sexta-feira, 31 de março de 2017

Requiem pelas minas do Pejão 4

Foto ADRIANO MIRANDA

Ora aqui é que bate o ponto. Se bem que se veja em apertos para descalçar a bota dos 497 (números assim exactos) despedimentos com mútuo acordo, por entre silêncios e algum comprometimento, a Comissão de Trabalhadores da empresa (mais uns do que outros) sempre vai barafustando acerca da forma como as coisas foram feitas. Como outros mineiros que ouvimos individualmente, os da Comissão não negam que tenha sido feito um rigoroso diagnóstico da situação, apresentam é razões de queixa dos medicamentos ao dispor, e até de uma certa negligência no tratamento, por assim dizer...
Que se trata de um caso de "falta de vontade política do Governo", já estamos conversados, mas que, principalmente: um, "a formação profissional que tem sido dada não é a adequada, os formadores não são habilitados, os formandos não saem formados, os cursos (como os de carpintaria, pichelaria, electricista) não têm saída no mercado - o que se faz é só para gastar o dinheiro que vem de lá para cá"; dois, "onde está o parque industrial e onde páram as acessibilidades prometidas?"; três, "por onde anda o gabinete técnico de apoio? - montaram agora uma coisa com esse nome ou parecido, mas ninguém nos sabe ajudar na criação de novas empresas"; quatro, "ninguém ligou ao sistema que propusemos de reformas antecipadas, que até nem abrangia tanta gente assim e que, por exemplo, incluía o caso de prescindirmos de quatro meses de indemnização"; cinco, "e nós todos, agora, o que é que vamos fazer ao fim dos dois anos de subsídio de desemprego, o quê?" E a angústia que aperta: - tenho 34 anos, vou gozar o fundo de desemprego e andar à biscatada no trabalho dos computadores, tenho só o antigo quarto ano e incompleto...; - aos 46 anos, não sei, está para aí tanta gente a lançar-se, mas isto está muito mau, ninguém nos ajuda ou orienta; - isto aqui não há nada, a única riqueza eram as minas, como é que, pelo salário mínimo, vou poder deslocar-me para trabalhar numa fábrica fora do concelho, em Espinho ou na Feira, e manter a família?; - ainda por cima, quantos serão os de nós que não estão já minados pela doença ou marcados por acidentes de trabalho; - olhe, dos despedimentos mais atrasados já há aí muito caso de miséria, de fome e de doença...

(Continua amanhã)

P.S. - As minas do Pejão fecharam no final de 1994. Na ocasião andei por lá e escrevi este "Requiem" para a revista Anégia.

Caminho 307

Foto Hernâni Von Doellinger

Aurelio Ribalta

A cicada cantaba escondida antre as erbas. Os salgueiros xentís espallan as ponlas á beira do rego, mollando as puntas na iauga mansa, trasparente e sombrisa, que as raiolas do sol pintaban aos poucos con tachas de lume. O rego corría máino, val abaixo, cáxeque sin rexurdire, con calado gorgotexo mais sintido nos sitios nos que as ondas maraballábanse nos croios. [...]

"O Derradeiro Amore", Aurelio Ribalta

(Aurelio Ribalta nasceu no dia 1 de Abril de 1864. Morreu em 1940.)

Cónego Leite de Araújo em livro


Amanhã, sábado, dia 1 de Abril, lançamento do livro "Cónego Joaquim José Leite de Araújo - 40 Anos a Sonhar Fafe", de Artur Coimbra e Paulo Moreira. Apresentação na Igreja Nova de São José, em Fafe, a partir das 21h15. Mais informação, aqui.

Requiem pelas minas do Pejão 3

Foto ADRIANO MIRANDA

E o certo é que, depois dos estrebuchos iniciais, cartas, comunicados e exposições - da Câmara de Castelo de Paiva, de juntas de freguesia, de colectividades -, todos se entenderam sobre a inevitabilidade do encerramento da mina. Até os trabalhadores...
A questão passava a ser, agora, como tal seria concretizado e que voltas haveria a dar para reverter em positivo a situação.
E todos - outra vez unânimes - concordaram no método e nas prioridades. A saber: despedimentos faseados, formação profissional, melhoria nas acessibilidades ao litoral e criação de uma zona industrial e de um gabinete técnico de apoio que orientasse reconversões e novos investimentos.
A Administração da ECD avança já com o seu balanço positivo. De 87/88 até hoje, foi reduzindo o número de trabalhadores de 1.100 para 500 ("o mínimo para o funcionamento da mina"). Encetou "um planeamento mineiro mais correcto e aumentou-se significativamente a produtividade". Reduziu aos horários de trabalho e "eliminaram-se os tempos mortos". Afirma ter aproveitado todos os incentivos disponibilizados pela CECA (Comunidade Europeia do Carvão e do Aço) para efectuar "despedimentos melhorados".
De facto, o processo de despedimentos é assumido como um êxito estrondoso. Os administradores José Couto e Arrais realçam a "confiança mútua, o relacionamento extremamente pacífico com os trabalhadores". E atestam: "desde que foi aunciada a decisão da paragem, não houve uma única greve; pelo contrário, os últimos quatro anos foram os de maior produtividade: a taxa de absentismo diminuiu, em Outubro a produção aumentou 20 por cento e [suprema ironia] contamos atingir o óptimo da exploração exactamente no dia do encerramento da mina!"
Quer dizer: a ECD reclama-se como "a primeira exploração mineira que em Portugal foi objecto de um encerramento programado, que foi possível desenvolver com um elevado grau de execução dos objectivos propostos, graças à boa colaboração que existiu entre todas as entidades intervenientes"... e, especialmente, "à excelente colaboração do pessoal"...

(Continua amanhã)

P.S. - As minas do Pejão fecharam no final de 1994. Na ocasião andei por lá e escrevi este "Requiem" para a revista Anégia.

