sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Os rapazes do Vaticano

Cada vez que há eleições para papa, sai sempre um velhinho na rifa. Um cardeal velhinho. Tem sido assim nos tempos modernos. E compreende-se: é preciso pôr na cúpula da Igreja Católica alguém com experiência, com a sabedoria da longa vida que carrega sobre os ombros, não vá repetir-se a triste história do inconsciente Jesus Cristo, que tinha apenas 33 anos e resolveu morrer por nós todos, dando origem a isto tudo. E o cardeal velhinho tem de ter muitos doutoramentos em muitas universidades gregorianas, que é só uma, mas podia ser pelo menos três, como a Santíssima Trindade, não vá sentar-se lá na praticamente infalível cadeira um pescador como Pedro ou um funcionário das Finanças como Mateus, dois burgessos que certamente escangalhariam isto tudo.
E já muito facilita o Vaticano, quedando-se pelos simpáticos septuagenários ou octogenários. Basta pensar que, biblicamente, Moisés viveu até aos 120 anos, Jacob até aos 147, Abraão até aos 175, Adão até aos 930, Noé até aos 950, e Matusalém, filho de Enoque, pai de Lameque e avô de Noé, faleceu inesperadamente aos 969 anos.
(Evidentemente também há João XII, que chegou a papa aos 18 anos, dormia com as prostitutas do pai, teve relações sexuais com a própria mãe, castrou um dos seus cardeais, cegou outro, torturou quem lhe desprazia e acabou por morrer com uma valente marretada na cabeça, gentilmente oferecida pelo marido cornudo de uma das suas incontáveis amantes. Mas isso não é desculpa.)
Não sei se sabem: todos os católicos são elegíveis para papa. Basta-lhes serem, obviamente, baptizados, maiores de idade e homens, embora depois devam vestir saias. Isto é, eu posso ser papa, um sétimo de toda a população mundial pode ser papa, depois, na questão das saias, cada um seria para o lado que der.
Só que as eleições no Vaticano não são directas e universais. Votam apenas os cardeais, lacrados no chamado conclave, onde, nas horas mortas, contam anedotas picantes uns aos outros e fazem malha. E se votam apenas os cardeais (120 no máximo, "em nome" de cerca de 1272 milhões de almas), porque é que os velhinhos haveriam de escolher para patrão o Silva dos Plásticos, que, sendo embora uma pessoa estimável e comerciante respeitado, não lhes pertence de lado nenhum?
É! Aquilo é coisa entre padrinhos e afilhados. Como na máfia, Deus lhes perdoe...

P.S. - Publicado originalmente no dia 19 de Junho de 2016. Atentos ao Tarrenego!, sensíveis à minha denúncia, Paolo Sorrentino e Jude Law fizeram para a HBO uma série de televisão sobre o assunto. "The Young Pope" ou, em português, "O Jovem Papa" dá às quintas-feiras no canal por cabo AMC.

Por esta ponte de pedra

Foto Hernâni Von Doellinger

Chama o Gregório!

O dia 1 de Janeiro foi inventado no dia 24 de Fevereiro de 1582 pelo papa Gregório XIII. Daí é que vem a mais famosa expressão da noite de passagem de ano - Com licença, vou só ali chamar o Gregório...   

As coincidências nunca são por acaso

Esta extraordinária e suspeitíssima coincidência de 31 de Dezembro anteceder sistematicamente o primeiro dia do ano seguinte deveria levar-nos a pensar. Mas não, embebedamo-nos.

Ocasião

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Mateus Rosé para Saddam Hussein

Isto foi para aí em 2002, portanto um ano antes da invasão do Iraque, e aconteceu quando chegou a Portugal a inesperada porém impactante notícia de que Saddam Hussein se perdia de amores pelo nosso Mateus Rosé. O meu jornal mandou-me logo escrever uma artigalhada sobre o momentoso assunto e comprar uma caixa do mais famoso vinho português para oferecer, "com um cartãozinho simpático", ao ditador de Bagdade. Perante a minha perplexidade telefónica a propósito da segunda parte do serviço, Lisboa explicou-me o jornalístico intuito da genial ideia, sufocando-me à nascença todos os mas: "Se o gajo nos responder depois a agradecer, é o máximo, dá uma capa fantástica. Mas se não disser nada... também dá uma coisa gira. Então vá..."
E eu fui. Comprei o vinho e escrevi o texto. Um texto pequeno que andava à volta disto: o Saddam gosta de Mateus Rosé. Era capaz de ter também alguma graça, já não me lembro, mas quando digo andar à volta é mesmo andar à volta, fazer chouriço, meter palha, usar e abusar da técnica de composição musical da variação (e fuga), porque a "notícia" não tinha mais nada para dizer, era oca por dentro. E foi manchete no dia seguinte.

(Permitam-me abrir aqui um parêntese pedagógico, para proteger os caros leitores da tentação de conclusões precipitadas e injustas acerca do meu jornal. Deixem-me esclarecer o seguinte: num certo sentido, o 24horas foi o precursor do jornalismo que hoje se faz em Portugal - um jornalismo de títulos, colorido e imaginativo, a que, para ser perfeito, só falta o pequeno pormenor da informação, isto é, as noticiazinhas. Hoje os jornais portugueses são todos iguais ao 24horas. Uma diferença apenas os separa: o 24horas era, nos seus bons tempos, o melhor pior jornal do País, era um mau jornal muito bem feito. E ficava barato ao dono. Depois veio a rapaziada e tomou conta.)

Meti a caixa de vinho num armário da redacção. Eu já tinha aprendido que as geniais ideias vindas de Lisboa padeciam de tesão breve e alzheimer. Regra geral, no dia seguinte os nossos criativos e bem-intencionados chefes já não se lembravam das figuras tristes que nos tinham mandado fazer no dia anterior. E mandavam-nos fazer outras. Assim foi.
Em Dezembro de 2003 apanharam Saddam e eu pensei: "Agora é que era de lhe mandar o Rosé, para lhe animar o Natal na prisão". E deixei-me estar. O ex-presidente iraquiano foi executado três anos depois, como se viu no YouTube, e as garrafas lá continuaram no armário, até ao dia em que Lisboa veio ao Porto anunciar que o Porto ia fechar para salvar o jornal. Isto é, para salvar Lisboa. Começava o ano de 2009 e desfizeram-se de nós. Eu trouxe para casa duas garrafas do Mateus Rosé de Saddam Hussein.
O 24horas acabou por não se safar, mas "Lisboa" sim e é o que eu lhes estimo. Os alegados responsáveis estão agora a enganar noutro lugar. As duas garrafas de Mateus Rosé ainda cá estão, a fazerem de pai e mãe de uma outra, de aguardente do Salazar, parece que engarrafada pelo próprio, como me garantiu, no acto da oferta em Santa Comba Dão, o sobrinho-neto do nosso estimado ditador. Estão bem umas para as outras, as garrafas. E os outros também.

P.S. - Publicado originalmente no dia 9 de Março de 2012, sob o título "Quando de mandaram oferecer vinho ao Saddam". Saddam Hussein
 foi executado por enforcamento no dia 30 de Dezembro de 2006. Tinha 69 anos.

Cavalos brancos me levaram

Foto Hernâni Von Doellinger

Há muitos e muitos anos...

Foto Hernâni Von Doellinger

Guerra das Rosas

A Rosa Maria e a Rosa Beatriz não se dão nem à lei da bala. Andam sempre à bulha uma contra a outra derivado ao Anacleto Lingrinhas, que é requisitado por ambas. Lá no bairro até dizem que é a Guerra das Rosas.

P.S. - Faz hoje anos. Dia 30 de Dezembro de 1460. No âmbito da Guerra das Rosas (mas a sério, ou à séria, se lido em Lisboa), que decorreu com assinalável engalfinhamento entre as casas de Iorque e de Lencastre, é levada a efeito a Batalha de Wakefield. Resultado: grande vitória dos Lencastre de Margarida de Anjou, Ricardo de Iorque é executado por traição ao rei e o seu filho Eduardo sucede-lhe como duque de Iorque.

Quando vier a Primavera

Foto Hernâni Von Doellinger

Período homólogo

- Boa tarde...
- E o que vai ser?...
- Queria meio ano.
- Novo ou usado?
- Novo, se faz favor.
- Da parte do primeiro semestre, portanto...
- Se houver...

Pela esquerda baixa

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Os famosos do dia

No dia 29 de Dezembro de 1891 o empresário americano Thomas Edison patenteou o rádio. No dia 29 de Dezembro de 1987 o tractorista português Anacleto Felgueiras fracturou o cúbito.

