vitela. E as tripas já tinham saído da mesa...

Agora, muita atenção: onde escrevi "tripas" e "vitela assada", deve falar-se "tripasss" e "bitela assada". À moda de Fafe. E, repito, mais atenção ainda: a vitela assada à moda de Fafe, quando bem trabalhada, é provavelmente a melhor vitela assada do mundo.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada do meu blogue Mistérios de Fafe. As Festas de Fafe arrancaram no passado sábado, dia 5, e vão até dia 13, próximo domingo, o tal da inigualável procissão.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

O dia do anho na terra da vitela

É preciso ter lata
O confinamento da pandemia fez dele um verdadeiro especialista em atum, preparando-o para toda a espécie de apagões. Bom Petisco à segunda, Ramirez à terça, Tenório à quarta, Minerva à quinta, Pitéu à sexta e Inês ao sábado. Ao domingo, sardinha em tomate, evidentemente.

Quatro ou cinco dias antes do domingo da Senhora de Antime, que é o segundo domingo de Julho, um pastor mailo seu rebanho davam entrada no largo do Santo Velho, mesmo em frente a nossa casa, e ali se estabeleciam, montando pasto, posto de venda e açougue, até que o último anho fosse despachado, isto é, até ao extermínio total. O pastor tinha cajado de pastor e cão de pastor, mas não era um verdadeiro pastor, era um senhor creio que da Rua de Baixo ou Santo Ovídio com faro para o negócio e habilidade para matar cabritos. Só era pastor, quer dizer, cabriteiro, naquela época do ano. E o rebanho também era um falso rebanho, os animais não se conheciam de lado nenhum, juntavam-se apenas para aquilo, naquela ocasião, mal eles sabiam com que fim, eram recrutados nos lavradores das redondezas e levados ao engano e ao altar do sacrifício, quer-se dizer, ao forno do fogão a lenha, de preferência, com batatinha dourada e arroz seco e solto, tudo muito bem comido e regado, na mesa grande e em família alargada, logo a seguir à procissão mas sem pressas. O fogão era amiúde na vizinha, por favor, bastava ir lá às horas certas para dar as devidas voltas à pingadeira.
Antes que me esqueça, para os de fora: o cabrito, generalizemos assim por bondade, era e suponho que ainda é o prato oficial das Festas de Fafe, isto é, da Senhora de Antime. O que não deixa de ser irónico, na terra da vitela assada. Naquele tempo, o cabrito entrava em nossa casa apenas uma vez por anho, e, é preciso que se note, em anhos bons...
No Santo Velho acontecia tudo, o Santo era um largo multiusos. Portanto também servia de matadouro e talho, escancarado e a céu aberto. O Santo era o centro do mundo. Os clientes vinham de toda a parte, da Feira Velha, da Fábrica do Ferro, do Retiro, da Ponte do Ranha, da Fonte da Cana, de onde calhasse. As pessoas escolhiam o animal que queriam levar para casa, maior ou mais pequeno, vivo ou morto, como os bandidos procurados no Velho Oeste americano. O peso e o preço eram combinados a olho, entre vendedor e comprador, e mais tarde eventualmente ajustados, coisa de nada, após pesagem da carcaça numa balança de mola propriedade do magarefe e viciada com toda a certeza.
Se era para seguir cadáver, o bicho morria logo ali, encostado ao muro do quintal da Senhora Carolina, avó do Naninho. O matador tinha um tenebroso conjunto de facas ou navalhas de diversos tamanhos e feitios, mas todas muito bem afiadas. E tinha também um pequeno tubo de cana que usava para, soprando-lhe do fundo da alma, com a cara a passar perigosamente pelas três cores dos semáforos, amarela, verde e vermelha, por esta ordem, inflar grotescamente a pele do animal, separando-a da carne e dobrando-lhe o tamanho, aquilo tudo quase a rebentar, o homem e o odre, cuidava eu, e era realmente uma coisa extraordinária de se ver, para depois proceder à esfola, facilmente, com uma perna às costas, como quem limpa o cu a meninos. E antes assim.
Era uma mortandade que só vista, caíam uns atrás dos outros. O chão do Santo enchia-se de vísceras e tripas e peles vazias e varejas grandes, feias e verdes. O Santo era uma poça de sangue, uma vala comum, uma estrumeira. O ar do Santo tornava-se irrespirável, cheirava a erva, a merda, a palha, a sebo, a azedo, a peste, e até as tílias se afligiam. O Santo fedia. Mas era por uma boa causa...
Por pobreza ou conveniência, havia quem comprasse o cabritinho a meias, ou até em quartos, mas quanto a isso os clientes é que se entendiam. Quem tivesse um galinheiro de vago ou um bocadinho de quintal, aproveitava para comprar o anho mais cedo, quando a possibilidade de escolha era maior, e levava o anho vivinho da silva para dois ou três dias de engorda. Na sexta-feira e não sei se ainda no sábado, o matador ia a casa e acabava de vez com a conversa.
Cá fora, o refugo aguardava pelos retardatários do costume.
Quem tinha de aparecer, por aqueles dias, era o Landinho, o Nosso Menino. E aparecia, porque o Landinho aparecia sempre. O Landinho andava de porta em porta e navalha na mão oferecendo os seus préstimos como matador de cabritos. Isso. O nosso Landinho, que era, entre outros afazeres delirantemente encartados, fiscal da câmara, polícia de trânsito, passador de multas e até padre, também matava muito bem cabritos, embora nunca o tivesse feito nem chegou a fazer, para sorte dele, dos cabritos e de nós todos.

Portanto, meus amigos fafenses, o segundo domingo de Julho, dia da Senhora de Antime, é agnus day, quer-se dizer, dia do anho. Mas também da vitela. E, se calhar, das tripas, aquele meio tachinho que sobra estrategicamente do almoço de sábado. E atenção: onde escrevi "tripas" e "vitela assada", deve falar-se "tripasss" e "bitela assada", com os ésses muito bem condimentados. Vitela e falar à moda de Fafe, sempre! Isto é, "sémpre"! A vitela assada à moda de Fafe, minhas senhoras e meus senhores, é provavelmente a melhor vitela assada do mundo. E isso nem tem discussão.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada do meu blogue Mistérios de Fafe. As Festas de Fafe arrancaram no passado sábado, dia 5, e vão até dia 13, próximo domingo, o tal da inigualável procissão.

terça-feira, 8 de julho de 2025

Se um elefante...

- E tive assim tipo uma reacção pélvica, passei-me...
- Reacção quê?
- Pélvica. Tipo à flor da pele, tás a ver? Pélvica.
- Queres dizer epidérmica?
- Não, essa cena é dos elefantes. Pélvica. Diz-se pélvica. Dããããã!...

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Alergia.

O intolerante

Ele era realmente uma pessoa com um feitio difícil. Tinha um problema com o álcool. E outro com o betadine.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Alergia.

domingo, 6 de julho de 2025

Diz-me o que vestes

A forma de vestir diz muito acerca das pessoas. Vejamos, por exemplo, os nudistas: creio que não é preciso dizer mais nada.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Naturismo.

Ex-citações

Diz o roto ao nu: - Excitas-me, pá!...

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Naturismo.

Ele e a natureza

Era uma alma sensível e só. Comovia-se com a natureza, conversava com o vento. Gostava de subir ao monte para ver as vistas. E ouvir as audições. E cheirar os olfactos. Nu.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Naturismo.

sábado, 5 de julho de 2025

Como é que eu hei-de?

Foto Hernâni Von Doellinger

O periquito-da-carolina
O último periquito-da-carolina morreu no dia 21 de Fevereiro de 1918, em cativeiro, no Jardim Zoológico de Cincinnati, EUA. Chamava-se Incas e era macho. E o seu falecimento quase passava despercebido. Que pena o nosso admirável Quim Barreiros não saber destas coisas. Conhecesse ele a triste história do periquito-da-carolina e certamente já lhe teria feito uma cantiga a condizer.

