sábado, 31 de julho de 2021
O especialiszt
Poesia o que tem de ser é orgasmo
Telessexo
Atento e vigilante
Quitério, que também não tem emprego, já estava farto de armazenar cotão nos bolsos e de jogar à sueca no Jardim do Marquês. Portanto resolveu começar a contar coelhos no Parque da Cidade. Uma actividade por certo ainda não remunerado, é preciso que se note, mas que o nosso homem tem uma enorme fezada de que virá a sê-lo a breve trecho, na sequência do projecto que conta apresentar antes do Natal ao Dr. Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto, e que, no âmbito do Quadro Comunitário de Apoio Portugal 2020, vai enviar sem falta às primeiras horas do próximo dia 1 de Janeiro ao ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, a ver se já apanha também o Quadro Comunitário de Apoio Portugal 2021 e o Quadro Comunitário de Apoio de Portugal 2022, que isto é preciso marcar lugar. Entretanto mandou o currículo para a National Geographic. Se nem sequer acusarem a recepção, é sinal de que a conceituada revista já passou para as mãos de patrões e editores portuguesa, o que é bom para o País, embora péssimo para os trabalhadores.
Todas as manhãs, depois de espreitar a primeira página de O Jogo, Quitério arranca para o Parque da Cidade, bloco de notas, lápis e maçã em punho. A maçã é muito importante, porque às vezes dá-lhe fome.
Quitério olha e vê com olho clínico, hospitalar, regista, compara, assinala as diferenças e as similitudes, escreve sessenta vezes a palavra similitudes porque gosta muito dela, desenha gráficos e tabelas, depois deita tudo fora e remata com a inconfidência da notazinha pessoal. E sempre em horário completo. Por isso, ele é hoje em dia e sem favor a voz mais autorizada para dissertar sobre a problemática do coelho nacional, ao qual (fruto de uma lamentável confusão fonético-etimológia) atribuiu o nome científico de Cunnilingus Lusitannus, exactamente para o diferenciar do chamado coelho comum, que os especialistas denominam de Laparus Normallissimus. Os especialistas são ele.
Mas não se cuide que é tarefa fácil, ofício para paisanos: "Com os coelhos, como em tudo na vida, há dias e dias". A frase não é minha, saiu da sábia pena de Quitério, que às vezes fecha a loja sem ter visto um coelho que seja, ou uma coelha, vá lá, para na vez seguinte ter que se desunhar com os verbetes de mais de vinte avistamentos no breve espaço de um quarto de hora.
"A ciência tudo explica", costuma dizer Quitério, que costuma dizer o que lhe apetece, batendo com o lápis no bloco de apontamentos. "E está aqui tudo"...
Segundo Quitério, aos sábados de manhã ninguém põe a vista em cima do CL - passemos a chamar-lhe CL, afrontando embora o rigor da ciência, mas precatando compreensíveis susceptibilidades. O especialista defende que "esta é a prova provada de que o coelho nacional costuma passar a noite de sexta-feira nos copos e/ou no sexo". E sexo, com os coelhos, já se sabe como é.
Outro resultado do estudo, ainda segundo Quitério: "O coelho nacional almoça em casa. Entre o meio-dia e a hora e meia da tarde, não há nem um para amostra em campo aberto. O Lusitannus, como também é tratado entre amigos, está à mesa com a família, não tem graveto para mais. Ou então foi para a praia, que é de borla e ali ao pé".
Interessante curiosidade: com mau tempo, chuva principalmente, o coelhame vem todo cá para fora. "Conclusão a tirar: as casas metem água". Um reparo que Quitério já antecipou em pré-relatório enviado há coisa de três semanas aos serviços municipais de habitação.
Quitério tem tudo registado. Ele conhece-lhe os hábitos, as suas idiossincrasias (e escreve idiossincrasias mais cinquenta e nove vezes), ele até já traçou o perfil psicológico do CL, bicho assustadiço e campeão de atletismo. E no entanto não há dia em que o nosso cientista não se apanhe surpreendido por um novo ângulo, pelo nunca visto ou cogitado.
Ainda anteontem, por exemplo: estava Quitério analisando, de perto, o comportamento de um belo exemplar, preto e branco, malhadinho, quando...
