sábado, 31 de julho de 2021

No tempo da rádio a preto e branco

Comecei a ver o Sporting-Benfica na cozinha, ouvindo o relato na rádio Antena 1. Estava a ser um derby de arromba, bola cá, bola lá, quase-golos uns atrás dos outros, os relatadores esganiçados com tanta emoção, faltava-lhes o ar, que jogatana, que jogatana! Fui a correr para a sala e liguei a televisão, para ver com os meus próprios olhos: o jogo era fraquinho, não havia dois passes seguidos certos, os do Benfica entregavam a bola aos do Sporting e os do Sporting, porventura por civilidade anfitriã, entregavam a bola aos do Benfica, política de boa vizinhança, ao contrário do que nos querem fazer crer. Entre estas cortesias a meio campo, e sempre e ainda no dito miolo do terreno, sarrafava-se a bom sarrafar, mas dentro do protocolo estabelecido. Que merda! Voltei, desiludido, para a cozinha, liguei outra vez o rádio: o prélio tornou a ser uma categoria, um frémito, um frenesim, só não era golo porque não calhava. Eram defesas impossíveis, eram perdidas inacreditáveis, só se jogava nas áreas. Fiquei-me portanto pelos 96.7, que até podia ter sido o resultado final, tantas as oportunidades radiofónicas, e regalei-me. Que jogaço, que jogaço! Esqueçam a televisão por cabo, que nos custa os olhos da cara e só nos dá espectáculos deprimentes. O futebol, para ser bom, deve ser visto na rádio Antena 1. A rádio conta-nos o que não é, mas alegra-nos a vida. A rádio tem futuro. Os dias da rádio são os dias que hão-de vir.
Na verdade - e aqui que ninguém nos vê -, o melhor da televisão é que agora dá rádio.

Eu sou pela Antena 1 desde pequenino, ainda a Antena 1 se chamava Emissora Nacional e dava os resultados da 3.ª divisão e dos distritais já pela noite dentro e era uma comoção tremenda ouvir dizer Fafe, Associação Desportiva de Fafe, no Philips da mesinha de cabeceira dos meus pais. Ficávamos ali todos à espera, a família, como se estivéssemos a rezar o terço mas de boca calada, angustiados e alerta, porque aquilo era dito uma só vez, como no "Alô, Alô", e com a rapidez do "não dispensa a consulta do prospecto". Vamos supor: o jogo do Fafe tinha sido em Arcos de Valdevez, que naquela altura era muito longe e não havia telemóveis (eu sei que é difícil de acreditar); não fora o rádio e só saberíamos o resultado a altas da madrugada, se tivéssemos vagar para isso, quando a excursão regressasse ao Largo, e não era certo. O resultado. Porque o vinho também é bom, mas às vezes atrapalhava as contas.

"Bom dia, boa tarde ou boa noite, conforme a hora e o local em que nos escuta". Ouço portanto rádio. Sou antigo, sou do tempo da rádio a preto-e-branco. Sou um prezado ouvinte e com muito gosto. Prefiro os dicionários encadernados à Wikipédia e os livros de uma forma geral às séries televisivas "de culto". Prefiro o éter à água oxigenada. A dominical Tarde Desportiva, David Ferreira sempre e aquela meia hora dos dias da semana a seguir ao meio-dia ligam-me sacramentalmente à Antena 1.
O rádio faz parte da minha vida, acompanha-me desde que me lembro de mim, conserva-me as mais doces memórias, frescas ou em banho-maria consoante a época do ano. Como por exemplo:

Todas as noites. Após a oração ao anjo da guarda e o sinal-da-cruz feito "sem aldrabices" por ordem expressa e vigilante da nossa mãe, íamos para o nosso quartinho de duas camas, uma cama para a Nanda e a cama maior para o Nelo e para mim. A nossa mãe deitava-se enfim, exausta e nós não sabíamos, e ligava o rádio na Emissora Nacional. Dava teatro. Do lado de cá do tabique, eu, o Nelo e a Nanda pedíamos "mais alto". Também queríamos. (Ou)víamos silentes e na maior das comoções, porque aquelas histórias não eram para brincadeiras. Interrompíamos apenas para um que outro pedido de esclarecimento acerca da senhora que fazia a vida negra ao senhor e que, todos concordávamos com a nossa mãe, era "uma cabra", embora eu não visse nisso grande defeito. Na escola já tinha feito algumas redacções sobre "A cabra" e por isso sabia que a cabra é um animal doméstico e serve, nomeadamente, para a nossa alimentação, que era assim que a coisa se rematava.

O teatro terminava, vinha a ficha técnica - porventura Jorge Alves, Manuel Lereno, Carmen Dolores, Rui de Carvalho, Eunice Muñoz ou Canto e Castro... nos papéis de -, mas a nossa mãe só desligava depois do "Samuel Dinis ensaiou", que era mesmo o fim, e o rádio dizia "Denis". Trocávamos boas-noites dum lado para o outro do tabique. "Agora vamos dormir", mandava a nossa mãe, e nós apertávamo-nos aos cobertores, contentes pela soirée e mortinhos por obedecer.

Todas as noites. Cinco ou dez minutos passados, a minha mãe dava um toquezinho na parede e perguntava, numa voz de embalar:
- Estais a dormir?
- Eu estou - respondia sempre eu.
- Lindo menino - dizia a minha mãe. E eu adormecia feliz. Radioso.

P.S. - A Emissora Nacional foi inaugurada oficialmente no dia 1 de Agosto de 1935.

Tempo e resultado

Na sacramental ronda pelos vários campos, o pivô da emissão pergunta ao relatador: - Tempo e resultado? O relatador informa, conciso e preciso: - O tempo está bom e o resultado mantém-se. 

Éramos radiouvintes

Foto Hernâni Von Doellinger

A falta de ar é opcional

As pessoas vivem fechadas em caixotes. Em caixinhas dentro de caixotes. E cada caixinha tem um respiradouro chamado varanda. E as pessoas fazem marquises...  

Céu geralmente.

Foto Hernâni Von Doellinger

O especialiszt

Era o verdadeiro e definitivo especialiszt. Ouvissem-no tocar a "Sonata em si menor" e perceberiam porquê...
 
P.S. - O compositor e pianista húngaro Franz Liszt (aliás, Liszt Ferenc) morreu no dia 31 de Julho de 1886.

Cabeças

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Poesia o que tem de ser é orgasmo

A senhora sentada à minha frente faz croché - que raro. Eu leio um livro. O resto do metro espreita o telemóvel, fala para o telemóvel, escreve no telemóvel, joga no telemóvel, tira selfies com o telemóvel, põe o telemóvel entre pernas, aconchegadíssimo às intimidades, em alarmante modo de vibração. O metro inteiro é um telemóvel amarelo de duas carruagens, dois refractários e razoáveis orgasmos. Como quem não quer a coisa, a senhora sentada ao lado da senhora sentada à minha frente que faz croché desvia um olho do telemóvel e procura-me a capa do livro. Chega lá. Abana a cabeça, sentenciosa, faz cara de caso, deita-me uns olhos, ambos, num misto de decepção e de censura. Percebo-a: não leio José Rodrigues dos Santos. Leio "Poesias Completas & Dispersos", de Alexandre O'Neill, calhamaço como os do outro, mas calhamaço sem culpa de autor, calhamaço que dá gosto. Folheio-o com o respeito e o cuidado de quem folheia uma bíblia. E é. Vou naquela parte em que O'Neill me diz "A estouvaca": deitada atravessada / na estrada / a malhada / vai ser atropelada / foi. Palavra do senhor.

P.S. - Publicado originalmente no dia 10 de Julho de 2018, então sob o título "Há palavras que nos beijam como se tivessem boca", segundo Alexandre O'Neill. Desta vez rapinei o título a Ary dos Santos, em "Poesia-orgasmo". O'Neill e Ary, curiosamente ambos publicitários e dois dos meus poetas mais preferidos. Mais preferidos, disse bem! Hoje, 31 de Julho, é Dia Mundial do Orgasmo. Tenham muitos!

Telessexo

É muito à frente, ele. Não esperou pela pandemia nem precisou das indicações do Governo. Há mais de trinta anos que pratica, e com resultados francamente satisfatórios.

Quantos seios ficaram por amar?