O que é preciso é Benfica

Parece que Joaquim Oliveira vendeu os jornais a Angola. E depois? Qual é o escândalo? O que é que Portugal perde com a passagem do Jornal de Notícias e do buraco do Diário de Notícias para as mãos de um grupo angolano? Perde independência? Isenção? Credibilidade? Transparência? Rigor? Qualidade? Profissionalismo? Competência? Seriedade? Memória? Deontologia? Dignidade? Referência? Jornalismo? Não se perde o que não há. Talvez se percam empregos. Mas estou em condições de assegurar que isso já aconteceu outras vezes, mesmo antes da chegada dos angolanos.

Uma vez, o estado-maior da Controlinveste descia no elevador do Edifício JN do Porto e eu também. Eu era um dos prescindíveis do 24horas, excesso de bagagem, mas ainda não sabia. Entrei a meio caminho para ir a casa comer a sopa. Ir num pé e vir no outro. Disse boa tarde, mas ninguém me ligou. Aquela gente não ouve, não vê nem pensa para além do umbigo de cada qual. Iam todos entretidos na galhofa, preparando mais uma leva de despedimentos. A maior de todas. Eram os filhos do Joaquim, acolitados por um ou dois administradores anónimos limitados e pelo director de publicações, João Marcelino. E era exactamente Marcelino o animador de serviço, exibindo a capa do Diário de Notícias daquele dia. Dizia o também director do DN - "O que é preciso é isto: mete-se aqui este vermelhinho e está o assunto resolvido, é só vender".
João Marcelino referia-se à foto do Benfica que dominava a primeira página do DN. E (deixemo-nos de hipocrisias) não estava a dizer nenhuma asneira. Haja Benfica! O Diário de Notícias tem finalmente quem o compre...

P.S. - Publicado originalmente no dia 19 de Outubro de 2012. O Diário de Notícias saiu à rua pela primeira vez no dia 29 de Dezembro de 1864. E, mais ou menos à rasca, anda às voltas até hoje. Quanto a Oliveira e seus asseclas, continuaram a despedir e a destruir jornais e lares, com uma perseverança digna de registo. João Marcelino é actualmente uma das vedetas residentes do Canal 11, televisão da Federação Portuguesa de Futebol.

Unhas de fome (propriamente ditas)

Foto Hernâni Von Doellinger

Um ano casual

- Boa tarde...
- E o que vai ser?...
- Queria um ano.
- Bem passado?
- Mas sem vincos.

Uma ponte para a eternidade

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

A segunda vinda de Jesus (ou a chama imensa)

Atenção: não brinquem com coisas sérias! Se Jesus vem mesmo outra vez, é porque estamos no fim do mundo. Vivos e mortos serão julgados para toda a eternidade, o reino de Deus estender-se-á estrondosamente à Terra, e não consta que haja mais futebol. Para quê, então, gastar tanto dinheiro?...

P.S. - Publicado originalmente no dia 22 de Julho de 2020, ainda o "regresso" de Jorge Jesus ao Benfica era apenas um anátema lançado por Luís Filipe Vieira. Portanto eu avisei. Vieira foi-se, Jesus vai-se. É o diabo! O mundo desfaz-se numa chama imensa...

Pinto da Costa está velho. Foi de repente.

Ainda ontem Pinto da Costa tinha apenas 83 anos, estava na plenitude das suas faculdades físicas e mentais, dispunha de idoneidade para dar e vender e era o presidente insubstituível do FC Porto. Hoje Pinto da Costa é um velho de 84 anos, gagá, um bocado trafulha e já devia estar em casa a chá e bolachas e com as perninhas agasalhadas sob um cobertorzinho azul e branco. Foi o que descobriram durante a noite quatro ou cinco pascácios donzelos - outros irão aparecer - que de repente, por singelo altruísmo e acrisolado amor clubista, lhe querem abafar o lugar.

P.S. - Jorge Nuno Pinto de Costa nasceu no dia 28 de Dezembro de 1937. Faz hoje 84 anos. 

O Foda e o Kagawa

Por falar em futebol e aniversariantes, registo, sem ofensa, o nome do jogador alemão Sandro Foda, que nasceu no dia 28 de Dezembro de 1989 e que portanto faz hoje 32 anos. Sandro Foda joga actualmente no Sturm Graz, da Áustria, onde é treinado pelo seu próprio pai, Franco Foda. Os Foda, Deus me perdoe, fizeram-me lembrar, por exemplo, o internacional japonês Kagawa Shinji Kagawa -, que por acaso não tem clube nem faz anos hoje, mas também realmente.

Coitadinha!...

Foto Hernâni Von Doellinger

Bacon, Bacon, Bacon & Bacon

Antes de ser toucinho fumado ou gordura subcutânea do porco, Bacon tinha um primeiro nome: Francis. Foi político, estadista, filósofo e ensaísta inglês durante os séculos XVI e XVII, sendo considerado um dos fundadores da ciência moderna. Este Bacon era filho de outro Bacon - Nicholas Bacon -, político durante o reinado da rainha Isabel I, notável como lorde guardião do Grande Selo. Ainda Bacon mas agora Nathaniel, converteu-se a colono da Virgínia, EUA, e ficou famoso por liderar uma rebelião nem de propósito chamada Rebelião de Bacon. Isto em 1676. Largos anos mais tarde, nos finais do século XVIII, fez-se John e escultor, e já no século XX, outra vez Francis, dedicou-se à pintura figurativa...

P.S. - Nicholas Bacon, o do Selo, nasceu no dia 28 de Dezembro de 1510.

Um ano bem passado

- Boa tarde...
- E o que vai ser?...
- Queria um ano.
- Como?...
- Bem passado.

Um meco, dois mecos, três mecos

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Apocalypse Now

Atenção, muita atenção! Emprestei o meu "Apocalypse Now" não sei quando nem a quem nem porquê. Não me lembro! Sei é que o caralho do DVD nunca mais me tornou a casa, e já deve andar no liceu. Ao sacrista que se está a aproveitar de mim e da minha franqueza digo apenas o seguinte: devolve-me essa merda, pá, devolve, e até pode ser sob anonimato, porque, se te descubro, se te adivinho sequer - não sei se estás a ver o filme...

P.S. - Na mitologia nórdica, assinala-se hoje, 27 de Dezembro, o nascimento de Freia, senhora das Valquírias.

Adoro o cheiro da maresia pela manhã

Foto Hernâni Von Doellinger

Ano praticamente novo

- Boa tarde...
- E o que vai ser?...
- Queria um ano.
- Novo?
- Usado. É para estragar... 

Em bicos de pés

Foto Hernâni Von Doellinger

Lucas, evangelista e médio ofensivo

Lucas era talvez médico e talvez pintor e terá vivido na cidade grega de Antioquia, podendo ter sido um dos poucos cristãos originais que conviveram com os doze apóstolos. Admite-se que tenha emparceirado com Paulo e será, segundo a tradição, o autor dos Actos dos Apóstolos e do Evangelho de São Lucas, como o próprio nome indica, passando por isso a ser conhecido como Lucas Evangelista. Diz-se que foi o primeiro iconógrafo, tendo eventualmente pintado a Virgem Maria, São Paulo e São Pedro. Depois de ter passado em Portugal pelo Estoril e pelo Vitória de Guimarães, joga actualmente no Red Bull Bragantino do Brasil e é médio, não médico - e isto é certo.

P.S. - Hoje é Dia de São Lucas, padroeiro dos pintores, médicos e cirurgiões.

O Teles Evangelista

O Teles Evangelista é operador de grua e, não sabe bem porquê, já foi convidado para dois governos de extrema-direita. Declinou.

Os Sãos Joões

O azar do nosso São João, o Baptista, é não ter sido o outro, o Evangelista. O nosso São João era um bocado esquisito mas muito homem: profeta ambulante, vestia-se de peles de camelo, usava um cinto de couro, comia gafanhotos e mel e convivia muito bem com cabritinhos e cabritinhas. Clamava no deserto. Um deserto que inopinadamente tinha um rio chamado Jordão como o cinema de Guimarães, e foi ali mesmo, no rio que não no cinema, que João, o nosso, inventou o baptismo e baptizou o primo Jesus. O nosso São João era a Ana Gomes daquele tempo. Punha a boca no trombone sem pauta nem contenção e isso haveria de custar-lhe a cabeça, ainda nem chegara aos trinta anos. Os amigos do Baptista tinham uma certa vergonha dele e muito gosto na própria cabeça, e por isso deram-lhe o nome de código de O Precursor, para que não se soubesse de quem falavam quando falavam. Hoje em dia, o analfabetismo instalado chama-lhe O Percursor.
O São João que não é nosso, o Evangelista, era mais manso e teve uma vida flauteada. Morreu velho e de morte natural. Filho de Zebedeu, irmão de Tiago Maior e eventualmente sócio de André e Pedro no negócio das pescas, seria o mais novo dos doze apóstolos do Nazareno, segundo consta. De pescador quiçá analfabeto, fez-se teólogo e escritor. De evangelho e epístolas, apocalíptico então. Discípulo dilecto, João, o que não é nosso, era aquele a quem Jesus amava, o que se lhe aninhou no peito durante a Última Ceia, está nos retratos. O assunto continua a prestar-se, ainda hoje, às mais diversas e variadas.