Se bem me lembro 19

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 35

Bravo!, bravo!, bravo!, gritou-se na ópera
O São Carlos rebentando pelas costuras, o público, conhecedor, finíssimo, lisboeta, num delírio de palmas compassadas e gritos comedidos (os chamados gritinhos): - Bravo!, bravo!, bravo!...
O touro, um Miura rondando os 650 quilos, assomou à boca de cena e agradeceu, composto e patriótico: - Gracias, muchas gracias!... 

Nunca pior
- Então, está tudo?...
- Vamos andando...
- Mas está tudo?...
- Nunca pior...
- Isso é que interessa. 

Contra mim falo
Contra mim falo. Depois respondo-me à letra e geralmente ganho a discussão...

Trinta por uma linha
Fazia trinta por uma linha e cinquenta por duas. Mas era produto de primeira...

Banho de cultura, mas a seco
- E essa semaninha em Roma?
- Fantástica! Um tremendo banho de cultura! Um mergulho na História! Sabes que a cultura para mim...
- E o velho Coliseu?
- Absolutamente sem condições, carente de uma remodelação profunda. Já estão a substituir o relvado...

Foram não sei quantos mil
Foram não sei quantos mil - disse o poeta. Pelas minhas contas, setecentos e cinquenta e três - corrigiu o presidente do conselho fiscal.   

quinta-feira, 30 de março de 2017

I want to ride my bicycle 3

Foto Hernâni Von Doellinger

Afonso Celso 3

Anjo enfermo

Geme no berço, enferma, a criancinha,
Que não fala, não anda e já padece...
Penas assim cruéis por que as merece
Quem mal entrando na existência vinha?!

Ó melindroso ser, ó filha minha!
Se os céus ouvissem a paterna prece
E a mim o teu sofrer passar pudesse,
- Gozo me fora a dor que te espezinha.

Como te aperta a angústia o frágil peito!
E Deus, que tudo vê, não ta extermina,
Deus que é bom, Deus que é pai, Deus que é perfeito.

Sim, é pai mas - a crença no-lo ensina:
- Se viu morrer Jesus, quando homem feito,
Nunca teve uma filha pequenina!...


"Poesias Escolhidas", Afonso Celso 

(Afonso Celso nasceu no dia 31 de Março de 1860. Morreu em 1938.)

Os passarinhos, tão engraçados 26

Foto Hernâni Von Doellinger

Ernani Rosas

Alucina-te a cor

Alucina-te a cor e a calmaria
desse oceano fulgente em que demoras
o olhar em sonho a germinar auroras...
entre a quimera e a líquida ardentia...
 
Pareces caminhar magnetizada,
sob um chover de estrelas e de rosas...
pelo florir da luz quimerizada
surges de um mar de nuances misteriosas...
 
Como ilha de aromas e de gases,
esparsa, no silêncio, que desperta...
o lírio de teu gesto, entre lilases!
 
Acenando do azul do meu assomo...
ou da érea visão que à luz deserta,
ao mágico poder que vem dum gnomo!...


"Poema do Ópio", Ernani Rosas

(Ernani Rosas nasceu no dia 31 de Março de 1886. Morreu em 1955.)

A cidade das traseiras 25

Foto Hernâni Von Doellinger

Pura Vázquez 2

Amante

Pol-os vieiros vai
cheo de lúa
¡meu amante!
Vai cheíño de lúa...
Brincafollos no sangue.
Lévao a noite. Vai,
ollos de lúa, buscándome.
Alba deloirada, alba
do infindo amor, afogándome.
Vino pasar cheo de lúa,
pol-os camiños, amante...
Levávao a noite. Iba,
ollos de noite, buscándome.


"Maturidade", Pura Vázquez

(Pura Vázquez nasceu no dia 31 de Março de 1918. Morreu em 2006.)

Caminho 306

Foto Hernâni Von Doellinger

Fermín Bouza Brey 3

Diante do mar de Cambados

O canistrel de méstos lumiares
que na serã calada se derrama,
todo luz, todo ouro, todo flama,
enveja de sol-pores e de mares,

prelúdio é dos pálidos luares
com que na noite a praia se recama,
em tanto a onda em paxião ama e desama,
envolveita nas névoas tutelares…

Ria de Arousa, grávida de côres,
serêa dos atlânticos amores
que acarinhache a minha infância ingela,

fai-me un recanto no argacento colo,
um sártego onde durma ao teu arrolo
no mais esquivo côm da tua orela!


"Seitura", Fermín Bouza Brey

(Fermín Bouza Brey nasceu no dia 31 de Março de 1901. Morreu em 1973.)

