O seu nome é muito próprio dela
O seu nome é gracioso e muito próprio dela:
Respira um vago tom de música inocente;
E lembra a placidez de um lago transparente;
Recorda a emanação tranquila duma estrela.
Lembra um título bom, que logo nos revela
A ideia do poema. E todo o mundo sente
Não sei que afinidade entre o seu ar dolente,
a sua morbidezza, e o próprio nome dela.
E chego acreditar - ingenuamente o digo -
Que havia um nome em branco, e Deus pensa consigo
Em traduzi-lo enfim numa expressão qualquer:
De forma que a mulher suave e graciosa
Faz parte deste nome um tanto cor-de-rosa,
E este nome gentil faz parte da mulher.
Guilherme de Azevedo
(Guilherme de Azevedo nasceu no dia 30 de Novembro de 1839. Morreu em 1882.)
domingo, 30 de novembro de 2014
sábado, 29 de novembro de 2014
"Terra", a estreia de Daniel Bastos na poesia
Daniel Bastos apresenta na próxima sexta-feira, dia 5 de Dezembro, o seu mais recente livro, "Terra", uma primeira incursão no campo da poesia. A obra, em edição bilingue (português e francês) e com tradução de Paulo Teixeira, conta com ilustrações originais de Orlando Pompeu. Sessão a partir das 21h30, no auditório da Biblioteca Municipal de Fafe. Mais informação, aqui.
sexta-feira, 28 de novembro de 2014
Antero de Figueiredo
Vindo do Porto, atravesso o Baixo-Douro - que é um Minho de
campos menos retalhados, de
verdura menos fofa, de cor menos uniforme, de claridade menos crua. A luz,
mais grave, valoriza os vários azuis
dos montes com suas escarpas e quebradas; os verdes delicados das árvores de qualidade; os verdes fortes das
copas dos pinheiros, penetradas de
sombras; as massas escuras dos seus
troncos violáceos; os castanhos vermelhos das telhas velhas sobre brancuras
de fachadas entre terrenos amarelentos
e céus azulinos; e os tostados quentes dos taludes de saibro. A fisionomia da
paisagem acentua-se. Há carácter. Os
outeiros começam a transformar-se em
montes; os vales alargam-se e afundam-se; os horizontes distanciam-se.
Serras ao longe.
Estamos em fins de Abril. A Primavera, andada de um mês, ilumina o ar com as copas lilases e brancas das cerejeiras e das macieiras; com as hastes finas, direitas ao céu, das ameixoeiras, borbulhadas de rebentos de flores alvas - árvores beirando campos verdecidos de trigo serôdio, ou lameiros geados pelas toalhas das margaridas de neve. As giestas afitam-se de branco, e os tojos pontilham-se de revoadas de borboletas amarelas. Para além, montes de margaça lilás parecem montes de mosto. Agora, pinhais espessos o vales fundos.
"Recordações e Viagens", Antero de Figueiredo
(Antero de Figueiredo nasceu no dia 28 de Novembro de 1866. Morreu em 1953.)
Estamos em fins de Abril. A Primavera, andada de um mês, ilumina o ar com as copas lilases e brancas das cerejeiras e das macieiras; com as hastes finas, direitas ao céu, das ameixoeiras, borbulhadas de rebentos de flores alvas - árvores beirando campos verdecidos de trigo serôdio, ou lameiros geados pelas toalhas das margaridas de neve. As giestas afitam-se de branco, e os tojos pontilham-se de revoadas de borboletas amarelas. Para além, montes de margaça lilás parecem montes de mosto. Agora, pinhais espessos o vales fundos.
"Recordações e Viagens", Antero de Figueiredo
(Antero de Figueiredo nasceu no dia 28 de Novembro de 1866. Morreu em 1953.)
quinta-feira, 27 de novembro de 2014
Soares dos Passos 2
O noivado do sepulcro
Vai alta a lua! Na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila! Dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.
Que paz tranquila!... Mas eis longe, ao longe,
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
Dentre os sepulcros a cabeça ergueu.
Ergueu-se, ergueu-se!... Na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.
Ergueu-se, ergueu-se!... Com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.
Chegando perto duma cruz alçada,
Que, entre os ciprestes, alvejava ao fim,
Parou, sentou-se, e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:
"Mulher formosa, que adorei na vida,
"E que na tumba não cessei de amar,
"Porque atraiçoas, desleal, mentida,
"O amor eterno que te ouvi jurar?
"Amor! Engano que na campa finda,
"Que a morte despe da ilusão falaz:
"Quem de entre os vivos se lembrará ainda
"Do pobre morto que na terra jaz!
"Abandonado neste chão repousa
"Há já três dias, e não vens aqui...
"Ai quão pesada me tem sido a lousa
"Sobre este peito que bateu por ti!
"Ai, quão pesada me tem sido!" E, em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.
"Talvez que, rindo dos protestos nossos,
"Gozes com outro de infernal prazer;
"E o olvido, o olvido cobrirá meus ossos
"Na fria terra, sem vingança ter!
- "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda,
Responde um eco, suspirando, além...
- "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.
Cobrem-lhe as formas divinais, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela coroa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.
"Não, não perdeste meu amor jurado:
"Vês este peito? Reina a morte aqui...
"É já sem forças, ai de mim, gelado,
"Mas ainda pulsa com amor por ti.
"Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
"Da sepultura, sucumbindo à dor:
"Deixei a vida... que importava o mundo,
"O mundo em trevas, sem a luz do amor?
"Saudosa, ao longe, vês no céu a lua?"
- "Oh vejo, sim... recordação fatal!"
- "Foi à luz dela que jurei ser tua
Durante a vida, e na mansão final.
"Oh vem! Se nunca te cingi ao peito,
"Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
"Quero o repouso de teu frio leito,
"Quero-te unido para sempre a mim!"
E ao som dos pios do cantor funéreo
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrado, de infeliz amor.
Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.
Porém, mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.
"Poesias", Soares dos Passos
(Soares dos Passos nasceu no dia 27 de Novembro de 1826. Morreu em 1860.)
Vai alta a lua! Na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila! Dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.
Que paz tranquila!... Mas eis longe, ao longe,
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
Dentre os sepulcros a cabeça ergueu.
Ergueu-se, ergueu-se!... Na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.
Ergueu-se, ergueu-se!... Com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.
