quinta-feira, 31 de julho de 2014

António Maria Lisboa 2

Poema do começo

Eu num camelo a atravessar o deserto
com um ombro franjado de túmulos numa mão muito aberta

Eu num barco a remos a atravessar a janela
da pirâmide com um copo esguio e azul coberto de escamas

Eu na praia e um vento de agulhas
com um Cavalo-Triângulo enterrado na areia

Eu na noite com um objecto estranho na algibeira
-trago-te Brilhante-Estrela-Sem-Destino coberta de musgo.


António Maria Lisboa

(António Maria Lisboa nasceu no dia 1 de Agosto de 1928. Morreu em 1953.)

Lugares-comuns 151

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 29 de julho de 2014

domingo, 27 de julho de 2014

Caminho 6

Foto Hernâni Von Doellinger

O cigarro e o formigo

- O cigarrinho, meu caro senhor? - disse o dono do café.
- Que é que tem o cigarro? Estou cá fora. Não posso fumar? - disse o cliente.
- Não é isso, meu caro senhor. O cigarrinho, onde é que o comprou? Comprou-o aqui? - disse o dono do café.
- Este maço? Por acaso acho que foi na bomba de gasolina - disse o cliente.
- Pois, nesse caso, meu grandessíssimo bandalho, apaga imeditamente essa merda ou desampara-me a esplanada. Não sabes ler, meu analfabeto de merda? - disse o dono do café.

Com efeito, o aviso estava lá. E não podia ser mais claro:

                                                                                       Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Anjo da guarda, minha companhia

Foto Hernâni Von Doellinger

Todas as noites. A nossa mãe pegava em nós - na Nanda, no Nelo e em mim - e colocava-nos de joelhos e mãos postas, virados para a parede. Na parede do quarto da nossa mãe, por cima da cama de casal, estava pendurada uma daquelas gravuras do anjo da guarda. Rezávamos: Anjo da guarda, minha companhia, guardai a minha alma de noite e de dia.

(Morávamos na casinha amarela do Santo Velho. O quarto da nossa mãe, logo à entrada, era também a sala, o consultório da rua inteira. Eu era então o mais novo e os mimos eram todos para mim. Os mimos que a pobreza honrada permitia. Umas senhoras da Granja que trabalhavam no Centro de Saúde e passavam pelo Santo diziam que eu "até a chorar era bonito" - contava-me a minha mãe, cheia de vaidade, fazendo-me festinhas nos caracóis, e eu gostava. Quando a minha mãe se zangava comigo - e eu enchia-a de razões para isso -, dizia-me que eu tinha sido deixado lá em casa pelos ciganos...
Depois nasceu o Lando e acabaram-se-me as mordomias.)

Todas as noites. Após a oração ao anjo da guarda e o sinal-da-cruz feito "sem aldrabices", íamos para o nosso quartinho de duas camas, uma para a Nanda e a maior para o Nelo e para mim. A nossa mãe deitava-se enfim, exausta e nós não sabíamos, e ligava o rádio na Emissora Nacional. Dava teatro. Do lado de cá do tabique, eu, o Nelo e a Nanda pedíamos "mais alto". Também queríamos. (Ou)víamos silentes e na maior das comoções, porque aquelas histórias não eram para brincadeiras. Interrompíamos apenas para um que outro pedido de esclarecimento acerca da senhora que fazia a vida negra ao senhor e que, todos concordávamos, era "uma cabra".
O teatro terminava, vinha a ficha técnica, mas a nossa mãe só desligava depois do "Samuel Dinis ensaiou", que era mesmo o fim, e o rádio dizia "Denis". Trocávamos boas-noites dum lado para o outro do tabique. "Agora vamos dormir", mandava a nossa mãe, e nós apertávamo-nos aos cobertores, contentes pela soirée e mortinhos por obedecer.

Todas as noites. Cinco ou dez minutos passados, a minha mãe dava um toquezinho na parede e perguntava, numa voz de embalar:
- Estais a dormir?
- Eu estou - respondia sempre eu.
- Lindo menino - dizia a minha mãe. E eu adormecia feliz.

Festas do Concelho de Paredes de Coura 2014


De 3 a 10 de Agosto, Festas do Concelho de Paredes de Coura. E mais um cartaz que me enche as medidas. Ver programa aqui.