Requiem pelas minas do Pejão 2

Foto ADRIANO MIRANDA/PÚBLICO

Na mina de Gemunde, a extracção de cada quilo de carvão exige a execução de uma operação manual. O terreno é extremamente irregular e não há hipótese de mecanização. A mão-de-obra representa, por isso, cerca de 75 por cento do custo total da produção e cada tonelada de carvão corresponde de facto a um prejuízo que hoje em dia andará pelos cinco mil escudos.
Além disso, trata-se de um produto de ignição difícil e baixo poder calórico, o que de resto obrigou a Central da Tapada do Outeiro, da EDP - consumidor exclusivo, "agarrado" por negociações até 1994 -, a construir caldeiras especiais com um leito quente obtido com queima de fúel, sobre o qual é lançado o carvão.
O ónus de um preço obviamente mais caro do que o praticado no mercado e os prejuízos de exploração correriam por conta de subsídios do Governo e da EDM, empresa de capitais públicos principal accionista da ECD. Há um par de meses, a subsidiação directa e indirecta ia já nos cinco milhões de contos.
E pronto, estava montada uma sobrevivência artificial, porém com morte anunciada a prazo, "na linha do que se vinha fazendo com estas minas em toda a Europa". Governo e ECD empenham-se então num "processo exemplar" de fecho da empresa, tudo previsto, diagnosticado, tratado a tempo. Na letra da própria Administração, estas eram as linhas gerais do programa estabelecido, tendente a reduzir o impacto sócio-económico: "encerramento gradual (para evitar desemprego pontual elevado); subvenções à empresa para cobertura dos prejuízos anuais de exploração e satisfação das responsabilidades de operador mineiro (total de subvenções directas: quatro milhões de contos); acordo com a EDP para compra do carvão até Dezembro de 1994 (subvenção indirecta: um milhão de contos); assegurar indemnizações terminais aos trabalhadores e aos terceiros prejudicados pela exploração: promover cursos de formação para reconversão profissional; alienar os bairros operários aos seus ocupantes; medidas para o desenvolvimento do tecido industrial do concelho de Castelo de Paiva; melhoria das infra-estruturas do concelho (acessibilidades e pólos industriais); recursos aos apoios comunitários às zonas carboníferas [RECHAR I e II]."

(Continua amanhã)

P.S. - As minas do Pejão fecharam no final de 1994. Na ocasião andei por lá e escrevi este "Requiem" para a revista Anégia.

Se bem me lembro 18

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 34

O complexo
Era evidentemente um complexo, com todos os seus sintomas. Estádio, pavilhão, piscina e quatro campos de ténis. Em Psiquiatria costumamos chamar-lhe complexo desportivo... 

O agente da autoridade
- Boa tarde, senhor condutor.
- Boa tarde, senhor agente, mas eu não sou condutor...
- Pois. Documentos, se faz favor, senhor condutor...
- Que documentos, senhor agente? E, palavra de honra, eu não sou condutor...
- Pois. Carta de condução, se faz favor, senhor condutor...
- Não tenho, senhor agente. Porque a verdade é mesmo esta: eu não sei conduzir, eu nunca na vida conduzi, eu não sou condutor...
- Pois. Livrete, se faz favor, senhor condutor...
- Não tenho, senhor agente, eu nem sequer tenho carro. É como digo: eu não sou condutor...
- Pois. Seguro do veículo, se faz favor, senhor condutor...
- Não tenho, senhor agente. Nem veículo, já disse... E não sou condutor...
- Pois. Então, se faz favor, o que é que o senhor condutor está a fazer aí sentado?...
- Aqui sentado? Ó senhor agente, estou aqui na esplanada a apanhar um bocadinho de sol e a beber uns fininhos com este amigo...
- Pois. Ora vamos lá fazer o teste do balão, se faz favor...

O mal da eternidade é que é para sempre
Republicano dos sete costados, porém sacrista nos tempos mortos, dava-lhe um certo desconforto saber que ia passar a eternidade no reino dos céus. 

Facebook
Perguntaram-lhe:
- Mas você não está no Facebook?!...
E ele respondeu:
- Eu não. Eu sou casado e razoavelmente monogâmico...

O bom racista
A olho nu não se percebe, mas ao microscópio (isto é, vestindo o olho) chega-se lá: há uma nanométrica diferença entre o bom racista e o mau racista. O bom racista começa as frases dizendo - Eu não sou racista, mas...

quarta-feira, 29 de março de 2017

I want to ride my bicycle 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Adelino Fontoura 3

Ohs! e ais!

Essa mulher que tantos ohs! provoca,
Essa mulher que tantos ais! arranca,
Essa mulher quem é? Por que abre a boca
O Silvestre quando a vê? - É branca?


É morena? É francesa? É carioca?
As belezas helênicas desbanca?
O seu olhar os cérebros desloca?
O seu sorriso as lágrimas estanca?


Vamos, Raimundo, tu que viste há dias
A mágica visão, o ser terrestre,
Por quem já deste uns ais! e uns ohs! eu sinto,


Tira as garras da dúvida ao Matias,
Faze valsar o Lins, rir o Silvestre
E reler os Subsídios o Filinto.
 

Adelino Fontoura 

(Adelino Fontoura nasceu no dia 30 de Março de 1859. Morreu em 1884.)

Espero que ao receberes esta 30

Foto Hernâni Von Doellinger

Lucila Nogueira

Véu de pirilampo

E o vaidoso fabricante de versos perguntou, em tom superior:
 - E esses óculos escuros à noite, para que são?
E eu lhe respondi em silêncio:
- Porque a sua maldade é eterna.
E porque os poetas vêem melhor na escuridão.
E eu coloquei meus óculos escuros
contra a mediocridade dos neons
contra a agressão das almas monstruosas
e a crueldade oculta nas manhãs
na penumbra amnésica anteparo
o cotidiano fogo dos dragões.

 
E eu ajustei meus óculos escuros
mas vi gente comendo carne humana
crianças assaltando à mão armada
cheirando cola ou sendo trucidadas
enquanto os vaidosos declamavam
a sua dor tão dicionarizada.

 
E eu saio à rua de óculos escuros
porque me cega a cena da injustiça
porque a lei só legítima a força
descobriu a platéia o fundo falso
do palco onde encerrou-se o último ato
e se esqueceram de fechar o pano.
 

E eu uso sempre os óculos escuros
porque o mundo é uma faca nas pupilas
trapézio inteiro de arame farpado
sobre a rede de areia movediça
a pele triturada e sem aplausos
prossigo encantadora de serpentes

E eu saio à noite de óculos escuros
porque meu corpo acende nessa hora
meus óculos são véu de pirilampo
me resguardam de dentro para fora
escondem o meu sol subcutâneo
são a nave em que chego até os homens.


Lucila Nogueira 

(Lucila Nogueira nasceu no dia 30 de Março de 1950. Morreu em 2016.)