Foto Hernâni Von Doellinger

Atento e vigilante

Quitério, que também não tem emprego, já estava farto de armazenar cotão nos bolsos e de jogar à sueca no Jardim do Marquês. Portanto resolveu começar a contar coelhos no Parque da Cidade. Uma actividade por certo ainda não remunerado, é preciso que se note, mas que o nosso homem tem uma enorme fezada de que virá a sê-lo a breve trecho, na sequência do projecto que conta apresentar antes do Natal ao Dr. Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto, e que, no âmbito do Quadro Comunitário de Apoio Portugal 2020, vai enviar sem falta às primeiras horas do próximo dia 1 de Janeiro ao ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, a ver se já apanha também o Quadro Comunitário de Apoio Portugal 2021 e o Quadro Comunitário de Apoio de Portugal 2022, que isto é preciso marcar lugar. Entretanto mandou o currículo para a National Geographic. Se nem sequer acusarem a recepção, é sinal de que a conceituada revista já passou para as mãos de patrões e editores portuguesa, o que é bom para o País, embora péssimo para os trabalhadores. 

Todas as manhãs, depois de espreitar a primeira página de O Jogo, Quitério arranca para o Parque da Cidade, bloco de notas, lápis e maçã em punho. A maçã é muito importante, porque às vezes dá-lhe fome.
Quitério olha e vê com olho clínico, hospitalar, regista, compara, assinala as diferenças e as similitudes, escreve sessenta vezes a palavra similitudes porque gosta muito dela, desenha gráficos e tabelas, depois deita tudo fora e remata com a inconfidência da notazinha pessoal. E sempre em horário completo. Por isso, ele é hoje em dia e sem favor a voz mais autorizada para dissertar sobre a problemática do coelho nacional, ao qual (fruto de uma lamentável confusão fonético-etimológia) atribuiu o nome científico de Cunnilingus Lusitannus, exactamente para o diferenciar do chamado coelho comum, que os especialistas denominam de Laparus Normallissimus. Os especialistas são ele.

Mas não se cuide que é tarefa fácil, ofício para paisanos: "Com os coelhos, como em tudo na vida, há dias e dias". A frase não é minha, saiu da sábia pena de Quitério, que às vezes fecha a loja sem ter visto um coelho que seja, ou uma coelha, vá lá, para na vez seguinte ter que se desunhar com os verbetes de mais de vinte avistamentos no breve espaço de um quarto de hora.
"A ciência tudo explica", costuma dizer Quitério, que costuma dizer o que lhe apetece, batendo com o lápis no bloco de apontamentos. "E está aqui tudo"...
Segundo Quitério, aos sábados de manhã ninguém põe a vista em cima do CL - passemos a chamar-lhe CL, afrontando embora o rigor da ciência, mas precatando compreensíveis susceptibilidades. O especialista defende que "esta é a prova provada de que o coelho nacional costuma passar a noite de sexta-feira nos copos e/ou no sexo". E sexo, com os coelhos, já se sabe como é.
Outro resultado do estudo, ainda segundo Quitério: "O coelho nacional almoça em casa. Entre o meio-dia e a hora e meia da tarde, não há nem um para amostra em campo aberto. O Lusitannus, como também é tratado entre amigos, está à mesa com a família, não tem graveto para mais. Ou então foi para a praia, que é de borla e ali ao pé".
Interessante curiosidade: com mau tempo, chuva principalmente, o coelhame vem todo cá para fora. "Conclusão a tirar: as casas metem água". Um reparo que Quitério já antecipou em pré-relatório enviado há coisa de três semanas aos serviços municipais de habitação.
Quitério tem tudo registado. Ele conhece-lhe os hábitos, as suas idiossincrasias (e escreve idiossincrasias mais cinquenta e nove vezes), ele até já traçou o perfil psicológico do CL, bicho assustadiço e campeão de atletismo. E no entanto não há dia em que o nosso cientista não se apanhe surpreendido por um novo ângulo, pelo nunca visto ou cogitado.
Ainda anteontem, por exemplo: estava Quitério analisando, de perto, o comportamento de um belo exemplar, preto e branco, malhadinho, quando...

(o melhor é ser o próprio Quitério a contar)

... "a minha atenção se desfocou por uns milésimos de segundo na pista de um par de mamas que passava por mim todo saltitão. Foi coisa de milésimos de segundos, palavra de honra! Quando torno à procura do láparo, já ele lá não está. Bateu asas e voou"...

(Ora bem: impõe-se aqui um novo entre parênteses, desde logo para pedir desculpa ao leitor acidental por esta contumaz fraqueza de Quitério pelos feminis seios, a que o autor do texto é obviamente alheio, mas também para dar nota da camada de cepticismo com que esta inesperada revelação foi acolhida na mesa de café onde ele costuma calistar. Foi um torcer de nariz geral e o mete-nojo do Silveira ainda torceu um tornozelo, só para dar nas vistas.)

E Quitério, ofendidíssimo: - Mas estão a pôr em dúvida a seriedade do meu trabalho? Eu lido com as hipóteses, eu verifico as evidências. Então como é que explicam o desaparecimento do coelho? O coelho evaporou-se, não? Ridículo! Toda a gente sabe que os coelhos não se evaporam. Bateu asas e voou, foi o que foi.
 
P.S. - Publicado originalmente no dia 1 de Julho de 2011. Hoje, 31 de Julho, é Dia Mundial do Vigilante da Natureza.

Uma república das bananas. E do pão.

A questão foi pertinentemente colocada numa reportagem televisiva, aqui há coisa de nove anos, portanto no tempo do Passos e do Cavaco, ainda a pandemia se chamava troika. Que República queremos ter? Se me perguntassem a mim - mas a mim só me perguntam o caminho para o IKEA de Matosinhos -, eu tinha a resposta na ponta da língua: quero uma república das bananas. E das maçãs e dos pêssegos, do pão e do carapau, do frango de aviário e do leite, da massa de cotovelo e da água. Uma república republicana, com comida na mesa, até na mesa dos trabalhadores. E com trabalho para os trabalhadores. E com gente séria no Governo. E com um presidente que seja da República e deste mundo (como às vezes parece este que temos agora...).
É decerto por ter estas ideias malucas que ninguém me pergunta nada, a não ser o caminho para o IKEA de Matosinhos. É. Só os galegos desorientados é que querem saber a minha opinião... 

P.S. - O IKEA de Matosinhos abriu portas no dia 31 de Julho de 2007.  

Areia demais

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 29 de julho de 2021

O melhor actor do mundo

A conversa já tem alguns anos. Ao balcão do salão de bilhares, o empregado do bar e alguns clientes ligados à famosa "segurança da noite" nortenha discutem animadamente sobre uma questão fundamental: quem é o melhor actor do mundo - Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger ou Jean-Claude Van Damme? As opiniões dividem-se, ameaçam-se. E eu, ao lado, penso, sem ousar abrir a boca: evidentemente esqueceram-se do Steven Seagal e do Chuck Norris.

P.S. - Arnold Schwarzenegger nasceu no dia 30 de Julho de 1947.

Diz a lenda que

Foto Hernâni Von Doellinger

Sei-os

Foto Hernâni Von Doellinger

As orelhas

As orelhas. As orelhas são muito úteis. As orelhas servem para segurar o lápis, o cigarro e o raminho de alfádega, que já ninguém sabe o que é. As orelhas centram muito bem a cabeça e estão no sítio certo para se puxar as orelhas. Hoje em dia é proibido puxar as orelhas nas escolas, só se for aos professores. Os puxões de orelhas aos professores são gravados no telemóvel e mandados, com uma grande risota, para o YouTube. Das escolas saem cada vez mais orelhudos. E entram no YouTube.
As orelhas produzem cera, cotão e pêlos, materiais altamente combustíveis. As orelhas ardem: se for a direita, é porque estão a dizer bem de nós; se for a esquerda, é porque nos estão a rogar na pele. Se arderem as duas ao mesmo tempo, o melhor é chamar os bombeiros. As orelhas também deitam fumo sem fogo, pelo menos nos desenhos animados.
As orelhas doem e quando doem chamam-se ouvidos e muitos nomes feios. As orelhas são vizinhas de porta do esternocleidomastóideo, que é o músculo mais famoso do mundo à pala do Vasquinho da Anatomia. As orelhas, em casos extremos, servem também para a nossa alimentação. Em tempos de crise como os que vivemos recomenda-se com molho-verde.
Às vezes as orelhas dão jeito para ouvir. Ouvir é bom e deve-se às orelhas. Há governantes que não são governantes porque não ouvem. Por exemplo: as orelhas do ex-presidente dos Estados Unidos da América e do alegado presidente do Brasil são orelhas a fingir, orelhas de mercador. As orelhas do deputado Ventura, outro por exemplo, são orelhas de burro. Eu gosto muito de orelhas e tenho duas. De momento.