No meu tempo de Fafe, quanto a santos populares, o São João era um hospital muito grande no Porto, felizmente com a camioneta da João Carlos Soares a passar-lhe à porta. Tínhamos, isso sim, o Santo António da minha rua, o São Pedro da Recta e creio que ainda frequentei o São Pedro da Granja. Quanto ao resto, deixe estar, que está bem.
O mais que se sabia do São João eram uns versinhos muito antigos que certamente pertencem ao cancioneiro fafense e era de norma cantar à mesa na noite de passagem de ano, quando já estavam todos mais para lá do que para cá. Assim fazíamos na nossa família. Insisto, para quem não é de Fafe: fafense deve ler-se e dizer-se fafénsse. E os versinhos contavam mais ou menos assim:

O São João, ó dlindlindlim,
tem um carneiro, ó dlandlandlam,
com dois guizos no pescoço.
E quando toca, ó dlindlindlim,
o guizo fino, ó dlandlandlam,
também toca o guizo grosso.

P.S. - Publicado originalmente no dia 22 de Junho de 2019. Hoje, 27 de Dezembro, é Dia de São João Evangelista.

Tentação

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 26 de dezembro de 2021

Para cima e para baixo

Para baixo todos os Santos ajudam. Para cima costumam ser os Antunes.

Mais vale quase do que realmente

A família é uma coisa muito estranha. Já repararam que o mais forte laço familiar acaba por ser aquele que une as pessoas que "é como se fossem da família"?  

A família

Tinha realmente uma família numerosa: sete filhos, vinte e três netos, quarenta e sete bisnetos, dezassete trinetos, duas tetranetas e uma trotineta. 

A César o que é de César, disse ele

César e Florinda divorciaram-se. Sete meses de casados a dividir ao meio: um LCD, oito CD, vinte DVD, dois telemóveis, um cartão de crédito, um porta-chaves, duas canecas, um prato, duas colheres, um frigorífico avariado e uma Ford Transit em razoável estado de conservação. César levou tudo. Na Ford Transit. Disse: a César o que é de César, adeus o que é de adeus. E arrancou.

O melhor amigo

Os Sousas do sexto-direito têm um cão. O cão é o melhor amigo do homem. O melhor amigo da mulher é o Gustavo da Tabacaria.

Nunca por amor

Já ia no sétimo matrimónio e garantia que nunca casara por amor. Por interesse então?, perguntavam-lhe. Que não. Por dinheiro? Também não. Explicava que casou sempre por... acaso. 

Um homem de famílias

O casamento, para ele, era tudo. Aliás, tinha dois. Ao mesmo tempo.

P.S. - Hoje, 26 de Dezembro, é Dia da Sagrada Família.

Um boxevista no meio da ponte

Foto Hernâni Von Doellinger

Guardo gratíssimas recordações de São Clemente de Silvares. No Ademar, tasco praticamente gourmet e tão caro quanto excelente, com a ramadinha à porta e lá dentro o vinho a refrescar no poço, eu costumava encontrar o Zé Cão, que tinha trabalhado com o meu pai na Fábrica do Ferro e era o homem mais alto do mundo. Pelo menos era o homem mais alto de Fafe e arredores, e não há mundo melhor do que aquele. O Zé Cão, sentado, os joelhos batiam-lhe nos queixos. Era altíssimo, pele e osso, vagaroso, comovido, desengonçado, gentil, decilitrado, só, pobre, criança em corpo descomunal, com uns sapatões de palhaço e sempre agarrado à caneca de verde tinto, que naquelas mãozonas mingava até parecer uma xícara de casinha de brincar. Mãos hirsutas, nodosas e honestas. O Zé Cão era um homem com zê grande.
O Valença, uma das glórias do futebol local, gostava de se meter com o Zé Cão. Na verdade, o Valença gosta de se meter com toda a gente, mas o que aqui interessa é o Zé Cão. E o Valença, quando o apanhava a jeito, obrigava o Zé Cão a contar vezes sem conta as suas vindas ao Porto, ao Royal e ao Derby, para aliviar o tesão a preço combinado, e daquela ocasião em que ele teve de se haver com um "boxevista", um "boxevista" a sério - a piada a espremer era mesmo fazer o Zé Cão dizer "boxevista" -, na parte de cima da Ponte de Luís I, exactamente por causa do putedo. E o Zé Cão ganhou. O Zé Cão fazia os gestos como foi, a mando do Valença, disparava ganchos e uppercuts, cruzados e directos, era um campeão sem sair do seu canto, a lutar por merecer mais um quartilho que uma alma caridosa lhe pagasse.
Lembro-me bem. O Zé Cão de São Clemente, o nosso gigante bom. E acabo de pensar que nem é nada Zé Cão: para os devidos e legais efeitos, passa doravante a ser Zecão, de Zeca grande, tão grande como o seu imenso coração.


P.S. - Publicado originalmente no dia 8 de Abril de 2012 e mais tarde sob o título "Quando o Zecão de Fafe bateu no boxeur do Porto". Hoje, 26 de Dezembro, é Boxing Day, que por acaso tem nada a ver com boxe e, quando calha em fim-de-semana, passa para segunda-feira.

De Pandora a Paulo Macedo

Pandora era a primeira mulher, a mulher perfeita, criada por Hefesto e Atena, com a mãozinha de todos os outros deuses, cada qual conferindo-lhe um dom, sob régua e esquadro de Zeus. Pandora era "a que tudo dá", "a que possui tudo", "a que tudo tira". Pandora foi feita de encomenda para agradar aos homens. Depois tomou conta da Caixa, ou da Boceta, como dizem os cultos e alguns depravados, e hoje em dia é Paulo Macedo.

Caixa do Evaristo

Quando abriram a caixa de Pandora, estava lá dentro o Evaristo. Foi um escândalo! 

Homens que vestem boxers

Um estudo de cientistas americanos publicado aqui há uns anos na revista Human Reproduction considerava que os homens que normalmente vestem boxers têm mais espermatozóides. A ideia já tem barbas, mas a palpitosa notícia foi-me então dada pelo nosso jornal Público, sempre atento a estas extraordinarices. Não me vou dar ao trabalho de procurar, mas tenho a certeza de que o estudo científico em questão contradiz um outro estudo científico, americano evidentemente, que prova que os boxers prejudicam os espermatozóides. Como se sabe, os estudos científicos, sobretudo na América, tanto podem ser patrocinados por fabricantes de boxers como por fabricantes de slips - é a lei da livre concorrência, pelo menos no reino das cuecas.
Fixemo-nos, porém, no âmago da notícia, nos boxers. Será abusivo concluir que, se um homem com boxers tem mais espermatozóides, um homem sem cuecas de qualquer espécie tem muitos mais? E as famigeradas trusses? E a tanga, como é? E o fio dental, prejudica? E um nudista a tempo inteiro, o que é que ele há-de fazer ao mais que certo excedente de espermatozóides, que às tantas até lhe saem pelas orelhas? E mulher que use boxers, como é que fica de espermatozóides?
Por outro lado, homens que vestem boxers chamam-se, por norma, "segundos". É do boxe.

Que é a poesia mais que o boxe, não me dizes?

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 25 de dezembro de 2021

Uma cunha ao Pai Natal

Neste Natal ofereceram-me onze livros. Está certo: gosto muito de ler e parece que toda a gente sabe que eu gosto muito de ler. Mas, valha-me Deus, eu também preciso de peúgas, cuecas e pijamas como as outras pessoas...

Presentes de Natal

Ele, desapontado: - Tinha-te pedido um par de sapatos...
Ela, desafiante: - E um par de cornos não te serve?...

Um grande igualmente e uma boa continuação


na
nata
natal
natação
natátil natado
natalino nateiro
natalense natalício
natalidade nateirado
natário natatório natadeiro
batatascozidascombacalhau
na
na

O fim do Natal é muito triste

O triste do Natal é o fim. Terminasse o Natal em m, Natam, terminasse o Natal em x, Natax, terminasse o Natal em y, Natay, terminasse o Natal em z, Nataz, e, quer-se dizer, o fim do Natal até teria alguma piada. Agora, terminar em l, Natal, um esquelético tracinho ao alto, um pauzinho desamparado armado em guarda-redes, é realmente um fim muito triste. 