A cidade das traseiras 24

Foto Hernâni Von Doellinger

Hermes Carleial

Assim como, a seu modo, aves noturnas 
Gostam das trevas, homens há que são 
Amigos das paisagens taciturnas, 
Inimigos da luz e do clarão.

Hermes Carleial

(Hermes Carleial nasceu no dia 30 de Março de 1904. Morreu em 1954.)

Cocorocó!... 3

Foto Hernâni Von Doellinger

Silvestre Péricles de Góis Monteiro

Onze anos depois

Onze anos são passados. Nas campinas
verdes da estância há sombras perpassando:
sonhos, visões, lembranças e as divinas
inspirações de outrora, soluçando.

Frondeja o cinamomo, no odorando
calor da primavera. Suaves, finas,
as suas flores ficam arroxeando
aquelas solidões e as nossas sinas.

Entro na casa. O sol fulgura.
Mas, dentro de mim, há frêmitos dolentes
de incertezas, saudades e ternuras.

Surges, por fim. No teu olhar sem cores
releio o meu destino: estão presentes
nossas recordações e nossas dores.

"Lavras do Sul", Silvestre Péricles de Góis Monteiro

(Silvestre Péricles de Góis Monteiro nasceu no dia 30 de Março 1896. Morreu em 1972.)

Feira Medieval da Senhora da Hora 2017


Quinta edição da Feira Medieval da Senhora da Hora. De 11 a 14 de Maio (quinta-feira a domingo), no Parque das Sete Bicas.

Requiem pelas minas do Pejão

Foto ADRIANO MIRANDA/PÚBLICO

(O fotojornalista Adriano Miranda lança no próximo 1.º de Maio o álbum de fotografia "Carvão de Aço", em homenagem aos mineiros do Pejão. As minas fecharam em 1994. Nessa ocasião andei por lá e escrevi para a revista Anégia o texto "Requiem pelas minas do Pejão". Que rezava assim:)

Mais 500 desempregados, a supressão de cerca de 800 mil contos mensalmente injectados na região de Castelo de Paiva, um "encerramento programado", desenvolvido "com elevado grau de execução dos objectivos propostos", o anúncio de uma reconversão, mas o espectro de dias negros para centenas de famílias de uma zona pobre e em vias de desertificação. Eis o buraco das minas do Pejão na hora da eutanásia. Para já, parece colocada uma pedra sobre o assunto, mas para daqui a dois anos são muitos os que temem o pior.

É uma espécie de amargo castigo de Natal, entregue com alguns dias de atraso. No dia 30 de Dezembro de de 1994, os últimos mineiros da Empresa Carbonífera do Douro (ECD) descerão pela última vez  aos cerca de 500 metros de profundidade de uma reserva cansada, à beira da inanidade. Morre a exploração do carvão em Portugal.
"Toda a mina que abre, tem um princípio e um fim, a gente já sabe!... - dizem-me na Comissão de Trabalhadores -, mas isto aqui ainda há camadas por explorar, ainda dava para mais quatro ou cinco anos, e assim teriam tempo de criar alternativas para a região, de fazer as coisas como devia ser. Não há é vontade política do Governo para manter aberta esta empresa, por ela dar prejuízo".
A Bacia Carbonífera do Douro (que vai de Esposende a Castro Daire, numa extensão de 50 quilómetros) é explorada desde 1884, e o Couto Mineiro do Pejão, a mina de Gemunde, desde 1957.
O seu encerramento foi decidido pelo Governo em 1990 e aprazado para 1994. De acordo com a Administração da ECD, em consequência do quase esgotamento das suas reservas ("desde 87/88 que se sabia que o jazigo fechava em profundidade", explica-me o engenheiro Arrais) e das condições vigentes no mercado do carvão.
"Minas assim são antieconómicas", complementa José Couto, administrador financeiro da empresa. "Os nossos preços eram administrativos. Com a adesão à CEE, começaram a chegar-nos carvões não nacionais (da África do Sul, da Alemanha e da Polónia, por exemplo) com preços de venda inferiores aos nossos preços de custo".

(Continua amanhã)

Se bem me lembro 17

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 33

Um grande nome
A organização tinha prometido um grande nome em palco e cumpriu satisfatoriamente. Quando as luzes se acenderam, o artista chamava-se, com efeito, José Manuel-António Ferreira Rocha Vieira da Silva Pereira Gonçalves Ribeiro e Castro Melo Antunes Bastos Monteiro Neves Brochado Macedo Nogueira Santos Oliveira Costa Rodrigues Martins Carvalho Marques Almeida Cunha Pires Lopes de Perestrelo e Lencastre.

Para bom entendedor
- Então já soubeste do gajo...
- Oh!, pá...
- O gajo...
- É sempre o mesmo...
- Diz-me ele...
- Tem a mania...
- Mas eu...
- Fizeste bem...
- Sabes como é que eu sou...
- És...
- Ele ainda começou...
- Mas tu...
- Havias de ter visto...
- Faço ideia...
- Um gajo tem...
- A quem o dizes...
- Gostei de falar contigo.
- Ainda bem que resolveste o assunto.
- Qual assunto?
- O teu assunto com o gajo.
- Qual gajo?
- Oh!, pá...

Quando se tem queda para a queda, tem-se
Quitério, fazendo jus ao extraordinário azar que lhe é apanágio, caiu e partiu o braço em dois sítios: mais precisamente em Mirandela, há coisa de dez anos, e no Sabugal, fará amanhã quinze dias.

Os intelectuais
Quitério tinha um problema com os intelectuais. Percebia tudo o que eles diziam, mas nunca sabia do que é que falavam.