P.S. - Quando eu escrevo cartaz quero dizer mesmo cartaz. Programa é outra coisa. Outro dia em Fafe confundiram tudo e eu fartei-me de rir com as (in)explicações do senhor vereador. Eu quero lá saber da Ruth Marlene - acho muito bem para quem gosta, mas desinteressa-me. A Senhora de Antime, para mim, é a procissão, o almoço em casa do meu irmão e (era) o concerto das duas filarmónicas da terra. Do programa, isso me basta, satisfaz-me. Eu critiquei foi o cartaz - o papel de reclame das festas -, sem gosto e sem impacto. Sem uma ideia forte. Portanto, sem eficácia. Como de costume, pelo menos desde que não sei quem começou a ter vergonha da Justiça de Fafe...

Universitário, mas pouco

                                                                                        Foto Hernâni Von Doellinger

Porto e Matosinhos acolhem por estes dias o 7.º Campeonato Mundial Universitário de Voleibol de Praia. Os cartazes avisam que a entrada para o público é "gratuíta". E avisam mal. Porque as palavras "gratuíto" ou "gratuíta" não existem na língua portuguesa. Existem por acaso duas palavras muito parecidas - gratuito e gratuita -, mas não sei se era a isso que os doutos se referiam.
Se era, façam então o favor de tomar nota: é gratuita que se escreve e é gra-tui-ta que se diz ou lê. Escrever "gratuíta" e dizer ou ler gra-tu-í-ta é, tipo, asneira. E da grossa.

terça-feira, 22 de julho de 2014

A sesta do meu avô da Bomba

Foto Hernâni Von Doellinger

Eu ainda não sabia que se chamava assim, mas o primeiro adulto que eu vi a fazer a sesta foi o meu avô Manuel, o 17 da Bomba, que não era terrorista e ganhara a perigosa alcunha derivado a ser o bombeiro número 17 e quarteleiro dos bombeiros de Fafe. O meu avô morava no quartel dos bombeiros, que, para todos os efeitos, era a Bomba.
Naquela casa só se comia e bebia do bom e do melhor. Depois do almoço, o meu avô descia até à camarata e estendia-se numa das camas, tapando a cara com o Jornal de Notícias. O JN era, naquela altura, um jornal grande, muito jeitoso para a sesta, e o meu avô, contrariando a regra geral, gostava de dormir sob aqueles assuntos.
As minhas tarefas em relação à sesta do meu avô eram ir buscar o JN e passar de vez em quando pela camarata para, se necessário, corrigir a posição do jornal. Tinha uma terceira tarefa, não editorial, que era andar em bicos de pés e de bico calado.
O Jornal de Notícias do meu avô era comprado a meias com o Sr. Ferreira do Hospital, que o lia primeiro, e depois eu ia buscá-lo, ou então ficava cada um com metade das páginas e a uma certa hora eu fazia a troca, já não me lembro bem.
O Sr. Ferreira do Hospital e o meu avô foram amigos e cúmplices toda a vida. Eram unha com carne, apesar de diferentes como a água e o vinho: o Sr. Ferreira era comunista, tinha estado preso, e o meu avô... antes pelo contrário. Para além de comunista, o Sr. Ferreira era um homem bom, um grande Homem que eu admirava e gostava de ouvir. Anos passados, aos domingos, eu à beira de ir para a tropa e sem emprego, o Sr. Ferreira cumprimentava-me com uma nota de 20 escudos escondida na mão tremente.
O meu avô da Bomba fazia a sesta muito bem. Naquele tempo ainda não era moda dizer-se que a sesta faz bem à saúde, o que até vinha mesmo a calhar ao meu avô, que era "uma pessoa muito doente". Era também preguiçoso, como vim a concluir mais tarde, o que me livrou do divã do psiquiatra e despesas adjacentes, uma vez que consegui perceber sozinho que tenho bem a quem sair.
Quando éramos miúdos, o meu avô punha-nos a bulir como gente grande, a mim e ao meu irmão Nelo. Eu era pau para toda a colher: limpava os capacetes e outros amarelos com solarine Coração e uma espécie de pó de talco, lavava as viaturas, verificava o óleo e colocava água nos radiadores, anotava as quilometragens, lavava, punha a secar e enrolava as mangueiras depois dos incêndios, metia baterias à carga, enchia as baterias com água da chuva colhida num garrafão com funil que estava no telhado, ia chamar motoristas para as saídas urgentes de ambulância, servia de bombeiro, varria o "parque do material", levava avisos a casa dos bombeiros, atendia o telefone, tocava a sirene (era a parte de que eu mais gostava), hasteava as bandeiras aos domingos e dias de festa, ia à cave buscar vinho, "sempre a assobiar!", segundo ordens superiores. Enfim, eu é que era o verdadeiro Bomba. E não saía de lá. Também porque naquela casa só se comia e bebia do bom e do melhor.