Consoada

Compareceram todos e respectivas: o Sr. Moura, o Sr. Bragança, o Sr. Almeida, o Sr. Maia, o Sr. Castelo Branco, o Sr. Guimarães, o Sr. Paredes, o Sr. Abrantes, o Sr. Monchique, o Sr. Évora, o Sr. Braga, o Sr. Lamego, o Sr. Leiria, o Sr. Almada, o Sr. Faro, o Sr. Viana, o Sr. Beja, o Sr. Moura e o Sr. Baião. Eram um grupo bastante homogéneo e deveras representativo. Inesperadamente apareceu também o Sr. Antunes, e respectiva. Ele é preciso ter lata...

Mobiliário urbano (propriamente dito) 219

Foto Hernâni Von Doellinger

Tântalo, filho de Plota

Muitos séculos antes de ser o elemento químico com o número atómico 73 da classificação periódica, com o símbolo Ta, metal raro, muito dúctil e maleável, usado no fabrico de ligas metálicas, de filamentos de lâmpadas de incandescência (afilamentos das alâmpadas, como dizia o Pereira), especialmente nas sujeitas a vibrações, devido à sua grande tenacidade na forma de filamentos, segundo reza, entre parênteses à parte, o Dicionário da Língua Portuguesa 7.ª Edição, da Porto Editora, Tântalo foi um mitológico rei da Frígia ou da Lídia, casado com Dione. A geografia daquele tempo era incerta, os registos de casamento é que não, e os nomes são um mimo. Tântalo seria filho de Zeus e da princesa Plota e foi pai de Pélope e Níobe. E é também um suplício. 

P.S. - No dia 25 de Dezembro de 1882, a companhia de Thomas Edison iluminou pela primeira vez uma árvore de Natal com lâmpadas elétricas nos EUA.

Carlos Magno, filho da Berta dos Pés Grandes

Carlos Magno nasceu no dia 2 de Abril de 742, filho de Pepino o Breve e de Berta de Laon, também conhecida como Berta dos Pés Grandes. Foi rei dos Lombardos e rei dos Francos e primeiro imperador do Sacro Império Romano, entre outros empregos e honrarias. Mais papista do que o Papa quando lhe dava jeito, conquistou meia Europa e teve, que se saiba, pelo menos quatro mulheres - Desiderata, Hildegarda, Fastrada e Luitgarda - e seis concubinas. Foi pai de vinte filhos: Amaudru, Pepino o Corcunda, Carlos o Jovem, Adelaide, Rotruda, Pepino de Itália, Luís I o Piedoso, Lotário, Berta de França, Gisela, Hildegarda, Teodrada, Hiltruda, Adaltruda, Rodaida, Rotaida, Alpaida, Diogo, Hugo e Teodorico. Parece impossível que em Portugal não tenha passado de presidente da ERC, a imprestável Entidade Reguladora para a Comunicação Social. 

P.S. - Carlos Magno foi coroado imperador do Ocidente no dia 25 de Dezembro de 800.

Mulheres de armas

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Traição

Natalino preferia a Páscoa. A família nunca lho perdoou.

Eu vi o Natal!

Subi ao farol e vi o Natal! Não vi nada, estava a brincar. Eu não subi ao farol.

E muitas propriedades

Ai que saudades que eu tenho dos bons velhos votos de um feliz Natal e um ano novo cheio de propriedades. Era outra fartura...

Um conto de Natal

Um conto de Natal era geralmente uma seca. Já um conto de réis eram mil escudos. Uma pipa de massa naquele tempo, é preciso que se note.  

Oh!, oh!, oh!

Foto Hernâni Von Doellinger

Until the fat lady sings

Já não há na ópera senhoras gordas como havia antigamente. Agora as senhoras da ópera são magras, geralmente bonitas e algumas até boas como o milho. A mim, que sou melómano e purista, faz-me diferença, desconcentra-me.

P.S. - No dia 24 de Dezembro de 1871 estreou-se, no Cairo, a ópera "Aida", de Giuseppe Verdi. A 24 de Dezembro de 1920 o tenor Enrico Caruso cantou em público pela última vez, em "La Juive", de Jacques Halevy, na Metropolitan Opera de Nova Iorque. E em 24 de Dezembro de 1951 foi apresentada na cadeia norte-americana NBC a ópera "Amahl and the Night Visitors", composta propositadamente para televisão pelo italiano Gian Carlo Menotti.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Que é que tinha o Barnabé?

Foto Hernâni Von Doellinger

Que é que tem o Barnabé que é diferente do outro? Para começar, é baixinho, abreviado como estampa. Por isso o Senhor Barnabé ele próprio se resume, humilde, e diz que o povo todo o conhece por Bé, e é assim que gosta de ser chamado, contou-me ele. Bé. Estão a ver aquele homenzinho gentil, doce, dez-réis de gente num ar pândego de pinto-calçudo, sacola de merenda a tiracolo, sempre mortinho por concordar com tudo e com todos, estaca aqui para falar com um, estaciona ali para conversar com outro, e na cara, em vez de cara, um sorriso maroto, cândido, inextinguível? Estão a ver? É o meu Senhor Bé. Eu e Senhor Bé partilhamos todas as manhãs o Passeio Atlântico de Matosinhos e suponho que somos amigos. Há também quem o conheça por "São Pedro da Cova", porque é de lá que ele vem diariamente de autocarro para passear vagaroso a borda do mar. Nos seus oitenta e picos bem medidos, são quase duas horas de viagem para cada lado, com transbordo, todos os dias ou quase, mas sem lamúrias. O Senhor Bé - que também se lembra, como eu, de quando Fafe e São Pedro da Cova andaram à pancada por causa da bola - faltou-me ao convívio no tempo de estado de emergência, mas logo que pôde tirou outra vez o passe e voltou. Diz que estava cheio de saudades.
Eu contei-lhe do outro Barnabé, que dava dois dele, ou três. O Senhor Barnabé de Fafe, funileiro de alto gabarito, morador e estabelecido naquele escondidinho do Santo Velho e músico vitalício da Banda de Revelhe. O Senhor Barnabé fafense devia ser uma enorme despesa em farda e tocava tuba porque não havia instrumento maior, tirando talvez o bombo, e a tuba vinha-lhe realmente por medida. Quanto ao Senhor Bé, que certamente não gastaria metro e meio para um fato, eu às vezes até me ria imaginando-o, pequenino e gaiato, a tocar pífaro.
Que se segue? Aqui há coisa de três meses o Senhor Bé tornou a faltar-me e eu, confesso, escarmentado com o desaparecimento da minha abençoadora das 7h30, fiquei com medo de perguntar por ele. Mas três meses são três meses, estamos no Natal, e ontem ganhei finalmente coragem. Fui tirar nabos do púcaro junto de outro dos habitués do Passeio, e ouvi o que não queria. O Senhor Bé não vem mais. Morreu. Exactamente há três meses. Foi mudar uma válvula ao coração "e ficou na máquina", disse-me o amigo. Ficou na máquina. Assim.
Quer-se dizer: o Senhor Bé morreu e eu, palavra de honra, acho isto muito mal organizado.

Fulanos, beltranos e romanos

Foto Hernâni Von Doellinger

Aproveite o Natal: vá para a cama!

Aproveite estes dias abençoados, ou a quadra, como muito bem dizem os mais fervorosos natalistas. Fique em casa, leia, escreva, pense, e todas as tardes durma um sono, ou dois, consoante a disposição e a companhia, e dormir é aqui uma forma de dizer. E ouça a chuva a bater à janela. Mas não abra se bater leve, levemente, que a chuva não bate assim: é de certeza o Neves, e o Neves é um chato do caralho.

O Rodolfo das bicicletas

Foto Hernâni Von Doellinger

Intervenção siderúrgica

Submetido de urgência a uma intervenção siderúrgica, não sobreviveu. A língua portuguesa é deveras traiçoeira... 

P.S. - A Siderurgia Nacional foi criada no dia 23 de Dezembro de 1954.