P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Maio de 2012. O pintor Vincent van Gogh, que cortou a própria orelha esquerda, entregando-a depois a uma prostituta (há várias teorias e versões sobre o assunto), morreu no dia 29 de Julho de 1890, e isso é certo. Tinha 37 anos.

Há, mas são verdes!

Foto Hernâni Von Doellinger

Schumann, Schuman & Schurman

Robert Schumann foi durante bastantes anos um compositor alemão, famoso sobretudo pela peça "Carnaval. Scènes mignonnes sur quatre notes, Opus 9", para piano, que pode (e deve) ser ouvida um bocadinho aqui. Mais tarde, e depois de ter morrido, Robert deixou de ser alemão, largou a música e o "n" final do apelido, fez-se luxemburguês e ministro dos Negócios Estrangeiros de França. Robert Schuman é considerado um dos "pais da Europa", foi o primeiro presidente daquilo que hoje se chama Parlamento Europeu e, acreditem ou não, está na lista de espera do Vaticano para ser declarado santo.

P.S. - Publicado originalmente no dia 29 de Junho de 2015. E devo fazer notar que no dia 5 de Novembro de 1607 nasceu Anna Maria van Schurman, pintora, poetisa e académica holandesa que, verdade seja dita, não é desta história e acaba de ser aqui metida à pressão. Robert Schumann, o músico, morreu no dia 29 de Julho de 1856, aos 46 anos.

Une valse à mille temps

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Trunfo é paus...

Quatro tigres-de-bengala. Jogam sueca e contam dos netos na fresquinha do jardim.

P.S. - Hoje, 29 de Julho, é Dia Internacional do Tigre.

O domador

Era um desembaraçado domador de camarões-tigres. Até os comia...

O leitmotiv

O leitmotiv, por exemplo. É gordo, magro, meio-gordo, achocolatado, integral, dourado, desnatado, em pó, condensado, vegetal, enriquecido, de soja, de burra, de barata, de camelo, de tigre, de aveia, de amêndoa, de coco, desmaquilhante, adelgaçante, reafirmante, derramado, -creme, -de-cal, -de-galinha, -de-pato ou de colónia? E quanto a calorias?...  

Como as cobras

Era mau como as cobras. E como as moscas tsé-tsé e como os cães domésticos e como os escorpiões e como os crocodilos e como os hipopótamos e como os elefantes e como os tigres e como os leões. Era realmente do piorio.

Vida de cão 550

Foto Hernâni Von Doellinger

Allegro ma non troppo

Deu-lhe um baque. Ele até agradeceu, mas na verdade preferiria um rimsky-korsakov.

terça-feira, 27 de julho de 2021

Pianíssimo

Estou como diz o outro: Bach leve, levemente...

P.S. - Johann Sebastian Bach morreu no dia 28 de Julho de 1750.

Zabumba-lhe!

Foto Hernâni Von Doellinger

Em lata

O confinamento fez dele um verdadeiro especialista em atum. Bom Petisco à segunda, Ramirez à terça, Tenório à quarta, Minerva à quinta, Pitéu à sexta e Inês ao sábado. Ao domingo, sardinha em tomate, evidentemente.

P.S. - Hoje, 28 de Julho, é Dia Nacional e Dia Mundial da Conservação da Natureza.

De rerum natura

No Parque da Cidade há cisnes-mudos, gansos-bravos, gansos-do-egipto, patos-reais, galinhas d'água, galeirões-comuns, guinchos, piscos-de-peito-ruivo, melros-pretos, chapins-reais, pardais-comuns e pegas. Esta é a população oficialmente recenseada. Mas também há coelhos e toupeiras, gatos e cães vadios, pombas e gaivotas, galinhas que eu já as vi, papagaios e outros benfiquistas, corredores, andadores e passeadores afins, rãs, sapos e salamandras, lesmas e caracóis, grilos e gafanhotos, borboletas a certa hora, sardaniscas e lambisgóias, sardões com e sem rabo, espreitas e bicicletas, cavalos-republicanos às vezes, burros de um modo geral.
No tempo do Primavera Sound, que a pandemia veio aliviar, há também camiões, guindastes e contentores, dezenas de geradores, megapalcos, supertendas, barracas, tonéis de cerveja cheios e escorropichados e cheios e escorropichados vezes sem conta nem medida, toneladas de lixo e pés, decibéis à solta, ameaços de terramotos, aluimentos, quem dera que não chova, Deus queira que não caia. Há vedações e avisos, pedimos desculpa pela interrupção, o parque segue dentro de dias. Quem estiver mal que se mude, prometemos deixar tudo como estava.
Não sei é se aquele fauna toda foi devidamente notificada.

Contra a corrente

Foto Hernâni Von Doellinger

E assim nasceu Portugal

Afonso Henriques, esse gabiru de estilo motoqueiro que gostava de vestir saias e há quem diga que batia na mãe, tinha uma espada que pesava toneladas e não cabia no guarda-vestidos e nem sequer existiu. O espadalhão, entendamo-nos. Já o jovem Afonso ficou na história da moda por ter sido o criador da maxissaia. Morava geralmente no austero Castelo de Guimarães e tinha um anexo charmoso chamado Paço dos Duques onde dava as suas festas que eram sobremaneira constadas. No dia 24 de Junho de 1128, tomai nota, depois de uma dessas iglantónicas farras, noitada de São João ainda por cima, Afonsinho do Condado acordou digamos maldisposto, bebeu um copo de água da mina com bicarbonato, mandou chamar o pessoal e os cavalos e derrotou a progenitora, Dona Teresa de Leão, mailo seu amante galego, Fernão Peres de Trava, na Batalha de São Mamede, levada a efeito ali mesmo nos arredores, para evitar deslocações e despesas, que o País ainda estava a começar.
Isto explica mais ou menos o que ouvi uma vez no Parque da Cidade do PortoFoi apenas um momento, o tempo de nos cruzarmos, mas deu para perceber que a conversa ia animada. De mão dada com a mãe, o miúdo, de seis ou sete anos se tanto, perguntou, cheio de certeza na resposta: - Ó mãe, a Espanha já deve ter sido de Portugal, porque D. Afonso Henriques ganhou a Espanha, não ganhou?...
Já não escutei o que lhe respondeu a mãe, mas deve-lhe ter dito que não, que não é bem assim. E no entanto...

P.S. - No dia 28 de Julho de 1131 abriu portas em Coimbra o Mosteiro de Santa Cruz, da Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, base de apoio a Afonso Henriques na fundação da nacionalidade.

Para que conste

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Sobre o daltonismo

Os irmãos Dalton eram oito, quatro de cada vez. Começaram por ser Bob, Grat, Bill e Emmet, mas morreram, faz de conta, e foram substituídos pelos primos mais à mão, os impagáveis Joe, William, Jack e Averell. Estes quatro eram bastante filhos da mãe, da Mãe Dalton, vestiam às risquinhas, deslocavam-se em escadinha, sempre do mais pequeno para o maior ou vice-versa, e Lucky Luke fazia-lhes a vida negra.
Houve também o bando dos Dalton a sério (à séria, se lido em Lisboa). Eram especialistas em bancos e comboios, actuaram com assinalável sucesso no Velho Oeste americano entre 1890 e 1892 e chamavam-se Tim Evans, Bob Dalton, Grat Dalton e Dick Broadwell. Foram abatidos pela polícia durante o assalto a uma dependência bancária em Coffeyville, Kansas, e tiveram todos um lindo enterro.
Há ainda a registar Timothy Dalton, aquele actor galês e fraquinho que fez por engano dois 007, o Dalton Ico e o Dalton Trevisan, famoso escritor brasileiro entendido em vampiros e ganhador dos prémios Camões e Machado de Assis, entre outros. O mais destacado membro da família terá sido, no entanto, o cientista inglês John Dalton (1766-1844), químico, meteorologista e físico, um dos primeiros a defender que a matéria é feita de pequenos nadas, os átomos, e inventor da "lei das proporções múltiplas", melhor chamada Lei de Dalton evidentemente para não se confundir com a Lei de Ohm.

P.S. - Publicado originalmente em Julho de 2019. John Dalton, o cientista, morreu no dia 27 de Julho de 1844.

Olha o avião!

Foto Hernâni Von Doellinger

Aerofobia

Tinha um medo terrível de andar de avião. E se o aparelho caísse no oceano? Ele não sabia nadar... 

