Foto Hernâni Von Doellinger |
terça-feira, 31 de outubro de 2023
segunda-feira, 30 de outubro de 2023
Quando o cancro era pecado
Em Fafe, por exemplo, ninguém padecia de cancro. Porque em Fafe não existia a palavra cancro. Cancro. A palavra cancro não se dizia. O cancro era crime e castigo. Pecado e culpa. Vergonha, tabu. Dizia-se que Fulano ou Sicrana tinham - aqui baixando a voz ao nível do sussurro, do segredo ao ouvido, do cochicho maledicente, da coscuvilhice beata - um psdtrff. Um psdtrff, com sinal da cruz e tudo. Sim, estava no hospital, no Porto, com um psdtrff, muito malzinha ou malzinho, consoante fosse Sicrana ou Sicrano, Deus lhe perdoe. Muitos fafenses morreram, naquele tempo, com psdtrff, mas nunca ninguém morreu com cancro. E não havia Sicranes.
E mamas? Mamas, dizia-se. Havia mama e havia mamas em Fafe, embora não fosse geral, como já aqui informei com todo o rigor. Tanto quanto me lembro, predominava um certo convencimento de que as raparigas e mulheres de Fafe possuíam realmente mamas, porém nem todas queriam que isso se soubesse. Mas cancro e mamas ou mama é que nunca poderiam coincidir numa mesma frase: cancro da mama, vamos um supor, seria impossível, desde logo porque é obsceno, e a pornografia constava que era só em Guimarães, e, em todo o caso, como se viu, a palavra cancro não existia em Fafe. Psdtrff da mama, com todo o respeito, até admito que possa ter havia, mas eu nunca ouvi dizer, devo confessar.
E depois do cancro, a sida, a mesma hipocrisia, a mesma pequena hipocrisia, a mesma enorme ignorância. Ignorância e indizível maldade. Naquele tempo, o cancro esteve para a sida como João Baptista serviu para Jesus Cristo, mas não adiantou, ninguém acreditou, essa parte não vinha no catecismo de sacristia, rançoso e cruel, e bondade e compaixão eram apenas palavras da boca para fora. Como psdtrff...
Assim eram as coisas nos bons velhos tempos, e eu limito-me a contá-las tal qual as sei. Fafe está aqui como mero pretexto, mais nada. Fafe é hoje uma terra completamente diferente e absolutamente igual. Porque Fafe, sendo talvez às vezes uma terra um bocadinho hipócrita, é com certeza e sempre uma terra do caralho. Quero dizer, do c******.
P.S. - Hoje é Dia Nacional de Prevenção do Cancro da Mama. Texto publicado originalmente no meu blogue Fafismos.
sábado, 28 de outubro de 2023
Festa da terceira idade
Ontem era Dia da Terceira Idade. E foi uma festa de arrebenta cá em casa, eu e a mulher.
sexta-feira, 27 de outubro de 2023
Activistas?
Dizem que são activistas. E o que é que fazem? Sentam-se, alapam-se, deitam-se, enrolam-se, aconchegam-se, colam-se, pregam-se, amarram-se, acorrentam-se, plantam-se, e dali não saem dali ninguém os tira. Sem menosprezo pelos seus meritórios serviços, eu parece-me que, em rigor, melhor fariam se se chamassem, antes pelo contrário, passivistas ou, vá lá, paradistas...
quinta-feira, 26 de outubro de 2023
Desenganado pelo médico
A este respeito, e continuo a citar o Público, um dirigente sindical respondeu que a medicina "não é um sacerdócio". E eu, confesso, pensava que era - sacerdócio: missão nobre, profissão honrosa - , e ainda ontem vim tão satisfeito e crente da consulta semestral com a minha médica excelentíssima, sempre presente e interessada, obstinada sacerdotisa do Serviço Nacional de Saúde, mas bem enganadinho que eu andava, e a doutora Joana aparentemente também. Hoje já sei: a medicina, afinal, é apenas uma profissão particularmente liberal, um gancho, um tacho, uma caixa registadora, um negócio como outro qualquer - o médico do sindicato desenganou-me...
O novo administrador
Certidão de óbvio
quarta-feira, 25 de outubro de 2023
Móvel do crime
terça-feira, 24 de outubro de 2023
Nações Unidas, um dia qualquer
Hoje é Dia das Nações Unidas. Nações unidas, nos tempos que correm, com a matança que vai por aí? Só pode ser piada...
segunda-feira, 23 de outubro de 2023
Emigração e imigração, em Fafe
Morreu o Bobi
Morreu o Bobi. Era o cão mais velho do mundo e era evidentemente português. O Bobi estava no Guinness como o Cristiano Ronaldo e quase tudo o que é feito em Portugal e dá no Correio da Manhã. O Bobi também deu no Público. Só para terem uma ideia, o Bobi era tão antigo que até se chamava Bobi, que era o nome que antigamente se dava aos cães, no tempo dos romanos, ou pelo menos Tejo. O Bobi morreu e Portugal está mais pobre. Mas é o país que temos...