(o melhor é ser o próprio Quitério a contar)
... "a minha atenção se desfocou por uns milésimos de segundo na pista de um par de mamas que passava por mim todo saltitão. Foi coisa de milésimos de segundos, palavra de honra! Quando torno à procura do láparo, já ele lá não está. Bateu asas e voou"...
(Ora bem: impõe-se aqui um novo entre parênteses, desde logo para pedir desculpa ao leitor acidental por esta contumaz fraqueza de Quitério pelos feminis seios, a que o autor do texto é obviamente alheio, mas também para dar nota da camada de cepticismo com que esta inesperada revelação foi acolhida na mesa de café onde ele costuma calistar. Foi um torcer de nariz geral e o mete-nojo do Silveira ainda torceu um tornozelo, só para dar nas vistas.)
E Quitério, ofendidíssimo: - Mas estão a pôr em dúvida a seriedade do meu trabalho? Eu lido com as hipóteses, eu verifico as evidências. Então como é que explicam o desaparecimento do coelho? O coelho evaporou-se, não? Ridículo! Toda a gente sabe que os coelhos não se evaporam. Bateu asas e voou, foi o que foi.
P.S. - Publicado originalmente no dia 1 de Julho de 2011. Hoje, 31 de Julho, é Dia Mundial do Vigilante da Natureza.
Uma república das bananas. E do pão.
É decerto por ter estas ideias malucas que ninguém me pergunta nada, a não ser o caminho para o IKEA de Matosinhos. É. Só os galegos desorientados é que querem saber a minha opinião...
sexta-feira, 30 de julho de 2021
O melhor actor do mundo
quinta-feira, 29 de julho de 2021
As orelhas
As orelhas. As orelhas são muito úteis. As orelhas servem para segurar o
lápis, o cigarro e o raminho de alfádega, que já ninguém sabe o que é.
As orelhas centram muito bem a cabeça e estão no sítio certo para se
puxar as orelhas. Hoje em dia é proibido puxar as orelhas nas escolas,
só se for aos professores. Os puxões de orelhas aos professores são
gravados no telemóvel e mandados, com uma grande risota, para o YouTube.
Das escolas saem cada vez mais orelhudos. E entram no YouTube.
As orelhas produzem cera, cotão e pêlos, materiais altamente
combustíveis. As orelhas ardem: se for a direita, é porque estão a dizer
bem de nós; se for a esquerda, é porque nos estão a rogar na pele. Se
arderem as duas ao mesmo tempo, o melhor é chamar os bombeiros. As
orelhas também deitam fumo sem fogo, pelo menos nos desenhos animados.
As orelhas doem e quando doem chamam-se ouvidos e muitos nomes feios. As
orelhas são vizinhas de porta do esternocleidomastóideo, que é o
músculo mais famoso do mundo à pala do Vasquinho da Anatomia. As
orelhas, em casos extremos, servem também para a nossa alimentação. Em
tempos de crise como os que vivemos recomenda-se com molho-verde.
Às vezes as orelhas dão jeito para ouvir. Ouvir é bom e deve-se às
orelhas. Há governantes que não são governantes porque não ouvem. Por
exemplo: as orelhas do ex-presidente dos Estados Unidos da
América e do alegado presidente do Brasil são orelhas a fingir, orelhas de mercador. As
orelhas do deputado Ventura, outro por exemplo, são orelhas de burro. Eu
gosto muito de orelhas e tenho duas. De momento.
P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Maio de 2012. O pintor Vincent van Gogh, que cortou a própria orelha esquerda, entregando-a depois a uma prostituta (há várias teorias e versões sobre o assunto), morreu no dia 29 de Julho de 1890, e isso é certo. Tinha 37 anos.
Schumann, Schuman & Schurman
P.S. - Publicado originalmente no dia 29 de Junho de 2015. E devo fazer notar que no dia 5 de Novembro de 1607 nasceu Anna Maria van Schurman, pintora, poetisa e académica holandesa que, verdade seja dita, não é desta história e acaba de ser aqui metida à pressão. Robert Schumann, o músico, morreu no dia 29 de Julho de 1856, aos 46 anos.
Trunfo é paus...
Quatro tigres-de-bengala. Jogam sueca e contam dos netos na fresquinha do jardim.
P.S. - Hoje, 29 de Julho, é Dia Internacional do Tigre.