As orelhas

As orelhas. As orelhas são muito úteis. As orelhas servem para segurar o lápis, o cigarro e o raminho de alfádega, que já ninguém sabe o que é. As orelhas centram muito bem a cabeça e estão no sítio certo para se puxar as orelhas. Hoje em dia é proibido puxar as orelhas nas escolas, só se for aos professores. Os puxões de orelhas aos professores são gravados no telemóvel e mandados, com uma grande risota, para o YouTube. Das escolas saem cada vez mais orelhudos. E entram no YouTube.
As orelhas produzem cera, cotão e pêlos, materiais altamente combustíveis. As orelhas ardem: se for a direita, é porque estão a dizer bem de nós; se for a esquerda, é porque nos estão a rogar na pele. Se arderem as duas ao mesmo tempo, o melhor é chamar os bombeiros. As orelhas também deitam fumo sem fogo, pelo menos nos desenhos animados.
As orelhas doem e quando doem chamam-se ouvidos e muitos nomes feios. As orelhas são vizinhas de porta do esternocleidomastóideo, que é o músculo mais famoso do mundo à pala do Vasquinho da Anatomia. As orelhas, em casos extremos, servem também para a nossa alimentação. Em tempos de crise como os que vivemos recomenda-se com molho-verde.
Às vezes as orelhas dão jeito para ouvir. Ouvir é bom e deve-se às orelhas. Há governantes que não são governantes porque não ouvem. Por exemplo: as orelhas dos alegados presidentes dos Estados Unidos da América e do Brasil são orelhas a fingir, orelhas de mercador. As orelhas do deputado Ventura, outro por exemplo, são orelhas de burro. Eu gosto muito de orelhas e tenho duas. De momento.

P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Maio de 2012. No dia 23 de Dezembro de 1888 o pintor Vincent van Gogh cortou com uma faca a própria orelha esquerda depois de uma discussão com o seu amigo Paul Gaugin. Conta-se que, depois deste lindo serviço, van Gogh entregou a orelha decepada a uma prostituta, mas há outras teorias e versões sobre o assunto.

Só destes, tenho sete 157

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Pegada ecológica

Tinha uma pegada deveras ecológica. Fosse aonde fosse, ia em pezinhos de lã.

A pegada

Deixou de andar a pé e passou a andar de carro. Para diminuir a pegada.

P.S. - Hoje, 22 de Dezembro, é Dia da Consciência Ecológica. No Brasil.

A influência dos astros na vida das pessoas

Perguntavam-lhe pelo signo e ele respondia, todo lampeiro: - Sanitário. Efectivamente ele passava a vida na retrete.

Superstições

É uma fraqueza que eu tenho: não enfrento o horóscopo sem primeiro ver como é que está o dia.

Grávidas de gémeos

As grávidas de gémeos dão à luz entre 21 de Maio e 20 de Junho. 

Nostradamus, vostradais, elestradão

Nostradamus, estão a ver? Se não estão a ver, pensem em Orson Welles e chegam lá. Ah!, também não estão a ver Orson Welles. Não interessa, são muito antigos. Michel de Nostredame foi um apotecário e médico francês da Renascença que praticava muito bem a alquimia e rondava satisfatoriamente o ocultismo. Escreveu um famoso livro em versos intitulado "As Profecias", o qual, como o próprio nome indica, conteria previsões codificadas acerca do futuro, e tão codificadas seriam que só alguns muito poucos é que continuam a acreditar naquelas cousas sem sentido. Ou, a posteriori, com o sentido que se lhes quiser encaixar.
Nostradamus, nome latino e artístico, padecia de epilepsia psíquica, de gota e de insuficiência cardíaca. Se a isto tudo somarmos a habilidade para a leitura dos astros e das cartas de tarô, facilmente perceberemos que o artista viveu e morreu antes do tempo. O nosso Miguel seria o convidado ideal, diário, bidiário, ou talvez até terciário, para todos os programas das manhãs e das tardes das televisões generalistas portuguesas de hoje em dia.
A mais eficaz profecia de Nostradamus acabou por ser, lamentavelmente, a do seu próprio falecimento. Em 1566, dia 1 de Julho, inesperada véspera do definitivo dia 2 de Julho, estava o profeta cada vez mais à rasca derivado ao dramático agravamento da gota e da artrite, chamou o seu secretário e, entre trovões e relâmpagos e talvez sarças ardentes de febre, disse-lhe o que já lhe dissera mais do que uma vez: de amanhã não passo. E finalmente acertou.

P.S. - Publicado originalmente no dia 21 de Dezembro de 2019. E atenção: Renascença não quer dizer Rádio Renascença. Para os crentes do Zodíaco, bem-vindos a Capricórnio!

Deus ex machina 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Jacuzzi!

Contra a injustiça e a mentira, o indignado escritor tirou a roupa e gritou: - Jacuzzi! E entrou para a história.

P.S. - "J'accuse" é o título da carta aberta de Émile Zola ao presidente da República Francesa a propósito do caso Dreyfus e publicada no jornal L'Aurore no dia 13 de Janeiro de 1898. No dia 22 de Dezembro de 1894, Alfred Dreyfus fora julgado e injustamente condenado por traição, por um tribunal marcial francês. O processo revelar-se-á fundado apenas no antissemitismo das Forças Armadas.

Trofafafe, trofafafe, trofafafe...

Houve um tempo em que Fafe era o fim do mundo. Tenho testemunhas. Gente que se metia no comboio em Ouagadougou ou em Anchorage, vamos um supor, às tantas desprecatava-se, passava pelas brasas e quando acordava já estava em Fafe, porque não havia volta a dar, o mundo acabava ali, numa parede à frente do nariz, rés-do-chão da Rua do Retiro. Era também o fim da linha da CP. Ou o princípio, consoante o ponto de vista. Mas, chegando a Fafe, saía-se do comboio e da estação, subia-se a rampa até ao Zé da Menina, respirava-se fundo, olhava-se para o Largo e fazia-se vida. Se forem num instante à minha terra, ainda vão encontrar quem conte como fez. Perguntem ao Gino.
Depois a automotora começou a madrugar só para mim, para me trazer ao namoro ao Porto e tornar-me a casa à noite, Fafe desistiu do comboio e queixou-se muito quando lho "tiraram".
Hoje o fim do mundo é em Guimarães. É lá que está o muro. Para além dali, nada. É um fim do mundo indoor, asmático e com luzinhas de discoteca, uma boa merda à beira do nosso fim do mundo antigo, que era outra categoria - ao ar livre, com couves, tomates, cheiro a alfádega e só saúde. Ainda por cima, o nosso fim do mundo era feminino: dizia-se em Fafe, não sei explicar porquê, "a" fim do mundo.
O mundo está, portanto, mais pequeno. Isto é científico. Mingou 14 quilómetros. Este aperto mundial, de mais a mais num tempo em que os bons vão caindo como tordos, daria jeito para que nos aconchegássemos um bocadinho, trocássemos olás de boca, para que nos abraçássemos se fosse o caso, e no entanto apartamo-nos cada vez mais uns dos outros, de cabeças enfiadas em caixinhas de cores com teclas ou figurinhas de arrastar com os dedos. E agora é a pandemia a fazer-nos ilhas. Parece que estamos oficialmente proibidos uns dos outros.
Ia-me esquecendo: a outra conclusão a tirar, e igualmente científica, é que Fafe já não é deste mundo.

P.S. - Publicado originalmente no dia 23 de Novembro de 2013. No dia 22 de Dezembro de 1859 foram aprovados os estatutos da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses, antecessora da CPA espécie de onomatopeia do título era muito usada no tempo em que havia comboio.

O amarelo da CP

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Entre a bisca lambida e o bilhar às três tabelas

Era um atleta de mão cheia. Dele se dizia, e com razão, que dava cartas no jogo de bilhar. Passou ao lado de uma grande carreira, exactamente porque nunca percebeu que bisca lambida é uma coisa e as três tabelas são outra. As duas juntas, com efeito, não fazem modalidade.

P.S. - Hoje, 21 de Dezembro, é Dia do Atleta. No Brasil.

Wally, o atleta

Foto Hernâni Von Doellinger

Miss Universo

Miss Universo desejou paz mundial, amor e pão para todas as crianças. Franquelim desejou Miss Universo.