P.S. - Geoffrey de Havilland, engenheiro britânico pioneiro da aviação, criador do Havilland Comet, primeiro avião a jato de uso regular, e do Mosquito, avião de combate da RAF, o mais versátil da II Guerra Mundial, nasceu no dia 27 de Julho de 1882. O Havilland Comet foi apresentado, curiosamente, no dia 27 de Julho de 1949.

domingo, 25 de julho de 2021

Heranças

Foto Hernâni Von Doellinger

Há uma longa e honrosa tradição familiar no nosso lado Von Doellinger: somos umas pessoas muito doentes, que foi a única herança que o meu avô da Bomba nos deixou. De resto, nem um tostão, nem um penico partido e colado com adesivo, tampouco uma corrente de ar! A minha mãe costuma dizer que, em questão de doenças, "não damos vez uns aos outros". A minha mãe, é preciso que se note, é do lado Pereira, que lamentavelmente não me chegou ao nome, Pereira do meu avô de Basto, que nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria. Este meu querido avô, antigo mineiro e mestre pedreiro de primeira água, era, pelo seu lado, um mãos-largas. Tudo o que tinha, dava. E se o que tinha à mão era o varapau de lódão, então era de esgaça-pessegueiro. A mim, deu-me o meu primeiro relógio de pulso e, numa noite de Natal, ofereceu-me inesperadamente o seu próprio relógio de bolso, um magnífico e infalível Omega que me escangalhou em lágrimas e que há coisa de quinze anos passei ao meu filho, que bem o merece e não lhe dá corda. Eu? Fiquei-me com as memórias. Do choro também...
Já agora. O meu rijo avô de Basto esteve doente uma vez, se não me engano. E morreu. Com os pulmões vagarosamente estraçalhados pelos anos longínquos do trabalho nas minas.

Mas o lado Bomba. As doenças. Neste campo, como em mais um ou dois, ou três, sou a ovelha negra da família. Doentemente falando, sou uma treta, uma nódoa, um ignorante, uma vergonha para a classe dos doentes em geral e da minha família em particular. Às vezes até penso que devia ser expulso. Da classe e da família.
Os Bombas, por definição, eram (são?) entusiásticos consumidores de medicamentos e canjas de galinha. Conheciam (conhecem?) todas as doenças e os dois volumosos tomos da Farmacopeia Portuguesa por ordem alfabética, de cor e salteado, da frente para trás e de trás para a frente, índices e apêndices incluídos, automedicavam-se (automedicam-se?) e só precisavam (precisam?) da consulta e da assinatura do médico - "especialista!", sempre "especialista!"- para autenticar o internamento a troco de quilo e meio da melhor vitela de Fafe, traço seleccionado e cortada pelas sábias mãos do Senhor Abreu do Talho Novo, embrulhado em imaculado papel costaneira e impecavelmente atado e laçada com fio norte de qualidade superior. Justificava-se a despesa dos unhas-de-fome: o internamento em hospital era a sorte grande, a realização de um sonho. Recorrente. Para que o povo soubesse que!
Os meus avós da Bomba, ninguém me tira da ideia, morreram da mania. 

A bó, o bô e o bu

Tínhamos a bó e tínhamos o bô. Vezes dois, sorte a nossa! Bozinha era a bisavó, e tínhamos. Bô queria também dizer bom: binho bô; bô moço. Depois, se calhar por soar a parolo, bô mudou para bu. Bu também mete medo, é susto. Buuu! Quem caralho teve a ideia?...

Troca-se neto por cão

Três rapazes nos arrabaldes dos sessenta anos bem servidos, certamente amigos de longa data, gente bem, meninos da Foz no seu tempo, fazem o costumeiro passeio higiénico matinal na avenida à beira-mar. O da esquerda empurra um carrinho de bebé com uma vaidade que só vista, e é bonita de se ver. Os outros dois vão à rasca até às orelhas, envergonhadíssimos com "a situação", evitam ser reconhecidos por quem passa, como por exemplo eu, que não os conheço de lado nenhum, mais desconforto era impossível. O da direita puxa o do meio pela manga e diz-lhe, tapando a boca com a mão, como fazem agora os treinadores e jogadores de futebol quando querem falar da mãe de alguém e sabem que há câmara de televisão por perto: - Se inda ao menos fosse um cão, um canito! Agora o caralho do neto...
Não é metáfora política. É a vida.

O último dos Bernardinos

Já sabem, eu não posso ver na rua bandas de música ou grupos de zés-pereiras, que me perco. Sigo-lhes os passos, esqueço-me da vida, já não sei que recado ia fazer. (Eram quatro ou cinco pães? Ou seriam bananas?) Os "trampolineiros" da minha infância alegram-me os dias da madureza, descompassam-me o bater do coração, tornam-me a Fafe e à pureza original, comovem-me. Queria que houvesse discos pedidos para poder encomendar todos os dias o "Resineiro" cantado de mansinho mas bem picada de tasco em tasco. Queria pedir desculpa por ignorantemente lhes ter chamado "trampolineiros", coisa feia. Eram, são, tamborileiros. Os tamborileiros da minha alegria triste. E portanto cá vai mais uma vez, versão refinada e aumentada:

O meu avô Bernardino Neques, que nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria, tinha o seu lado musical. Desunhava-se satisfatoriamente com a concertina e o acordeão, e já velhinho veio-lhe a mania do violão, lembro-me que com alguma falta de jeito, Deus me perdoe se estou a ser injusto. Esqueçamos, porém, o violão, o acordeão e a concertina, que foram só para meter conversa. Tornemos aos bombos, à caixaria.
O Neques do meu avô Bernardino não era de baptismo. O verdadeiro nome do meu avô de Basto era Amigo Pereira - assim lhe chamava toda a gente por essas feiras e romarias ali à beira, a começar pela Lagoa, onde ele varria o terreiro com o varapau de lódão girando por cima da cabeça como ventoinha de helicóptero, e suponho que não é preciso dizer mais nada para que se perceba de que marca era o homem. (Mas vou dizer: quando fazia de jogador do pau e estava decentemente avinhado, o meu avô tinha um grito de guerra que era "Olraitecamoniésse!". E tinha um cão de pele e osso ao qual dera o nome de Tuísta, que queria dizer Twist. O meu querido avô era anglófilo americanado e não sabia. De americano, o Bô só conhecia o vinho, e talvez o João massagista, mas desta parte não tenho a certeza.) A alcunha que ficou famosa, Neques, veio-lhe do seu tempo de moço, contava-se, quando rufava a bom rufar na caixa, honesto instrumento por onde começou na arte. E tocava naquele ritmo manso e exacto que ele gostava de explicar como neque-neque-neque, neque-neque, neque-pum. Neques, pois.
O meu avô era apaixonante. Obviamente Banda Revelhe, por causa do meu pai e por bom gosto natural. E o toque de caixa, para o Amigo Pereira, tinha ciência, solfejo. Gostava de perguntar-me, por exemplo, "Quantas pranas tem uma rana?", como se estivéssemos a elaborar sobre fusas e semifusas. Eu dizia que não sabia, que era o que o velho Neques queria ouvir, para logo a seguir me ensinar, matreiro e mais uma vez, "Conta-as, rapaz: rana-catrapana-catrapana-pana-pum; quantas são?..."
Já não há Bernardinos assim. E faz-me diferença. Pum.

P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Abril de 2014. Hoje, 26 de Julho, é Dia Mundial dos Avós. 

Rana-catrapana-catrapana-pana-pum!

Foto Hernâni Von Doellinger

Se calhar inventámos o esperanto

(O Passeio Atlântico de Matosinhos é um mundo. Pelo menos, em dias sem pandemia e de tempo bondoso, é uma razoável amostra de mundo.)

O turista estrangeiro aproximou-se do vendedor de óculos de sol de beira de praia. Era obviamente um turista estrangeiro, só eu e os turistas estrangeiros é que sabemos malvestir assim, nunca me engano a esse respeito. O vendedor de óculos de sol de beira de praia é português dos quatro costados, conheço-o muito bem, há anos, monta banca todos os dias ali em baixo e quando chove é vendedor de guarda-chuvas de beira de praia. É, além disso, ambulante, mas apenas para fugir aos fiscais e à polícia. Ele também percebeu logo que o freguês que tinha pela frente era estrangeiro. Mas pensam que se atrapalhou?, era o que faltava! Nós os portugueses temos connosco esta habilidade extraordinária de nos desenrascarmos sempre, seja em que situação for, cá em casa ou lá fora, mesmo debaixo de água, aprendemos línguas, copiamos hábitos, se calhar inventámos o esperanto, possuímos este poder de desembaraço, improvisação e adaptação, que tomaram muitos, até os Alemães, e que fez de nós um povo das sete partidas do mundo por excelência. Bem, com estas tretas todas, esqueci-me do que queria contar...