Chegando perto duma cruz alçada,
Que, entre os ciprestes, alvejava ao fim,
Parou, sentou-se, e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:
"Mulher formosa, que adorei na vida,
"E que na tumba não cessei de amar,
"Porque atraiçoas, desleal, mentida,
"O amor eterno que te ouvi jurar?
"Amor! Engano que na campa finda,
"Que a morte despe da ilusão falaz:
"Quem de entre os vivos se lembrará ainda
"Do pobre morto que na terra jaz!
"Abandonado neste chão repousa
"Há já três dias, e não vens aqui...
"Ai quão pesada me tem sido a lousa
"Sobre este peito que bateu por ti!
"Ai, quão pesada me tem sido!" E, em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.
"Talvez que, rindo dos protestos nossos,
"Gozes com outro de infernal prazer;
"E o olvido, o olvido cobrirá meus ossos
"Na fria terra, sem vingança ter!
- "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda,
Responde um eco, suspirando, além...
- "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.
Cobrem-lhe as formas divinais, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela coroa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.
"Não, não perdeste meu amor jurado:
"Vês este peito? Reina a morte aqui...
"É já sem forças, ai de mim, gelado,
"Mas ainda pulsa com amor por ti.
"Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
"Da sepultura, sucumbindo à dor:
"Deixei a vida... que importava o mundo,
"O mundo em trevas, sem a luz do amor?
"Saudosa, ao longe, vês no céu a lua?"
- "Oh vejo, sim... recordação fatal!"
- "Foi à luz dela que jurei ser tua
Durante a vida, e na mansão final.
"Oh vem! Se nunca te cingi ao peito,
"Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
"Quero o repouso de teu frio leito,
"Quero-te unido para sempre a mim!"
E ao som dos pios do cantor funéreo
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrado, de infeliz amor.
Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.
Porém, mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.
"Poesias", Soares dos Passos
(Soares dos Passos nasceu no dia 27 de Novembro de 1826. Morreu em 1860.)
Adonias Filho
Paulino Duarte sabia, desde que Miguel Duarte morrera, ele sabia que, bem no abismo da sua alma, havia um grande medo inexplicável. Uma coisa inexprimível, irreversível, estagnante, que o fazia ouvir vozes, particularmente aquela voz vazia que pronunciava o nome de Lica. Era como alguém que endoidecia, vagando pela casa fechada, trêmulo, escutando alarido do vento nas palmeiras do quintal. Os ratos corriam na despensa, calafetava os buracos das paredes com canhamaço. As vozes, porém, continuavam, fracas como um bocejo. Pálido, da sala, só encontrava sossego quando abria a porta e chamava os cães aos berros. Entre eles, as pulgas mordendo, sentia-se calmo e adormecia. No entanto, na noite seguinte o mesmo martírio, a mesma tortura. Algumas vezes, no reflexo da luz, distinguia o rosto do pai bêbado, a barba falhada de Juca Pinheiro. Foi em uma dessas noites, pouco tempo após a morte de Miguel Duarte, que ouviu, dentre o ruído da chuva, fortes pancadas na porta da cozinha. Acorreu, empunhando o facão, e abriu a porta com um grito: "Quem está batendo aí?" E, encontrando um homem, quase despido, inteiramente molhado, perguntou: "A quem você procura?" O homem respondeu: "Miguel Duarte." Deteve-se, o coração aos saltos, e respondeu: "Miguel Duarte! Miguel Duarte morreu!" O homem apertou as mãos, uma na outra, como se estivesse com frio, e disse: "Eu preciso falar com Miguel Duarte, a minha conversa é sobre Ubaldo, que está morto e bem morto." Paulino Duarte recuou, exaltado: "E foi você quem matou Ubaldo? Ubaldo... Mas, quem é você? Que tem a ver meu pai com esse Ubaldo?" O homem fitou-o de relance, respondendo: "Lica, sabe. Faze anos, muitos anos... Ah! O meu nome? Emílio, sim senhor, Emílio." Entrou na cozinha, os olhos nas panelas, dando a entender que estava faminto.
"Os Servos da Morte", Adonias Filho
(Adonias Filho nasceu no dia 27 de Novembro de 1915. Morreu em 1990.)
"Os Servos da Morte", Adonias Filho
(Adonias Filho nasceu no dia 27 de Novembro de 1915. Morreu em 1990.)
quarta-feira, 26 de novembro de 2014
Mário Lago 2
Minha vida foi isso o tempo todo
Recomeçar ainda que partido;
Refazer o horizonte a cada passo;
Buscar razões no que perdeu sentido;
Mover-me sempre, embora o pouco espaço;
Compreender todas as vozes mudas,
Perdido entre o não dito e o não pensado;
Procurar no vazio alguma ajuda;
Repisar mil caminhos já pisados;
Falar sem nunca ter ouvido um grito
De aplauso, de protesto ou xingamento;
Pensar que era de céu o chão de lodo;
Os pés na terra, os olhos no infinito.
Sonhando estar lá longe o meu momento...
Minha vida foi isso o tempo todo.
Mário Lago
(Mário Lago nasceu no dia 26 de Novembro de 1911. Morreu em 2002.)
Recomeçar ainda que partido;
Refazer o horizonte a cada passo;
Buscar razões no que perdeu sentido;
Mover-me sempre, embora o pouco espaço;
Compreender todas as vozes mudas,
Perdido entre o não dito e o não pensado;
Procurar no vazio alguma ajuda;
Repisar mil caminhos já pisados;
Falar sem nunca ter ouvido um grito
De aplauso, de protesto ou xingamento;
Pensar que era de céu o chão de lodo;
Os pés na terra, os olhos no infinito.
Sonhando estar lá longe o meu momento...
Minha vida foi isso o tempo todo.
Mário Lago
(Mário Lago nasceu no dia 26 de Novembro de 1911. Morreu em 2002.)
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terça-feira, 25 de novembro de 2014
Poemas para Salvar a Vida
Florbela Espanca volta a ser celebrada pela Câmara Municipal de Matosinhos com a Festa da Poesia, este ano sob o lema "Poemas para Salvar a Vida". Nos dias 7 e 8 de Dezembro, com a presença anunciada de, entre outros, Adolfo Luxúria Canibal, Capicua e Francisco José Viegas (que pede desculpa por ter um nome assim tão... normal). Mais informação, aqui.