Mar, metade da minha alma é feita de maresia

Foto Hernâni Von Doellinger

Quando a "puta" tocava

A "puta" tocava e Fafe desatava a correr em direcção aos Bombeiros. Os homens largavam tudo: trabalho, mesa, cama, mulher e até os socos pelo caminho. Havia os que iam de bicicleta e os que apanhavam boleia de motorizada. Carros paravam para levar desgraçados vindos das lonjuras da Cumieira ou dos campos do Sabugal e já com os bofes de fora. Depois, havia o Casimiro das Caixas, que começava o dia a fazer as palavras cruzadas no jornal do Café Chinês e chegava na sua velha furgoneta. Mas quando ela tocava era para todos. Tocava também para os curiosos, para os que iam apenas ver, saber onde era o fogo. E faziam-se úteis. Apanhavam e arrumavam as bicicletas e as motorizadas que os bombeiros largavam em pleno andamento ao chegarem ao quartel e um mirone encartado ainda tinha de estacionar em condições a carrinha do Casimirinho, deixada sempre à frente dos portões a estorvar a saída dos carros de incêndio. O Casimiro da Caixas tinha vindo de Guimarães, onde decerto nascera, como talvez Portugal, e nunca se descolou daquela pronúncia carregada que nos fazia rir a todos.
Ela tocava e eu, miúdo, lá estava. O fogo era uma aflição. Olhava para aqueles homens, esbaforidos, trementes, brancos como a cal, a entrarem na "primeira viatura" apenas meio vestidos, a enrodilharem-se nas calças que não enfiavam ou nas galochas que levavam ainda nas mãos, cheios de urgência para enfrentarem as labaredas, e via heróis. Exactamente: heróis, muito melhores do que os dos livrinhos de cobóis e dos filmes, nem que fosse o Steven McQueen anos mais tarde na "Torre do Inferno". Os meios eram escassos, a formação era elementar, Fafe era uma terra pequena, mas aqueles homens tinham um coração bombeiro do tamanho do mundo. E o seu maior medo, que eles não confessavam, era chegar lá e o fogo já estar apagado...
Tão grande era o coração, grande demais para um homem só, que depois tinha de ser repartido. Ser bombeiro era coisa sanguínea, "doença" de família. Irmãos, pais e filhos, netos, tios e sobrinhos, primos, todos sofriam do mesmo bem. Creio que hoje ainda é um bocado assim.
Naquele tempo, eram os do Santo, os do António Quim (sim, o do cinema...), os Moleiros, os Costas do Assento, os Feira Velha, os Funileiros, os Quintos. Eram também o Agostinho Cachada, o Augusto Susana, o Frescaragem, que tinha lábia de leiloeiro, o Nogueira da Ponte do Ranha, que "fardava muito bem", o Zé dos Alhos, o Zé Sacristão, o Nelo Chapeleiro, o Chaparrinho, o Ferreira "Puta Velha", o Armando "Salazar", que era o viagra em pessoa, o enorme Sr. Humbertino, que trabalhava para os Summavielles e já só se apresentava no dia da Festa dos Bombeiros, tal como o Sr. Matias e como o Joãozinho motorista, que conhecia como ninguém as manhas do Opel descapotável e apanhava todos os anos uma carraspana de tal ordem que era preciso levá-lo a casa.

(E havia os espontâneos, que afinal não eram tão espontâneos assim. Moravam ali à porta e estavam sempre de prevenção para uma emergência que o fosse realmente. Faltava um motorista, a saída estava a atrasar-se? - era só chamar por eles e eles avançavam: lembro-me do Fredinho Bastos e do irmão Quinzinho, do Varinho Dantas ou do Toninho da Luísa, que tinha piada fina e eu gostava de imaginar DaLuísa derivado ao comediante americano Dom DeLuise, mas isso já é outro filme. Se calhasse, enfiavam um blusão e um bivaque, só para despaisanar, e avançavam a todo o gás, bombeiros como os de exame feito e papel passado e ainda mais voluntários, mas qual seguro qual carapuça! Ser-se bombeiro era efectivamente um estado de alma. E estes eram bombeiríssimos de primeira.)

Mas a pinga. Naquele tempo, ser bombeiro dava muita sede e a água era toda para apagar incêndios. De modo que, conscienciosos, os voluntários fafenses, regra geral, decilitravam no verde tinto com apreciável pertinácia. O meu avô da Bomba, que era quarteleiro e videirinho, até montou um pequeno tasco que foi um sucesso. O meu vizinho Agostinho Cachada era um dos principais clientes, mas tinha um porém: pelava-se por bagaço e quando ia para casa nunca mais lá chegava, porque, mesmo depois de o meu avô fechar o tasco, o bom do Sr. Agostinho voltava sempre para trás para beber mais um. Era certinho. Uma noite, para lhe evitar a canseira e apressar o sono, o meu avô foi atrás dele até ao Paredes, já a meio caminho, com a garrafa da aguardente escondida debaixo do capote...

Quando a sirene tocava, também as mulheres de Fafe se sobressaltavam. Era a "puta" que lhes tirava os maridos de casa, da cama. E eles iam para os braços da "outra". Os Bombeiros eram uma tremenda paixão, a "amante" perigosa que levava tudo o que queria. E elas tinham medo que um dia os seus homens não voltassem. Tolices de mulheres. Então os heróis não voltam sempre?
Às vezes, não. Às vezes o herói faz o que tem de fazer, isto é, faz o que fazem os heróis, e depois desaparece em direcção ao sol poente. Desaparece e nunca mais.


P.S. - Publicado originalmente no dia 11 de Novembro de 2011. Hoje, 21 de Dezembro, é Dia das Palavras Cruzadas. E eu acho que a memória do grande Casimirinho bem justifica esta enésima repetição...

Meu querido Inverno

Foto Hernâni Von Doellinger

Um bobsleigh em segunda mão

No tempo dos sonhos eu tive um: comprar um bobsleigh em segunda mão, pegar na mulher, no filho e no futuro e mudarmo-nos os quatro para Santiago de Compostela, que era o estrangeiro que me estava mais à mão e nós gostávamos razoavelmente derivado às ruinhas, às tapas e às cañas e por a bem dizer nem sequer ser estrangeiro. Melhor dito, gostamos muito. Mas hoje em dia: a Galiza anda tão à rasca como a gente, já não é oficialmente estrangeiro e saraiva por mais que saraive, ainda que em galego, não é neve nem embala. Ia fazer o quê com o bobsleigh na Praça do Obradoiro? Do Obradoiro, que nome extraordinário. Ainda por cima, os gandulos do lado de cá cortaram-me as vazas, entesaram-me até ao cutão. Desisti portanto do bobsleigh e tirei o passe do metro para a Senhora da Hora. Segundo julgo saber, na Senhora da Hora não neva há variados anos por uma questão de princípio. Que se segue: de bolsos vazios e sonhos roubados, fico olimpicamente em casa à espera do Verão de que não gosto. Sem bobsleigh, sem ruinhas, sem tapas e sem cañas. Uma seca que só visto.
Sou dado a invernos. Melhor que chova em Santiago. E que neve e que gele. Ou então nada disso, que ao ponto a que chegámos também não interessa, mas Santiago, sempre Santiago, mesmo sem bobsleigh e ainda que faça sol. Um dia destes lá iremos, eu, a mulher, o filho e o futuro - pobres e a pé, se Deus quiser, mas vamos. E tem de ser rápido, antes que uns certos e determinados bandalhos nos matem à fome em primeira mão.

P.S. - Publicado originalmente no dia 9 de Fevereiro de 2014. Entretanto comprei um carrinho de mão praticamente novo e temos dado as nossas voltas por aí. Hoje entra o Inverno, e estou nas minhas sete quintas...

Águas quentes e frias

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Uns para os outros

José deu uma facada a António. António deu um tiro a José. É. Temos de ser uns para os outros. 

Orgia (o princípio)

Alguém disse: temos de ser uns para os outros. E assim começou a orgia.

A caridade tem dias

Antigamente a caridade tinha dia certo, e era um descanso. Às sextas-feiras, vamos supor, os pobres manquelitavam de porta em porta pedindo "uma esmolinha por alma de quem lá tem". Os pobres da parte de fora da porta eram uns desgraçados muito rotos e muito sujos e eram assim para se distinguirem dos pobres da parte de dentro da porta, que já tinham em cima da "cristaleira" umas moedinhas negras separadas e preparadas para a função. Éramos todos pobres, dum e doutro lado da porta, uns mais, outros menos, e, à falta de quem governasse por nós, em Lisboa ou na Câmara Municipal, nada mais nos restava senão sermos uns para os outros. Às sextas-feiras, vamos supor. O resto da semana, não.

(A "cristaleira" tinha sido comprada em terceira mão e paga em honradas prestações.)

Naquele tempo os ricos tinham os seus próprios pobres, privativos, pessoais porém transmissíveis. Os pobres eram deixados em herança. Ter pobres por conta era, pelo menos em Fafe, inequívoco sinal exterior de riqueza. Os pobres eram exibidos, bastas vezes à porta da igreja, como gado preso à argola do tasco em dia de moscas e feira semanal. Para o senso comum, quantos mais pobres alguém tivesse mais rico era. Os pobres eram, portanto, uma necessidade da Nação para que os ricos prosperassem. Quantos mais pobres Portugal tivesse e quanto mais pobres fossem os pobres portugueses mais ricos seriam os nossos ricos e isso certamente era bom para o Produto Interno Bruto.

Isto é: a pobreza convinha-nos, aos pobres. A pobreza era o progresso da Nação. O regime ensinava-nos desde os bancos da escola que felicidade era sermos pobres mas honrados e termos as unhas das mãos sempre limpas. E isso deixava-me cheio de pena dos ricos, infelizes, principalmente dos ricos muito ricos que ainda por cima tinham as mãos sujas.