Tive lá e prontos...
- Você esteve lá?
- Tive.
- Teve o quê?
- Tive o quê?... Tive lá.
- Mas teve o quê?
- Mas tive o quê o quê?
- O que é que você teve lá?
- Tive lá e prontos... 

terça-feira, 28 de março de 2017

What's up, doc? 4

Foto Hernâni Von Doellinger

Luís Antônio Pimentel

O cego pergunta:
como é o luar? E a jovem
beija-o na fronte.

Luís Antônio Pimentel

(Luís Antônio Pimentel nasceu no dia 29 de Março de 1912. Morreu em 2015.)

A cidade das traseiras 23

Foto Hernâni Von Doellinger

Eduardo Prado Coelho 3

Outros se deslumbram na evocação dos lugares míticos da infância, considerados no seu papel de único paraíso acessível e desde sempre perdido. Pela minha parte, sentindo a infância como um apelo do futuro, apetece-me recolher fragmentos de uma memória dispersa, quase anónimos na sua pureza desgarrada.
Lembro-me de ter chorado com a morte de Sandokan (livros de Emilio Salgari na Romano Torres) - numa manhã de domingo, os meus pais ainda dormiam, as persianas corridas, junto à janela da casa da Rua da Fábrica das Sedas (hoje o nome é outro).
Lembro-me de ter brincado, durante longas tardes, aos soldadinhos e às guerras, com soldados que vinham com embalagens de chocolate, e um forte de madeira que tinha sido uma prenda de Natal - era em casa da minha avó paterna, e depois havia leite-creme queimado com ferros em brasa.
Lembro-me dos olhos que choravam de Miguel Strogoff e que por isso não chegaram a cegar.
Lembro-me de ter ido com o meu pai ao futebol e, no domingo seguinte, o meu avô dizia, na altura do relato radiofónico: "ele já viu e já sabe como é" (a única frase que recordo dele).

"Tudo o Que Não Escrevi", Eduardo Prado Coelho 

(Eduardo Prado Coelho nasceu no dia 29 de Março de 1944. Morreu em 2007.)

Caminho 305

Foto Hernâni Von Doellinger

Xoán Vidal Martínez

Cantan as estrelas no ceo e no río
cantan as estrelas
a cantiga branca
dos momentos líricos

"Voz y Memoria (Antología Poética)", Xoán Vidal Martínez

(Xoán Vidal Martínez nasceu no dia 29 de Março de 1904. Morreu em 1994.)

António Marques Mendes homenageado em Fafe

Foto CÂMARA DE FAFE

A Câmara Municipal de Fafe vai dar o nome de António Marques Mendes a uma rua no centro da cidade. Acto marcado para as 17h30 de depois de amanhã, quinta-feira, dia 30 de Março. Segue-se uma cerimónia de homenagem, no Arquivo Municipal. Mais informação, aqui.

P.S. - Sobre a Câmara de Fafe e a morte do Dr. António Marques Mendes, escrevi aqui.

Vai pela sombra 12

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 32

Uma questão de respeito
- Nunca fumei à frente do meu pai.
- Porquê?
- Por uma questão de respeito.
- Mas o teu pai sabe que tu fumas?
- Sempre soube. Há que anos...
- E então?
- É uma questão de respeito.
- E o teu filho sabe que tu fumas?
- Claro que sabe.
- E tu fumas à frente do teu filho?
- Claro que fumo. Desde sempre...
- Porquê?

Como cozer uma bainha
A bainha de uma saia, por exemplo, deve ser cozida, obviamente, em banho-maria. Ente os 80 e os 85 graus de temperatura, durante cerca de quinze minutos. 

Batatas para coser
Nas batatas para coser recomenda-se o uso de linha da marca Corrente, a famosa linha universal para costura da Coats & Clark. Sempre que possível, à cor. 

Tácticas
- Olhe que eu meto-lhe um processo!
- Defensivo ou ofensivo?
- De transição...

Entre o ganinte e o ganante
Entre o ganinte e o ganante vai uma diferença de milhões e outra de decibéis. É só fazer as contas...

Prova a Felicidade!
São os anúncios: mandam-nos provar a Felicidade. Porém. A Deco recomenda que, antes da escolha final, provemos também a Clementina, a Adelaide, a Iracema, a Adosinda, a Felisberta, a Miquelina, a Leocádia, a Emerenciana, a Umbelina, a Hortênsia e a Perpétua. Pelo menos.

segunda-feira, 27 de março de 2017

Caminho 304

Foto Hernâni Von Doellinger

Heitor Lima

Cinzas
 
A última brasa ardeu na cinza adusta:
Tudo passou, tudo se fez em poeira...
E na minha alma, que o abandono assusta,
Morre a luz da esperança derradeira.
 
O amor mais casto, a aspiração mais justa
Têm a desilusão para fronteira...
Um momento de sonho às vezes custa
O sacrifício da existência inteira!
 
Chama efêmera, o amor! Baldado surto,
A glória! Ah! coração mesquinho e raso...
Ah! pensamento presumido e curto...
 
E o amor, que arrasta, e a glória, que fascina,
- Tudo se perderá no mesmo ocaso
E se confundirá na mesma ruína.


"Primeiros Poemas", Heitor Lima

(Heitor Lima nasceu no dia 28 de Março de 1887. Morreu em 1945)

Lugares-comuns 524

Foto Hernâni Von Doellinger

Alexandre Herculano 5

A graça

Que harmonia suave
É esta que na mente
Eu sinto murmurar,
Ora profunda e grave,
Ora meiga e cadente,
Ora que faz chorar?
Porque da morte a sombra,
Que para mim em tudo
Negra se reproduz,
Se aclara, e desassombra
Seu gesto carrancudo,
Banhada em branda luz?
Porque no coração
Não sinto pesar tanto
O férreo pé da dor,
E o hino da oração,
Em vez de irado canto,
Me pede íntimo ardor?