sábado, 21 de outubro de 2023
Os missionários
Hoje é Dia Internacional das Missões. E isso traz-me boas memórias. Os missionários fizeram muito parte do meu imaginário infanto-juvenil. Embora o meu seminário fosse rigorosamente diocesano, eu acompanhava-lhes as aventuras através da literatura especializada, nas revistas Além-Mar e Audácia, pelo menos. Os missionários eram também artistas de cinema, heróis e mártires. Isso, os missionários. Pedindo meia dúzia de palavras emprestadas a Emmanuel Carrère, os missionários, quando começaram e durante séculos, foram, por outro lado, umas criaturas que a Igreja mandou por esse mundo fora para baptizar os selvagens sem lhes pedir opinião.
quarta-feira, 18 de outubro de 2023
Pois faria-o!
segunda-feira, 16 de outubro de 2023
O comentador que o país inteiro consagrou
domingo, 15 de outubro de 2023
Guerras santas e outras criações
O pior foi quando os homens criaram Deus. Mas, lá está, a culpa é de Deus. Deus fez asneira quando criou os homens.
Quem não sabe é como quem não vê
Hoje é Dia Mundial da Bengala Branca. Branca. Branca e apenas branca. E eu parece-me que há aqui qualquer coisa que não bate certo, mas a verdade é que os modernos entendidos, os intrépidos vigilantes do palavrismo, os mui respeitáveis fiscais do arco-íris e benévolos defensores das pessoas-portadoras-de, ainda não disseram nada. Nadinha! O que se me afigura manifestamente arreliador.
sexta-feira, 13 de outubro de 2023
Adeus, velho Titan!
Foto Hernâni Von Doellinger |
O Titan, símbolo de Leixões e de Matosinhos, desaparecia em tragédia, apagando-se compulsivamente dos nossos belos pores-do-sol. Considerado uma importante peça da arqueologia industrial, mesmo em frente à minha varanda se eu me puser de lado, os seus restos foram despejados e esquecidos num canto manhoso junto à Docapesca, encostado à rua dos restaurantes de peixe e dos turistas, a apodrecer como o lixo desleixado que por ali fede.
Passou o tempo e veio a ferrugem. O renascimento do Titan foi sendo anunciado pelo Governo, pela Câmara de Matosinhos e pela APDL, ao sabor dos ciclos eleitorais, primeiro em 2019 e depois em 2020. Prometia-se a construção de uma réplica inoperacional do velho gigante para fins eventualmente culturais mas certamente turísticos, ou, como quem diz, pelo menos para propaganda. E finalmente em Outubro de 2021 a coisa foi inaugurada, e por acaso até calhou bem porque um mês depois eram as eleições autárquicas.
Os judeus e os árabes e vice-versa
Eu, confesso, não sei distinguir o sofrimento das vítimas inocentes israelitas do sofrimento das vítimas inocentes palestinianas. Não sei dizer qual é o sofrimento mais justo, o sofrimento maior, o sofrimento mais razoável, o sofrimento mais aceitável, compreensível e lógico. Não sei dizer qual é o sofrimento mais iníquo, condenável e horrível. Não sei. Mas isso sou eu, que, já percebi, sou burro, não tenho lado. O sofrimento humano, vejo-o todo igual. Desnecessário, estúpido e brutal. Filhodaputa! As vítimas, inocentes ou não, judeus ou árabes, árabes ou judeus, vejo-as todas iguais. Pessoas, histórias, vidas. Os mortos, vejo-os todos iguais. Mortos.
quarta-feira, 11 de outubro de 2023
A vida feita num oito
Hoje é Dia Mundial da Visão. E eu, no entanto, vou ao dentista. Quer-se dizer, tenho a minha vida feita num oito.
A vespa asiática
sábado, 7 de outubro de 2023
O Oliveira
sexta-feira, 6 de outubro de 2023
E os domingos calhavam à quarta-feira
A feira de Fafe era três. Um três-em-uma, três feiras numa só, pague uma e leve três. A feira de Fafe era um pacote, uma pechincha. Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três! Tínhamos a Feira propriamente dita, no terreiro do Largo, actual Praça 25 de Abril. Tínhamos a Feira das Galinhas, na hoje chamada Praceta Egas Moniz. E tínhamos a Feira do Gado, na Feira Velha, agora dita Praça Mártires do Fascismo. As três eram apenas uma, coincidiam no mesmo dia, quarta-feira, como ainda hoje, a dispersão geográfica não passava de um pormenor, mas de vanguarda. Se fosse hoje, dir-se-ia que era uma feira em três pólos. Ricos tempos! Tínhamos muito, tínhamos tudo, uma fartura. De feira estávamos nós bem servidos, faltava-nos era dinheiro...
Em bom rigor, a feira começava antes da feira, logo por Cima da Arcada, numa espécie de antecâmara dedicada às artes performativas e da propaganda, espaço semanalmente ocupado pelo vendedor de banha da cobra, pelos milagres e mezinhas da santa Alexandrina de Balasar, pelas pacientes Testemunhas de Jeová e, ocasionalmente, pelo Rei das Limas, que, no entanto, era praticamente da casa, como já aqui contei. E havia também um sítio especial para o pão, diversos tipos de pão regional, doméstico, de Fafe e das redondezas até Amarante, especialidades vendidas por duas ou três senhoras e por um senhor que vestia um avental de peito, comprido até aos pés, impecável de branco e de limpeza.
