quarta-feira, 29 de março de 2017

Lucila Nogueira

Véu de pirilampo

E o vaidoso fabricante de versos perguntou, em tom superior:
 - E esses óculos escuros à noite, para que são?
E eu lhe respondi em silêncio:
- Porque a sua maldade é eterna.
E porque os poetas vêem melhor na escuridão.
E eu coloquei meus óculos escuros
contra a mediocridade dos neons
contra a agressão das almas monstruosas
e a crueldade oculta nas manhãs
na penumbra amnésica anteparo
o cotidiano fogo dos dragões.

 
E eu ajustei meus óculos escuros
mas vi gente comendo carne humana
crianças assaltando à mão armada
cheirando cola ou sendo trucidadas
enquanto os vaidosos declamavam
a sua dor tão dicionarizada.

 
E eu saio à rua de óculos escuros
porque me cega a cena da injustiça
porque a lei só legítima a força
descobriu a platéia o fundo falso
do palco onde encerrou-se o último ato
e se esqueceram de fechar o pano.
 

E eu uso sempre os óculos escuros
porque o mundo é uma faca nas pupilas
trapézio inteiro de arame farpado
sobre a rede de areia movediça
a pele triturada e sem aplausos
prossigo encantadora de serpentes

E eu saio à noite de óculos escuros
porque meu corpo acende nessa hora
meus óculos são véu de pirilampo
me resguardam de dentro para fora
escondem o meu sol subcutâneo
são a nave em que chego até os homens.


Lucila Nogueira 

(Lucila Nogueira nasceu no dia 30 de Março de 1950. Morreu em 2016.)

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