O senhor abade cheirava bem, a tabaco e perfume. Andava sempre de batina e, no Inverno, usava uma capa negra revoante que parecia de filme de espadachins. Com o correr dos anos, o senhor abade subiu a senhor arcipreste, pendurou a sotaina e começou a sair à rua de fato preto e cabeção de gola alta, passou a cumprimentar-me de mãozada e fizeram-no senhor cónego, uma desfeita, no meu modesto ponto de vista. Cónego Leite de Araújo. Era um homem elegante, distinto, culto, bom e pobre. Dava. E tinha um sorriso. Era um ser humano com defeitos e extraordinário. E foi meu amigo. Não sei se Fafe tem a contabilidade em dia com a sua memória.
No tempo em que havia padres em Portugal, o senhor abade de Fafe tinha consigo ao serviço da paróquia, para além do padre Adélio que ensaiava o orfeão, dois jovens coadjutores, palavra que eu não sabia dizer mas que me fazia rir, porque imaginava que, com um título assim, aqueles dois eram padres de acender e apagar. Tanto quanto sei agora, apagaram-se quase todos os que por lá passaram. Apagaram-se como padres, quer-se dizer. Tiveram muitos filhos, foram muito felizes e casaram, geralmente por esta ordem. Em todo o caso, a esses já eu não beijava a mão, mas pedia sabença. Tínhamos isso combinado. E eu ganhava o "Deus te abençoe" que me dava tanto jeito.
No tempo em que havia padres em Portugal, não havia Paula Bobone, graças a Deus. Por isso o beija-mão era uma coisa, por assim dizer, pouco higiénica. Porque o beijo era mesmo beijo e não a mariquice do beijo de faz de conta, a "simulação de beijo" recomendada pela etiqueta da treta. Eu pedia sabença com beija-mão também ao meu avô e à minha avó da Bomba e ao meu avô e à minha avó de Basto, gente de trabalho que tinha as mãos como calhava quando eu lá esparramava o reverencial ósculo. Sim, seria talvez pouco higiénico, mas era verdadeiro. E ainda cá estou.
Durante toda a minha vida pedi sabença. Ao meu pai, à minha mãe, ao meu padrinho, à minha madrinha, aos meus tios e às minhas tias. Até às tias chegadas à família por casamento, que no princípio achavam aquilo um bocado estranho, mas que depois se habituaram e creio que gostam. Aos poucos fui desfazendo a corruptela, passei pela "sabênção" até chegar ao que peço há anos: "a sua bênção". É verdade, continuo a pedir a bênção à minha mãe e aos meus tios e tias, alguns apenas um pouco mais velhos do que eu. E não é só por respeito ou porque me ensinaram em pequenino. Eu acredito nas bênçãos. Por falar nisso: sabença, senhor abade!
Há dias falava com a minha mãe sobre exactamente este tipo de "cumprimento " que sempre tiveste com quem respeitaste. Um abraço e sua bençaõ primo!
ResponderEliminarMiguel Doellinger
Olá, Miguel! Obrigado pela visita e pelo comentário.
ResponderEliminarFafe ainda lhe vai agradecer muito estes deliciosos pedaços de prosa.
ResponderEliminarSabença, se Nane.
E um abraço,
P.
Ó meu amigo, Fafe nem sabe que eu existo. E o Tarrenego! é uma coisa praticamente secreta.
ResponderEliminarObrigado pela visita e pelo comentário. As bênçãos também para casa.
Ao Cê Cipreste eu não beijava a mão nem pedia sabença. Tenho para mim que era único miúdo de Fafe que não o fazia! Belo feitio o meu!...
ResponderEliminarj.
Coisas de miúdo. Felizmente já te passou...
ResponderEliminarObrigado pela visita e pelo comentário.
O Hernâni tem textos que correm nas veias. Isto é sangue do verdadeiro! Peço desculpa pela inconfidência, o Hernâni vivia na rua do Assento?
ResponderEliminarMorei, de facto, no Assento. A minha mãe ainda lá vive. Por falar nisso, vou lá amanhã dar-lhe um beijo.
EliminarConheço a sua mãe e tenho refrência do seu irmão (creio que se chama Orlando - é mais ou menos da minha geração).A minha casa também é aí perto (naquele loteamento novo). Passava bons tempos em casa do srº tónio Costa com o lando. Fui neto da D. Florinda e sobrinho da Olindnha, lembra-se delas?
ResponderEliminarAbraço!
Lembro-me, pois. Gente boa. Fomos então praticamente vizinhos!
EliminarAbraço.