És tu, meu anjo, cuja voz divina
Vem consolar a solidão do enfermo,
E a contemplar com placidez o ensina
De curta vida o derradeiro termo?

Oh, sim!, és tu, que na infantil idade,
Da aurora à frouxa luz,
Me dizias: "Acorda, inocentinho,
Faz o sinal da Cruz."
És tu, que eu via em sonhos, nesses anos
De inda puro sonhar,
Em nuvem de ouro e púrpura descendo
Com as roupas a alvejar.
És tu, és tu!, que ao pôr do Sol, na veiga,
Junto ao bosque fremente,
Me contavas mistérios, harmonias
Dos Céus, do mar dormente.
És tu, és tu!, que, lá, nesta alma absorta
Modulavas o canto,
Que de noite, ao luar, sozinho erguia
Ao Deus três vezes santo.
És tu, que eu esqueci na idade ardente
Das paixões juvenis,
E que voltas a mim, sincero amigo,
Quando sou infeliz.
Sinta a tua voz de novo,
Que me revoca a Deus:
Inspira-me a esperança,
Que te seguiu dos Céus!...
 

"A Harpa do Crente", Alexandre Herculano 

(Alexandre Herculano nasceu no dia 28 de Março de 1810. Morreu em 1877.)

Espero que ao receberes esta 29

Foto Hernâni Von Doellinger

Daniel Piza

Nova York acordou na manhã de 11 de setembro de 2001 com imagens e estrondos terríveis, que mais pareciam cenas de um filme de catástrofe hollywoodiano: um avião comercial e logo depois outro avançaram contra as duas torres gêmeas do World Trade Center, na região sul da ilha de Manhattan, penetraram nelas como lanças de aço e explodiram, matando centenas de pessoas e levando os prédios abaixo. Nos primeiros momentos, pensou-se em acidente, mas um terceiro avião despencou meia hora depois sobre a sede do Pentágono, a centenas de quilômetros dali, e não tardou para que se percebesse que se tratava de uma ação terrorista. No interior da Pensilvânia, um quarto avião se espatifou no solo pouco tempo depois, e mais tarde se soube que os passageiros impediram que os sequestradores chegassem ao alvo, possivelmente o Capitólio ou a Casa Branca. Foram cerca de 3 mil mortos no total, incluindo os 19 suicidas.

"Dez Anos Que Encolheram o Mundo", Daniel Piza

(Daniel Piza nasceu no dia 28 de Março de 1970. Morreu em 2011.)

Quando o teatro era na rádio

Foto Hernâni Von Doellinger

Todas as noites. A nossa mãe pegava em nós - na Nanda, no Nelo e em mim - e colocava-nos de joelhos e mãos postas, virados para a parede. Na parede do quarto da nossa mãe, por cima da cama de casal, estava pendurada uma daquelas gravuras do anjo da guarda. Rezávamos: Anjo da guarda, minha companhia, guardai a minha alma de noite e de dia.

(Morávamos na casinha amarela do Santo Velho. O quarto da nossa mãe, logo à entrada, era também a sala, o consultório da rua inteira. Eu era então o mais novo e os mimos eram todos para mim. Os mimos que a pobreza honrada permitia. Umas senhoras da Granja que trabalhavam no Centro de Saúde e passavam pelo Santo diziam que eu "até a chorar era bonito" - contava-me a minha mãe, cheia de vaidade, fazendo-me festinhas nos caracóis, e eu gostava. Quando a minha mãe se zangava comigo - e eu enchia-a de razões para isso -, dizia-me que eu tinha sido deixado lá em casa pelos ciganos...
Depois nasceu o Lando e acabaram-se-me as mordomias.

Todas as noites. Após a oração ao anjo da guarda e o sinal-da-cruz feito "sem aldrabices", íamos para o nosso quartinho de duas camas, uma para a Nanda e a maior para o Nelo e para mim. A nossa mãe deitava-se enfim, exausta e nós não sabíamos, e ligava o rádio na Emissora Nacional. Dava teatro. Do lado de cá do tabique, eu, o Nelo e a Nanda pedíamos "mais alto". Também queríamos. (Ou)víamos silentes e na maior das comoções, porque aquelas histórias não eram para brincadeiras. Interrompíamos apenas para um que outro pedido de esclarecimento acerca da senhora que fazia a vida negra ao senhor e que, todos concordávamos, era "uma cabra".
O teatro terminava, vinha a ficha técnica, mas a nossa mãe só desligava depois do "Samuel Dinis ensaiou", que era mesmo o fim, e o rádio dizia "Denis". Trocávamos boas-noites dum lado para o outro do tabique. "Agora vamos dormir", mandava a nossa mãe, e nós apertávamo-nos aos cobertores, contentes pela soirée e mortinhos por obedecer.

Todas as noites. Cinco ou dez minutos passados, a minha mãe dava um toquezinho na parede e perguntava, numa voz de embalar:
- Estais a dormir?
- Eu estou - respondia sempre eu.
- Lindo menino - dizia a minha mãe. E eu adormecia feliz.

(Texto já publicado, sob o título "Anjo da guarda, minha companhia")

Pela boca morre o peixe

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 31

Há horas felizes 1
- Tem horas?
- Não.
- Quer comprar?
 
Há horas felizes 2
- Tem horas?
- Tenho.
- São de hoje?

Há horas felizes 3
- Tem horas?
- Tenho.
- E vende para fora? 

Há horas felizes 4
- Tem horas?
- Tenho, tenho...
- E são horas boas?
- São horas extraordinárias... 

Há horas felizes 5
- São horas?
- São.
- Pensei que fosse mais cedo... 

Há horas felizes 6
- Tem horas?
- Tenho.
- E são felizes? 