Ah!, já sei: o turista estrangeiro. Portanto, o turista estrangeiro abeirou-se do vendedor de óculos português e perguntou: - The glasses, how much?... (Estão a ver como eu tinha razão?).

Foi um clique, um cagagésimo de segundo bastou para que o rapidíssimo cérebro do nosso vendedor formatasse "é inglês, pois então vamos a isso" e mudasse imediatamente de registo, fazendo um entre parênteses na língua do Camões. Cheio de segurança e poliglotismo, respondeu ao camone, marcando ostensivamente as sílabas no mais escorreito acento cockney: - Quali? Quali qui tu quieres?...

P.S. - publicado originalmente no dia 31 de Maio de 2016. Hoje, 26 de Julho, é Dia do Esperanto.

Já me tinhas dito...

Foto Hernâni Von Doellinger

Viva Galiza!

Hoje é Dia da Galiza. Para mim foi ontem. Em Tui o litro de gasóleo está trinta cêntimos mais barato.

Atendimento personalizado

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 24 de julho de 2021

Massas

Gostava de uma boa massa à lavrador, de uma boa massa de marisco e sobretudo de uma boa massa de bacalhau. Também concordava com a vacinação em massa. Quanto à massa de ar quente, não é que desgostasse, mas afligia-o a flatulência. 

P.S. - O escritor de origem búlgara Elias Canetti, Nobel da Literatura, autor de "Auto de Fé" e "O Poder e as Massas", nasceu no dia 25 de Julho de 1905.

O mundo a seus ombros

Foto Hernâni Von Doellinger

Adoro, adoro, adoro!...

Adoro ver na televisão o trabalho dos jovens e famosos chefs da nouvelle cuisine portuguesa. Adoro!
Adoro ver aquele modo de confecção improvável, os ingredientes inovadores, variados e mínimos, o requinte e a cerimónia, a delicadeza, a anorexia na dose, a obra de arte final, aquela espécie de ilha cubista no meio do prato em branco, adornada com bagas, com ervas inventadas, com salpicos e rabiscos de geleias coloridas. Salpicos e rabiscos aparentemente displicentes porém profundamente sábios. Adoro!
Adoro ouvir aquelas palavrinhas francesas, parecem palavras mágicas, nominhos de perlimpimpim. Adoro!
E a frescura?, ui, sobretudo muita frescura! Adoro!
Mal termina o programa, e enquanto ainda está fresco, salto para a cozinha, enfio dois bolinhos de bacalhau da véspera dentro de meio biju ressesso, bebo um copo de verde branco e entretanto atiro-me à galinha de arroba que a minha mãe me mandou de Fafe e faço a boa e ancestral arrozada de cabidela. A cabidela monumental e histórica. E vai para a mesa no panelão, fumegante como uma velha locomotiva a vapor. Ah, caralho!, então é que eu me regalo...

P. S. - Publicado originalmente no dia 19 de Agosto de 2011. A primeira locomotiva a vapor viável, construída por George Stephenson, segundo os princípios de James Watt, foi apresentada no dia 25 de Julho de 1814.

Chovia em Santiago

Foto Hernâni Von Doellinger

Matematicamente

Eram números primos. Direitos. Por parte das mães.

Estou mesmo a ver o filme

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 23 de julho de 2021

O enformador

Ele era mais bolos. Mas tinha um primo que trabalhava com a polícia. 

A Primavera

A prima Vera era boa como milho; casou-se e estragou-se.

Como o mundo é pequeno (e um bocado parvo)

- Perdoar-me-á que o interpele assim sem mais nem menos, sem o conhecer de lado nenhum, mas o caro senhor é um bocado parvo, não é?
- Sou, com efeito, um bocado parvo, mas como é que o caro senhor adivinhou?
- Um pressentimento. É que eu também sou...
- O caro senhor também é um pressentimento?
- Não, não, caro senhor: também sou um bocado parvo.
- Como o mundo é pequeno! Somos então praticamente primos...
- Parentes, pelo menos...
- E, mal que lhe pergunte, o caro amigo é um bocado parvo por parte da senhora sua mãe ou por parte do senhor seu pai?
- Por parte do senhor meu pai.
- Mas isso é extraordinário, caro amigo, porque eu também sou...
- O caro amigo também é um bocado parvo por parte do senhor meu pai?
- Não, não, caro amigo: sou um bocado parvo mas por parte do senhor meu pai.
- Oh, que pena! Quase que éramos irmãos, não é?..

A obra-prima

Os especialistas dividem-se e a opinião pública também. Há quem defenda que o melhor trabalho de Miguel Ângelo são os frescos da Capela Sistina. Outros preferem a Baía de Cascais...

Quanto mais prima...

Foto Hernâni Von Doellinger

Eu tinha umas primas de que não sabia. Foram-me apresentadas há coisa de dois ou três anos pelo meu amigo Paulo Silva, que as conhecia de ginjeira, e desde então não lhes largo as redondezas. Falei nelas no outro dia, disse ao Paulo que havíamos de ir às minhas primas e logo mentes perversas pensaram que eu estava a agendar uma noitada na casa da tia, melhor dizendo: em casa de tia. Mas nada disso. As primas de Leça do Balio são as Erdinger, as excelentíssimas cervejas alemãs que, como o seu próprio nome indica, são praticamente da minha família. E preciso urgentemente de fazer uma festa de despedida.
As Erdinger são infelizmente uma raridade nas prateleiras dos hipermercados. Descubro muito às vezes meia dúzia delas, e vêm logo todas comigo para casa. Mas há um certo sítio, uma esplanada num certo parque junto ao ex-rio mais poluído da Europa, onde costumo marcar encontro com elas e elas não costumam falhar. Parece traição à Pátria, mas é exactamente em Leça do Balio, o berço desse verdadeiro monumento nacional e património material da humanidade que é a Super Bock.
Para beber a Erdinger em casa como manda o figurino, até tive de comprar um copo, caro, enorme, bojudo e cheio de curvas, e é destas redondezas que eu falo. Estou a pensar vendê-lo, ao copo. As minhas primas que me perdoem, mas começam a estar muito acima das minhas posses. E não é que volte para os braços da Super Bock, não. Vou mesmo para a água, e da torneira, pelo menos enquanto não a vierem cá cortar. Portanto, adeus ó primas, ó ricas primas! 

P.S. - Publicado originalmente no dia 9 de Dezembro de 2011. E hoje, 24 de Julho, é Dia dos Primos. Já há anos, seis ou sete, que não vou a casa das primas, e as raparigas, há quem me conte para fazer raiva, continuam boas como o trigo. Estou farto de dizer à minha mulher: a família devia dar-se mais...

Interlúdio fotográfico 358

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 22 de julho de 2021

A culpa foi do mordomo

Vinham chegando aos poucos e discretos. August Dupin, Dick Tracy, Miss Marple, Clouseou, Maigret, Mike Hammer, Sherlock Holmes, Sam Spade, Nero Wolfe, Philip Marlowe, Perry Mason, Ironside, Kojak, Columbo e Pepe Carvalho. Poirot apareceu enfim, atrasadíssimo e ofegante. Disse que a culpa foi do mordomo.

P.S. - O escritor norte-americano Raymond Chandler, criador do detective Philip Marlowe e autor de "O Imenso Adeus" e "À Beira do Abismo", nasceu no dia 23 de Julho de 1888.

De pé, ó vítimas da fome!

- De pé, ó vítimas da fome! - gritou o speaker-cantor. O pavilhão estava cheio mas ninguém se levantou. Era uma fraqueza muito grande...

P.S. - "A Internacional" terá sido cantada pela primeira vez em público no dia 23 de Julho de 1888, numa reunião de vendedores de jornais na cidade francesa de Lille.

Por um canudo

Foto Hernâni Von Doellinger

Contra fatos não há argumentos

Era um desses modernos verificadores de fatos. Trabalhava numa alfaiataria.  

O guarda-fatos

Tinha uma vida muito arrumadinha. Ao fim do dia, na hora das orações da noite e do exame de consciência, ponderava fatos e mentiras. Desfazia-se das mentiras no cesto do lixo, pendurava os fatos no roupeiro. Evidentemente.