Descidas as escadas, no Largo, os ourives instalavam-se debaixo dos arcos da Arcada ou logo em frente, hoje sítio de esplanadas e medíocres programas de televisão de aluguer. Parecia que o ouro do mundo inteiro se juntava ali, em cima de bancas de madeira forradas a flanela negra, as nossas ourivesarias Martins e Pérola também montavam estendal, e eu ficava a imaginar aqueles ourives todos com os bolsos dos casacos cheios de pistolas e espingardas caçadeiras, e sobretudo com uns tomates muito grandes dentro das calças, porque de outro modo não podia ser. Eles andavam assim carregados de terra em terra, quer-se dizer, sem seguranças, sem carrinhas blindadas, sem telemóveis, sem ligação directa à polícia, sem satélites, sem drones, nada, só o patrão e talvez um empregado de preferência solteiro e eventualmente borrado de medo, os dois enfiados na velha carripana e a rezar o terço. Isto é, estavam mesmo a pedi-las...
No terreiro da feira era o costume. Hortaliças, legumes, verduras, frutas, talvez secção de louça e panelas. E muito povo. A feira instituíra-se local de encontro semanal, mais do que a missa de domingo, e aqui, zona de cozinha e mesa, eram sobretudo mulheres. Outra vez descendo, para a Feira Velha, aí eram principalmente homens, lavradores em maioria, com as carteiras a abarrotar de notas de conto. À roda da escola fascista cujas pedras deram, por milagre, em capela, vendia-se e comprava-se gado. Bois, vacas, bezerros. E alfaias agrícolas, e jugos e sogas, e pipas e dornas, e latoaria, e fatos e samarras e capotes e croças e chapéus e bonés e sapatos e botas e galochas e chancas e socos. E nos tascos das redondezas, isto é, na vila inteira, apanhavam-se pielas de caixão à cova. Lá dentro, na escola, era um cheiro a bosta que se não podia, mas o regime realmente também não se recomendava...
Gado de mais pequeno porte, digamos, frangos, galos, galinhas, garnisés, pintainhos e coelhos das mais variadas origens e díspares feitios, isso era mais cá para cima, na Feira das Galinhas, larguinho de terra virado para a Igreja Nova e onde se mercavam também ovos, farinhas, feijão e milho, saquinhos de sementes, tudo colocado no chão estreme, em carreirinhas ordenadas, honestas, sem truques para enganar o freguês. Fazia-se comércio directo. Havia quem levasse à feira galinhas de patas atadas, debaixo do braço forte ou enfiados em cestas de vime com a crista de fora, e trouxesse para casa meia dúzia de sacos de feijão e grão, sacos de pano, sossegados no açafate muito bem tenteado na cabeça com rodilha.
Lembro-me agora: chegou a haver um mercado de sábado, mas só pelas manhãs, parece-me, no nosso Santo Velho, outro terreiro. Era uma feirinha.
Há muito despejada do Largo, a feira de Fafe andou entretanto com a tenda às costas, deu as suas voltas, até assentar arraiais na hoje chamada Praça das Comunidades, feita de propósito para a função. E ali está de armas e bagagens, creio que bem instalada e para ficar. Mas é só uma...
quinta-feira, 5 de outubro de 2023
Em Portugal seria impossível
Em Portugal tal cerimónia seria impossível. Não por falta de virgens, evidentemente. Mas não temos rei.
terça-feira, 3 de outubro de 2023
Jogava-se ao tene, que era para todos
As regras são simples. O objectivo do jogo é fugir ou tenir, conforme o ponto de vista. Escolhe-se à sorte um desgraçado, que deve tentar apanhar, isto é, tocar com a mão, os outros participantes. Um deles. E, uma vez conseguido, troca-se de posição. Quem foi apanhado, isto é, tocado, assume então a função de apanhador, o ex-apanhador passa a normal fugidor e assim sucessivamente.
Dir-me-ão então: ora, mas isso é o jogo da apanhada, ou o pega-pega ou pique-pega, se for no Brasil. Nada disso. Era o tene, o nosso tene. Porque, lá está, basta tenir, tocar levemente com a mão, com o dedo. Quem toca levemente, tene. Básico e inofensivo. O tene. Já o arranca-cebolas, por exemplo, implicava outra, por assim dizer, dinâmica e não raras visitas ao hospital.
Dir-me-ão então, e já estão a chatear: ora, mas não é tenir, é tinir, o verbo tenir não existe na língua portuguesa. Existe, existe, basta ir a Fafe e ouvir alguém que seja do falar antigo e que se lembre, claro que se lembra, do velho jogo e deste precioso regionalismo talvez baixo-minhoto e que pegou de estaca pelo menos ali na nossa zona. Ou onde é que cuidam que o bom do Costeado foi buscar o "Nem lhe teni, senhor árbitro!"?...