Tenho-me esquecido de ir buscar o jornal para o meu avô da Bomba e também já há muito que não estou com o Sr. Ferreira do Hospital. Aqueles dois nem devem ter reparado. Estão entretidos a meterem-se um com o outro, foram sempre assim, ou então dormem uma bela sesta, cada qual com a sua metade de JN sobre o rosto. Quando nos voltarmos a encontrar, os três, ainda nos havemos de rir disto tudo.

(Texto escrito e publicado no dia 8 de Outubro de 2011. Meto-lhe hoje a fotografia, e também lá estou, armado em Hitchcock de trazer por casa. Portanto: a foto da foto do meu avô é minha e muito fraquinha, infelizmente. O meu avô da Bomba merecia melhor, mas desta vez tenho uma boa desculpa: fiz a fotografia a correr e praticamente na clandestinidade, pouco antes de ser expulso do magnífico edifício da escola de bailado que, honra lhe seja, empresta a garagem aos Bombeiros.)

Silly season 4

Todo o homem tem um preço. Às vezes, dois.

Melhores dias virão (ou não)

Foto Hernâni Von Doellinger

Silly season 3

Às vezes a vida é feita.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Época balnear (mas pouco) 3

                                                                                         Foto Hernâni Von Doellinger

Silly season 2

A vida é feita de às vezes.

P.S. - A estupidez tem muitas caras e às vezes disfarça-se de inteligência. Gozo com isso na minha série Profundo. Recupero algumas dessas tiradas "brilhantes", porque estamos no tempo...

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Mártir S. Sebastião de Matosinhos

Foto Hernâni Von Doellinger

Cá estão elas, as "Grandiosas", acabadinhas de inaugurar. Festas ao Mártir S. Sebastião, até domingo, na Lota do Pescado do Porto de Matosinhos e ruas adjacentes, incluindo a minha.

João Ubaldo Ribeiro (1941-2014)

Choveu a semana toda e amanheceu um dia tão feio quanto os precedentes. Às cinco da manhã, antes de passar a meia hora costumeira trancado no gabinete diante de uma bacia esmaltada e de um gomil cheio de água alfazemada, areando os dentes e lavando a cabeça, que havia atravessado a noite untada por uma camada espessa de caldo de babosa embaixo da touca para amaciar o cabelo, Amleto Ferreira entreabriu a janela e inspecionou seu jardim com desagrado. Quase sempre escuro sob a fronde emaranhada das árvores, que cobria uma conglomeração cerrada de folhas e ramagens de plantas baixas, o jardim estava ainda mais penumbroso, uma floresta gotejante, grandes bagos de chuva esparrinhando a água dos tanquinhos, onde até mesmo os uapés, as ervas-de-santa-luzia, as damas-do-lago, as jaçanãs, as jipiocas retorcidas como novelos de sucuris e as outras vegetações da água estavam excessivamente molhadas, afogadas na molúria que tornava tudo úmido, escorregadio e lamacento. O martelo contínuo de gotas gordas pingadas das favas dos ingazeiros, sobre as folhas ressonantes dos crótons, cocós e taiobas, reiterava uma espécie de desesperança monótona a um dia que devia ser de festa, e somente as maravilhas, os musgos, os limos, as brilhantinas e demais seres que medram na obscuridade encharcada é que não pareciam mangrados e tristes como as outras plantas. Mundo madefato e sem brilho, em que o colorido das folhagens lembrava adornos de funeral, mundo que trouxe a Amleto um ressentimento redobrado. Decidiu sair para ver o que prometia o tempo, embora não acreditasse que fosse melhorar. Enrolou-se num roupão, agasalhou o pescoço com uma manta de crochê, pôs um barrete na cabeça para não resfriar-se, abriu a porta dos fundos do gabinete, desceu os dois batentes procurando não escorregar, pisou com gosto na alfombra de grama e plantinhas rasteiras, sentiu o pé afundar-se na terra empapada. Não chovia mais, apenas os pingos das árvores continuavam a despencar, às vezes como rajadas de chuva, quando uma lufada agitava as copas. Amleto teve um arrepio de frio, temeu constipar-se, mas assim mesmo resolveu ir até o portão de ferro que dava para o Rosário, para olhar melhor o horizonte e avaliar o clima.