Meados dos anos oitenta do século passado. Eu tornava a Fafe pelo Verão e em Cima da Arcada, infalível, uma banca de venda de cassetes passava sem parar o sucesso do momento, "Como é que eu hei-de" ou, melhor dito, "Azar na praia", do grande Nel Monteiro. Uma e outra vez, uma vez atrás da outra, dir-se-ia que praticamente sem tirar fora, de manhã, à tarde e porventura à noite, dias úteis e inúteis, durante todo o santo horário de expediente, com serão e tudo incluído. "Como é que eu hei-de, como é que eu hei-de" era o mantra, a banda sonora daqueles dois ou três verões caseiros e suadoiros, eu e o meu irmão Orlando ríamo-nos bastante por causa disso, passou a febre e nunca mais pensei no assunto.
Acontece que apanhei a velha cantiga no outro dia, por acaso, no rádio do carro, pus mais alto, é claro que pus mais alto, cantei também, cheio de garbo e perdigotos, a minha mulher servia à pinta, gostei tanto daquele inesperado reencontro que o estupor da música chegou ao fim e eu fiquei ali à espera que ela, a música do Nel, entenda-se, voltasse automaticamente ao princípio, recomeçasse em delirante moto-contínuo, como naquele tempo de abraços e vinho em Fafe, e vieram-me umas saudades do caraças, chorei como se tivesse perdido alguém, quer-se dizer, chorei apenas um bocadinho, com lágrimas lavadas a seco.
O "Azar na praia" é hoje em dia, para mim, um clássico da verdadeira música popular portuguesa, quadrada e frequentemente desnecessária, paradoxal, convencida e ingénua, irrelevante e eterna, melodia simples e orelhuda, letra singela mas cheia de significado, como as homenagens no tempo do antigo regime e parece que agora outra vez também. A voz do Nel Monteiro, fraquinha, coitadinha, quase a fugir-lhe para parte incerta, aquela falta de ar no final das frases, os ésses rurais e honestos cantados como se trouxessem vento norte, não se arranjaria melhor nem por encomenda. E faço notar que não estou aqui no gozo. Acho esta canção realmente muito bem esgalhada, plenamente conseguida, sobretudo tendo em vista o público-alvo, tudo a bater no ponto, enfim, uma obra que só não digo que é prima porque lhe desconheço a parentela.
Manuel Teixeira Monteiro, natural de Barrô, Resende, e criado no concelho de Santa Marta de Penaguião, tem hoje 80 anos, feitos no passado mês de Maio. Para além do consagrado "Como é que eu hei-de", Nel Monteiro compôs e interpretou dezenas de outros temas que não lhe ficam muito atrás, entre os quais ouso destacar títulos igualmente inconfundíveis e paradigmáticos como "Alô, Alô, Maria Antónia", "Bronca na discoteca", "Esta miúda (dá-me cabo da cabeça)", "Bife à portuguesa", "Comboio do forró", "Santa Miquelina", "Milagre da burra", "É duro ser velho", "É duro ser mãe", "Kuduro é que é bom", "Tira o biquini amor", "Filha fizeste 18 anos", "Armanda sai da varanda", "Fico à rasca, fico à rasca" e, inesquecivelmente, "Puta vida merda cagalhões".
Nel Monteiro tem uma linda história de vida e disse uma vez que conheceu muito bem Marcelo Caetano e Salazar - "Fui sempre um ídolo dele", asseverou aliás, sem rodeios, em relação ao velho de Santa Comba. A extraordinária revelação entregou-a de borla à TVI, numa entrevista ao Manuel Luís Goucha, que em questão de importância, digo eu, também não é menos do que os outros dois figurões. A coisa passou-se no dia 1 de Abril de 2022. Em Dezembro de 2023, Nel Monteiro voltou à TVI e ao Goucha para contar as necessidades que passaram, ele e a mulher, derivado à pandemia. Que "foi um sufoco muito grande", que até deixaram de levantar medicamentos da farmácia por falta de dinheiro - declararam e, naturalmente, choraram. Choraram, que para isso é que são estes programas de televisão.
Ora bem. Estamos à porta do Dia Mundial do Biquíni, que é já no mês que vem, logo no princípio, e por isso lembrei-me outra vez do nosso Nel Monteiro, especialista na matéria. Especialista em biquínis, quero dizer, embora, por causa da rima e não por ignorância, ele lhes chame "biquinis". Em sua honra, em honra do bom Nel Monteiro, meu fugaz ídolo estival, e em honra de todos os biquínis mais ou menos desocupados, segue-se a famosa letra do "Azar na praia", mas um azar nunca vem só. Estais à vontade e estamos no tempo: deixai-vos de merdas! Com ou sem camisa, em cuecas ou ao léu, puxai mas é o youtube, som no máximo, e cantai comigo e com ele, vozes e corações ao alto, e que se lixe a afinação e, já agora, a vizinhança também:

Banhar-nos à praia fomos tu e eu
Mas que grande bronca nos aconteceu:
A minha camisa, o vestido teu
Quando à noitinha nada apareceu.

Muito envergonhados saímos dali
Eu em tronco nu, tu em biquini.
Não tinha dinheiro, carro também não
Viemos a pé, fizemos serão.

E ela, coitadinha, muito aflitinha gritava assim:

Ai, como é que eu hei-de, como é que eu hei-de?
Como é que eu hei-de me ir embora?
Com as perninhas todas à mostra
E os marmelinhos quase de fora…

Muito envergonhados saímos dali
Eu em tronco nu, tu em biquini.
Não tinha dinheiro, carro também não
Viemos a pé, fizemos serão.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. E hoje é exactamente Dia Mundial do Biquíni.

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Os dias da Senhora de Antime

Anjinhos, não!
Deveria querer dizer alguma coisa a nosso respeito, agora que penso nisso, mas não sei se diz. Já reparastes, certamente. Não há procissão no mundo que leve e chame tanto povo como a procissão da Senhora de Antime, em Fafe. Um mar de gente, povo atafulhado, a rebentar pelas costuras, sem espaço sequer para descruzar os braços e coçar repentinas aflições. Isso, povo em barda e de todos os feitios. Nós. O povo da terra, inteiro e simples, ali na procissão como na vida. Povo, povo, povo. Mas anjinhos, não...
 
Mete-se o mês de Julho, chega o calor, e Fafe vive os seus dias mais extraordinários. É tempo de Senhora de Antime. São as Festas de Fafe, que já foram da Vila, do Concelho e da Cidade. Os senhores da Câmara podem chamar-lhe o que quiserem, e até já lhe chamaram "certame", santa ignorância, mas toda a gente sabe que é a Senhora de Antime e o resto é conversa. Toda a gente, quero eu dizer, os fafenses do rés-do-chão, o povo, que é quem realmente sabe das coisas. Lá em cima, há evidentemente uma "organização", que antigamente era comissão de festas, e a "organização" apresenta um programa com muitos bombos, cabeçudos e gigantones, bandas filarmónicas, ranchos folclóricos, fado de Coimbra, nunca percebi porquê, e um considerável naipe de artistas mais ou menos musicais, à dúzia, de dentro e de fora, do TikTok e da televisão, famosos regra geral, excelentes às vezes, para quase todos os gostos. Três ou quatro desses artistas, a "organização" é que escolhe quais, são anunciados como "cabeças de cartaz".
A Senhora de Antime, no entanto, é a procissão. E isto é tão básico, valha-me Deus! Há séculos que o digo, mas afinal não adianta: a procissão é que é cabeça de cartaz das nossas festas. Domingo, o segundo domingo de Julho é a Senhora de Antime, a Senhora de Antime é esse domingo exacto, o nosso domingo mais fafense, o domingo mais esperado do ano. O dia único de ir "ver a Senhora", que coisa tão linda de dizer! O domingo da procissão que me leva às lágrimas, que quase me sufoca num soluço sacrista, palerma, aperto a mão da Mi, que já sabe do que a casa gasta, despejo a água dos óculos, de sol, para a próxima trago óculos de mergulho, rio-me desajeitadamente para o Kiko, com legendas de cinema mudo, não ligues, filho, é a velhice, não vem mais vinho para esta mesa. O Kiko sorri, faz sinal que percebe, que me compreende, parece que me promete um abraço para melhor altura. Tem razão. A Senhora está mesmo à nossa frente. Foi ao cabeleireiro, penso todos os anos, e aproveito para recompor-me. Não tem nada a ver com fé, religião ou família, é sentimento, fafismo tão-somente, fafismo puro e duro, e fafismo não se explica, vive-se, e nem é preciso ter nascido em Fafe para sentir fafismo, também dou isso de barato.
A procissão é que é. A procissão e a explosão do encontro das duas senhoras, das Dores e da Misericórdia, no Lombo ou na Ponte de São José. A sirene que toca à tradicional paragem dos dois andores no cruzamento do Santo Velho, junto ao Palacete, o nosso sítio combinado, como se os Bombeiros antigos ainda ali estivessem ao pé. E a sirene não toca, é um pranto. As pombas largadas e atordoadas e os salamaleques e foguetes excessivos e emproados à porta dos Paços do Concelho.
A procissão da Senhora de Antime, costumo ensinar a quem não sabe, é provavelmente a melhor procissão do mundo e certamente uma das maiores do mundo. Alguns palavrosos chamam-lhe até "Majestosa Procissão", mas ela é tudo menos majestosa. É popular, é simples, espontânea e incomensurável - a olhos de fora, impreparados, poderá até parecer desorganizada, mas não. É o povo que desce inteiro com as duas senhoras até à vila a que agora chamam cidade, não vejo com que vantagem. O povo de pé-descalço e bico calado, respeitoso, talvez com um flor nos lábios fechados para garantir fidelidade ao silêncio juramentado. Milhares de pagadores de promessas furando em marcha lenta pelo meio de milhares e milhares de devotos de bancada, apreciadores, preguiçosos, retardatários, ressacados, curiosos ou simples mirones, famílias inteiras, reunidas, carteiristas, apalpadores e empernadores que se atravancam nas beiras da estrada e nos passeios das ruas. É uma procissão tremenda e comovente, multitudinária e única, uma procissão a sério - A Procissão -, como tenho a mania de explicar aqui aos meus vizinhos que ficam banzados com a meia dúzia de almas penadas e a dúzia e meia de figurões autárquicos e outras autoridades civis, militares e religiosas, assim catalogadas, que todos os anos acompanham a imagem do Senhor de Matosinhos pelas ruas desta cidade que me acolhe, num deserto que só visto.
A procissão da Senhora de Antime é que é. Por mais dias que metam nas festas, por mais estrelas que chamem ao palco, a procissão será sempre cabeça de cartaz. Em Fafe, ano após ano, a Senhora é que arrasta multidões.

(Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. As Festas de Fafe arrancam já amanhã, sábado, dia 5, e vão até dia 13, domingo da próxima semana, o tal.)

quinta-feira, 3 de julho de 2025

O Silva dos plásticos

Fui à peixaria. Pedi meio quilo de fanecas e a senhora meteu-mas num saco de plástico; pedi meio quilo de lulas e a senhora meteu-mas num saco de  plástico; pedi dois carapaus e a senhora meteu-mos num saco de plástico; pedi meia dúzia de marmotinhas e a senhora meteu-mas num saco de plástico; pedi uma mão-cheia de petinga e e senhora meteu-ma num saco de plástico; pedi uma solha e a senhora meteu-ma num saco de plástico. A senhora:
- Que mais?
- É tudo.
- Quer um saco?
- Como sempre.
- São dez cêntimos.
- Este peixe todo?
- O saco é que custa dez cêntimos.
- Porquê?
- Porque é de plástico.
- E?
- É para proteger o ambiente.
- E os seis saquinhos com o peixe?
- São de graça.
- Não são de plástico?
- São.
- E só o sétimo é que prejudica?
- Não sei. Pergunte ao Moreira da Silva.

P.S. - Publicado originalmente no dia 24 de Fevereiro de 2015. Jorge Moreira da Silva é do PSD. Foi ministro do Ambiente no tempo de Pedro Passos Coelho e, exactamente em 2015, pôs os sacos de plástico a pagar imposto, com um sucesso que só visto. Hoje é Dia Internacional Sem Sacos de Plástico.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Piadistas e outros mentirosos

A piada, para ser fina, não deve ter mais de três milímetros de espessura.

Havia uns tipos com piada, em Fafe. Piada fina e piada grossa, conforme. Contadores de anedotas, abrilhantadores de saraus de sociedade recreativa, animadores de café, pregadores de partidas, havia-os com fartura naquele tempo. E eram geralmente de partir a moca. Fafe é de rir, por natureza. Sempre foi. Já no meu tempo era de rir, ríamo-nos como perdidos, por tudo e por nada. Claro que antigamente éramos uns amadores, caseirinhos, artesanais, ríamo-nos uns dos outros, uns com os outros, às vezes uns contra os outros, tínhamos riso que chegasse, não mandávamos vir de fora. Éramos, em questão de riso, auto-suficientes.
As anedotas é que vinham do exterior, regra geral. Fafe não tinha então produção própria, quero dizer, os nossos piadistas eram mais divulgadores do que criadores. As redes sociais funcionavam boca a boca, como a respiração salva-vidas, e as novidades humorísticas chegavam até nós trazidas pelos vendedores ou caixeiros-viajantes que visitavam regularmente o comércio e a indústria locais. Debitar umas larachas, se possível frescas em ambos os sentidos - "já sabe a última?, é de bolinha!" -, fazia parte do ofício. Primeiro as anedotas e só depois a nota de encomenda, se corresse bem, era uma técnica de marketing como outra qualquer. Vendedor sem anedotas não ia a lado nenhum, essa é que é a verdade.
Neste deserto de criatividade, as excepções talvez fossem o António Augusto Ferreira, aliás António Augusto Abreu, e o extraordinário Zé Manel Carriço. O Tónio Augusto, pai do omnijornalista Carlos Rui Abreu, o qual, diga-se de passagem, é, sem comparança, o melhor relatador português de futebol de hoje em dia, na rádio Antena 1, e parece que Fafe ainda não tomou sentido disso, o bom do Tónio Augusto, era aqui que eu ia, abastecia-se de anedotas em Guimarães, onde por aquela altura já se encontrava estabelecido. A loja era de roupa, de moda, chamava-se T111, se não estou em erro, suponho que derivado à sua localização, no Toural, e ao número da porta, 111, ali a meia dúzia de passos da Basílica de São Pedro, cujos sinos tocavam às prestações de quartos de horas, e não sei se ainda tocam, o Hino de Guimarães. Quem também tocava o Hino de Guimarães, mas de uma ponta à outra e apenas uma vez por ano, era a nossa Banda de Revelhe quando ia às Gualterianas e fazia a rompida na cidade velha, em frente à Câmara Municipal, e eu sei de cor a música do Hino de Guimarães, e esta parte, sou obrigado a admitir, dada a rivalidade tola entre as duas terras, não abona nada a meu favor. Evidentemente também sei de cor a música do Hino de Fafe e, com ajuda, ainda me oriento na letra do refrão.
E então o que é que se segue? O Tónio Augusto todos os dias trazia de Guimarães anedotas frescas, ainda vivinhas, praticamente por estrear, e, quiséssemos ou não, dava-lhes a volta lá à maneira dele e contava-as pelas noites dentro do Verão fafense, na "esplanada" do velho Peludo, temperadas com fininhos e tremoços. Depois, terminada a função, metia-se no carro e ia para a Póvoa, ter com a família em férias, o que só lhe ficava bem.
A piada era fácil para o Tónio Augusto, porque ele era cómico de nascença. Ele era, dir-se-ia hoje, um predestinado, um Cristiano Ronaldo da pilhéria, um Lionel Messi do chiste. Uma vez, à hora da missa, jogava o Tónio Augusto nos juniores da AD Fafe, ainda no Campo da Granja, e rachou ou racharam-lhe a cabeça. Encostou ao banco, que era mesmo um banco, em madeira, corrido, ao fundo dos cinco réis de bancada, e o massagista, talvez o João Americano, tratava de enfiar-lhe uns agrafos no lanho escarrapachado e sanguinolento (não tenho a certeza se não estaria mesmo a ser cosido), mas ele não deixava, queria voltar ao jogo. Barafustava um, ralhava o outro, um a puxar para a frente e o outro a puxar para trás, escangalhados como parelha de palhaços ou bêbados matinais. Era mesmo de rir, parecia cinema mudo mas já em sonoro e a cores...
O Zé Manel Carriço era outra coisa. Ele não contava anedotas. O Zé Manel contava as suas histórias, verdadeiras mais ou menos, episódios protagonizados por ele próprio, mas cenas tão improváveis, tão esdrúxulas, tão gagas, com um fim tão inesperado, preparado e teatral, e tão bem contadas, que passávamos noites inteiras naquilo, só a ouvi-lo. E o Zé Manel era o primeiro a rir-se do que dizia, e ria-se sonoramente, afagando a pêra elegante, e o seu riso era como um fósforo em mato seco. E nós à volta éramos um incêndio de gargalhadas, incontrolável, escusavam de ligar para os Bombeiros. Os mesmos empregados do Dom Fafe que, da uma às cinco da manhã, pediam, de meia em meia hora, "Ó Sr. Zé Manel, por favor, precisamos de fechar, olhe a polícia, temos de ir dormir!", às seis já só queriam "Ó Sr. Zé Manel, conte mais uma!"...
Depois tínhamos os "profissionais", o Landinho Bacalhau, o antigo, e o Zé Fala-Barato, os nossos microfónicos apresentadores de espectáculos, pontas de lança do Grupo Nun'Álvares, paus para toda a obra, cheios de categoria, e sempre com uma chalaça na ponta da língua. E tínhamos os comediantes avulsos, repentistas, atacando pelo soleno. As malandrices do Valença, as aventuras do Pimenta, as tiradas do Serafim d'Eiteiro, as saídas do Moisés, o Toninho da Luísa, que eu gostava de imaginar DaLuísa por causa do DeLuise americano, o Aníbal Carriço, o Zé do Registo em dias bons e fora do horário de expediente, o Zé Maria Sapateiro, o Sr. Lem, o Rates da Fábrica, o Manel Fogueiro, o Toninho do Café Chinês, o Aurélio Funileiro, o Chico Americano, o Tónio da Legião e o Aristides Carteiro, amiúde o Sr. Aristeu da Loja Nova e até o Joãozinho Summavielle, que aparecia pouco e só à noite, mas não deixava os seus créditos por mãos alheias.
Que rica terra! Estávamos, com efeito, muito bem servidos. Aliás, sobre toda esta esplêndida plêiade de bem-dispostos benévolos e miúde militantes, tínhamos também a nossa conta de reconhecidos gabarolas e mentirosos, e Fafe era realmente abundante a esse respeito. Mentiam tanto e tão mal, patranhavam tão estrambolicamente os nossos queridos aldrabões, que acabavam por ter piada. Eram uns tontos, mas também uns pontos. Como aquele ilustre industrial fafense enquanto jovem que veio de férias do Ultramar e, palavra de honra, a guerra teve de parar até que ele regressasse ao mato. Raul Solnado, na verdade, não contaria melhor...