Casaco de trespasse com chave na mão

Comprei um fato há coisa de trinta e cinco anos para ir ao casamento de um amigo e é o fato que tenho. Ao longo de um quarto de século, usei o fato mais quatro ou cinco vezes nos casamentos de mais quatro ou cinco amigos e sobrinhos, numa excursão a Lisboa para o Prémio Gazeta do Agostinho Santos e numa ida à televisão. É um fato praticamente novo, mas ando preocupado: quando eu morrer, o casaco de trespasse estará outra vez na moda?

Profissão de risco

Ele queria uma profissão de risco. Tinha apenas um dúvida: cabeleireiro ao alfaiate?... 

P.S. - Hoje, 23 de Julho, é Dia Do Alfaiate e da Modista.

Também faço isto muito bem 557

Foto Hernâni Von Doellinger

Moinices da alta e outras efemérides

A propósito da cretinice dos secretários de Estado que foram à bola a França por conta da Galp, no Euro 2016 de tão boa memória, lembrei-me do multinacional lobista Durão Barroso. José Manuel era primeiro-ministro de Portugal, em 2002, e foi no jacto privado de Pereira Coutinho passar férias na ilha privada brasileira do recatado multimilionário português. Três anos depois, o nosso Zé Manel já tinha sido nomeado presidente da Comissão Europeia e passou férias num barco privado de um milionário grego.
Conclusões que tirei desta oportuníssima lembrança: Durão Barroso gosta de férias; Durão Barroso gosta de férias à grande e à brasileira ou à grega, pelo menos; Durão Barroso não gosta de pagar as férias à grande e à brasileira e à grega, pelo menos; Durão Barroso não paga férias desde os tempos imemoriais em que ia para a chique praia de Moledo, em Caminha, como as pessoas normais porém chiques, e se calhar nem essas pagava, porque parece que eram passadas em casa de amigos; Durão Barroso gosta de milionários e de multimilionários; Durão Barroso gosta muito de privados - aviões, ilhas, barcos e talvez bancos; por causa de Durão Barroso e de outros que querem ser durões barrosos quando forem grandes, o PSD mexe com pinças na valente cagada que os secretários de Estado do Governo PS fizeram; os invejosos do CDS esperneiam e esperneiam, mas apenas porque ninguém os convida para lado nenhum e eles também gostam de andar de cu tremido; é inacreditável que os secretários de Estado que foram à bola a França por conta da Galp ainda sejam secretários de Estado.

(O prestígio internacional de Durão Barroso não era realmente coisa de se deitar fora. Lembram-se? José Ramos-Horta (ex-presidente de Timor-Leste e co-Nobel da Paz com Dom Ximenes Belo em 1996) lançou a candidatura do nosso Zé Manel ao mesmo prémio em 2008. E deu em águas de bacalhau! Quatro anos depois, o ilustríssimo galardão foi atribuído à União Europeia. Quer-se dizer: ao Barroso só faltou um bocadinho assim...)

Fino era o Paulo Portas: para que não se lhe possa apontar nada, ele é que oferecia viagens aos seus futuros patrões. Em quatro anos, o então vice-primeiro-ministro e ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros levou a Mota-Engil seis vezes à América Latina. Hoje Portas é consultor da Mota-Engil para a... América Latina. Durão Barroso está na Goldman Sachs. Consta que é charmain...

P.S. - Publicado originalmente no dia 5 de Agosto de 2016. Com quase um ano de atraso, em Julho de 2017, os secretários de Estado que foram à bola a França por conta da Galp acabaram por demitir-se. Rocha Andrade, que nos pôs as contas em dia, se calhar faz falta. Quanto a Pereira Coutinho, que já foi o quinto mais rico de Portugal, vendeu o jacto, o helicóptero e a ilha em Angra dos Reis (trindade ostentatória que Barroso conhecia de ginjeira e de borla), perdeu e desfez-se de negócios, faliu ou insolveu-se, sobrevive, sei lá, à pala da Segurança Social e um destes dias ainda o vou descobrir por aí sem-abrigo. José Manuel Durão Barroso, esse, foi eleito presidente da Comissão Europeia no dia 22 de Julho de 2004. Faz hoje anos. E parabéns à prima!...

Fulanos, sopranos e beltranos

Os sopranos têm, por definição, o tom de voz mais agudo e com mais alcance de mulher ou de rapaz muito novo. Se os sopranos forem homens, os puristas preferem chamar-lhes contratenores, que há quem confunda com contentores. Os sopranos dividem-se essencialmente em sete partes: soprano ligeiro, soprano lírico-ligeiro, soprano lírico, soprano lírico-spinto, soprano lírico-dramático, soprano dramático e soprano ultraligeiro. Também podem ser saxofones ou clarinetes, por exemplo. Nos Estados Unidos, os Sopranos ainda piam mais fino: são mais que as mães, maus como as cobras e convictos frequentadores de meretrizes. São extremamente mafiosos e profundos conhecedores, estes sim, de contentores, blocos de cimento e rios. Quando inadvertidamente apanhados por famílias inimigas, e desmembrados como manda a lei, os Sopranos são chamados, por divertimento, meios-sopranos. Os Sopranos americanos fizeram uma excelente série de televisão e agora vão dar em filme, que terá por título, corrigido, "Os Contratenores". O melhor Soprano do mundo (portanto, o pior) chamava-se Tony e padecia de ansiedade. 

P.S. - Publicado originalmente no dia 12 de Janeiro de 2019. Hoje, 22 de Julho, é Dia do Cantor Lírico. No Brasil.

Uma certa maneira de ver as coisas

Foto Hernâni Von Doellinger

Vendo pontos de vista para o mar

Eu tenho uma certa maneira de ver as coisas, isso é verdade. Mas não possuo aquilo a que se possa chamar um prisma, uma óptica, sequer um ângulo que se diga. Tivesse-os eu, e vendia-os...

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Podiam ter-me perguntado

Um estudo avaliou três vezes as capacidades cognitivas de mais de sete mil funcionários públicos ingleses num período de dez anos, concluindo que, afinal, o declínio do cérebro não começa aos 60 anos, mas logo aos 45. Estudo redundante e desnecessário. Obliterando a especificidade do cérebro de funcionário público, podiam ter-me perguntado e ficavam logo a saber o mesmo, sem mais trabalho. Sou uma prova viva! De resto, o Governo e o patronato de Portugal já há muito que também têm conhecimento desta realidade científica, provavelmente através de estudos secretos, ou vocês pensavam que é por pura maldade que um e outro mandam para o caixote do lixo os trabalhadores portugueses acima dos 50?
Tinha mais duas ou três coisas para dizer sobre este assunto, mas, cá está, não me vêm à cabeça, não me lembro.

P.S. - Hoje, 2 de Julho, é Dia Mundial do Cérebro.

O meu cão

Eu tenho um cão. É um cão imaginário. O meu cão chama-se Parkinson, porque quando quero chamar por ele nunca me lembro do seu verdadeiro nome que é Alzheimer. A raça do meu cão tem dias, vantagem de ser imaginário: às segundas é perdigueiro, às terças é labrador, às quartas é são bernardo, às quintas é pastor alemão, às sextas é dálmata e aos fins-de-semana é sobretudo rafeiro. O meu cão nasceu no país certo.
O meu cão fica-me muito em conta. Não come mas cala, dispensa vacinas e vitaminas, nunca vai ao veterinário, não precisa de casota nem de agasalhos para o Inverno, e só me custa o preço da trela. O meu cão conhece o dono e não morde a mão que não o alimenta. Se todos fôssemos cães assim, vínhamos mesmo a calhar ao Governo da Nação.
O meu cão faz-se muito bem de morto e corre atrás de qualquer merda que lhe atire. Só lhe falta falar. O meu cão não ladra às pessoas, não fornica as pernas transeuntes, não abocanha, não caga no passeio, não mija nos pneus do carro do vizinho, não tem pulgas nem chatos, nem anda por aí a emprenhar cadelas mais ou menos oferecidas. É como se não existisse. O meu cão é um exemplo de cidadão.
Já mo quiseram comprar e eu não o vendi. Foi um vendedor de ilusões. Oferecia-me um país inteiro sem pretos em troca do meu cão. Nã! Antes quero o cão. E os pretos!

O mundo a seus pés

Foto Hernâni Von Doellinger

Daniel, profeta e domador de leões

Daniel foi mediano profeta e consta da Bíblia no, exactamente, Livro de Daniel. Trabalhou na Babilónia como vidente e porventura cartomante, interpretando sonhos e visões, e tinha três amigos esquisitamente chamados Sadraque, Mesaque e Abednego. Foi também domador de leões, com um anjo como partenaire, dando início a essa lamentável tradição circense.
A fama chegou-lhe apenas em 1973, quando entrou numa canção do Elton John. 