O leitmotiv
O leitmotiv, por exemplo. É gordo, magro, meio-gordo, achocolatado, integral, dourado, desnatado, em pó, condensado, vegetal, enriquecido, de soja, de burra, de barata, de camelo, de tigre, de aveia, de amêndoa, de coco, desmaquilhante, adelgaçante, reafirmante, derramado, -creme, -de-cal, -de-galinha, -de-pato ou de colónia? E quanto a calorias?...
Como as cobras
quarta-feira, 28 de julho de 2021
Allegro ma non troppo
Deu-lhe um baque. Ele até agradeceu, mas na verdade preferiria um rimsky-korsakov.
Pianíssimo
Estou como diz o outro: Bach leve, levemente...
P.S. - Johann Sebastian Bach morreu no dia 28 de Julho de 1750.
Em lata
O confinamento fez dele um verdadeiro especialista em atum. Bom Petisco à segunda, Ramirez à terça, Tenório à quarta, Minerva à quinta, Pitéu à sexta e Inês ao sábado. Ao domingo, sardinha em tomate, evidentemente.
P.S. - Hoje, 28 de Julho, é Dia Nacional e Dia Mundial da Conservação da Natureza.
De rerum natura
No tempo do Primavera Sound, que a pandemia veio aliviar, há também camiões, guindastes e contentores, dezenas de geradores, megapalcos, supertendas, barracas, tonéis de cerveja cheios e escorropichados e cheios e escorropichados vezes sem conta nem medida, toneladas de lixo e pés, decibéis à solta, ameaços de terramotos, aluimentos, quem dera que não chova, Deus queira que não caia. Há vedações e avisos, pedimos desculpa pela interrupção, o parque segue dentro de dias. Quem estiver mal que se mude, prometemos deixar tudo como estava.
Não sei é se aquele fauna toda foi devidamente notificada.
E assim nasceu Portugal
Isto explica mais ou menos o que ouvi uma vez no Parque da Cidade do Porto. Foi apenas um momento, o tempo de nos cruzarmos, mas deu para perceber que a conversa ia animada. De mão dada com a mãe, o miúdo, de seis ou sete anos se tanto, perguntou, cheio de certeza na resposta: - Ó mãe, a Espanha já deve ter sido de Portugal, porque D. Afonso Henriques ganhou a Espanha, não ganhou?...
terça-feira, 27 de julho de 2021
Sobre o daltonismo
Houve também o bando dos Dalton a sério (à séria, se lido em Lisboa). Eram especialistas em bancos e comboios, actuaram com assinalável sucesso no Velho Oeste americano entre 1890 e 1892 e chamavam-se Tim Evans, Bob Dalton, Grat Dalton e Dick Broadwell. Foram abatidos pela polícia durante o assalto a uma dependência bancária em Coffeyville, Kansas, e tiveram todos um lindo enterro.
Há ainda a registar Timothy Dalton, aquele actor galês e fraquinho que fez por engano dois 007, o Dalton Ico e o Dalton Trevisan, famoso escritor brasileiro entendido em vampiros e ganhador dos prémios Camões e Machado de Assis, entre outros. O mais destacado membro da família terá sido, no entanto, o cientista inglês John Dalton (1766-1844), químico, meteorologista e físico, um dos primeiros a defender que a matéria é feita de pequenos nadas, os átomos, e inventor da "lei das proporções múltiplas", melhor chamada Lei de Dalton evidentemente para não se confundir com a Lei de Ohm.
Aerofobia
Tinha um medo terrível de andar de avião. E se o aparelho caísse no oceano? Ele não sabia nadar...