P.S. - Versão corrigida e aumentada, publicado no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional da Piada.

Há-os com piada, há-os...

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Gorilas da Bruna

Bruna é uma youtuber bastante influencer. Elegante, bonita, regularmente recauchutada, famosa por ser famosa, esbanja sensualidade por tudo e por nada e enriqueceu por causa disso. Bruna mal pode sair à rua como as outras pessoas, isto é, põe um pé fora da porta a caminho da piscina por exemplo em Ibiza e multidões de adoradores caem-lhe em cima. Bruna tem milhões de seguidores. De perseguidores. Para fazer uma vida normal, viu-se até obrigada a contratar dois possantes seguranças, ou guarda-costas, à Kevin Costner, ou gorilas, como também se diz, que não a largam um segundo e vão com ela a todo o lado, inclusive à casa de banho por exemplo nas Maldivas. São conhecidos como os gorilas da Bruna.

P.S. - Hoje é Dia Mundial das Redes Sociais.

domingo, 29 de junho de 2025

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Do Costa Pacifica ao Costa do Assento

Reservado o direito de admissão
Foi má ideia aquele letreiro à porta do consultório - "Proibida a entrada de animais". Era um veterinário... 

Moro mesmo em frente ao mar, se for para a varanda e me puser de lado. A minha rua é o oceano. No meu quintal estacionam regularmente navios de passeio mediterranicamente atlânticos, paquetes carregados, descarregados e outra vez carregados de turistas rotundos e supersónicos que conseguem turistar o Norte de Portugal inteiro em menos de oito horas. Há quem chame ao meu quintal, por inveja ou ignorância, Terminal de Cruzeiros do Porto de Leixões. Mas não: é o meu quintal e mais nada.Noutro dia parou ali em baixo o Costa Pacifica, um colosso. São quase trezentos metros de navio para 3.780 passageiros. E sabeis que mais? Eu vim de Fafe, uma terra evidentemente sem comparação, ainda para mais agora que também tem mar, basta ir à Barragem, qualquer dia começam a aparecer aí os navios, e, Costa por Costa, estávamos melhor servidos, tínhamos o Costa do Assento, que tocava concertina, uma vez deu na televisão a apoiar o General Ramalho Eanes e também era uma categoria de pessoa, não desfazendo. O Sr. Costa tinha tudo de bom, tirante o feitio: foi meu vizinho, bombeiro valente e lavrador de primeira apanha, "veterinário" autodidacta, espécie de curandeiro, endireita e parteiro dedicado em exclusividade ao gado sobretudo vacum, tocava e mandava no rancho folclórico, ensinava viras, malhões e jogo do pau, era casado com a boa Senhora Rosinda e pai do Zé e do Lando, jóias de moços que lhe herdaram as artes, e pegava assiduamente no andor da Senhora de Antime.
Chegam, os turistas, e afigura-se-me que vieram para um congresso de cus na Exponor. Vê-los logo pela manhã é um espectáculo que não pára de maravilhar-me. Porque, conforme eles vão saindo, o barco vai subindo, fica mais alto, airoso, aliviado, parece-me. Depois, à tarde, regressam, os turistas, embarcam de requitó, pós-doutorados em sardinha assada e vinho do Porto, vão entrando e o barco começa a dar de si, amoucha, encolhe-se, queixa-se, parece-me, larga dois ou três lamentosos arrotos, zarpa devagar, devagarinho e não percebo como é que não se afunda.
Naquele tempo, nos tempos áureos do Costa do Assento, turistas éramos nós, os putos de Fafe, lingrinhas de pé descalço e pila ao léu, em sorrateiras escapadelas até às recônditas estâncias balneares do Poço da Moçarada, do Comporte ou de Calvelos, de onde, por norma e tradição, éramos sacados a ganir, puxados por uma orelha. A minha mãe parecia que tinha radar, e, uma desgraça nunca vem só, sabia sempre por onde é que eu andava e o que fazia. Que se segue? Os paquetes que agora me batem regularmente à porta chegaram tarde à minha vida, eu preferia tê-los visto atracar à poça do Santo ou à ponte do rio de Pardelhas, mas mais vale tarde que nunca, e mesmo agora dão-me bastante que pensar, suscitam-me reflexões de pequena e média profundidade que, não raro, gosto de partilhar. E daquela vez, olhando para o imponente Costa Pacifica, vieram-me à cabeça os cus. Os cus que os cruzeiros descarregam e recarregam.
Cu de turista não é brincadeira. É traseiro de bitola larga e se for cu americano então ocupa o mundo inteiro ou ameaça ocupar. Até parece que para se ser turista - turista diplomado - é preciso ter um cu daqueles. E o cu alemão e o próprio cu inglês também para lá caminham, não querem ficar atrás. O que diz tudo a respeito dos cus. Imagino que sejam muito ricos os camones com que me cruzo nas bordas do Porto de Leixões. Tão turistas e tão prendados de cu, serão decerto milionários. Engordam e viajam porque podem. E podem muito. Os cus precisam de arejar.
Na minha rua passa o mar. E, afinal, é porreiro ver navios. Por causa do Costa Pacifica, lembrei-me do Costa do Assento. Se quereis saber, ganhei o dia.

P.S. - Versão corrigida e (bastante) aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe.

quinta-feira, 26 de junho de 2025

O homem e o cão (e vice-versa)

O melhor amigo do cão
Havia um cão que tinha um dono muito bem mandado. Um dono obediente, brincalhão, carinhoso, esperto - só lhe faltava ladrar.

Todas as manhãs o homem e o cão passeiam pela praia, naquela incerta linha de sobe e desce onde o mar enrola na areia e acaba Portugal. Par pândego, havíeis de ver. O homem atira a velha bola de ténis e o cão, dez-réis de cão, rasteirinho e de raça incerta, corre e salta, como uma bala, como uma mola, abocanhando-a, à bola gasta e sebenta, ainda no ar. Cão danado para a brincadeira. E habilidoso. "Bem, muito bem, espectáculo!", diz o homem. E o cão regressa e larga a bola, e corre e salta à volta do homem, e ladra no verdadeiro ladrar que não morde, e abana o rabo, abana, que quer dizer "Obrigado, estou muito contente, mais, quero mais!...", e põe a língua de fora, que quer dizer "Ainda havemos de fazer isto mas ao contrário".
Um quadro enternecedor. Homem e cão, numa simbiose perfeita. O amigo dos animais e o melhor amigo do homem. Fossem eles polícias, o homem e o cão da bola de ténis, matinais frequentadores de oceanos, e estaríamos na presença de um binómio exemplar e definitivo. Decerto já vistes nas notícias: binómio é um polícia e um cão que são colegas de trabalho. Já um carteiro e um cão, se coincidirem, são um perónio. Um perónio partido e o fundilho das calças esgaçado.