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Eça de Queirós 2
Havia certamente duas horas que assim dormia, denso e estirado no catre, quando me pareceu que uma claridade trémula, como a de uma tocha fumegante, penetrava na tenda - e através dela uma voz me chamava, lamentosa e dolente:
- Teodorico, Teodorico, ergue-te, e parte para Jerusalém!
Arrojei a manta, assustado: - e vi o doutíssimo Topsius, que, à luz mortal de uma vela, bruxuleando sobre a mesa onde jaziam as garrafas de champanhe, afivelava no pé rapidamente uma velha espora de ferro. Era ele que me despertava, açodado, fervoroso:
- A pé, Teodorico, a pé! As éguas estão seladas! Amanhã é Páscoa! Ao alvorecer devemos chegar às portas de Jerusalém!
Arredando os cabelos, considerei com pasmo o sisudo, ponderado doutor:
- Oh Topsius! Pois nós partimos assim, bruscamente, sem os nossos alforges, e deixando as tendas adormecidas, como quem foge espavorido?
O erudito homem alçou os seus oculos de ouro, que resplandeciam com uma desusada, irresistível intelectualidade. Uma capa branca, que eu nunca lhe vira, envolvia-lhe a douta magreza em pregas graves e puras de toga latina: e lento, esguio, abrindo os braços, disse, com labios que pareciam clássicos e de mármore:
- D. Raposo! Esta aurora que vai nascer, e em pouco tocar os cimos do Hébron, é a de quinze do mês de Nizam; e não houve em toda a história de Israel, desde que as tribos voltaram de Babilónia, nem haverá, até que Tito venha pôr o ultimo cerco ao Templo, um dia mais interessante! Eu preciso estar em Jerusalém para ver, viva e rumorejando, esta página do Evangelho! Vamos pois fazer a santa Páscoa a casa de Gamaliel, que é um amigo de Hillel, e um amigo meu, um conhecedor das letras gregas, patriota forte e membro do Sanedrim. Foi ele que disse: "Para te livrares do tormento da dúvida, impõe-te uma auctoridade." Portanto, a pé, D. Raposo!
"A Relíquia", Eça de Queirós
(Eça de Queirós nasceu no dia 25 de Novembro de 1845. Morreu em 1900.)
- Teodorico, Teodorico, ergue-te, e parte para Jerusalém!
Arrojei a manta, assustado: - e vi o doutíssimo Topsius, que, à luz mortal de uma vela, bruxuleando sobre a mesa onde jaziam as garrafas de champanhe, afivelava no pé rapidamente uma velha espora de ferro. Era ele que me despertava, açodado, fervoroso:
- A pé, Teodorico, a pé! As éguas estão seladas! Amanhã é Páscoa! Ao alvorecer devemos chegar às portas de Jerusalém!
Arredando os cabelos, considerei com pasmo o sisudo, ponderado doutor:
- Oh Topsius! Pois nós partimos assim, bruscamente, sem os nossos alforges, e deixando as tendas adormecidas, como quem foge espavorido?
O erudito homem alçou os seus oculos de ouro, que resplandeciam com uma desusada, irresistível intelectualidade. Uma capa branca, que eu nunca lhe vira, envolvia-lhe a douta magreza em pregas graves e puras de toga latina: e lento, esguio, abrindo os braços, disse, com labios que pareciam clássicos e de mármore:
- D. Raposo! Esta aurora que vai nascer, e em pouco tocar os cimos do Hébron, é a de quinze do mês de Nizam; e não houve em toda a história de Israel, desde que as tribos voltaram de Babilónia, nem haverá, até que Tito venha pôr o ultimo cerco ao Templo, um dia mais interessante! Eu preciso estar em Jerusalém para ver, viva e rumorejando, esta página do Evangelho! Vamos pois fazer a santa Páscoa a casa de Gamaliel, que é um amigo de Hillel, e um amigo meu, um conhecedor das letras gregas, patriota forte e membro do Sanedrim. Foi ele que disse: "Para te livrares do tormento da dúvida, impõe-te uma auctoridade." Portanto, a pé, D. Raposo!
"A Relíquia", Eça de Queirós
(Eça de Queirós nasceu no dia 25 de Novembro de 1845. Morreu em 1900.)
segunda-feira, 24 de novembro de 2014
António Gedeão 2
Lição sobre a água
Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.
É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, bases e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.
Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,
sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.
"Linhas de Força", António Gedeão
(António Gedeão nasceu no dia 24 de Novembro de 1906. Morreu em 1997.)
Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.
É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, bases e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.
Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,
sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.
"Linhas de Força", António Gedeão
(António Gedeão nasceu no dia 24 de Novembro de 1906. Morreu em 1997.)
domingo, 23 de novembro de 2014
Pronto, sosseguem lá a parreca: Sócrates já está. Vamos agora aos submarinos... ou ainda não?
Foto Hernâni Von Doellinger |
Se não chover, o processo dos submersíveis decorrerá em doca seca, no campus do jornal Correio da Manhã, como manda a lei. Por falar nisso: o Correio da Manhã vai investigar as fugas de informação que sistematicamente levam os seus segredos de justiça até ao Ministério Público.
D. Franciso Manuel de Melo
André quer mulher formosa,
Mas que não tenha ceitil;
Gil não quer mulher formosa:
Qué-la feia e bondosa.
Isto quer o André e o Gil.
André preza-se de nobre;
Gil nada tem de vilão;
um é sesudo, outro pobre;
não há força por que dobre
um do outro a opinião.
Um leva o primor por guia,
outro o faro do proveito;
um é fino em demasia;
outro só do haver se fia...
Não sei qual vai mais direito.
Eu agora os dois compasso
(coisa que é folgar de ouvi-la)
e bem medidos os faço:
André das cores do Paço
e Gil das tintas da vila.
Vós, que não sois de escarcéus
e sois também do mercado,
dai sentença nestes réus;
dai-lha, assim vo-la dê Deus,
de que sejais bem casado.
"Obras Métricas", D. Francisco Manuel de Melo
(D. Francisco Manuel de Melo nasceu no dia 23 de Novembro de 1608. Morreu em 1666.)
Mas que não tenha ceitil;
Gil não quer mulher formosa:
Qué-la feia e bondosa.
Isto quer o André e o Gil.
André preza-se de nobre;
Gil nada tem de vilão;
um é sesudo, outro pobre;
não há força por que dobre
um do outro a opinião.
