Aos dezesseis anos matei meu professor de Lógica. Alegando legítima defesa - e qual defesa seria mais legítima? - logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris.
Deixei crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda hoje, quando me chamo.
A primeira mulher que possuí foi sob a ponte do Sena, em pleno coração do meu Paris imaginário; e ainda me lembro de que ela me sorria com uns dentes que refletiam as estrelas e as lâmpadas do cais adormecido, e dizia-me coisas numa língua que eu não conhecia. Paguei-lhe à vista, e subi eufórico em direção a uma rua de onde vinham sons de uma mandolinata inenarrável, e que se esvanecia à medida que eu me aproximava, e que acabou por desaparecer de todo. Sentei-me no chão, aturdido, acendi um cigarro e deixei que ele fumasse por si mesmo, e depois morri tranquilamente, dentro da noite calma.
Quando despertei, já um gari me estendia o último jornal da tarde, e pude ler então que uma grande hecatombe havia acontecido sobre a cidade de Melbourne, na Austrália, justamente enquanto eu dormia. Lavei meu rosto com o pranto, entreguei o jornal a um menino cego e saí correndo pela primeira rua que encontrei pela frente, até deparar com a estátua do marechal Joffre montado a cavalo.
"A Lua Vem da Ásia", Campos de Carvalho
(Campos de Carvalho nasceu no dia 1 de Novembro de 1916. Morreu em 1998.)
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