P.S. - Geoffrey de Havilland, engenheiro britânico pioneiro da aviação, criador do Havilland Comet, primeiro avião a jato de uso regular, e do Mosquito, avião de combate da RAF, o mais versátil da II Guerra Mundial, nasceu no dia 27 de Julho de 1882. O Havilland Comet foi apresentado, curiosamente, no dia 27 de Julho de 1949.
segunda-feira, 26 de julho de 2021
Heranças
Foto Hernâni Von Doellinger |
Há uma longa e honrosa tradição familiar no nosso lado Von Doellinger: somos umas pessoas muito doentes, que foi a única herança que o meu avô da Bomba nos deixou. De resto, nem um tostão, nem um penico partido e colado com adesivo, tampouco uma corrente de ar! A minha mãe costuma dizer que, em questão de doenças, "não damos vez uns aos outros". A minha mãe, é preciso que se note, é do lado Pereira, que lamentavelmente não me chegou ao nome, Pereira do meu avô de Basto, que nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria. Este meu querido avô, antigo mineiro e mestre pedreiro de primeira água, era, pelo seu lado, um mãos-largas. Tudo o que tinha, dava. E se o que tinha à mão era o varapau de lódão, então era de esgaça-pessegueiro. A mim, deu-me o meu primeiro relógio de pulso e, numa noite de Natal, ofereceu-me inesperadamente o seu próprio relógio de bolso, um magnífico e infalível Omega que me escangalhou em lágrimas e que há coisa de quinze anos passei ao meu filho, que bem o merece e não lhe dá corda. Eu? Fiquei-me com as memórias. Do choro também...
Já agora. O meu rijo avô de Basto esteve doente uma vez, se não me engano. E morreu. Com os pulmões vagarosamente estraçalhados pelos anos longínquos do trabalho nas minas.
Mas o lado Bomba. As doenças. Neste campo, como em mais um ou dois, ou três, sou a ovelha negra da família. Doentemente falando, sou uma treta, uma nódoa, um ignorante, uma vergonha para a classe dos doentes em geral e da minha família em particular. Às vezes até penso que devia ser expulso. Da classe e da família.
Os Bombas, por definição, eram (são?) entusiásticos consumidores de medicamentos e canjas de galinha. Conheciam (conhecem?) todas as doenças e os dois volumosos tomos da Farmacopeia Portuguesa por ordem alfabética, de cor e salteado, da frente para trás e de trás para a frente, índices e apêndices incluídos, automedicavam-se (automedicam-se?) e só precisavam (precisam?) da consulta e da assinatura do médico - "especialista!", sempre "especialista!"- para autenticar o internamento a troco de quilo e meio da melhor vitela de Fafe, traço seleccionado e cortada pelas sábias mãos do Senhor Abreu do Talho Novo, embrulhado em imaculado papel costaneira e impecavelmente atado e laçada com fio norte de qualidade superior. Justificava-se a despesa dos unhas-de-fome: o internamento em hospital era a sorte grande, a realização de um sonho. Recorrente. Para que o povo soubesse que!
Os meus avós da Bomba, ninguém me tira da ideia, morreram da mania.
A bó, o bô e o bu
Troca-se neto por cão
Três
rapazes nos arrabaldes dos sessenta anos bem servidos, certamente
amigos de longa data, gente bem, meninos da Foz no seu tempo, fazem o
costumeiro passeio higiénico matinal na avenida à beira-mar. O da
esquerda empurra um carrinho de bebé com uma vaidade que só vista, e é
bonita de se ver. Os outros dois vão à rasca até às orelhas,
envergonhadíssimos com "a situação", evitam ser reconhecidos por quem
passa, como por exemplo eu, que não os conheço de lado nenhum, mais
desconforto era impossível. O da direita puxa o do meio pela manga e
diz-lhe, tapando a boca com a mão, como fazem agora os treinadores e
jogadores de futebol quando querem falar da mãe de alguém e sabem que há
câmara de televisão por perto: - Se inda ao menos fosse um cão, um
canito! Agora o caralho do neto...
Não é metáfora política. É a vida.
O último dos Bernardinos
O meu avô Bernardino Neques, que nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria, tinha o seu lado musical. Desunhava-se satisfatoriamente com a concertina e o acordeão, e já velhinho veio-lhe a mania do violão, lembro-me que com alguma falta de jeito, Deus me perdoe se estou a ser injusto. Esqueçamos, porém, o violão, o acordeão e a concertina, que foram só para meter conversa. Tornemos aos bombos, à caixaria.