"Viva o Povo Brasileiro", João Ubaldo Ribeiro

(João Ubaldo Ribeiro morreu hoje. Tinha 73 anos e era, se me dão licença, um fafense.)

Truques, traques e outras habilidades

Foto Hernâni Von Doellinger

Para poupar, como manda aos portugueses, o Estado abateu 85 carros à frota global dos organismos públicos. E comprou 267.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

terça-feira, 15 de julho de 2014

Mário Dionísio

Pior que não cantar

Pior que não cantar
é cantar sem saber o que se canta

Pior que não gritar
é gritar só porque um grito algures se levanta

Pior que não andar
é ir andando atrás de alguém que manda

Sem amor e sem raiva as bandeiras são pano
que só vento electriza
em ruidosa confusão
de engano

A Revolução
não se burocratiza


"Terceira Idade", Mário Dionísio

(Mário Dionísio nasceu no dia 16 de Julho de 1916. Morreu em 1993.)

Veja o vídeo, diz o Jornal de Notícias


Aconteceu realmente o extraordinário: uma menina de três anos morreu duas vezes e o Jornal de Notícias manda-nos ver o vídeo. Uma menina. De três anos. Morreu. Duas vezes. "Veja o vídeo". A menina era das Filipinas e o JN devia ir à merda.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Face Oculta com Rostos

O livro "Face Oculta com Rostos", do jornalista Joaquim Gomes, chega às bancas no próximo dia 25 de Julho. A obra - a primeira versando o Caso Face Oculta, incluindo o julgamento em Aveiro, que será sentenciado a 5 de Setembro - tem prefácio de Manuela Moura Guedes, assistente no processo.
De acordo com o seu autor, "o livro sistematiza os vários processos judiciais do Caso Face Oculta, em especial os dossiês José Sócrates/Figo e TVI/PT, operação financeira que seria suportada pelo BES-Investimento e com recurso a fundos localizados em Londres". São publicadas "dezenas de fotografias dos intervenientes no caso - suspeitos, arguidos, testemunhas, assistentes, magistrados, funcionários, advogados -, indicando-se, de uma forma enquadrada, quem são as centenas de pessoas e empresas que intervieram no processo". "Face Oculta com Rostos" conta ainda, "em pormenor, todas as incidências do longo julgamento do processo principal realizado no Palácio da Justiça de Aveiro".

Quando uma imagem vale mais que mil palavras

                             Foto site da CÂMARA MUNICIPAL DE FAFE (ainda por cima...)

António Quadros

Ode ao Cristo das Janelas Verdes

Quem te pintou triste e secreto,
Ó Cristo de olhar vendado,
Ó Cristo misterioso,
Abandonado
No Museu das Janelas Verdes,
Quem te pintou saudoso,
Talvez do Céu, talvez do Homem,
Talvez da criação antes da prova,
Quem te pintou assim, sereno e encoberto,
Imagem nova
Que um povo a ti votado
Um dia descobriu?
Ninguém conhece o mestre que te viu
Enigmático, silencioso,
Um Deus, dir-se-ia, envergonhado,
Mais que humilhado,
Vexado
Porque a palavra se cumpriu,
Porque na hora precisa
Os seus irmãos eleitos
O julgaram,
O feriram,
O mataram
E porque ao longo deste tempo interminável,
Após a crucifixão,
Após a ressurreição
O julgamento prossegue,
A tortura, o crime,
A traição,
O deicídio constantemente perpetrado
Ao sabor da existência quotidiana.
Ninguém conhece o pintor, o iniciado,
O sabedor do mistério
Que é o longo movimento necessário
Do nosso universo imaginário,
Onde tudo é signo e símbolo,
Onde o olhar de Jesus, encoberto,
Ensina a suprema perfeição
De um Deus capaz de amar
E de chorar,
De um Deus assassinado capaz de ressurgir
E de voltar
Sem parábolas, sem cifras, sem véus
Na plenitude da final revelação.