Um leva o primor por guia,
outro o faro do proveito;
um é fino em demasia;
outro só do haver se fia...
Não sei qual vai mais direito.
Eu agora os dois compasso
(coisa que é folgar de ouvi-la)
e bem medidos os faço:
André das cores do Paço
e Gil das tintas da vila.
Vós, que não sois de escarcéus
e sois também do mercado,
dai sentença nestes réus;
dai-lha, assim vo-la dê Deus,
de que sejais bem casado.
"Obras Métricas", D. Francisco Manuel de Melo
(D. Francisco Manuel de Melo nasceu no dia 23 de Novembro de 1608. Morreu em 1666.)
sexta-feira, 21 de novembro de 2014
Hospital de Fafe em debate
O futuro do Hospital de Fafe estará em debate esta noite, a partir das 21h30, no Cinema-Teatro local. Trata-se de uma iniciativa dos Independentes por Fafe, contando com a participação de Altino Bessa, deputado do CDS/PP por Braga, Salazar Coimbra, membro do grupo de preparação da transferência dos hospitais para as Misericórdias e director clínico do Hospital Narciso Ferreira (Riba de Ave), e Filipe Antunes, médico de família e ex-director do Centro de Saúde de Fafe. Moderação a cargo do jornalista João Paulo Mendes.
O ponto de partida para o debate será o "processo de transferência do Hospital de Fafe para a Santa Casa da Misericórdia", assunto que "muito preocupa os fafenses e sobre o qual há muito pouca informação concreta", na opinião dos promotores da iniciativa. "Vamos procurar perceber, nomeadamente, que tipo de hospital podemos esperar vir a ter, quais as valências que terá, em que condições funcionará e se continuará a pertencer ao Serviço Nacional de Saúde. Paralelamente, procuraremos que a Misericórdia esclareça, por exemplo, como será feita a transição dos funcionários, se os seus direitos estão salvaguardados e se o quadro de pessoal se manterá", prometem os Independentes por Fafe.
quinta-feira, 20 de novembro de 2014
Quaresma, o gajo que cruza
Já não há Matateu, não há Eusébio, não há Jordão, não há Fernando Gomes, não há Manuel Fernandes, nem sequer Rui Águas, tão-pouco Pauleta. Para pontas-de-lança (assim se chamavam na Idade Média, antes de o futebol ter sido inventado pelo Luís Freitas Lobo), a Selecção Nacional tem o Hélder Postiga, o Hugo Almeida e o Éder, e os três juntos são quase tão perigosos como eu, que me travava na perna esquerda quando queria chutar com a direita. Para que me vejam melhor, em rigor eu era o Éder como o Éder é.
O Postiga, o Almeida e o Ederzito vê-se logo que são boas pessoas, e eu também, mas nem por isso sou chamado à Selecção Nacional.
Fernando Santos - que, apesar daquela cara de mal dormido, é outro que não desfazendo - queria para o jogo contra a poderosíssima Arménia "três gajos na área e um a centrar". Ora bem: o gajo para centrar apareceu, aparece sempre - é o renascido Quaresma, embora transfigurado a contragosto numa espécie de Juary da Selecção Nacional. Dos outros três é que ninguém sabe por onde andam nem o que fazem. Valeu-nos o Cristiano Ronaldo, que evidentemente não é deste filme, e na terça-feira com a Argentina até foi preciso ir lá um defesa-esquerdo baixinho marcar golo de cabeça. De gajos de área estamos portanto bem servidos.
O Postiga, o Almeida e o Ederzito vê-se logo que são boas pessoas, e eu também, mas nem por isso sou chamado à Selecção Nacional.
Fernando Santos - que, apesar daquela cara de mal dormido, é outro que não desfazendo - queria para o jogo contra a poderosíssima Arménia "três gajos na área e um a centrar". Ora bem: o gajo para centrar apareceu, aparece sempre - é o renascido Quaresma, embora transfigurado a contragosto numa espécie de Juary da Selecção Nacional. Dos outros três é que ninguém sabe por onde andam nem o que fazem. Valeu-nos o Cristiano Ronaldo, que evidentemente não é deste filme, e na terça-feira com a Argentina até foi preciso ir lá um defesa-esquerdo baixinho marcar golo de cabeça. De gajos de área estamos portanto bem servidos.
quarta-feira, 19 de novembro de 2014
Leandro Gomes de Barros 2
Se eu conversasse com Deus
iria Lhe perguntar:
por que é que sofremos tanto
quando viemos pra cá?...
Que dívida é essa que a gente
tem que morrer pra pagar?
Perguntaria também
como é que Ele é feito,
que não dorme, que não come,
e assim vive satisfeito.
Por que foi que Ele não fez
a gente do mesmo jeito?
Por que existem uns felizes
e outros que sofrem tanto?
Nascemos do mesmo jeito,
moramos no mesmo canto.
Quem foi temperar o choro
e acabou salgando o pranto?
Leandro Gomes de Barros
(Leandro Gomes de Barros nasceu no dia 19 de Novembro de 1865. Morreu em 1918.)
iria Lhe perguntar:
por que é que sofremos tanto
quando viemos pra cá?...
Que dívida é essa que a gente
tem que morrer pra pagar?
Perguntaria também
como é que Ele é feito,
que não dorme, que não come,
e assim vive satisfeito.
Por que foi que Ele não fez
a gente do mesmo jeito?
Por que existem uns felizes
e outros que sofrem tanto?
Nascemos do mesmo jeito,
moramos no mesmo canto.
Quem foi temperar o choro
e acabou salgando o pranto?
Leandro Gomes de Barros
(Leandro Gomes de Barros nasceu no dia 19 de Novembro de 1865. Morreu em 1918.)
terça-feira, 18 de novembro de 2014
Hospital de Fafe, que futuro?
O futuro do Hospital de Fafe estará em debate na próxima sexta-feira, dia 21 de Novembro, a partir das 21h30, no Cinema-Teatro local. Trata-se de uma iniciativa dos Independentes por Fafe, contando com a participação de Altino Bessa, deputado do CDS/PP por Braga, Salazar Coimbra, membro do grupo de preparação da transferência dos hospitais para as Misericórdias e director clínico do Hospital Narciso Ferreira (Riba de Ave), e Filipe Antunes, médico de família e ex-director do Centro de Saúde de Fafe. Moderação a cargo do jornalista João Paulo Mendes.