O Neques do meu avô Bernardino não era de baptismo. O verdadeiro nome do meu avô de Basto era Amigo Pereira - assim lhe chamava toda a gente por essas feiras e romarias ali à beira, a começar pela Lagoa, onde ele varria o terreiro com o varapau de lódão girando por cima da cabeça como ventoinha de helicóptero, e suponho que não é preciso dizer mais nada para que se perceba de que marca era o homem. (Mas vou dizer: quando fazia de jogador do pau e estava decentemente avinhado, o meu avô tinha um grito de guerra que era "Olraitecamoniésse!". E tinha um cão de pele e osso ao qual dera o nome de Tuísta, que queria dizer Twist. O meu querido avô era anglófilo americanado e não sabia. De americano, o Bô só conhecia o vinho, e talvez o João massagista, mas desta parte não tenho a certeza.) A alcunha que ficou famosa, Neques, veio-lhe do seu tempo de moço, contava-se, quando rufava a bom rufar na caixa, honesto instrumento por onde começou na arte. E tocava naquele ritmo manso e exacto que ele gostava de explicar como neque-neque-neque, neque-neque, neque-pum. Neques, pois.
O meu avô era apaixonante. Obviamente Banda Revelhe, por causa do meu pai e por bom gosto natural. E o toque de caixa, para o Amigo Pereira, tinha ciência, solfejo. Gostava de perguntar-me, por exemplo, "Quantas pranas tem uma rana?", como se estivéssemos a elaborar sobre fusas e semifusas. Eu dizia que não sabia, que era o que o velho Neques queria ouvir, para logo a seguir me ensinar, matreiro e mais uma vez, "Conta-as, rapaz: rana-catrapana-catrapana-pana-pum; quantas são?..."
Já não há Bernardinos assim. E faz-me diferença. Pum.
P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Abril de 2014. Hoje, 26 de Julho, é Dia Mundial dos Avós.
Se calhar inventámos o esperanto
(O Passeio Atlântico de Matosinhos é um mundo. Pelo menos, em dias sem pandemia e de tempo bondoso, é uma razoável amostra de mundo.)
O turista estrangeiro aproximou-se do vendedor de óculos de sol de beira de praia. Era obviamente um turista estrangeiro, só eu e os turistas estrangeiros é que sabemos malvestir assim, nunca me engano a esse respeito. O vendedor de óculos de sol de beira de praia é português dos quatro costados, conheço-o muito bem, há anos, monta banca todos os dias ali em baixo e quando chove é vendedor de guarda-chuvas de beira de praia. É, além disso, ambulante, mas apenas para fugir aos fiscais e à polícia. Ele também percebeu logo que o freguês que tinha pela frente era estrangeiro. Mas pensam que se atrapalhou?, era o que faltava! Nós os portugueses temos connosco esta habilidade extraordinária de nos desenrascarmos sempre, seja em que situação for, cá em casa ou lá fora, mesmo debaixo de água, aprendemos línguas, copiamos hábitos, se calhar inventámos o esperanto, possuímos este poder de desembaraço, improvisação e adaptação, que tomaram muitos, até os Alemães, e que fez de nós um povo das sete partidas do mundo por excelência. Bem, com estas tretas todas, esqueci-me do que queria contar...
Ah!, já sei: o turista estrangeiro. Portanto, o turista estrangeiro abeirou-se do vendedor de óculos português e perguntou: - The glasses, how much?... (Estão a ver como eu tinha razão?).
Foi um clique, um cagagésimo de segundo bastou para que o rapidíssimo cérebro do nosso vendedor formatasse "é inglês, pois então vamos a isso" e mudasse imediatamente de registo, fazendo um entre parênteses na língua do Camões. Cheio de segurança e poliglotismo, respondeu ao camone, marcando ostensivamente as sílabas no mais escorreito acento cockney: - Quali? Quali qui tu quieres?...
P.S. - publicado originalmente no dia 31 de Maio de 2016. Hoje, 26 de Julho, é Dia do Esperanto.
domingo, 25 de julho de 2021
Viva Galiza!
Massas
Gostava de uma boa massa à lavrador, de uma boa massa de marisco e sobretudo de uma boa massa de bacalhau. Também concordava com a vacinação em massa. Quanto à massa de ar quente, não é que desgostasse, mas afligia-o a flatulência.
P.S. - O escritor de origem búlgara Elias Canetti, Nobel da Literatura, autor de "Auto de Fé" e "O Poder e as Massas", nasceu no dia 25 de Julho de 1905.
Adoro, adoro, adoro!...