(...)

António Quadros

(António Quadros nasceu no dia 14 de Julho de 1923. Morreu em 1993.)

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Orígenes Lessa 2

Todos os dias aquela miséria... Maria Rosa estava de pé às cinco da manhã. Havia que pôr a casa em ordem, arrumar a sala de aulas, preparar o café, lavar os pequenos, vesti-los, passar roupa - "tenho um serviço de negra!" - e acordar o marido.
Era o mais difícil.

- Por que não deita mais cedo, seu tranca? Fica lendo feito idiota até não sei que horas, ou dando prosa com esses vagabundos, e depois, quando tem que fazer alguma coisa, pega no sono que nem Cristo acorda!
E resmungando e imprecando, vassourão aqui, pano molhado ali - "não mexa aí, menino!" -, Maria Rosa continuava a peleja.
- Parece que eu caí da cadeira no dia em que fiquei noiva desse coisa-à-toa! Pra ter esta vida! Pra passar vergonha!
Arrumou uma toalhinha de crochê no aparador humilde.
- Largue esse copo, Joãozinho! Largue já! Largue, estou dizendo!
E, ameaçadora, para o garoto lambudo que sorria feliz:
- Menino! Menino! Ponha já o copo na mesa! Olhe o que estou dizendo!
O pequeno continuava a negacear com o corpo, o copo muito sujo, uma das mãos mergulhadas na água.
- Não molhe o chão, criatura! A gente vive feito uma burra, tentando limpar a casa, vem um coisinha desses emporcalha tudo! Você apanha, Joãozinho! Traga o copo aqui!
- Eu quelia bebê água!
- Não quer beber coisa nenhuma! Você quer é chinelo! Venha cá!
- A senhóia bate na gente!
- Não bato! Venha aqui direitinho, me entregue o copo, que a mamãe não bate.

- Eu sei que a senhóia bate!
- Não me enjerize, criatura! Você apanha já...
- Eu não disse? A sinhóia qué é batê na ge
nte...

"O Feijão e o Sonho", Orígenes Lessa

(Orígenes Lessa nasceu no dia 12 de Julho de 1903. Morreu em 1986.)

Lugares-comuns 148

                                                                                      Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Quando é que Fafe aprende?

O Rali de Portugal regressa ao Norte em 2015, anunciou ontem oficialmente o ACP. Claro que, com Carlos Barbosa na presidência do ACP, o mais prudente é esperar por Junho de 2015 e pelo início da prova para se saber se é verdade. Em todo o caso, Matosinhos, que será apenas a garagem do rali mas não dorme em serviço, já tira partido da notícia e faz saber que prepara uma campanha de promoção internacional baseada na frase "Matosinhos - World´s Best Fish", quer-se dizer: Matosinhos, o Melhor Peixe do Mundo.
E Fafe, que verdadeiramente ganhou o rali para o Norte, Fafe que é o rali, o que é que faz? Compra feito, parece. Paga e senta-se à sombra, à espera dos carros. Talvez não queira que se saiba que vai ter rali. Ou então vai avisar somente uma semana antes, para ser surpresa.
Está tudo inventado acerca de comunicação, não há segredos. E por isso não percebo como é que o site da Câmara Municipal de Fafe consegue ser tão mau. Só se for de propósito, para nos envergonhar. Sim, eu fico envergonhado quando abro e tento ler o site da Câmara da minha terra. E a culpa é de quem manda, não de quem escreve, embora escreva mal.
Se os doutores da Câmara de Fafe tiverem um chilique de humildade e quiserem melhorar qualquer coisinha, sempre podem deitar os olhos ao site da Câmara de Matosinhos. É, por exemplo, assim que se deve fazer e faz. E repare-se que Matosinhos, à falta de melhores argumentos, até usa fotografias de Fafe para se promover. Pois é: dá Deus dentes a quem não tem nozes.

