Outros se deslumbram na evocação dos lugares míticos da infância, considerados no seu papel de único paraíso acessível e desde sempre perdido. Pela minha parte, sentindo a infância como um apelo do futuro, apetece-me recolher fragmentos de uma memória dispersa, quase anónimos na sua pureza desgarrada.
Lembro-me de ter chorado com a morte de Sandokan (livros de Emilio Salgari na Romano Torres) - numa manhã de domingo, os meus pais ainda dormiam, as persianas corridas, junto à janela da casa da Rua da Fábrica das Sedas (hoje o nome é outro).Lembro-me de ter brincado, durante longas tardes, aos soldadinhos e às guerras, com soldados que vinham com embalagens de chocolate, e um forte de madeira que tinha sido uma prenda de Natal - era em casa da minha avó paterna, e depois havia leite-creme queimado com ferros em brasa.
Lembro-me dos olhos que choravam de Miguel Strogoff e que por isso não chegaram a cegar.
Lembro-me de ter ido com o meu pai ao futebol e, no domingo seguinte, o meu avô dizia, na altura do relato radiofónico: "ele já viu e já sabe como é" (a única frase que recordo dele).
"Tudo o Que Não Escrevi", Eduardo Prado Coelho
(Eduardo Prado Coelho nasceu no dia 29 de Março de 1944. Morreu em 2007.)
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