P.S. - A Igreja Católica celebra o profeta Daniel, também chamado Beltessazar, no dia 21 de Julho.

Era uma vez uma hamburgueria gourmet

O caro leitor lembra-se (sim, caro leitor, é consigo, é o único leitor que tenho), dizia, o caro leitor lembra-se de eu aqui atrasado ter escrito um coisada chamada "O gourmet não se dá na minha zona"? Não se lembra? Não faz mal. Era assim:

Moro em Matosinhos, na famosa zona dos restaurantes e marisqueiras, que se acotovelam porta sim, porta sim. Pensava portanto que não lembraria ao diabo estabelecer-se aqui no meu território com uma dessas autoproclamadas hamburguerias gourmet, mas a alguém lembrou. Quando, ainda de vidros tapados, vi cá fora os letreiros, pensei: isto nem sequer vai abrir. Mas abriu, e agora penso: daqui a quantos dias é que isto vai fechar? Porque a verdade é esta: o gourmet não se dá à minha volta, e juro que a culpa não é minha. Evidentemente não o frequento, mas, tirando isso, mais nada...
Lembra-se o caro leitor da história do fumeiro, faz agora quatro anos? Foi assim:

Do outro lado da minha estrada (o caro leitor já reparou que, nas nossas cidades, as ruas agora não são ruas, são estradas, e estradas com engarrafamentos e perigosas?), dizia: do outro lado da minha estrada há uma daquelas pequenas lojas tipo "regional gourmet". Azeitonas em frasco, cogumelos em frasco, meles em frasco, geleias em frasco, licores em frasco, frascos em frasco, dois presuntos em fraco, azeites e vinhos em caro, prateleiras um fiasco. Num benévolo gesto de boas-vindas, mal abriu o estabelecimento fui lá cheirar e avisar que o conceito é uma treta e que gourmet a sério é em minha casa, mesmo em frente, porque aqui a comida é muito boa, e gourmet deveria ser isso, mas não estamos abertos ao público. O gourmet - a ver se eu me sei explicar - quer-se da boca para dentro e não da boca para fora, mas não faço concorrência.
Estas lojinhas abrem e infelizmente não vendem nada. São "regionais" porém franchising, very tipical e very vazias, de produtos e clientes. O toque de "qualidade" é dado em palavras "estrangeiras", o que só abona a favor do produto made in Portugal. A loja da minha estrada tinha primeiro uma menina, que passava a vida na ombreira da porta a fumar, fumar, fumar.
A loja não abria desde que o ano entrou. Pensei que tinha sido o fim. Mas graças a Deus enganei-me, que de desemprego já basto eu. A loja reabriu hoje: não está lá a menina, mas um rapaz. Que passa a vida na ombreira da porta a fumar, fumar, fumar. Nas costas, os dois presuntos pendurados no cabide tisicam e agradecem - assim se produz o genuíno fumeiro nacional.

Entretanto. Passou-se uma semana e a lojinha fechou de vez: veio uma carrinha limpar as escanzeladas prateleiras, três sacos de plástico bastaram e lá se foi mais um posto de trabalho, por assim dizer, que é o que a mim me importa. Fico infeliz por ter razão: o conceito era realmente uma treta. Esta gente não sabe o que é massa com bacalhau e o prato a esbordar...

Por falar nisso, hora de almoço: espreito a hamburgueria gourmet, dando-lhe uma última oportunidade. Os únicos "clientes" que vejo são o pessoal da casa, à mesa. Já foste!, digo cá para comigo. É o raio deste microclima sul-matosinhense...

Pois meu dito, meu feito. A coisada acima é do princípio do ano, 11 de Janeiro. Hoje passei pela hamburgueria gourmet da minha zona e, fatal como o destino e com ponto de exclamação e tudo, lá estava afixado o aviso na porta fechada: "Trespasse!"...
 
P.S. - Publicado originalmente no dia 14 de Julho de 2018. Hoje, 21 de Julho, é Dia da Junk Food. Sobretudo na América, e compreende-se.

terça-feira, 20 de julho de 2021

Gosto da palavra parreca

Gosto de nomes, gosto de palavras. Gosto do falar antigo: gosto de dizer que está "tudo na ponta da unha", quando me perguntam "como é que vai essa merda?", gosto de dizer que é "daqui, detrás da orelha", quando me perguntam "que tal?" a propósito de uma pinga de arrebenta que fazem o favor de dar-me a provar, verde tinto de preferência.
Gosto da palavra parreca. Pachacha, não. Nem crica. Pito, cona, buceta, siririca, vulva, rata, pássara, passarinha ou perereca, apesar de legalmente registadas, então é que nem admito. Pior, só mesmo vagina, uma obscenidade que me tira do sério e absolutamente comparável à alarvidade de chamarem pénis ao pirilau. Pénis e Vagina (neste caso leia-se vajaina, se não for incómodo) até parecem nomes de um casal da Mattel, e se calhar ambos de virilhas vazias, como os outros dois, o Ken e a Barbie.
Da parreca é que eu gosto. Para além de uns rebuçados de açúcar suponho que amarelo, formatados em pequenos ladrilhos e embrulhados em papéis de cores diversas e garridas, vendia-se antigamente nas feiras e festas de Fafe uma espécie de doce alegadamente em forma de pato, ou de pata, vá lá - e esse doce era a parreca.
Diga-se em abono da verdade, o doce resumia-se a uma somítica camada exterior de açúcar, agora branco, se não me engano, e o resto era um pedaço de massa castanha, azeda e dura como cornos, para lamber, lamber, lamber, lamber... até se desfazer à força de dentes, se a gente não desistisse antes. Era coisa para umas horas, se respeitada na íntegra. 
Quando nos vinha visitar, às quartas-feiras, pelos 16 de Maio e na Senhora de Antime, a querida Bó de Basto trazia-me sempre uma mancheia dos tais rebuçados e, infalível, uma parreca para me entreter a tarde. Foi decerto daí que eu fiquei freguês. 

P.S. - Publicado originalmente no dia 25 de Junho de 2015. Elliot Handler, pai da boneca Barbie e dos carros Hot Wheels, morreu no dia 21 de Julho de 2011. Tinha 85 anos.

Interlúdio fotográfico 357

Foto Hernâni Von Doellinger

Os meninos dançam?

Lembram-se do futebol de salão? O que é que nos vinha à cabeça quando se falava de futebol de salão? O salão. Uns cavalheiros vestidos de fraque e com um número nas costas e umas cavalheiras despidas nas costas e no resto, agarrados um ao outro e rodopiando pelo rinque árabe do Palácio da Bolsa como Fred Astaire e Ginger Rogers e uma bola pequenina no meio, um árbitro e o apito, um júri e tabuletas. Para evitar confusões, o futebol de salão passou a chamar-se futsal. E é o sucesso que se sabe...

P.S. - Hoje, 21 de Julho, é Dia do Dançarino de Salão. No Brasil.

Interlúdio fotográfico 356

Foto Hernâni Von Doellinger

E lá iam os dois, Hemingway e Baptista-Bastos

Descíamos no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo. Era aquela caloraça das ilhas, aquele esplêndido exagero de luz, o ar quase sólido que sufoca a respiração dos menos habituados, o bom odor de salsugem, que peço emprestado ao mestre. Eu de barrete branco enfiado na cabeça e lenço tabaqueiro atado ao pescoço, as barbas suando em bica, ele no seu fato impecável, o laço "de fazer" milimetricamente composto, dizia-me "Oiça lá, você parece o Hemingway!...", e soltava uma enorme gargalhada, exabundante, para ser ouvida pelos passantes e sobretudo pelas passantes, porque, estivesse onde estivesse, sempre fez questão de que se soubesse, sobretudo elas, que por ali andava o famoso Baptista-Bastos.
Andávamos ambos, mas evidentemente eu era invisível. Tínhamo-nos conhecido alguns anos antes, numa viagem à Irlanda. Eu iniciante no ofício e ele O Grande BB, nesse tempo ainda intrépido "praticante do desporto líquido", como gostava de dizer, e contador ininterrupto de extraordinárias histórias que outros jornalistas da capital desmereciam por inveja. Diziam-lhe nas costas que ele inventava reportagens e entrevistas. Não sei se inventava ou não inventava - isto é, caguei! Eu queria era ouvir o Senhor Baptista-Bastos. Aprender. Ouvia-o embatocado, reverente, assombrado, deliciado. Ouvia-o enquanto ele me apresentava abundantemente à Guinness e ao Jameson, e os invejosos também à roda, flatulando améns, onzeneiros e hipócritas. Ia eu apenas no segundo pint, ao balcão do Kitty O'Sheas's Bar, em Dublin, e já lhe pedia "E daquela vez?..."
Baptista-Bastos gostava, inchava. Dizia, como se estivesse a dar-me corda, "O puto vai longe". Enganou-se redondamente. O mais longe que fui foi aos Açores, e ali estávamos os dois, descendo no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo, ilha Terceira.
Eu num sino, se fosse visível, o coração aos saltos e a cabeça num turbilhão. "O Baptista não faz ideia da vaidade que tenho por ir aqui à sua beira", confessei-lhe de repente, atrapalhando palavras. "Baptista, não", corrigiu-me, "sou Armando para a família e amigos do peito ou Baptista-Bastos para o geral, mas você, que já é da minha equipa, chame-me Amigo Bastos, que é como eu prefiro". Percebi o generoso raspanete como se, para o BB, Amigo fosse nome próprio e Bastos o apelido. (Quer-se dizer: AB.) E creio que percebi bem.