(Mais sobre Fafe e o Rali de Portugal, em O desnorte do ACP e em Rali de Portugal: o regresso do filho pródigo)

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Conduza com cuidado, aproveite para namorar

Foto Hernâni Von Doellinger

Antena 1, a nossa rádio pública, pouco depois das 21h15 de ontem. O locutor, voz excelentíssima, põe ao lume os chouriços do costume, prepara a entrada de Sérgio Godinho mas escorrega na burilada bucha de ligação. Diz ele: "Se vai na estrada, conduza com cuidado. Olhe, aproveite para namorar"...

O Mundial tal qual ele é 15

Depois da meia-final de hoje, entre a Holanda e a Argentina, ficou absoluta e definitivamente assente que a melhor selecção do mundo é a da Alemanha. Só falta saber quem leva a taça - e isso passou a pormenor.

terça-feira, 8 de julho de 2014

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Lugares-comuns 147

                                                                                       Foto Hernâni Von Doellinger

Bem-vindos a Matosinhos

                                                                                      Foto Hernâni Von Doellinger

Matosinhos-Sul, zona residencial de luxo e de lixo, junto à praia e ao novo terminal de cruzeiros do Porto de Leixões. Zona de turismo e de restaurantes, que se encarregam de montar diariamente este cartaz de boas-vindas.

domingo, 6 de julho de 2014

Os japoneses andam manifestamente atolambados

Esta contei-a aqui no dia 5 de Janeiro de 2013: Um atum gigante foi vendido no Japão pelo preço recorde de 1,38 milhões de euros. Diz que pesava 222 quilos. No outro dia comprei um atum anão, aqui em Matosinhos, por pouco mais de euro e meio, e mais fresco era impossível. Pesava quase três quilos.
As notícias afirmam que o atum gigante japonês era "rabilho". O meu atum anão, não sei. Mas também foi comido. Em bifinhos. De cebolada. E que bem que soube.

Agora contam-me que um "cacho com 34 uvas, cada uma a pesar cerca de 30 gramas", foi vendido, evidentemente no Japão, pelo simbólico preço de quatro mil euros. As uvas eram da raríssima casta ruby roman. Ainda ontem comprei um bom gaipelo com 15 bagos e dois pequeninos, e não paguei mais do que cinquenta e três cêntimos. As minhas uvas eram colhão-de-galo e fiquei muito bem servido.

Lugares-(in)comuns 88

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 5 de julho de 2014

O Papa Francisco vs. Passos Coelho

O Papa Francisco disse hoje que "o problema de não trabalhar não é deixar de ganhar dinheiro para comer". Há organizações, nomeadamente no seio da Igreja, que nos podem dar alimentos. "O problema - explica Francisco - é não poder levar o pão para casa, é perder a dignidade". Exactamente. O Papa ensina que o desemprego significa a perda da dignidade humana.
A 11 de Maio de 2012, Pedro Passos Coelho explicou muito bem explicado aos portugueses que "estar desempregado não pode ser um sinal negativo". Exactamente. O alegado primeiro-ministro de Portugal prometeu o desemprego como janela de oportunidade para a plena realização pessoal e profissional.
Católico, desempregado e sem janela, estou como o tolo no meio da ponte. Francisco ou Pedro? Francamente, não sei em quem acreditar...