(Lembro-me agora. Aquilo de passear o canídeo à beira-mar, eu bem o tentara em Fafe, nos meus vinte anos, com o Buck, o nosso cão na Rua do Assento. A beira-mar que tínhamos mesmo à mão, e por acaso bem jeitosa, se não fossem as silvas e outro restolho jurássico, eram as bordas do rio de Pardelhas, quando levava água, mas o Buck nunca me deu hipótese. O cão era quase do meu tamanho, muito mais forte do que eu e completamente dono do seu nariz. Saímos apenas uma vez. No seu habitat natural, o Buck era manso para as pessoas de dentro e sobretudo para as crianças. Sim, era lerdinho, porém destrambelhado. Gostava muito de brincar com gatos e galinhas, às vezes matava dois ou três frangos, mas era sem querer, diga-se em abono da verdade, fruto da loucura do momento, no descontrolo e afã da brincadeira. Íamos então passear, eu e o cão. Coloquei-lhe a poderosíssima trela, feita por encomenda e medida, própria para bisontes e elefantes, custou uma fortuna, dei-lhe calmamente a primazia, pus o pé fora de porta, todo lampeiro, e, como um raio ou talvez uma enorme marretada, num safanão sem preliminares nem precedentes, fui imediatamente arrastado de cangalhas para o empedrado, levantei-me como e quando pude, sempre de zorra, o Buck galopava a seu bel-prazer, sem parar sequer para cheirar ou alçar a perna, e eu atrás, agarrado à trela como quem se agarra à vida, aos solavancos, aos repelões, aos trambolhões, contra esquinas, árvores de pequeno e médio porte, tabuletas de trânsito e demais mobiliário urbano, o caralho do cão andou a exibir-me e a enxovalhar-me por onde lhe apeteceu, a vila inteira à janela a rir-se de mim, a fazer pouco do moço tolo, o filho da viúva da Bomba, tornei a casa feito num oito, num cristo, quando sua excelência achou que já chegava, e portanto nunca mais.)

Todas as manhãs, dizia, tornando à praia atlântica. Eu também por ali ando comigo pela trela e por isso é que sei o que estava a contar, mas ninguém me atira a bola, e antes assim. Ontem desatei a rir com o raio do cão, que realmente tem jeito, parece do circo o lingrinhas, um autêntico brinca-na-areia. Entre uma acrobacia e outra, o cão tendia a enfiar-se na água, coisa de cão certamente, e o homem dizia "Sai daí, Rex, anda cá, Rex, já vais levar, Rex!...", nem de propósito Rex, eu seja cão se estou a inventar. O cão chamava-se mesmo Rex, como o cão actor, o cão artista da televisão, e, sem terem nada a ver um como o outro, por acaso até vinha a propósito. O homem, que tomara nota do meu riso, decidiu pôr-me ao corrente, quisesse eu ou não: "É todos os dias isto, a mesma merda, ele gosta, o filhadaputa do cão mete-se no mar e eu depois é que me fodo a dar-lhe banho, secar e escovar, olha, lá vai ele outra vez, ó corno!, ó boi!, não adianta, fode-me sempre..."

O cão resolveu apanhar a última, mas sem boca. Estava-se a armar para mim, eu dei fé, creio que lhe percebi até um certo piscar de olho. Dominou a bola com o peito e, sem deixar cair, rematou em grande estilo e foi golo, palavra de honra que foi golo. Depois colocou o açaime ao homem e levou-o para casa.

P.S. - Versão corrigida e (bastante) aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe.

terça-feira, 24 de junho de 2025

Eu tive um sapo

Engolidores, há-os. Como por exemplo engolidores de sapos, metaforicamente falando, engolidores de fogo, que na verdade não engolem mas borrifam, e engolidores de espadas. Engolidores de copas e engolidores de ouros não sei, mas engolidores de paus também há-os.

Tive uma infância feliz, em Fafe, rodeado de animais de estimação, ditos agora de companhia. Tínhamos um cão chamado Rin Tin Tin, tínhamos uma cadela chamada Lassie, tínhamos um canguru chamado Skippy e até tínhamos um cavalo chamado Mister Ed ao qual nem faltava falar. Eu ia vê-los ao café, porque em casa não tínhamos televisão.
Tínhamos também um sapo. Isto é, uma vez à noite tivemos um sapo, mesmo nosso, nem foi preciso ir ao café ver televisão, se o Sr. Avelino estivesse bem disposto e por acaso a ligasse, mas não lhe pusemos nome. Ao sapo. Ao Sr. Avelino pusemos, era o "Hoss", por causa do gordo do Bonanza. Mas eu conto a história do sapo.A porta da nossa casa no Santo Velho tinha, em baixo, junto ao chão, um bocadinho de folheta levantada, e era ali que se deixava a chave, de uns para outros, éramos pelo menos seis, como, por exemplo, à noite, quando a nossa mãe já nos dava licença de saída até às 22 horas, ao Nelo e a mim, e depois no regresso a gente metia a mão no buraco, tirava a chave, que era enorme, digna de São Pedro, há que dizê-lo, abria a porta em câmara lenta, a monumental chave de bico calado, bem oleada, e entrávamos em casa com os pés debaixo dos braços para não fazermos barulho, a nossa mãe fazia de conta que estava a dormir e portanto só de manhã é que nos acertava o passo por termos chegado às 22h01.
Acontece que. Uma noite, findo o serão, estamos à porta, e o Nelo, que é mais velho, manda-me apanhar a chave. Eu meto a mão no vazio da folheta e, em vez da chave, agarro um enorme sapo que lá se tinha metido, filho da puta, e apanhei um susto que me ia mijando todo, estremeci-me até hoje, argh!, enchi-me de nojo, arranquei a mão como se a tirasse do fogo e rasguei-me na chapa ferrugenta, gani, vomitei, cocei-me antecipando verrugas para toda a vida, palavra de honra, e o caralho do sapo, como se não fosse nada com ele, saiu nas calmas felizmente para o lado da rua, caso contrário eu nunca mais entraria em casa. Entrámos, a nossa mãe a pé, à nossa espera, e a hora de picar o ponto já não interessava para nada. Levámos logo ali, por causa do sapo, da ferida, do vomitado, do barulho, quer-se dizer, do "espectáculo", que a nossa mãe não tolerava, fosse em que circunstância fosse. Tudo por minha culpa. Ainda por cima eu tinha dito "argh!" e em nossa casa, que era muito pobre, estavam terminantemente proibidas as onomatopeias, sobremaneira as derivadas dos livros aos quadradinhos, um luxo...

Os sapos à porta realmente incomodam-me. E metem-me nojo sobretudo os sapos à porta dos restaurantes ou de outros estabelecimentos comerciais. É. Como sou um bocado cigano, recuso-me também a entrar.
Os sapos às vezes são de engolir, como aconteceu com Álvaro Cunhal e o PCP na segunda volta das eleições presidenciais de 1986, para derrotar Freitas do Amaral, candidato da direita, e, só por isso, eleger Mário Soares. "Vamos ter de engolir um sapo. Se for preciso, tapem a cara [de Soares] com uma mão e votem com a outra", recomendou Cunhal aos comunistas. Para se distinguirem dos faquires, que engolem facas, os engolidores de sapos chamam-se sapires.

No velho tasco do Toninho Nacor, em Fafe, havia um sapo que era um jogo, na zona cimentada do quintal logo depois da cozinha, por baixo do sombroso caramanchão, ao lado das famosas gaiolas dos pássaros e do forno de cozer vitela e bolo. O sapo era um jogo tradicional e de taberna, um jogo de mesa em forma de armário aberto com inúmeras ranhuras correspondentes a outras tantas gavetas. Jogava-se com pequenas patelas, que se lançavam para o "armário" e cada entrada correspondia a uma certa pontuação. A boca do sapo era o máximo, se não me engano. Servia para matar o tempo enquanto se esperava pela hora da merenda e dali poderia sair também "multa" aos perdedores para próximas quartilhadas.
Sobre este interessante assunto, os sapos, apraz-me finalmente registar que o Sapo, primeiro motor de busca português, foi criado por cinco estudantes da Universidade de Aveiro, em 1995. Antes disso, mas em Penafiel, o Sapo já era um famoso restaurante de enfarta-brutos e conceituado estabelecimento de compra e venda de árbitros de futebol. Outros tempos!