Há horas felizes 7
- Não tem horas, pois não?
- Por acaso, não.
- Logo vi que não sabe a quantas anda...

Há horas felizes 8
- Tem horas que me diga?
- Tenho.
- E diz-me?
- Não.

domingo, 26 de março de 2017

Cocorocó!... 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Ernesto Penafort

Soneto

enquanto a lua for calada e branca
eu serei sempre o mesmo, este esquisito,
este invisível vulto, apenas visto
quando o vento, de leve, açoita as folhas.
enquanto a lua for calada e branca
eu serei sempre o mesmo, apenas visto
quando um raio de sol morre na lágrima
que se despede de uma folha verde.
eu serei sempre assim, apenas sombra,
apenas visto quando a voz de um gesto
colhe no bosque alguma flor azul.
apenas visto quando em fundo azul
voar a garça (o meu adeus ao mundo?),
enquanto a lua for calada e branca. 

"Azul Geral", Ernesto Penafort

(Ernesto Penafort nasceu no dia 27 de Março de 1936. Morreu em 1992.)

Mobiliário urbano (propriamente dito) 24

Foto Hernâni Von Doellinger

Pelópidas Soares

Inusitada a aventura vivida por Espantalho. Vendo-se, difícil de acreditar. Extraordinária mesmo em gente de alta categoria, mais singular com um tipo reles, simples fumega, asilado de zona - quem diria?
Viera da palha da cana, onde seus ascendentes tinham uma tradição de quatrocentos anos de servidão e miséria. Milagre de sobrevivência contra todo o conceito de calorias, proteínas, sais minerais.
Magro e desengonçado, libertara-se do eito, do sol e da chuva no cambito. Instalara-se na zona que prolonga o canavial, bagaceira humana onde, ainda adolescentes, as mulheres chegam trazendo no corpo e na alma o pelo da palha da cana ou as limalhas das oficinas. Mocinhas analfabetas, dos campos canavieiros ou semialfabetizadas, das sombrias vias operárias. Mesmo assim, elas não chegaram para o bico do Espantalho.
Gestos largos de palhaço, corpo elástico nos trejeitos, alguém gritou, certa noite, na pensão de Ernestina do Cabelão:
- Espantalho!
Risadagem geral, ecoando por todas as bancas, nome preciso e insubstituível, que ficou para sempre, perdendo o nome do batismo.
O que não tinha grande importância: não era registrado em cartório e nunca fora recenseado. Não figurava, portanto, na estatística nacional.


"Alaursa - Contos", Pelópidas Soares

(Pelópidas Soares nasceu no dia 27 de Março de 1922. Morreu em 2007.)

O milagre das horas

Foto Hernâni Von Doellinger

Eu tinha dois relógios indiscutivelmente adiantados uma hora, isto já há coisa de meio ano. Eram o relógio do carro da minha mulher e o relógio aqui do "escritório". A minha mulher e o meu filho chagavam-me a cabeça - ó marido, ó pai, que vergonha, relógios adiantados uma hora, que vergonha, que vergonha, porque é que não acertas as horas?...
- As horas são do Senhor, o Senhor é quem sabe quando é a hora, ficaremos de horas acertadas quando for a vontade do Senhor - respondia eu, que tenho esta irremediável costela sacrista, ó mulher, ó filho...
E hoje deu-se o milagre, vou ligar ao Vaticano. Acordei e o relógio do carro da minha mulher e o relógio aqui do "escritório" estavam certíssimos, mais TMG era impossível. Deus é grande e o tempo está uma merda, não está?...

A Queima...

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 30

Fectivamente escuto as conversas
- Vamos lá ver: quando você diz ralmente, o que é que realmente quer dizer?
- Ralmente.
- Quê?
- Quero dizer ralmente, o que é que havia de ser? Ralmente...
- Se bem percebo: quando diz ralmente, quer dizer realmente. É?
- Zatamente.
- Portanto: quando diz zatamente, quer dizer exactamente?
- Tomaticamente.
- Já sei: e quando diz tomaticamente, quer dizer automaticamente, não é?
- Fectivamente.

Entre o hóbi e o lóbi
Entre o hóbi e o lóbi vai uma diferença muito grande, e por questões de princípio. O primeiro começa por agá e o segundo começa por éle. Exactamente.

Os Bítalas
Os Bítalas eram um conjunto e cantavam obladi oblada. Eram quatro, sendo que o do bombo tinha cara de morcão, e chamavam-se Bítalas exactamente por terem cabelo grande, mas que afinal não era assim tão grande, como os hippies vieram depois a demonstrar - era apenas um cabelinho amaricado, anos vinte, muito tipo Beatriz Costa. Os Bítalas eram ingleses de Liverpool. Em Portugal, no tempo em que imperava o corte à tigela (ou malga, consoante a parte do país), quem tivesse o cabelo a roçar as orelhas era Bítala. Eu fui, mas cantava num orfeão e por isso passei ao lado de uma grande carreira.

Indignados
- Estou indignado!
- Estás?
- Estou?
- E então?
- Estou indignado... 

A influência dos astros na vida das pessoas
Perguntavam-lhe pelo signo e ele respondia, todo lampeiro: - Sanitário. Efectivamente padecia de diarreia crónica... 

A cidade das traseiras 22

Foto Hernâni Von Doellinger

Euclides Faria

Não... 

Quando valsas, Nenen, teu pé mimoso
Pisa com tanta graça sobre as salas,
Que todo atrapalhado eu fico em talas,
Em face desse pé tão buliçoso. 

O timbre de tua voz, tão mavioso,
Causa tal impressão quando me falas,
Que me parece ouvir linda escalas
De um estudo apurado e caprichoso! 

Esse terno volver dos olhos teus,
Revelando fiel tudo o que sentes,
Encandeia-me a vista e fere os meus. 