O Mundial tal qual ele é 13


Não sei quem começou, mas foi no estrangeiro. O desporto na televisão passou a ser sobretudo bancadas. Antes, durante e depois. O entretanto do campo é agora apenas uma obrigação publicitária, um bocejo de todo o tamanho. As câmaras procuram é gajas de arrebita. Gajas boas, finas e bonitas. Se de repente as gajas boas, finas e bonitas metem o dedo no nariz e vão comer o carranho de há três dias, a câmara foge a sete pés que não tem, porque gajas boas, finas e bonitas não comem carranhos. São as ordens. Comem pistácios homologados pela FIFA. E a FIFA e outras fífias são mandadas por mentecaptos e onzeneiros.
Consta que no Portugal dos pequeninos há uma guerra pelos direitos de transmissão de gajas boas, finas e bonitas e de carranhos em vinha-d'alhos. Uma guerra que mete ao embrulho as televisões ditas televisões, a Sport TV do Joaquim Oliveira que dá cabo de empregos e de jornais, Angola é nossa (ou somos Angola), a Benfica TV, um careca desnorteado e catorze alegados clubes da alegada Liga de futebol que na verdade são apenas um, o meu.
Pago um dinheirão pela minha televisão. Rima e é verdade. Não vejo nada, mas gosto de passar os olhos por tudo. E lá estão as gajas boas, finas e bonitas. Nas bancadas. No ténis que é bem, no basquetebol americano, no voleibol português com side-out, no hóquei em patins de trazer por casa, no andebol assim assim, no futebol já me tinhas dito, no pingue-pongue de olhos em bico, no hipismo aiô silver, no motociclismo, na Fórmula 1, na Fórmula 2, na Fórmula 3, na fórmula mágica e nas fórmulas todas. Também no bólingue e nos dardos, simpáticas modalidades que, para ser correcto, ainda andam à procura de gajas boas, finas e bonitas. Nas bancadas.

(Texto escrito e publicado no dia 3 de Novembro de 2013, então com o título O desporto é bom é com gajas. Gajas boas. Estamos em Julho de 2014: o Mundial do Brasil farta-se de me dar razão quanto ao desporto e às gajas, e Joaquim Oliveira continua a dar cabo de empregos e jornais. Olimpicamente.)

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Festas da Senhora de Antime 2014 (actualização)


As Festas do Concelho de Fafe, em honra de Nossa Senhora de Antime, são já para a semana, de 10 a 13 de Julho. A informação foi disponibilizada pela Câmara de Fafe com o atraso e a insuficiência do costume; o cartaz exibe o mau gosto e a indigência do costume. Mais, aqui e, a pedido de várias famílias, agora também aqui.

P.S. - O lamentável site da Câmara de Fafe acordou hoje para as festas. Calar! Se acordasse só daqui a um mês... era muito pior.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Adolfo Casais Monteiro

A salvação do mundo

Os anjos levaram as igrejas...
Anjos envergonhados, de grandes asas tristes,
que fugiam, escondendo o rosto,
nas pregas dos mantos, que os incêndios enegreciam.
Levaram as igrejas, os santos e os milagres.
E os homens ficavam olhando o céu,
os homens que tinham deixado os anjos levar as igrejas,
de mãos postas, ajoelhados.
As mãos que eram para não deixar os anjos levar as igrejas.
Mas os homens já não sabiam,
e os anjos julgaram que eles não queriam as igrejas para nada.

A terra vazia e os homens de mãos postas, ajoelhados.

Então surgiram os anjos de extermínio.
E as longas espadas flamejantes
deceparam as cabeças dos homens ajoelhados,
que tinham fechado a porta das igrejas na cara da verdade.


"Simples Canções da Terra", Adolfo Casais Monteiro

(Adolfo Casais Monteiro nasceu no dia 4 de Julho de 1908. Morreu em 1972.)

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Lugares-comuns 146

Foto Hernâni Von Doellinger

Festas da Senhora de Antime 2014


As Festas do Concelho de Fafe, em honra de Nossa Senhora de Antime, são já para a semana, de 10 a 13 de Julho. A informação foi disponibilizada pela Câmara de Fafe com o atraso e a insuficiência do costume; o cartaz exibe o mau gosto e a indigência do costume. Mais, aqui.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Zélia Gattai 2