O ponto de partida para o debate será o "processo de transferência do Hospital de Fafe para a Santa Casa da Misericórdia", assunto que "muito preocupa os fafenses e sobre o qual há muito pouca informação concreta", na opinião dos promotores da iniciativa. "Vamos procurar
perceber, nomeadamente, que tipo de hospital podemos esperar vir a ter, quais as
valências que terá, em que condições funcionará e se continuará a
pertencer ao Serviço Nacional de Saúde. Paralelamente,
procuraremos que a Misericórdia esclareça, por exemplo, como será feita a transição
dos funcionários, se os seus direitos estão salvaguardados e se o quadro
de pessoal se manterá", prometem os Independentes por Fafe.
Guerra Colonial - esquecer ou lembrar?
Foto do arquivo pessoal de ÁLVARO MAGALHÃES (ex-pára-quedista em Angola) |
"Guerra Colonial - esquecer ou lembrar?", tema para uma palestra-debate com o jornalista Jaime Froufe Andrade, que foi alferes ranger em Moçambique e é autor do livro "Não sabes como vais morrer". No próximo sábado, dia 22 de Novembro, a partir das 16 horas, na Casa da Cultura de Paranhos, Largo do Campo Lindo, n.º 7, Porto. Participação do cantor e compositor Orlando Mesquita.
segunda-feira, 17 de novembro de 2014
Rachel de Queiroz 2
Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu. É, como dizem os ingleses, um ato de Deus. Sem se passarem as penas do amor, sem os compromissos do matrimônio, sem as dores da maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto, como o filho adotado: o neto é realmente o sangue do seu sangue, filho de filho, mais filho que o filho mesmo...
Quarenta anos, quarenta e cinco... Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem as suas alegrias, as suas compensações - todos dizem isso, embora você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.
Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade. Não de amores nem de paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a prestações, você não encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.
"O Brasileiro Perplexo", Rachel de Queiroz
(Rachel de Queiroz nasceu no dia 17 de Novembro de 1910. Morreu em 2003.)
Quarenta anos, quarenta e cinco... Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem as suas alegrias, as suas compensações - todos dizem isso, embora você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.
Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade. Não de amores nem de paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a prestações, você não encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.
"O Brasileiro Perplexo", Rachel de Queiroz
(Rachel de Queiroz nasceu no dia 17 de Novembro de 1910. Morreu em 2003.)
domingo, 16 de novembro de 2014
José Saramago 2
Até ao sabugo
Dão outros, em verso, outras razões,
Quem sabe se mais úteis, mais urgentes.
Deste, cá, não mudou a natureza,
Suspensa entre duas negações.
Agora, inventar arte e maneira
De juntar o acaso e a certeza,
Leve nisso, ou não leve, a vida inteira.
Assim como quem rói as unhas rentes.
"Os Poemas Possíveis", José Saramago
(José Saramago nasceu no dia 16 de Novembro de 1922. Morreu em 2010.)
Dão outros, em verso, outras razões,
Quem sabe se mais úteis, mais urgentes.
Deste, cá, não mudou a natureza,
Suspensa entre duas negações.
Agora, inventar arte e maneira
De juntar o acaso e a certeza,
Leve nisso, ou não leve, a vida inteira.
Assim como quem rói as unhas rentes.
"Os Poemas Possíveis", José Saramago
(José Saramago nasceu no dia 16 de Novembro de 1922. Morreu em 2010.)
sábado, 15 de novembro de 2014
José Casanova (1939-2014)
Chove, agora, uma chuva miudinha, embora contínua. O vento, depois do temporal que durante a noite assolou o Tejo, amainou e sopra fraco. As gaivotas serenaram, pairam sobre o rio, soltam os seus gritos de tempo de bonança, fazem voos picados como se fossem mergulhar e elevam-se, roçando as águas, amiúde com peixes presos nos bicos.
Simão espera-a junto à Torre, abrigado no seu guarda-chuva grande, acompanhando os movimentos das gaivotas, agora voltando-se, vendo-a, dirigindo-se-lhe em passo acelerado, quase a correr, a correr, no rosto um sorriso feliz. Pega-lhe nas mãos, segurando o guarda-chuva com o pescoço e o ombro: Ainda bem que vieste - murmura. Depois tira-lhe a sombrinha, devolve-lha fechada, ficam os dois sob o guarda-chuva, repete: Ainda bem que vieste.
"O Tempo das Giestas", José Casanova
(José Casanova nasceu no dia 4 de Março de 1939. Morreu hoje.)
Simão espera-a junto à Torre, abrigado no seu guarda-chuva grande, acompanhando os movimentos das gaivotas, agora voltando-se, vendo-a, dirigindo-se-lhe em passo acelerado, quase a correr, a correr, no rosto um sorriso feliz. Pega-lhe nas mãos, segurando o guarda-chuva com o pescoço e o ombro: Ainda bem que vieste - murmura. Depois tira-lhe a sombrinha, devolve-lha fechada, ficam os dois sob o guarda-chuva, repete: Ainda bem que vieste.
"O Tempo das Giestas", José Casanova
(José Casanova nasceu no dia 4 de Março de 1939. Morreu hoje.)
sexta-feira, 14 de novembro de 2014
Júlio Dinis 2
José das Dornas era um lavrador abastado, sadio, e de uma tão feliz disposição de génio, que tudo levava a rir; mas desse rir natural, sincero e despreocupado, que lhe fazia bem, e não do rir dos Demócritos de todos os tempos - rir céptico, forçado, desconsolador, que é mil vezes pior do que o chorar.
Em negócio de lavoura, dava, como se costuma dizer, sota e ás ao mais pintado. Até o Sr. Morais Soares teria que aprender com ele. Apesar dos seus sessenta anos, desafiava em robustez e actividade qualquer rapaz de vinte. Era-lhe familiar o canto matinal do galo, e o amanhecer já não tinha para ele segredos não revelados. O sol encontrava-o sempre de pé, e em pé o deixava ao esconder-se.
Estas qualidades, juntas a uma longa experiência adquirida à custa de muito sol e muita chuva em campo descoberto, faziam dele um lavrador consumado, o que, diga-se a verdade, era confessado por todos, sem estorvo de malquerenças e murmurações.