- Mas oiça lá: à sua beira, foi o que disse? Que expressão tão bonita! À sua beira...
- É assim que se fala na minha terra. Sou de Fafe...
- Fafe? Justiça de Fafe, não é? Grande terra, terra de gente vertical...

Por aqueles dias mantivemos longas conversas em que eu só ouvia. Baptista-Bastos contou-me de Soares, de Cunhal, de Salazar, de Caetano, do PCP, do PS, do pai, de tipografia, de Lisboa, do Bairro Alto, de jornais, de jornalistas e "simpatizantes", de tertúlias, da boémia, da noite, de sábios, de analfabetos diplomados, de livros, de Aquilino, de Branquinho da Fonseca, de Carlos de Oliveira, de Manuel Mendes, de Eugénio de Andrade, do amigo Manuel da Fonseca. Da beleza da sua mulher, do orgulho nos filhos. E de freiras pentelhudas, e de mulheres, e de mulheres, e de mulheres...
Insistia nas suas basezinhas, que já então eram um clássico: que os jornalistas se tratam por tu e são camaradas, porque colegas são as putas, e tratava-me por você. E não me lembro se me perguntou se eu sabia onde estava no 25 de Abril, e eu por acaso sabia.

Já no aeroporto de Lisboa, no regresso a casa, Baptista-Bastos fez questão de apresentar-me à mulher, que era realmente uma senhora muito bela, e a um dos filhos. Quando nos despedimos ofereceu-me o seu excelentíssimo livro de reportagens "As Palavras dos Outros", com um recadinho escrito ali na hora na terceira página, e, como se estivesse a chamar passageiros para o voo do Porto, repetiu tonitruante o essencial de tudo o que copiosamente me ensinara na ilha: - Doellinger, não se esqueça, ler e escrever todos os dias!...
Não esqueço, Amigo Bastos.

P.S. - Publicado originalmente no dia 9 de Maio de 2018. O aventureiro e escritor norte-americano Ernest Hemingway, autor de "Por Quem os Sinos Dobram", "Adeus às Armas" e "O Velho e o Mar", Prémio Pulitzer de Ficção em 1953 e Prémio Nobel da Literatura em 1954, nasceu no dia 21 de Julho de 1899. Não curiosamente, o nosso Baptista-Bastos foi prefaciador de Hemingway em Portugal.

Interlúdio fotográfico 355

Foto Hernâni Von Doellinger

Era o Lopes

Eu levo os telemóveis e os amigos muito a sério (à séria, se lido em Lisboa). Se o meu telemóvel toca, e é raro, eu atendo. Sempre. Ainda ontem: eu estava aqui nas traseiras, por acaso sem o telemóvel à mão, e ouvi-o tocar na cozinha, virada para a rua. Fui lá a correr: não era o telemóvel, era a máquina de lavar roupa, que as máquinas de lavar roupa agora também tocam. O que é que eu fiz? Atendi a máquina de lavar roupa, evidentemente, e era o Lopes...

E sobretudo Deus

Eram dois amigos antigos, amigos do peito, leais, assíduos, generosos, cúmplices, irredutíveis, amigos com agá grande. Ainda por cima tinham Deus em comum: um acreditava, o outro não. 

Era uma vez uma princesa

Foto Hernâni Von Doellinger

O melhor amigo

Os Sousas do sexto-direito têm um cão. O cão é o melhor amigo do homem. O melhor amigo da mulher é o Gustavo da Tabacaria.

Saudações inimigas

Escrevi aí a uma criatura e, no final, mandei-lhe um "grande abraço". A criatura despachou-me e, no final, mandou-me, para a troca, "saudações amigas". Saudações amigas? Mas, Senhor Bispo, o que raio são saudações amigas? Evidentemente serão o contrário de saudações inimigas, mas o que são saudações inimigas? Abraço, eu sei: o abraço é sólido, palpável, vê-se, sente-se, dá-se, recebe-se, aperta-nos, aproxima-nos, humaniza-nos. Agora, saudações amigas...

Só destes, tenho sete 154

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Apoio

- Força, meu amigo, força! Nestes momentos é que é preciso ter força. Coragem, força! Força, hã!...
- Importa-se de sair e de me deixar cagar em paz?... 

Mais vale quase do que realmente

A família é uma coisa muito estranha. Já repararam que o mais forte laço familiar acaba por ser aquele que une as pessoas que "é como se fossem da família"? 

Fiel amigo

O bacalhau é o melhor amigo do homem. Só lhe falta ladrar. 

O grande Asdrúbal

Encontrei ontem por acaso o Asdrúbal, o velho Asdrúbal, o grande Asdrúbal - aos anos que não nos víamos! Recordámos os tempos antigos, falámos das nossas vidas, da família, dos filhos, dos netos, dos amigos que já morreram, da pandemia, do Senhor Luís Filipe Vieira, dos novos fascistas-racistas, de projectos para o futuro. Enfim, pusemos a conversa em dia e à distância. Despedimo-nos calorosamente trocando abraços da boca para fora e números de telemóvel e apalavrando a marcação de um almoço para quando se Deus quiser. Cada qual seguiu para o seu lado, e só então é que eu reparei que aquele não é o Asdrúbal, nem sequer é parecido com o Asdrúbal, apesar da máscara. Na verdade, tenho agora a certeza absoluta de que não conheço este indivíduo de lado nenhum. Em todo o caso, gostei muito de falar com o Asdrúbal.

P.S. - Hoje, 20 de Julho, é Dia do Amigo.

Romanos a banhos

Foto Hernâni Von Doellinger

Um bobsleigh em segunda mão

No tempo dos sonhos eu tive um: comprar um bobsleigh em segunda mão, pegar na mulher, no filho e no futuro e mudarmo-nos os quatro para Santiago de Compostela, que era o estrangeiro que me estava mais à mão e nós gostávamos razoavelmente derivado às ruinhas, às tapas e às cañas e por a bem dizer nem sequer ser estrangeiro. Melhor dito, gostamos muito. Mas hoje em dia: a Galiza anda tão à rasca como a gente, já não é oficialmente estrangeiro e saraiva por mais que saraive, ainda que em galego, não é neve nem embala. Ia fazer o quê com o bobsleigh na Praça do Obradoiro? Do Obradoiro, que nome extraordinário. Ainda por cima, os gandulos do lado de cá cortaram-me as vazas, entesaram-me até ao cutão. Desisti portanto do bobsleigh e tirei o passe do metro para a Senhora da Hora. Segundo julgo saber, na Senhora da Hora não neva há variados anos por uma questão de princípio. Que se segue: de bolsos vazios e sonhos roubados, fico olimpicamente em casa à espera do Verão de que não gosto. Sem bobsleigh, sem ruinhas, sem tapas e sem cañas. Uma seca que só visto.
Sou dado a invernos. Melhor que chova em Santiago. E que neve e que gele. Ou então nada disso, que ao ponto a que chegámos também não interessa, mas Santiago, sempre Santiago, mesmo sem bobsleigh e ainda que faça sol. Um dia destes lá iremos, eu, a mulher, o filho e o futuro - pobres e a pé, se Deus quiser, mas vamos. E tem de ser rápido, antes que uns certos e determinados bandalhos nos matem à fome em primeira mão.

P.S. - Publicado originalmente no dia 9 de Fevereiro de 2014. Entretanto comprei um carrinho de mão praticamente novo e temos dado as nossas voltas por aí.