P.S. - Versão optimizada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Nacional do Cigano.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

De régua e esquadro


Se eu mandasse ou sequer me perguntassem, comigo era assim: no futebol dos Jogos Olímpicos só valiam golos marcados de canto directo, e nem vou explicar porquê.
Uma vez eu vi um, fui testemunha, um golo olímpico a sério como requerem as devidas certidões, e foi de rir, obra-prima assinada pelo Palmeira, ele e o José Manuel emprestados pelo Braga à nossa AD Fafe, certamente na época de 1971/72, vem-me à cabeça que aquilo pode ter acontecido em Penafiel, mas tenho muitas dúvidas a esse respeito...

P.S. - Textinho publicado mo meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Olímpico.

Lixo, mas asseado

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 22 de junho de 2025

Montenegro, a "raça" e o racismo

Luís Montenegro vir agora com a conversa da "raça lusitana" a propósito de vitórias desportivas, ontem pelo canoísta Fernando Pimenta e hoje pelo ciclista João Almeida, assim do nada e reiteradamente, é de uma insensatez olímpica. E escandalosa lambidela ao Chega. E sentido de oportunidade digno de um incêndio florestal. E insulto a todos os desportistas portugueses que já parabenizou por extraordinários feitos mas, vá-se lá saber porquê, não incluiu na "raça lusitana". E ignorância a toda a prova. Ele está de primeiro-ministro e alguém já lhe devia ter ensinado que a história dos portugueses-lusitanos ou dos lusitanos-portugueses é apenas isso, uma história, uma treta. Raça lusitana, há-a, mas para cavalos. Deu-lhe agora para a raça, ao Montenegro? Se ainda ao menos se chamasse Montebranco...

P.S. - Eu sei que não é o Montenegro que escreve as merdas que o Montenegro escreve. O que ainda é mais triste.

sábado, 21 de junho de 2025

O calor dilata os copos

Ele era um fafense à moda antiga. Praticante de fino durante três quartos do ano, chegava ao Verão e dedicava-se à caneca. Dizia: - O calor dilata os copos...

A este respeito, embora não pareça, diga-se que todos os anos, desde 2014, o dia 21 de Junho é Dia Mundial da Girafa e é completamente merecido. Os filmes de cinema e as telenovelas e até os concertos musicais particularmente sinfónicos não seriam possíveis tais quais os conhecemos hoje em dia sem a girafa. A girafa é, como aprendemos desde os bancos da escola, um suporte móvel no qual se prende um microfone. E é também uma vasilha considerável para consumo de cerveja de pressão. A girafa é realmente muito importante.

P.S. - Versão optimizada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Mundial da Girafa.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Comer da boca para fora

Hoje é Dia Internacional do Sushi, Dia Internacional do Piquenique e Dia da Gastronomia Sustentável. Com tanta fartura num dia só, não me venham dizer que há fome em Portugal.

Sushi à moda de Fafe

Fazei o obséquio de tomar nota! Sob o generoso fio corrente de água fria da torneira, desfiar meticulosamente uma boa posta de bacalhau da peça, sem pele e sem espinhas. Passar os fiapos do bacalhau por mais uma, duas ou três águas, sempre frias, agitando-o, ao bacalhau, e espremendo-o, até que fique no ponto de sal. Regar com azeite do melhor e três ou quatro pingas de vinagre, cobrir e misturar com cebola cortada às rodelas bem fininhas, picar um quase nada de alho, salpicar ao de leve com pimenta branca e enfeitar com azeitonas pretas. Está pronto! Sushi de bacalhau à moda de Fafe - inesperado, inovador e chique. Os antigos chamam-lhe punheta.

P.S. - Publicado originalmente no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional do Sushi.

Também faço isto muito bem!

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Mijar de mãos-livres

Nunca tinha visto. Um indivíduo, jovem, bem apessoado, tipo actor de telenovela, no urinol da impecável casa de banho do restaurante, mesmo ao meu lado, a mijar sem mãos. Ou, por outra, a mijar de mãos-livres, porém ocupadas. Palavra de honra. Eu fiquei varado! Porque o rapaz não era maneta, pelo contrário. As mãos estavam entretidas com o telemóvel, a mandar mensagens, não sei se também fotografias, o moço deveras compenetrado na operação, e enquanto isso, lá em baixo, mijava-se satisfatoriamente, era o que se ouvia, é o que suponho, porque, a verdade também é só uma, eu não fui lá espreitar...

Pela medida grande

Uma infusa de satisfatórias dimensões. Vinho, branco ou tinto, e açúcar, de preferência amarelo, à moda de Fafe. Mexe-se com uma colher, se houver, ou com os dedos. Da mão. Junta-se-lhe cerveja ou, para coninhas, seven up. O equilíbrio das quantidades fica ao gosto do fabricante. Chama-se a isto "receita" ou "remessa" e deve beber-se bem fresco, mas sem gelo, porra! Os coninhas podem chamar-lhe cocktail...

Ora bem. Hoje é Dia Internacional das Remessas Familiares, e neste caso as quantidades devem ser calculadas, ajustadas e acrescentados em função do número de parentes presentes. Se, em famílias mais numerosas e capazmente apreciadoras, uma infusa não for suficiente, então a remessa pode muito bem ser elaborada e servida num cântaro, num balde, num alguidar, numa bacia, no depósito da água, no tanque ou na banheira, se estiver de vago.

P.S. - Hoje é Dia Internacional das Remessas Familiares.

domingo, 15 de junho de 2025

Fafe já tem época balnear

Foto Hernâni Von Doellinger

Leio no Facebook do Município de Fafe que a "época balnear abriu oficialmente hoje e a Albufeira da Queimadela está pronta para receber a visita de todos", e dou por mim a sorrir. Fafe tem a sua própria época balnear sem precisar de ir para a Póvoa, quem havia de dizer, que coisa tão estranha para um tipo antigo como eu! Sobral de Monte Agraço teve, à altura, o seu parque infantil, que saiu no Tide, e Fafe agora também tem época balnear, como os outros brasis e algarves. Que extraordinário!
O meu irmão Nelo bem dizia, em pequeno, que, quando fosse grande, ia mandar construir uma praia em Fafe, com mar e tudo. Não foi ele, por acaso, mas alguém a construiu, e em boa hora, ela aí está, a nossa praia, ele aí está, o nosso mar, o sexto oceano, como já aqui expliquei, e já aberta ao expediente, a praia, afinadíssima "para receber a visita de todos", tal e qual como, por exemplo, a congénere ali do retrato supra, a Praia de Matosinhos, mesmo debaixo do meu nariz e eu nem lá ponho os pés, tenho medo de me afogar no areal. Quem dera que "todos", na nossa Barragem, nunca sejam assim tantos...
Para mim, no meu tempo, antes da construção do nosso mar, Fafe tinha três esplêndidas estâncias balneares: o Poço da Moçarada, o Comporte e Calvelos. Eu sou, aliás, especialista em balneários. Conheci muito bem os balneários do Campo da Granja e ainda cheguei a entrar nos balneários do Campo de São Jorge, então já oficialmente desactivado, mas funcional para jogos escolares ou de solteiros contra casados. Eu seria miúdo de escola primária, se tanto, e era a minha época balnear. Quando o Estádio começou a ser construído, os balneários da AD Fafe foram atamancados na cave do quartel dos Bombeiros e passei a ser freguês diário das instalações, numa amizade sem fim com o Senhor Zé Manquinho. Nas férias do seminário, não tinha água quente em casa, e era ali que eu tomava banho duas ou três vezes por semana, antes dos jogadores chegarem para os treinos e sem estorvar o despacho. Mas isto já são histórias para contar um destes dias no meu blogue Mistérios de Fafe...

(Publicado ontem no meu blogue Fafismos)

Cuidado com as correntes de ar!

