Fiquei só, como de repente quisera. E fui andando até ao varandim, uma série de escadas e patins ornamentais, pelos quais se podia passar do lado do rio para o lado da praia, junto à foz, no extremo da cidade. Num recanto um casal despegou-se e ele traçou a perna. Era gente modesta, empregados, ele e ela. Eu passei para outra plataforma, e uma esquina de um rochedo encobriu-os. Encostei-me na balaustrada de cimento, que imitava troncos de árvore. O
sol já se pusera, e só uma mancha avermelhada marcava ainda o lugar onde
ele descera. O mar estanhava-se palidamente, aqui e ali sombreado. A
praia alongava-se vazia até ao cabo, e os barcos lá longe eram
empurrados para a água por grupinhos de formigas. O farol dardejava
compassadamente sem que o seu foco já se distinguisse. Vagos e dispersos
gritos, que chamavam, vinham flutuando pelo ar que, à beira de água e
do lado do rio, parecia adensar-se numa névoa transparente, que vibrava.
Em baixo, as rochas eram verdes, com charcos pardos entre elas.
Acendi um cigarro. Onde iria jantar? Não me apetecia comer. Apetecia-me
fugir. Para onde e porquê? E, de repente, ouvi dentro da minha cabeça
uma frase: "Sinais de fogo as almas se despedem, tranquilas e caladas,
destas cinzas frias". Olhei em volta. De onde viera aquilo? Quem me
dissera aquilo? Que sentido tinha aquela frase? Tentei repeti-la para mim
mesmo: Sinais de fogo... Mas esquecera-me do resto. Com esforço, reconstituía a sequência: Sinais de fogo os homens se despedem, exaustos e espantados, quando a noite da morte desce fria sobre o mar. Não tinha sido aquilo. Não era aquilo. E que significava? Seriam
versos? Repeti mentalmente: "Sinais de cinza os homens se despedem, lançando ao mar os barcos desta vida". Novamente as palavras eram outras, ou quase as mesmas mas diversamente. Tirei um papel do bolso, e escrevi: "Sinais de fogo os homens se despedem, lançando ao mar os barcos desta vida". Reli o que escrevera. E depois? Olhei o mar que escurecia, com manchas claras que ondulavam largas. Os barcos iam pelo mar fora, e nalguns havia lanternas acesas. "Nas vastas águas..." Nas vastas águas... Era absurdo. Eu fazendo versos? Porquê? Amarrotei o papel e deitiu-o fora. Mal amarrotado, ele foi descendo num voo balanceante, até que pousou numa rocha. Aí, vacilou, aquietou-se, e, numa reviravolta súbita, deixou-se cair para o meio das pedras e sumiu. Era quase noite escura. Voltei para a cidade.
"Sinais de Fogo", Jorge de Sena
(Jorge de Sena nasceu no dia 2 de Novembro de 1919. Morreu em 1978.)
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