Cinema mudo 

O cinema representava o ponto alto da nossa programação semanal. Próximo à nossa casa, único do bairro, o "Cinema América" oferecia todas as quintas-feiras uma "soirée das moças", cobrando às senhoras e senhoritas apenas meia-entrada. Era nessas noites que mamãe ia sempre, levando consigo as três filhas: Wanda, Vera e eu, e também Maria Negra, que a bem dizer era quem mais ia, adorando filmes e artistas, não abrindo mão de seu cinema por nada do mundo. Muitas vezes, em noites de chuva, quando a patroa desistia de sair com as crianças, chegava mesmo a ir sozinha. Os meninos não perdiam as matinês aos domingos. Papai não se interessava por cinema, preferia o teatro, as óperas e operetas.
O conjunto musical que acompanhava a exibição dos filmes compunha-se de três figuras: piano, violino e flauta. Ano entra, ano sai, o repertório dos músicos era sempre o mesmo. Os primeiros acordes do piano, do violino ou da flauta anunciavam ao público o gênero da fita a começar. Ninguém se enganava. As sessões eram iniciadas com um documentário ou o "natural," como era chamado por todos, que mostrava os acontecimentos relevantes da semana. Nós, crianças, detestávamos o tal "natural", e quando terminava, gritávamos em coro, numa só voz, num imenso suspiro de alívio: "Graças a Deus!" Em geral, logo em seguida vinha a fita cômica. Morríamos de rir com os pastelões voando à procura do alvo, sempre acertando na cara do desprevenido. Os filmes de Carlitos fascinavam a meninada; torcíamos por ele quando, dono de artimanhas incríveis, derrotava seu rival, o imenso vilão. O frágil homenzinho de chapéu-coco e bengala acabava sempre por levar a melhor, conquistando as graças de sua formosa e a admiração das plateias Aplaudíamos suas vitórias batendo palmas ensurdecedoras e gritando a plenos pulmões: "aí, Carlitos!", suspirando de pena ao ver escrita na tela a palavra Fim (a primeira palavra, por sinal, que aprendi a ler).


"Anarquistas, Graças a Deus", Zélia Gattai

(Zélia Gattai nasceu no dia 2 de Julho de 1916. Morreu em 2008.)

É assim que eu gosto da minha rua

                                                                                     Foto Hernâni Von Doellinger

O dia apresentou-se-me com cara de boa pessoa. Acordei à pala do relógio de sala do vizinho, que me madruga pela casa dentro sem pedir licença, e fui à varanda com vista para o mar se me puser de lado. Pontual, pendurado no sítio do costume, o Sol brilhava que era uma categoria. Navegando num céu perfeito, desanuviado, gaivotas de torna-viagem exibiam credenciais, cagando de alto. Nas funduras da rua eternamente em obras, desviando-se em ziguezagues milagrosos a cada nova vaga do merdoso ataque aéreo, um barulhento gangue de cães vadios tentava organizar-se para a sessão de boas-vindas ao novo elemento. Como é do conhecimento geral, os cãos organizam-se sobretudo cheirando o cu uns aos outros e ganindo, tal qual como na política. O novo elemento era um velho cão-polícia reformado da Brigada de Combate ao Narcotráfico e acabado de sair do canil municipal após prolongada cura de desintoxicação segundo o Modelo Minnesota.
Em respeito pelo ritual iniciático, a canzoada alçava a perna uma vez atrás da outra em pneus de estimação marcados de véspera, aliviando-se com evidente prazer dos excessos de uma noitada de copos e cadelas. Percebe-se: agora que lhes gamaram as árvores, é para aquilo que os cães precisam dos pneus dos automóveis, para a ancestral cerimónia. Uma espécie de baptismo mas ao contrário.
Mesmo por baixo do meu nariz, um casal de gatos gordos e somíticos barafustava contra um bando de jovens pardais por causa do esqueleto de um carapau encravado entre os paralelipípedos levantados da rua recém-requalificada. Não era arqueologia, era fome. Mandei um berro cá de cima e prevaleceu o bom senso: gatos e pardais resolveram-se enfim pela partilha, ordens minhas, a metade da cabeça para os pardais, que têm melhores dentes.
É assim que eu gosto da minha rua, madrugadora, límpida, cheia sem gente, barcos no quintal. Todos nos entendemos a estas horas temporãs - eu, os pardais, os gatos, as gaivotas, os barcos, ainda que espanhóis, os cães, mesmo que ex-polícias. Olho-nos de fora de mim e vejo um comovente quadro de harmonia irracional. E o mar de Matosinhos fede como não há memória. Que mais se pode desejar como alento matinal?
Depois venho aqui ao computador, varejo as notícias e leio que Paulo Bento ainda fala como se fosse seleccionador nacional. Pronto, já me estragaram o dia.