Evite sair de casa. Feche bem, reforce e proteja janelas e portas. Fixe todos os objectos exteriores que possam ser arrastados, recolha cadeiras, mesas, toldos e guarda-sóis. Vá para dentro! Se tiver mesmo de ir à rua, mantenha a calma e abrigue-se em lugares seguros, não toque em cabos ou fios eléctricos, afaste-se de árvores, materiais suspensos com risco de queda e superfícies envidraçadas. Na estrada, limite a velocidade e redobre cuidados especialmente se conduz veículos longos ou com reboque. Não saia da viatura, feche vidros e ligue as luzes de sinalização, mantendo-se longe dos edifícios. Isso mesmo. Pode não parecer, mas hoje é Dia Mundial do Vento. E, num dia assim, tudo pode acontecer...

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Vento.

sábado, 14 de junho de 2025

Esta mania das grandezas

Para o Guinness
E finalmente colocou a melancia em cima do bolo. Era um bolo para o Guinness, é preciso que se note...

Portugal tem a Maior Renda de Bilros do Mundo, o Maior Arroz de Lapas do Mundo, a Maior Aula de Judo do Mundo, a Maior Aula de Surf do Mundo, a Livraria Mais Antiga do Mundo, o Maior Sobreiro do Mundo, a Maior Sardinhada do Mundo, o Maior Assador de Castanhas do Mundo, a Maior Concentração de Motas Antigas do Mundo, o Maior Pão com Chouriço do Mundo, o Maior Número de Não-Mágicos a Fazer Um Truque de Magia Num Único Local, a Maior Largada de Bolas do Mundo, o Maior Castelo Insuflável do Mundo e um Megaprato de Bacalhau Dourado que é o maior do mundo, tudo devidamente homologado pelo Livro dos Recordes do Guinness. Tem igualmente o Jornal Mais Pequeno do Mundo, a Maior Distância Percorrida em Cadeira de Rodas por 24 Horas, a Maior Omeleta do Mundo, a Maior Colecção de Garrafas de Uísque do Mundo, o Maior Número de Aviões de Papel Lançados Simultaneamente, o Maior Logótipo Humano do Mundo, o Maior Número de Horas Seguidas a Tocar Bateria, a Maior Onda Surfada, o Maior Número de Toques Numa Tecla de Piano Num Minuto e o Aplauso Mais Ruidoso do Mundo. Para além disso, tem ainda o inesgotável Cristiano Ronaldo, que, só à sua conta, dá ao país mais de trinta recordes, sem exagero. Com exagero, serão mais de cem...
E apenas falando em cometimentos nacionais que não metem polícia nem dão cadeia, como são os casos, por outro lado, do tráfico humano, da corrupção generalizada, da incompetência política e do desbarato dos dinheiros públicos, que isso então, upa upa, ninguém nos agarra. Pois é. Somos um país pela medida grande.
É também nosso, e oficialmente certificado, o Maior Andor do Mundo: costuma sair à rua na Aparecida, em Torno, Lousada, a meio de Agosto. O famoso andor mede de alto quase 23 metros, pesa tonelada e meia e é transportado, diz-se, por mais de cem homens do sexo masculino. Aqui há uns anos, durante a procissão, o maior andor do mundo virou, caiu e feriu sete pessoas, número que infelizmente ficou muito longe de constituir recorde. E seria mais um para a conta. O desastre estava, no entanto, previsto: Deus, que gosta pouco de abusos de confiança, já se sentira incomodado com a Torre de Babel, e armou a confusão que se sabe...
Eu se fosse aparecidense - aparecidense e festeiro - e também tivesse a vaidade de pôr o nome da terra no índice do Livro dos Recordes, seria porém mais modesto, terreno e prático do que os construtores em altura. E não ia muito longe. Ficava-me ali pelas redondezas da capela e chamaria os do Guinness para provarem o cabrito assado no forno da Pitarisca. Evidentemente o melhor cabrito assado do mundo, estou farto de dizer, e não é preciso usar capacete.

(Na Aparecida, por alturas da romaria, compram-se nas tendas de feira sapatos muito jeitosos e vitalícios para se ir a casamentos de sobrinhos. As Festas da Senhora da Aparecida são, este ano, de 11 a 15 de Agosto. A "Majestosa Procissão", com o "Tradicional Andor Grande", sai a 14, uma quinta-feira.)

P.S. - Extra! Extra! Extra! Mais um recorde para Portugal. De acordo com notícia do jornal digital O Minho"Vila Verde acaba de conseguir a maior concentração do mundo de pessoas a dançar o vira minhoto, anunciou a Câmara de Vila Verde". Muitos parabéns a Vila Verde, que "entrou para a história" derivado ao "momento inesquecível de tradição, união e orgulho minhoto", pelo menos é o que acha a Câmara. Espero que os nazis não saiam por aí a bater nas pessoas, só para festejar...

As pancadas de Jean-Baptiste Poquelin

Quando elas morriam de pé
"Morta por dentro, mas de pé, de pé, como as árvores", dizia a Senhora Dona Palmira Bastos, batendo altaneira com a bengala no tablado, na beleza insubstituível do preto e branco da televisão antiga. A queridíssima Senhora Dona Palmira Bastos tinha quase noventa anos e ainda não sabia das motosserras, do urbanismo autárquico em Portugal e da Amazónia no Brasil.

O francês Jean-Baptiste Poquelin inventou as famosas pancadas de Jean-Baptiste Poquelin, as quais, secas e consecutivas, batidas no piso do palco, anunciavam ao público o início de um espectáculo teatral. Alguém alvitrou, no entanto, que chamar pancadas de Jean-Baptiste Poquelin às pancadas de Jean-Baptiste Poquelin não tinha jeito nenhum, até soava mal ao ouvido, e que chamar-lhes, por exemplo, pancadas de Molière seria muito mais engraçado. Tinha razão. As pancadas mudaram então o nome para Molière e Jean-Baptiste Poquelin também. Assim se passaram as coisas.
A primeira vez que eu as ouvi, às pancadas, foi em Fafe, no nosso Teatro-Cinema, há bem mais de meio século. Teatro amador, mas pancadas profissionais, competentes. Era a récita de "Selo de Chumbo", um dramalhão em três actos de Armando Tavares, levado à cena pela prata da casa, com, entre outros e outras que infelizmente me fugiram da memória, Nélson Fafe e o Sr. Moreira, enormes actores e ensaiadores, o Tónio da Legião, estou em crer, e até o meu padrinho Américo terá tido um pequeno papel, coisa de uma deixa, duas palavras, mais não, entrada por saída, numa interpretação que ficou para a posteridade. O final da peça, se bem me lembro, era de fazer chorar as pedras da calçada...
As pancadas de Molière foram entretanto substituídas por apitos ou campainhas e por uma voz de altifalante que manda desligar os telemóveis.

P.S. - Versão optimizada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe.

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Monumentos ao Emigrante, em livro


O livro "Monumentos ao Emigrante - Uma Homenagem à História da Emigração Portuguesa", do historiador Daniel Bastos e do fotógrafo Luís Carvalhido, vai ser apresentado amanhã no Porto, pelas 16 horas, na Livraria Unicepe. A obra, bilingue, com tradução de Paulo Teixeira, é prefaciada por Onésimo Teotónio Almeida e conta com o posfácio de Maria Beatriz Rocha-Trindade. A apresentação estará a cargo do jornalista Mário Augusto.
"Monumentos ao Emigrante - Uma Homenagem à História da Emigração Portuguesa" assenta no levantamento dos monumentos de homenagem ao emigrante, ou intrinsecamente ligados ao fenómeno emigratório, existentes em todos os 18 distritos de Portugal continental e regiões autónomas da Madeira e dos Açores.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Os santos impopulares...

Hoje é dia de Santo Onofre, considerado, por exclusão de partes, um dos mais de vinte mil santos impopulares da Igreja Católica. Por tradição, na noite de Santo Onofre desfilam as marchas em Lisboa e comem-se sardinhas assadas, mas isso é já derivado ao santo do dia de amanhã, o nosso Santo António, um dos três únicos santos da corda - Santo António, São João e São Pedro, os santos populares, virais, com milhões de seguidores e, há quem acredite, algumas visualizações.

P.S. - Hoje é Dia de Santo Onofre.