Diz-se que "quem mais faz menos merece" e que "mais vale quem Deus ajuda do que quem muito madruga", e não sei o que mais; será assim; mas desta vez parecia que se desmentira o ditado, ou pelo menos que o facto das madrugadas não excluíra o auxílio providencial, porque José das Dornas prosperava a olhos vistos.
"As Pupilas do Senhor Reitor", Júlio Dinis
(Júlio Dinis nasceu no dia 14 de Novembro de 1839. Morrem em 1871.)
quinta-feira, 13 de novembro de 2014
Manoel de Barros (1916-2014)
A poesia está guardada nas palavras - é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.
"Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo", Manoel de Barros
(Manoel de Barros nasceu no dia 19 de Dezembro de 1916. Morreu hoje.)
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.
"Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo", Manoel de Barros
(Manoel de Barros nasceu no dia 19 de Dezembro de 1916. Morreu hoje.)
quarta-feira, 12 de novembro de 2014
Bruno Tolentino 2
In passim
Tudo vai-se acabando, tudo passa
do que é ao que era; é tudo mais
ou menos uns vestígios de fumaça
no espaço do que deixas para trás.
do que é ao que era; é tudo mais
ou menos uns vestígios de fumaça
no espaço do que deixas para trás.
E tudo o que deixaste ou deixarás
de manso ou de repente, sem que faça
diferença nenhuma no fugaz,
é assim como a garoa na vidraça:
de manso ou de repente, sem que faça
diferença nenhuma no fugaz,
é assim como a garoa na vidraça:
intimações de lágrima delida.
Não valeu chorar nada. Nem te atrevas
a lamentar-te à porta da saída,
Não valeu chorar nada. Nem te atrevas
a lamentar-te à porta da saída,
pois pouco importa a vida como a levas,
que ela te leva a ti, de despedida
em despedida, a uma lição de trevas.
que ela te leva a ti, de despedida
em despedida, a uma lição de trevas.
"O mundo como Ideia", Bruno Tolentino
(Bruno Tolentino nasceu no dia 12 de Novembro de 1940. Morreu em 2007.)
terça-feira, 11 de novembro de 2014
Euclides Neto
Os fugitivos atravessaram o aceiro, entraram na mata fechada e ganharam a vereda. As perninhas bambas eram impelidas pelo medo. Desde há muito que acostumaram a esconder-se. Já viviam de ouvidos atentos. As duas meninas traziam vestidinhos puídos e os meninos estavam completamente nus.
Notaram que o gerente ia perto. As pernas esquálidas correram mais. O menor tropeçou numa raiz, caiu, mas, sem choro, levantou-se, para cair novamente, Zilda, a mais velha, voltou-se, apanhou o irmão e enganchou-o. As pisadas fortes das botas aumentavam e como que esmagavam o próprio chão. O homem vinha mesmo. Certamente não faltava nem um palmo... Adiante, Zilda alcançou os irmãos.
- Corre... vem aí.
Começaram a descer a ladeira e ganharam terreno. Se não fosse os tocos e espinhos do arrasto poderiam avançar mais. Senhor Antônio já tinha certeza que na frente ia alguém. Os rastros miúdos ficavam nas barrocas da lama. Palavras soltas de menino chegavam aos seus ouvidos.
- Li... gei... ro.
Notaram que o gerente ia perto. As pernas esquálidas correram mais. O menor tropeçou numa raiz, caiu, mas, sem choro, levantou-se, para cair novamente, Zilda, a mais velha, voltou-se, apanhou o irmão e enganchou-o. As pisadas fortes das botas aumentavam e como que esmagavam o próprio chão. O homem vinha mesmo. Certamente não faltava nem um palmo... Adiante, Zilda alcançou os irmãos.
- Corre... vem aí.
Começaram a descer a ladeira e ganharam terreno. Se não fosse os tocos e espinhos do arrasto poderiam avançar mais. Senhor Antônio já tinha certeza que na frente ia alguém. Os rastros miúdos ficavam nas barrocas da lama. Palavras soltas de menino chegavam aos seus ouvidos.
- Li... gei... ro.
"Os Magros", Euclides Neto
(Euclides Neto nasceu no dia 11 de Novembro de 1925. Morreu em 2000.)
segunda-feira, 10 de novembro de 2014
Mário Viegas, sempre!
António Mário Lopes Pereira Viegas nasceu no dia 10 de Novembro de 1948 e morreu no dia dos enganos de 1996. Aproveitou o entretanto para nos contar, por exemplo, esta do Mário-Henrique Leiria, que curiosamente não faria anos hoje.
domingo, 9 de novembro de 2014
Os russos
Foto Hernâni Von Doellinger |
O helicóptero militar passou-me à porta de casa, azimutando ao mar de Matosinhos. Graças a Deus era dos nossos. Voava perscrutante, com cara de caso. Gritei da varanda:
- Meninos, para dentro, para dentro!
Fechei janelas, tranquei portas, escondemo-nos debaixo da cama. Sussurrei:
- Chiiiiu!, andam aí os russos, e os russos comem criancinhas ao pequeno-almoço...
Dinah Silveira de Queiroz 2
Cobria-se a Serra de flores. Correu primeiro um balbucio de
primavera. Seria já a florada? Botões, aqueles pequenos sinais? No meio
dos bosques escondidos entre os montes, o amarelo e o vermelho
salpicavam, abriam no verde sorridente espanto. Em lugares mais
resguardados, mais favorecidos, em breve surgia a neve florida cobrindo
as pereiras e transformando, enriquecendo a paisagem. E logo também
floriram os pessegueiros. Junto das favelas, nos parques dos sanatórios,
rodeando os bangalôs, à beira das águas mansas, a florada em rosa e
branco apontou finalmente, luminosa, irreal.
Perto do pequeno lago em que se debruçavam as pereiras alvas, encantadas, o pintor armou o cavalete. Tocados de primavera, os galhos roçavam a água que reproduzia a fila das árvores. Amarrada à margem, a pequena canoa envernizada, vazia, estava juncada de flores que o vento carregara.
Elza surpreendeu Flávio pintando com aquele entusiasmo e fervor. Tocou-lhe no ombro.
"Floradas na Serra", Dinah Silveira de Queiroz
(Dinah Silveira de Queiroz nasceu no dia 9 de Novembro de 1911. Morreu em 1982.)
