terça-feira, 25 de outubro de 2011

Sabença, senhor abade!

No tempo em que havia padres em Portugal, Fafe tinha um senhor abade. Uma vez por semana, o nosso senhor abade descia a minha rua de terra e tílias para ir dizer missa na capela de ricos da Casa do Santo Velho, e a minha mãe mandava-me ir ter com ele para lhe pedir sabença. Eu interrompia os deveres da escola primária e ia a correr, todo contente. Fazia fila atrás dos outros miúdos todos e, quando chegava a minha vez, lá dizia, com o respeito que me fora ensinado, "Sabença, senhor abade!", beijando a mão branca que me era estendida. O senhor abade fazia-me uma pequena festa na cabeça, com a mão que tinha de vago, e respondia-me "Deus te abençoe, meu filho", que era o que eu queria ouvir. O senhor abade seguia o seu caminho e eu tornava a casa num sino. Acreditam que aquilo é das coisas mais felizes da minha infância?
O senhor abade cheirava bem, a tabaco e perfume. Andava sempre de batina e, no Inverno, usava uma capa negra revoante que parecia de filme de espadachins. Com o correr dos anos, o senhor abade subiu a senhor arcipreste, pendurou a sotaina e começou a sair à rua de fato preto e cabeção de gola alta, passou a cumprimentar-me de mãozada e fizeram-no senhor cónego, uma desfeita, no meu modesto ponto de vista. Cónego Leite de Araújo. Era um homem elegante, distinto, culto, bom e pobre. Dava. E tinha um sorriso. Era um ser humano com defeitos e extraordinário. E foi meu amigo. Não sei se Fafe tem a contabilidade em dia com a sua memória.
No tempo em que havia padres em Portugal, o senhor abade de Fafe tinha consigo ao serviço da paróquia, para além do padre Adélio que ensaiava o orfeão, dois jovens coadjutores, palavra que eu não sabia dizer mas que me fazia rir, porque imaginava que, com um título assim, aqueles dois eram padres de acender e apagar. Tanto quanto sei agora, apagaram-se quase todos os que por lá passaram. Apagaram-se como padres, quer-se dizer. Tiveram muitos filhos, foram muito felizes e casaram, geralmente por esta ordem. Em todo o caso, a esses já eu não beijava a mão, mas pedia sabença. Tínhamos isso combinado. E eu ganhava o "Deus te abençoe" que me dava tanto jeito.

No tempo em que havia padres em Portugal, não havia Paula Bobone, graças a Deus. Por isso o beija-mão era uma coisa, por assim dizer, pouco higiénica. Porque o beijo era mesmo beijo e não a mariquice do beijo de faz de conta, a "simulação de beijo" recomendada pela etiqueta da treta. Eu pedia sabença com beija-mão também ao meu avô e à minha avó da Bomba e ao meu avô e à minha avó de Basto, gente de trabalho que tinha as mãos como calhava quando eu lá esparramava o reverencial ósculo. Sim, seria talvez pouco higiénico, mas era verdadeiro. E ainda cá estou.
Durante toda a minha vida pedi sabença. Ao meu pai, à minha mãe, ao meu padrinho, à minha madrinha, aos meus tios e às minhas tias. Até às tias chegadas à família por casamento, que no princípio achavam aquilo um bocado estranho, mas que depois se habituaram e creio que gostam. Aos poucos fui desfazendo a corruptela, passei pela "sabênção" até chegar ao que peço há anos: "a sua bênção". É verdade, continuo a pedir a bênção à minha mãe e aos meus tios e tias, alguns apenas um pouco mais velhos do que eu. E não é só por respeito ou porque me ensinaram em pequenino. Eu acredito nas bênçãos. Por falar nisso: sabença, senhor abade!

10 comentários:

  1. Há dias falava com a minha mãe sobre exactamente este tipo de "cumprimento " que sempre tiveste com quem respeitaste. Um abraço e sua bençaõ primo!
    Miguel Doellinger

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  2. Olá, Miguel! Obrigado pela visita e pelo comentário.

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  3. Fafe ainda lhe vai agradecer muito estes deliciosos pedaços de prosa.
    Sabença, se Nane.
    E um abraço,
    P.

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  4. Ó meu amigo, Fafe nem sabe que eu existo. E o Tarrenego! é uma coisa praticamente secreta.
    Obrigado pela visita e pelo comentário. As bênçãos também para casa.

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  5. Ao Cê Cipreste eu não beijava a mão nem pedia sabença. Tenho para mim que era único miúdo de Fafe que não o fazia! Belo feitio o meu!...

    j.

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  6. Coisas de miúdo. Felizmente já te passou...
    Obrigado pela visita e pelo comentário.

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  7. O Hernâni tem textos que correm nas veias. Isto é sangue do verdadeiro! Peço desculpa pela inconfidência, o Hernâni vivia na rua do Assento?

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    1. Morei, de facto, no Assento. A minha mãe ainda lá vive. Por falar nisso, vou lá amanhã dar-lhe um beijo.

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  8. Conheço a sua mãe e tenho refrência do seu irmão (creio que se chama Orlando - é mais ou menos da minha geração).A minha casa também é aí perto (naquele loteamento novo). Passava bons tempos em casa do srº tónio Costa com o lando. Fui neto da D. Florinda e sobrinho da Olindnha, lembra-se delas?
    Abraço!

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    1. Lembro-me, pois. Gente boa. Fomos então praticamente vizinhos!
      Abraço.

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