E ao morrer renasci

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Chester, para todo o serviço

Lembrais-vos do futebol de salão? O que é que me vinha à cabeça quando se falava de futebol de salão? O salão. Uns cavalheiros vestidos de fraque e com um número nas costas e umas cavalheiras despidas nas costas e no resto, agarrados um ao outro e rodopiando pelo salão nobre do Teatro-Cinema como Fred Astaire e Ginger Rogers e uma bola pequenina no meio, um árbitro e o apito, um júri e tabuletas com pontuações. Para evitar ambiguidades, o futebol de salão passou a chamar-se futsal, joga-se em polidesportivos, como, por exemplo, no pavilhão do Grupo Nun'Álvares, e é o sucesso que se sabe...

Matt Dillon era o xerife de Dodge City, e Chester o seu leal escudeiro. Naquele tempo todos queriam ser Tarzan ou Mandrake, Buck Jones ou Fantasma, Mascarilha ou Cisco Kid. Os "artistas". Mas o Álvaro escolheu modestamente ser Chester, actor secundário, e assim se rebaptizou num involuntário equívoco cheio de ironia: na verdade, Álvaro Moreira Mendes nasceu para ser primeira figura, protagonista. E foi. No seu ofício de indústria, no movimento associativo, na intervenção cívica, na amizade fraterna e íntegra, foi sempre dos melhores, um fafense excelentíssimo, um homem maior do que o próprio nome, maior do que a alcunha sacada dos livrinhos de cobóis, maior do que o lugar que lhe queiram dar os menestréis da história recente de Fafe, tão desperdiçada em umbiguismos, capelinhas e bagatelas, maior do que melhor ou pior pensem dele. Acerca da opinião dos outros a seu respeito, creio, aliás, que o Chester, ajudante do xerife, não se coibiria de dizer, alto e bom som: caguei!!! E diria alto e bom som e assim com três pontos de exclamação porque ele não sabia falar de outra maneira.
Onde o Álvaro chegasse, constava. Ele encarregava-se de avisar logo à entrada, por entre raios e coriscos, avançando como um tornado de grau cinco, a enorme mão calejada e aberta desbravando caminho, oferecendo-se para um abraço, para uma palmada nas costas à moda antiga. Ser imperfeito como todos nós, mas menos imperfeito do que a maioria de nós, e muito menos imperfeito do que eu, por exemplo, o Chester tinha um coração enorme, desmesurado, e uma boca do tamanho do coração. Tinha o raio de um feitio, o homem, fazia inimigos com o dobro da facilidade com que fazia amigos. E também deu alguns pontapés na vida.
O Chester era generoso, impulsivo, excessivo e puro. E amiúde foi a primeira e principal vítima da sua generosidade sem peso nem medida. Era um bom selvagem, uma força da natureza, pau para toda a obra.
Era meu amigo. Forjámos a nossa cumplicidade no tasco, evidentemente. Nas tardadas de Inverno passadas à volta da braseira na cozinha da Dona Isabel, no Toninho Nacor, onde eu, com os bolsos cheios de cotão, ia levado pelo tio Américo. Em 1976, Barcelos acolheu o Campeonato da Europa de Hóquei Patins Sub-21 (juniores, chamavam-se então). O Chester falou do assunto. Comprámos duas assinaturas para o torneiro inteiro, e todas as noites lá íamos de Vauxhall até Barcelos por estrada nacional, que era o que havia, víamos os dois ou três jogos do programa, regressávamos a Fafe e eu chegava a casa já de madrugada. Fomos campeões.
Mais ou menos por essa altura, o Grupo Nun'Álvares estava instalado no edifício que fora posto da GNR, em frente à Igreja Matriz, e que hoje é, creio não estar enganado, casa paroquial. Ali foi construído um rinque em cimento e organizado, em 1977, o primeiro torneiro de futebol de salão em Fafe. Salão ao ar livre, é preciso que se note. Nunca falhei um jogo. Um dia vou à bilheteira comprar o bilhete do costume, está lá o Chester (o Chester tinha o seu quê de Deus, também estava em toda a parte) e entregou-me um livre-trânsito passado em meu nome e que dizia "Convidado da Organização - Prémio Assiduidade". Coisa inventada por ele, que era a alma daquilo tudo. Resultado: deixei de pagar para entrar e guardo religiosamente aquele cartão, como se fosse um santinho, uma relíquia da Terra Santa.
Quando terminei a minha felizmente efémera passagem pela tropa, o Álvaro foi a primeira pessoa a oferecer-me um emprego a sério e até já tinha tratado de tudo para eu tirar a carta de condução. Apareceu-me melhor, o Álvaro incentivou-me a aceitar a outra proposta, e ainda hoje não tenho carta nem sei conduzir.
O Chester alegrava-se quando me via em Fafe. Fazia questão que se soubesse que gostava muito de mim. E a verdade é que eu também gostava muito dele. E no entanto falhei-lhe miseravelmente na altura da vida em que por certo ele mais precisou dos amigos...
O Álvaro era, regra geral, do contra. Era um inquieto espírito de contradição. Tanto que, só para chatear, resolveu deixar-me a falar sozinho, quando tínhamos ainda tanto para conversar.

Felizes os ignorantes: quem não conheceu o Chester, não sabe o que perdeu. Trabalhador incansável, empreendedor contumaz, homem dos sete instrumentos e de mil causas, o Chester é uma história extraordinária e isto aqui é apenas um humilde lembrete, um quase nada. Grande, grande era ele. Álvaro Moreira Mendes. Chester, para todos os efeitos e para todo o serviço. Uma vida que dava um livro, um nome que merece rua. Em Dodge City já teria.

P.S. - Versão optimizada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe.

Que é que tinha o Barnabé?

Foto Hernâni Von Doellinger

Que é que tinha o Barnabé, que era diferente do outro? Para começar, este Barnabé era baixinho, abreviado como estampa. Por isso o Senhor Barnabé, ele próprio, resumia-se numa sílaba, humilde, e dizia que o povo todo o conhecia por Bé, e era assim que gostava de ser chamado, contou-me ele. Bé. Estais a ver aquele homenzinho gentil, doce, dez-réis de gente num ar pândego de pinto-calçudo, sacola de merenda a tiracolo, sempre mortinho por concordar com tudo e com todos, estaca aqui para falar com um, estaciona ali para conversar com outro, e na cara, em vez de cara, um sorriso maroto, cândido, inextinguível? Estais a ver? Era o meu Senhor Bé. Eu e Senhor Bé partilhávamos todas as manhãs o Passeio Atlântico de Matosinhos e suponho que fomos amigos. Havia também quem o conhecesse por "São Pedro da Cova", porque era de lá que ele vinha diariamente de autocarro para passear vagaroso a borda do mar. Nos seus oitenta e picos bem medidos, eram quase duas horas de viagem para cada lado, com transbordo, todos os dias ou quase, mas sem lamúrias. O Senhor Bé - que também se lembrava, como eu, de quando Fafe e São Pedro da Cova andaram à pancada por causa da bola - faltou-me ao convívio no tempo de estado de emergência, da merda da pandemia, mas logo que pôde tirou outra vez o passe dos transportes e voltou. Procurou-me e disse-me que estava cheio de saudades.
Eu contei-lhe do outro Barnabé, que dava dois dele, ou três. O Senhor Barnabé de Fafe, funileiro de alto gabarito, morador e estabelecido naquele escondidinho do Santo Velho e músico vitalício da Banda de Revelhe. O Senhor Barnabé fafense devia ser uma enorme despesa em farda e tocava tuba porque não havia instrumento maior, tirando talvez o bombo, e a tuba vinha-lhe realmente por medida. Quanto ao Senhor Bé, que certamente não gastaria metro e meio para um fato, eu às vezes até me ria imaginando-o, pequenino e gaiato, a tocar pífaro nos intervalos.
Que se segue? De repente, aqui há coisa de três anos, o Senhor Bé tornou a faltar-me e eu, confesso, escarmentado com o desaparecimento da minha abençoadora das 7h30, fiquei com medo de perguntar por ele. Para más notícias, já basta o Correio da Manhã. Mas passados alguns meses, estávamos a chegar ao Natal, ganhei finalmente coragem, fui tirar nabos do púcaro junto de outro dos habitués do Passeio, e ouvi o que não queria. O Senhor Bé não vem mais. Morreu. De vez. Foi mudar uma válvula ao coração "e ficou na máquina", disse-me o amigo. Quer-se dizer. Ficou na máquina, assim, isso é lá alguma maneira?
Resultado. O Senhor Bé morreu e eu, palavra de honra, zanguei-me um bocado com o acontecimento. Às vezes, Deus me perdoe, acho isto da vida muito mal organizado.

P.S. - Versão optimizada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia de São Barnabé.