Perto do pequeno lago em que se debruçavam as pereiras alvas, encantadas, o pintor armou o cavalete. Tocados de primavera, os galhos roçavam a água que reproduzia a fila das árvores. Amarrada à margem, a pequena canoa envernizada, vazia, estava juncada de flores que o vento carregara.
Elza surpreendeu Flávio pintando com aquele entusiasmo e fervor. Tocou-lhe no ombro.
"Floradas na Serra", Dinah Silveira de Queiroz
(Dinah Silveira de Queiroz nasceu no dia 9 de Novembro de 1911. Morreu em 1982.)
sábado, 8 de novembro de 2014
Teixeira de Pascoaes 3
Minha alegria foi no teu caixão;
Deitou-se ao pé de ti, na sepultura,
A fim de acalentar teu coração
E tornar-te mais branda a terra dura.
Por isso, é para mim consolação
Esta sombria dor que me tortura!
E ponho-me a cantar na solidão
Meu cântico esculpido em noite escura!
Consola-me saber minha alegria
Longe de mim, perto de ti, na fria
Cova a que tu baixaste após a morte.
Foste tu que ma deste, meu amor;
Agora, dou-ta eu: é a minha flor;
Eu quero que ela sofra a tua sorte.
"Elegias", Teixeira de Pascoaes
(Teixeira de Pascoaes nasceu no dia 8 de Novembro de 1877. Morreu em 1952.)
Deitou-se ao pé de ti, na sepultura,
A fim de acalentar teu coração
E tornar-te mais branda a terra dura.
Por isso, é para mim consolação
Esta sombria dor que me tortura!
E ponho-me a cantar na solidão
Meu cântico esculpido em noite escura!
Consola-me saber minha alegria
Longe de mim, perto de ti, na fria
Cova a que tu baixaste após a morte.
Foste tu que ma deste, meu amor;
Agora, dou-ta eu: é a minha flor;
Eu quero que ela sofra a tua sorte.
"Elegias", Teixeira de Pascoaes
(Teixeira de Pascoaes nasceu no dia 8 de Novembro de 1877. Morreu em 1952.)
sexta-feira, 7 de novembro de 2014
Cecília Meireles 2
Noções
Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.
Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.
Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.
Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.
Virei-me sobre a minha própria existência, e contemplei-a
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.
Ó meu Deus, isto é a minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera...
"Viagem", Cecília Meireles
(Cecília Meireles nasceu no dia 7 de Novembro de 1901. Morreu em 1964.)
quinta-feira, 6 de novembro de 2014
Domingos Monteiro
As mulheres fixavam a porta, de vez em quando, para ver chegar o pequeno. Sabiam que o pai não o quisera ver, mas não ignoravam que a mãe não podia ser levada para a cova sem que o filho se despedisse dela. Por nada deste mundo arredariam pé dali. Dentro delas agitavam-se os sentimentos mais desencontrados: pena, e uma espécie de rancor satisfeito, um rancor que vinha do fundo do tempo e se transmitia de pais a filhos. Sentiam-se como que vingadas de uma humilhação milenária. A morte, a morte compensadora e invencível, estendia sobre todos a sua sombra igualitária. Aquela gente bem comida, bem tratada, caridosa nas horas vagas, mas sempre desdenhosa, também morria como os mais. A morte não poupava ninguém. E ela ali estava para castigar e corrigir as injustiças do mundo...
"O Caminho para Lá", Domingos Monteiro
(Domingos Monteiro nasceu no dia 6 de Novembro de 1903. Morreu em 1980.)
"O Caminho para Lá", Domingos Monteiro
(Domingos Monteiro nasceu no dia 6 de Novembro de 1903. Morreu em 1980.)
Sophia de Mello Breyner Andresen 2
O velho abutre
(Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no dia 6 de Novembro de 1919. Morreu em 2004.)
O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas
"Livro Sexto", Sophia de Mello Breyner Andresen
(Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no dia 6 de Novembro de 1919. Morreu em 2004.)
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Sophia de Mello Breyner Andresen
quarta-feira, 5 de novembro de 2014
O amigo Bastos (Armando Baptista-Bastos)
Não é tão bom que o Baptista-Bastos nos continue a escrever? Infelizmentemente no Correio da Manhã, mas é a vida.
segunda-feira, 3 de novembro de 2014
domingo, 2 de novembro de 2014
Jorge de Sena
Fiquei só, como de repente quisera. E fui andando até ao varandim, uma série de escadas e patins ornamentais, pelos quais se podia passar do lado do rio para o lado da praia, junto à foz, no extremo da cidade. Num recanto um casal despegou-se e ele traçou a perna. Era gente modesta, empregados, ele e ela. Eu passei para outra plataforma, e uma esquina de um rochedo encobriu-os. Encostei-me na balaustrada de cimento, que imitava troncos de árvore. O
sol já se pusera, e só uma mancha avermelhada marcava ainda o lugar onde
ele descera. O mar estanhava-se palidamente, aqui e ali sombreado. A
praia alongava-se vazia até ao cabo, e os barcos lá longe eram
empurrados para a água por grupinhos de formigas. O farol dardejava
compassadamente sem que o seu foco já se distinguisse. Vagos e dispersos
gritos, que chamavam, vinham flutuando pelo ar que, à beira de água e
do lado do rio, parecia adensar-se numa névoa transparente, que vibrava.
Em baixo, as rochas eram verdes, com charcos pardos entre elas.
Acendi um cigarro. Onde iria jantar? Não me apetecia comer. Apetecia-me fugir. Para onde e porquê? E, de repente, ouvi dentro da minha cabeça uma frase: "Sinais de fogo as almas se despedem, tranquilas e caladas, destas cinzas frias". Olhei em volta. De onde viera aquilo? Quem me dissera aquilo? Que sentido tinha aquela frase? Tentei repeti-la para mim mesmo: Sinais de fogo... Mas esquecera-me do resto. Com esforço, reconstituía a sequência: Sinais de fogo os homens se despedem, exaustos e espantados, quando a noite da morte desce fria sobre o mar. Não tinha sido aquilo. Não era aquilo. E que significava? Seriam versos? Repeti mentalmente: "Sinais de cinza os homens se despedem, lançando ao mar os barcos desta vida". Novamente as palavras eram outras, ou quase as mesmas mas diversamente. Tirei um papel do bolso, e escrevi: "Sinais de fogo os homens se despedem, lançando ao mar os barcos desta vida". Reli o que escrevera. E depois? Olhei o mar que escurecia, com manchas claras que ondulavam largas. Os barcos iam pelo mar fora, e nalguns havia lanternas acesas. "Nas vastas águas..." Nas vastas águas... Era absurdo. Eu fazendo versos? Porquê? Amarrotei o papel e deitiu-o fora. Mal amarrotado, ele foi descendo num voo balanceante, até que pousou numa rocha. Aí, vacilou, aquietou-se, e, numa reviravolta súbita, deixou-se cair para o meio das pedras e sumiu. Era quase noite escura. Voltei para a cidade.