(Os ricos, pelo menos os de Fafe, não davam a roupa nem o calçado que já não lhes serviam. Vendiam a roupa e o calçado, a pronto, aos pobres da parte de dentro da porta. Os pobres da parte de dentro da porta, passados alguns meses de uso, davam aos pobres da parte de fora da porta a roupa e o calçado que tinham comprado a pronto aos ricos. Às sextas-feiras, vamos supor. O resto da semana, não.)

Graças a Deus, isto era só antigamente.

P.S. - Publicado originalmente no dia 5 de Setembro de 2021.

Ser-se pobre é efectivamente desagradável

Ser pobre é fodido. Mas, para quem não sabe o que é a pobreza, "pobre" é apenas título de jornal, cinco caracteres sem pessoas dentro. Pessoas de pele e osso. O jornal Público anunciava no tempo da troika e de Pedro Passos Coelho: os "pobres passam a ter acesso a refeições take away em 950 cantinas em todo o país". Vejam bem o que se escrevia e escreve em Portugal e já vamos no século vinte e um, o tal que nem deveria existir se houvesse respeito pelas profecias: os "pobres" têm outra vez direito à senhazinha da sopa dos ditos. Se os pobres morrerem de fome é porque não deram o nome. Ou então porque não sabem o que quer dizer take away. Problema deles. Os pobres não são leitores do Público.

Havia o clero, havia a nobreza e havia o povo. E isto estava muito bem percebido. Depois apareceu a burguesia, que meteu um bocado de nojo, amantizando-se com o clero, com a nobreza e com o povo, consoante, porque a burguesia é muito dada a certas e determinadas promiscuidades. E a seguir, mas isto já foi um a seguir que demorou muito tempo e ainda está a doer, veio o proletariado, lá do fundo do fundo do clero, da nobreza, do povo e da burguesia que estava distraída a chá e torradas. E do sarro dos pés do proletariado, tipo cogumelos, renasceram os pobres, que aqui atrasado eram uns desgraçados que em dias certos batiam à porta da nossa casa, em Fafe, a pedirem "uma esmolinha por alma de quem lá tem". Porque nós éramos pobres, mas menos pobres do que eles.

Sei muito bem como tudo isto já funcionou em Portugal. Antes do 25 de Abril de 1974, lembram-se? E era desde os bancos da escola - da Escola Primária - que se aprendia, na carne, e com a crueldade própria daquela idade, a diferença entre ricos e pobres. A diferença entre os que tinham tudo e os que não tinham nada. A diferença entre a pasta de cabedal e a sacola de pano. A diferença entre os que escreviam em cadernos e os que ainda usavam a lousa. A diferença entre os meninos ricos que nunca apanhavam do professor e os miúdos pobres que levavam pancada de criar bicho. A diferença entre o sapatinho de verniz e as chancas ou o pé descalço. A diferença entre os que traziam lanchinho com pãezinhos com manteiga e marmelada e os que pediam a senha para ir comer uma sopinha. Pediam.

Exactamente: a sopa e a senha. Naquele tempo - no tempo em que os rapazes não se misturavam com as raparigas e os ricos também não se misturavam com os pobres -, as escolas não tinham cantina e havia muita fome. Havia uma espécie de cozinha, às vezes num edifício anexo ou próximo, e ali servia-se uma sopa. Assim era na minha Escola Conde Ferreira, em Fafe.
Para terem direito à sopa, os miúdos pobres pediam todos os dias uma senha, que era um pequeno quadrado de papel com um carimbo e um sarrabisco feito pelo professor armado em médico. Aqui há anos sugeri que o Governo de Passos Coelho copiasse tão peregrina ideia para o seu tempo: um carimbo na testa de todos os pobres, dos pobres pobres, para que o aparelho do Estado saiba imediata e inequivocamente quem pode comer a sopa.
Claro que já então - no antes do 25 de Abril de 1974 que de verdade existiu - havia quem tivesse vergonha de ser pobre, quem tivesse vergonha de ser apontado publicamente como pobre, e preferia passar fome. Eu sei que não falta por aí quem sustente que fome é um conceito muito relativo, mas eu acho que é cada vez mais uma realidade copulativa. E só peço que, quando chegar a minha vez, quando me vierem entregar a minha misericordiosa dose de "alimentação, vestuário e medicamentos", façam o favor de me deixar também os caixotes de cartão. É que as noites estão cada vez mais frescas.

P.S. - Publicado originalmente, versão curta, no dia 16 de Fevereiro de 2012, sob o título "Os pobres". Hoje, 20 de Dezembro, é Dia Internacional da Solidariedade Humana. Vem mesmo a calhar: estamos em cima do Natal e precisamos de nos lembrar dos pobrezinhos, coitadinhos...

Batota na Fórmula 1


Já não bastavam o ciclismo, o atletismo, o halterofilismo, o futebol, o tiro, a natação, o basquetebol, o basebol, o ténis, o futebol americano, o judo, a canoagem, o bilhar, a luta greco-romana, o voleibol, o remo, a vela, o kickboxing, o chinquilho, a bisca lambida e a ginástica. Agora também a Fórmula 1.
O escândalo vai rebentar um destes dias, mas o Tarrenego! está em condições de adiantar o que lamentavelmente se passa com a especialidade rainha do desporto automóvel: estão a ver o ciclismo, aquela coisa do motorzinho escondido dentro da bicicleta a que os entendidos dão o curioso nome de doping mecânico? Pois na Fórmula 1 é exactamente o mesmo, mas completamente diferente.
Tanto quanto conseguimos apurar, por debaixo do tapete os pilotos - os pilotos batoteiros - têm disfarçado um pequeno alçapão que abrem sobretudo em recta, quando vão a mais de 340 km/hora mas não estão suficientemente próximos do carro da frente para poderem usar o DRS, doping legal de ultrapassagem. Abrem o alçapão, dizia, e chispam os pés no alcatrão como se estivessem a correr os 100 metros nos Jogos Olímpicos, chegando com este plus aos quase 390 km/hora, não sei se estão a ver como fazia o Fred dos Flintstones...
Especialistas anónimos chamam a isto doping humano. E o senhor Ecclestone está fulo. Diz que, com ele, de viagra para cima, tolerância zero... 

P.S. - Publicado originalmente no dia 3 de Julho de 2016. E estavam à espera de quê? Desenho do Nestinho (Ernesto Brochado), feito de encomenda para o Tarrenego!

Pegue-se num automóvel e faça-se um carro de corrida

Eu ia ver o Rali com o Fredinho Bastos. O Rali assim com merecida maiúscula inicial era um acontecimento emocionante pelo qual esperávamos ansiosamente durante um ano inteiro e que se dividia em três partes, como jogo e meio de futebol: a viagem até à Lagoa, sempre em modo de rali a partir de Medelo, a passagem do rali propriamente dito, que para nós os dois acabava logo após o sétimo ou oitavo carro, e a merenda que se seguia, nem que chovessem canivetes, pelo menos se os canivetes chovessem fechados. Eu, por mim, ficava ali a ver o resto dos concorrentes até ao fim, mas o Fredinho fazia questão de me ensinar a relatividade das coisas e a prioridade de umas sobre outras. "O rali já acabou, isto agora não é nada. Vamos mas é comer", dizia todos os anos, sem querer saber sequer a minha opinião. E lá íamos atacar o farnel, preparado com todo o carinho pela sua mulher - uma Senhora a quem devo muito mais do que apenas bolinhos de bacalhau e panados, aliás de categoria.
Eram outros tempos. Fazíamos o caminho de regresso até ao carro pela estrada do troço de competição, encostando à berma quando se aproximava o roncar de mais um motor, mas (o Fredinho tinha razão) aquilo era só bazófia, muito roncar e pouco motor. Dava tempo para tudo. Até para cumprimentar pilotos e penduras da segunda metade da tabela, que estavam no largo do famoso Santuário de Nossa Senhora das Neves ainda à espera da ordem de saída. O Fredinho conhecia aquela malta toda. Ele, Alfredo Bastos, também tinha sido corredor de ralis.