Mas... todos esses dotes excelentes
Não compensam o pesar (oh! santo Deus!)
De ver, quando sorris, que não tens dentes.

Euclides Faria

(Euclides Faria nasceu no dia 26 de Março de 1846. Morreu em 1911.)

sábado, 25 de março de 2017

Fafe, uma camisa-de-onze-varas (ou A bicha...)

Foto Hernâni Von Doellinger

A lenda da bicha das sete cabeças de Fafe
Conta-se que, há muitos anos, num lugar de Moreira de Rei, existia uma enorme cobra (bicha) escondida nos silvedos, que trazia as populações aterrorizadas, pois comia as pessoas e os animais que por ali passavam. [...]
 Copiado do blogue Falaf Magazine

A lenda da bicha das sete cabeças de Silvalde
Conta-se que, junto à ribeira de Silvalde, nas proximidades de uma ponte, havia um campo onde uma mulher trabalhava. Um dia, viu vir em sua direcção "um bicho nunca visto, que só de cabeças tinha muitas" e de cujas intenções a mulher fez tal juízo que logo deitou a correr no meio de uma grande gritaria. [...]
  Copiado do sítio da Câmara de Espinho


A Câmara de Fafe deu corda a mais uma iniciativa, digamos, cultural: uma "residência artística" virada sobretudo para a música e para o grafito - como foi anunciada. Tenho uma opinião formadíssima sobre este tipo de "iniciativas culturais" de barriga cheia e salas vazias (as fotografias são muito traiçoeiras!), e tenho raivinha por ninguém me oferecer assim uma semana de pensão completa só para estar, e bolinhos de bacalhau e tripas e vitela no Fernando da Sede, mas não é isso que me interessa aqui. Quero falar da bicha.
Ouvidos os doutores historiadores municipais, a pièce de résistance do departamento grafiteiro foi a pintura de um mural na Praça das Comunidades (sítio da feira semanal), alusivo à Bicha das Sete Cabeças, essa lenda tão exclusivamente fafense como as lendas das mouras encantadas são exclusivas de pelo menos cento e trinta e sete concelhos pelo país de cima a baixo e vice-versa.
Ora bem. Fafenses. Temos um lenda, nossa, só nossa, única, identificativa de uma gente pacata mas que não aceita levar desanda para casa. E essa gente somos nós, ou se calhar éramos nós. E eu bem gostava de ver a nossa lenda contada tintim por tintim no muro da feira. É uma lenda tão única e tão só nossa que até leva o nome da nossa terra. Olhem que bonito: Justiça de Fafe. Mas não, os coninhas da Câmara têm vergonha e têm-lhe medo. Preferem a bicha.

O unicórnio existe e é vermelho, evidentemente

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 29

A língua portuguesa...
- Temos tomado a nossa medicação? - pergunta-me ela.
- Temos, temos, senhora doutora - respondo eu, que sou uma pessoa educada e um exemplar tomador de medicações.
- Temos feito o nosso exerciciozinho diário?
- Todos os dias, senhora doutora.
- Temos moderado a nossa alimentação?
- Que remédio, senhora doutora. O dinheiro já só dá para cascas de batatas. 
- Ora ainda bem. Vamos lá ver como que é temos a nossa tensão - diz-me ela.
- Vamos a isso, senhora doutora, nem é tarde nem é cedo - digo eu, tirando o casaco e arregaçando a manga da camisa.
Vimos a tensão.
- Temo-la um bocadinho alta - informa-me ela, sem esconder a preocupação.
- Um bocadinho pouco ou um bocadinho muito, senhora doutora? - pergunto eu, também já um bocadinho muito à rasca. 
- Bastante, bastante. Vamos meter este comprimidozinho debaixo da língua e vamos deitar um bocadinho ali - diz-me ela.
- Vamos lá então, senhora doutora. A senhora doutora primeiro, que eu gosto de ficar por cima - digo eu, que, repito, sou uma pessoa educada e exemplar tomador de medicações...

Hipócrates
Hipócrates, ou Ἱπποκράτης, assim lhe chamava a mulher quando se zangava com ele, nasceu 460 anos antes de Nosso Senhor Jesus Cristo, era grego como o Tsrípras, ou Τσίπρας, e começou por ser considerado o pai da medicina. Depois tornou-se juramento e foi a partir daí que os médicos deixaram de ser de fiar. Não é por acaso que agora, quando sabemos que vamos morrer e nos dizem que estamos sãos como pêros, pedimos sempre "uma segunda opinião"...

Errare humanum est
Em alta competição os erros pagam-se caros. Em baixa competição são ao preço da uva mijona.
 
O Grosso da Coluna e o Maciço Central
A diferença entre o Grosso da Coluna e o Maciço Central pode resumir-se-se assim: o primeiro é corredor de bicicletas e o segundo joga no eixo da defesa, como agora se diz. E o que têm em comum? Fisicamente falando, pertencem ambos à família dos Armários.


Uma coisa é certa
Uma coisa é certa. Duas é mais difícil.

Baixaria (musicalmente falando)

Foto Hernâni Von Doellinger

Sabino Romariz

O lírio

O lírio era uma flor imaculada,
Casta como um sorriso de Maria;
Flor de uma alvura tal que parecia
Ter sido feita de hóstia consagrada.

Em Getsemâni, a face ensanguentada,
Jesus tragava o cálix da agonia
E uma gota de sangue luzidia
Sobre um lírio caiu cristalizada.

E nisto a flor, sem mancha concebida,
Foi-se tornando como que dorida
Tomando aquele tom violáceo, frouxo…

E de como era outrora alvinitente
O lírio da Judeia, finalmente
Crepuscular ficou, tornou-se roxo.

Sabino Romariz

(Sabino Romariz nasceu no dia 25 de Março de 1873. Morreu em 1913.)