"Sinais de Fogo", Jorge de Sena
(Jorge de Sena nasceu no dia 2 de Novembro de 1919. Morreu em 1978.)
Acendi um cigarro. Onde iria jantar? Não me apetecia comer. Apetecia-me fugir. Para onde e porquê? E, de repente, ouvi dentro da minha cabeça uma frase: "Sinais de fogo as almas se despedem, tranquilas e caladas, destas cinzas frias". Olhei em volta. De onde viera aquilo? Quem me dissera aquilo? Que sentido tinha aquela frase? Tentei repeti-la para mim mesmo: Sinais de fogo... Mas esquecera-me do resto. Com esforço, reconstituía a sequência: Sinais de fogo os homens se despedem, exaustos e espantados, quando a noite da morte desce fria sobre o mar. Não tinha sido aquilo. Não era aquilo. E que significava? Seriam versos? Repeti mentalmente: "Sinais de cinza os homens se despedem, lançando ao mar os barcos desta vida". Novamente as palavras eram outras, ou quase as mesmas mas diversamente. Tirei um papel do bolso, e escrevi: "Sinais de fogo os homens se despedem, lançando ao mar os barcos desta vida". Reli o que escrevera. E depois? Olhei o mar que escurecia, com manchas claras que ondulavam largas. Os barcos iam pelo mar fora, e nalguns havia lanternas acesas. "Nas vastas águas..." Nas vastas águas... Era absurdo. Eu fazendo versos? Porquê? Amarrotei o papel e deitiu-o fora. Mal amarrotado, ele foi descendo num voo balanceante, até que pousou numa rocha. Aí, vacilou, aquietou-se, e, numa reviravolta súbita, deixou-se cair para o meio das pedras e sumiu. Era quase noite escura. Voltei para a cidade.
"Sinais de Fogo", Jorge de Sena
(Jorge de Sena nasceu no dia 2 de Novembro de 1919. Morreu em 1978.)
João Verde
Vendo-os assim tão pertinho,
a Galiza mail’o Minho,
são como dois namorados
que o rio traz separados
quase desde o nascimento.
Deixai-os, pois, namorar,
já que os pais para casar
lhes não dão consentimento.
"Obra Poética", João Verde
(José Rodrigues Vale, que usou o pseudónimo literário de João Verde, nasceu no dia 2 de Novembro de 1866. Morreu em 1934.)
a Galiza mail’o Minho,
são como dois namorados
que o rio traz separados
quase desde o nascimento.
Deixai-os, pois, namorar,
já que os pais para casar
lhes não dão consentimento.
"Obra Poética", João Verde
(José Rodrigues Vale, que usou o pseudónimo literário de João Verde, nasceu no dia 2 de Novembro de 1866. Morreu em 1934.)
sábado, 1 de novembro de 2014
Shakespeare vs. Camões
O inglês Guilherme Shakespeare escreveu tubi ornotubi detesdaquestcham. Ornotubi. O nosso Luís Vaz escreveu, e certamente antes do bife, al maminha gentil quetepartiste. Maminha. Para mim, Shakespeare 0 - Camões 1.
Campos de Carvalho
Aos dezesseis anos matei meu professor de Lógica. Alegando legítima defesa - e qual defesa seria mais legítima? - logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris.
Deixei crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda hoje, quando me chamo.
A primeira mulher que possuí foi sob a ponte do Sena, em pleno coração do meu Paris imaginário; e ainda me lembro de que ela me sorria com uns dentes que refletiam as estrelas e as lâmpadas do cais adormecido, e dizia-me coisas numa língua que eu não conhecia. Paguei-lhe à vista, e subi eufórico em direção a uma rua de onde vinham sons de uma mandolinata inenarrável, e que se esvanecia à medida que eu me aproximava, e que acabou por desaparecer de todo. Sentei-me no chão, aturdido, acendi um cigarro e deixei que ele fumasse por si mesmo, e depois morri tranquilamente, dentro da noite calma.
Quando despertei, já um gari me estendia o último jornal da tarde, e pude ler então que uma grande hecatombe havia acontecido sobre a cidade de Melbourne, na Austrália, justamente enquanto eu dormia. Lavei meu rosto com o pranto, entreguei o jornal a um menino cego e saí correndo pela primeira rua que encontrei pela frente, até deparar com a estátua do marechal Joffre montado a cavalo.
"A Lua Vem da Ásia", Campos de Carvalho
(Campos de Carvalho nasceu no dia 1 de Novembro de 1916. Morreu em 1998.)
Deixei crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda hoje, quando me chamo.
A primeira mulher que possuí foi sob a ponte do Sena, em pleno coração do meu Paris imaginário; e ainda me lembro de que ela me sorria com uns dentes que refletiam as estrelas e as lâmpadas do cais adormecido, e dizia-me coisas numa língua que eu não conhecia. Paguei-lhe à vista, e subi eufórico em direção a uma rua de onde vinham sons de uma mandolinata inenarrável, e que se esvanecia à medida que eu me aproximava, e que acabou por desaparecer de todo. Sentei-me no chão, aturdido, acendi um cigarro e deixei que ele fumasse por si mesmo, e depois morri tranquilamente, dentro da noite calma.
Quando despertei, já um gari me estendia o último jornal da tarde, e pude ler então que uma grande hecatombe havia acontecido sobre a cidade de Melbourne, na Austrália, justamente enquanto eu dormia. Lavei meu rosto com o pranto, entreguei o jornal a um menino cego e saí correndo pela primeira rua que encontrei pela frente, até deparar com a estátua do marechal Joffre montado a cavalo.
"A Lua Vem da Ásia", Campos de Carvalho
(Campos de Carvalho nasceu no dia 1 de Novembro de 1916. Morreu em 1998.)
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