(Fafe, já aqui contei, era uma terra de partidos, de rivalidades tolas, de antagonismos pascácios. Era uma mania, como uma doença, uns por uns e outros por outros. Havia que ateimar por alguma coisa. Tínhamos os dois grupos de futebol - o Sporting Clube de Fafe e o Futebol Clube de Fafe -, que já não são do meu tempo, tínhamos e temos as duas bandas de música - Revelhe e Golães - e respectivos bandos de apaixonantes, tínhamos a Escola Industrial contra o Colégio, tínhamos o PS de Fafe pim e o PS de Fafe pam e o PS de Fafe pum, tínhamos a Rua de Baixo e a Ponte de Ranha, que de vez em quando também faziam faísca e, noblesse oblige, andavam à coiada, até tínhamos o Foto Victor e o Foto Jóia e as suas clientelas rivais, portanto a coisa mais natural do mundo era que a população fafense também se dividisse entre os dois fângios locais, o Fredinho e o Tangerina, embora só o Fredinho tenha feito carreira oficial, primeiro com o NSU creio que TTS e depois com o famoso Vauxhall Viva GT, marcando habitualmente presença em ralis, rampas e não me lembro se na velocidade de Vila do Conde. Para além disso, dava também uma mão como motorista dos Bombeiros, e aí, meus amigos, de sirene ligada, então é que era sempre a abrir. Desse tempo e dessas lides, do que eu mais gostava era do rali chamado Rali à Lampreia, pronto, já disse, achava e acho um piadão ao nome.)

Portanto o Fredinho sabia que, depois de Jean-Luc Thérier, Rafaello Pinto, Markku Alen, Hannu Mikkola (navegado por Jean Todt, o ex-chefe da Ferrari na F1 e ex-presidente da FIA), Ove Andersson, Sandro Munari, Bjorn Waldegaard, Jean Pierre Nicolas, Walter Röhrl ou Michèlle Mouton, pouco mais havia que realmente interessasse ver. As bombas já tinham passado: os Alpine Renault, os Fiat 124 Abarth, os belíssimos Lancia Stratos, os Fiat 131 Abarth, os Audi Quattro e até o Opel Ascona, que em Portugal, antes do 25 de Abril, se chamava Opel 1904 SR por causa da moral e dos bons costumes. Isto que não saia daqui, mas os que vinham a seguir a estes andavam menos em quatro rodas do que nós os dois, o Fredinho e eu, com uma perna às costas...
Nós íamos no Vauxhall verde e cinza que o Fredinho levara à Rampa da Penha, e eu fui lá a pé para ver, uns anos antes, no reinado do estupendo Chevrolet Camaro de Ernesto Neves. O icónico Vauxhall, preparado pelo próprio Fredinho e pelo avinhadíssimo Valdemar Mecânico, ou "Paredes", ainda mantinha as barras de protecção e os assentos e volante de competição. Era de uma incomodidade dolorosa, porque andávamos sempre nas horas, e de lado, mas extremamente seguro. Diziam ao Fredinho que ele conduzia muito bem. Ele respondia: "Toda a gente conduz bem até bater. Eu também."
O Rali em Fafe era a Lagoa e era um mundo. Só anos depois é que foram inventadas as outras classificativas, as que agora chamam milhares e dão nas televisões com saltos e tudo, ideia e obra original de Parcídio Summavielle, o pai, presidente da Câmara entre 1979 e 1997, uma sorte que nos aconteceu felizmente no tempo certo, e muito para além das corridas de automóveis.

P.S. - Publicado originalmente no dia 18 de Novembro de 2011. Hoje, 20 de Dezembro, é Dia do Mecânico. No Brasil. E eu lembrei-me do Valdemar...

Vê gigantes? São gigantes.

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 19 de dezembro de 2021

O Neves foi ver a neve

O Neves pegou na família e foi ver a neve. Não viu. A estrada estava cortada. Por causa da neve.

Offshore, se fashavore 284

Foto Hernâni Von Doellinger

Olha o caixadòclos todo satisfeito a ler

A senhora sentada à minha frente faz croché - que raro! Eu leio um livro. O resto do metro espreita o telemóvel, fala para o telemóvel, escreve no telemóvel, joga no telemóvel, tira selfies com o telemóvel, põe o telemóvel entre pernas, aconchegadíssimo às intimidades, em alarmante modo de vibração. O metro inteiro é um telemóvel amarelo de duas carruagens, dois refractários e razoáveis orgasmos. Como quem não quer a coisa, a senhora sentada ao lado da senhora sentada à minha frente que faz croché desvia um olho do telemóvel e procura-me a capa do livro. Chega lá. Abana a cabeça, sentenciosa, faz cara de caso, deita-me uns olhos, ambos, num misto de decepção e de censura. Percebo-a: não leio José Rodrigues dos Santos. Leio "Poesias Completas & Dispersos", de Alexandre O'Neill, calhamaço como os do outro, mas calhamaço sem culpa de autor, calhamaço que dá gosto. Folheio-o com o respeito e o cuidado de quem folheia uma bíblia. E é. Vou naquela parte em que O'Neill me diz "A estouvaca": deitada atravessada / na estrada / a malhada / vai ser atropelada / foi. Palavra do senhor.

P.S. - Publicado originalmente no dia 10 de Julho de 2018, então sob o título "Há palavras que nos beijam como se tivessem boca", segundo Alexandre O'Neill. Alexandre Manuel Vahia de Castro O'Neill de Bulhões nasceu no dia 19 de Dezembro de 1924 e nunca mais morreu.

Não posso viver comigo, pilar de ponte de tédio

Foto Hernâni Von Doellinger

Exagerações

Quando ouvia dizer que "não cabia um alfinete", ele ficava sempre a pensar que talvez houvesse ali um bocadinho de exagero...

Sobretudo

- Sobretudo ou principalmente?
- Com este frio, sobretudo...

Faz-te sorrir de ti mesmo, pescador chaplinesco

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 18 de dezembro de 2021

E se o Natal for uma fraude?

Portugal, 2021. Dezembro. Quase dois milhões de pessoas subvivendo abaixo do limiar da pobreza. Quase dois milhões e meio de portugueses em risco de pobreza ou exclusão social. Quase doze por cento da população empregada é pobre. Um milhão de trabalhadores a salário mínimo. Quase dois milhões de pensionistas da Segurança Social com pensões, de velhice ou invalidez, abaixo do salário mínimo. Mais de um milhão de desempregados, entre registados, desarriscados, clandestinos, envergonhados e vitalícios. Quase quarenta mil famílias que vivem em casas sem condições. Quase dez mil sem-abrigo recenseados, fora os milhares ignorados. Um vergonhoso número calado de trabalhadores imigrantes tratados como escravos, torturados, humilhados, brutalizados, ignorados farisaicamente pelo país em peso, quando não lançados sem dó nem piedade para o redondel dos cães racistas. Fome, frio, doença, abandono, solidão, miséria física e moral, despessoamento, indignidade. Dezembro. Portugal, quase 2022. 

P.S. - Hoje, 18 de Dezembro, é Dia Internacional dos Migrantes. Ou Dia Internacional das Migrações. Ou Dia Internacional do Migrante.

Era uma vez um país sem remorsos

Foto Hernâni Von Doellinger

O museu do meu bisavô Lindolpho

Um por acaso lembrou-me aqui atrasado do meu bisavô Lindolpho, pai do meu avô da Bomba e egrégia figura que infelizmente não conheci. Fui aos papéis. Lindolpho Von Doellinger, pedagogo, nasceu no Rio de Janeiro, Brasil, na freguesia de Santo António dos Pobres - tanto quanto consigo perceber na certidão de nascimento do meu avô, assento n.º 71, que preservo com devoção e fita-cola. Dos Pobres, e eu nunca tinha ligado. A minha vida começa finalmente a fazer sentido...
Que se segue? Fafe marcou o 10 de Junho de 2017 com a inauguração do Museu da Educação, em Silvares, dando estupenda serventia ao recuperado edifício da centenária Escola Deolinda Leite. Ora acontece que o primeiro professor desta escola deverá ter sido exactamente o meu bisavô (situemo-nos nos anos de 1892 a 1894), sendo certo que não parou por lá muito tempo - o que me faz lembrar uma pessoa que conheço muito bem. Ano e meio, se tanto, e já o "Sr. Lindolpho Von Doellinger" manifestava a sua "vontade férrea" de mudar de ares para "abrir uma escola particular denominada Santa Virgínia, em Fafe, por insistência de muitos pedidos de vários seus amigos", segundo leio num documento do sítio do Museu da Emigração e das Comunidades.
Outro por acaso fez-me descobrir que, provavelmente entre os anos de 1907 e 1912, o meu bisavô Lindolpho - a quem puseram uma alcunha que, por maldosa, aqui não repito, embora não me envergonhe - foi director do semanário político fafense "A Verdade". Quer-se dizer: isto anda tudo ligado, velho camarada...

P.S. - Publicado originalmente no dia 14 de Julho de 2017. Hoje, 18 de Dezembro, é Dia do Museólogo. No Brasil. Sobre o Museu da Educação de Fafe, em Silvares, informação aqui, aqui e aqui