Adoro ver aquele modo de confecção improvável, os ingredientes inovadores, variados e mínimos, o requinte e a cerimónia, a delicadeza, a anorexia na dose, a obra de arte final, aquela espécie de ilha cubista no meio do prato em branco, adornada com bagas, com ervas inventadas, com salpicos e rabiscos de geleias coloridas. Salpicos e rabiscos aparentemente displicentes porém profundamente sábios. Adoro!
Adoro ouvir aquelas palavrinhas francesas, parecem palavras mágicas, nominhos de perlimpimpim. Adoro!
E a frescura?, ui, sobretudo muita frescura! Adoro!
Mal termina o programa, e enquanto ainda está fresco, salto para a cozinha, enfio dois bolinhos de bacalhau da véspera dentro de meio biju ressesso, bebo um copo de verde branco e entretanto atiro-me à galinha de arroba que a minha mãe me mandou de Fafe e faço a boa e ancestral arrozada de cabidela. A cabidela monumental e histórica. E vai para a mesa no panelão, fumegante como uma velha locomotiva a vapor. Ah, caralho!, então é que eu me regalo...
sábado, 24 de julho de 2021
A obra-prima
Quanto mais prima...
Foto Hernâni Von Doellinger |
Eu tinha umas primas de que não sabia. Foram-me apresentadas há coisa de dois ou três anos pelo meu amigo Paulo Silva, que as conhecia de ginjeira, e desde então não lhes largo as redondezas. Falei nelas no outro dia, disse ao Paulo que havíamos de ir às minhas primas e logo mentes perversas pensaram que eu estava a agendar uma noitada na casa da tia, melhor dizendo: em casa de tia. Mas nada disso. As primas de Leça do Balio são as Erdinger, as excelentíssimas cervejas alemãs que, como o seu próprio nome indica, são praticamente da minha família. E preciso urgentemente de fazer uma festa de despedida.
As Erdinger são infelizmente uma raridade nas prateleiras dos hipermercados. Descubro muito às vezes meia dúzia delas, e vêm logo todas comigo para casa. Mas há um certo sítio, uma esplanada num certo parque junto ao ex-rio mais poluído da Europa, onde costumo marcar encontro com elas e elas não costumam falhar. Parece traição à Pátria, mas é exactamente em Leça do Balio, o berço desse verdadeiro monumento nacional e património material da humanidade que é a Super Bock.
Para beber a Erdinger em casa como manda o figurino, até tive de comprar um copo, caro, enorme, bojudo e cheio de curvas, e é destas redondezas que eu falo. Estou a pensar vendê-lo, ao copo. As minhas primas que me perdoem, mas começam a estar muito acima das minhas posses. E não é que volte para os braços da Super Bock, não. Vou mesmo para a água, e da torneira, pelo menos enquanto não a vierem cá cortar. Portanto, adeus ó primas, ó ricas primas!
P.S. - Publicado originalmente no dia 9 de Dezembro de 2011. E hoje, 24 de Julho, é Dia dos Primos. Já há anos, seis ou sete, que não vou a casa das primas, e as raparigas, há quem me conte para fazer raiva, continuam boas como o trigo. Estou farto de dizer à minha mulher: a família devia dar-se mais...
sexta-feira, 23 de julho de 2021
De pé, ó vítimas da fome!
Contra fatos não há argumentos
O guarda-fatos
Tinha uma vida muito arrumadinha. Ao fim do dia, na hora das orações da noite e do exame de consciência, ponderava fatos e mentiras. Desfazia-se das mentiras no cesto do lixo, pendurava os fatos no roupeiro. Evidentemente.
Casaco de trespasse com chave na mão
Profissão de risco
quinta-feira, 22 de julho de 2021
Moinices da alta e outras efemérides
Conclusões que tirei desta oportuníssima lembrança: Durão Barroso gosta de férias; Durão Barroso gosta de férias à grande e à brasileira ou à grega, pelo menos; Durão Barroso não gosta de pagar as férias à grande e à brasileira e à grega, pelo menos; Durão Barroso não paga férias desde os tempos imemoriais em que ia para a chique praia de Moledo, em Caminha, como as pessoas normais porém chiques, e se calhar nem essas pagava, porque parece que eram passadas em casa de amigos; Durão Barroso gosta de milionários e de multimilionários; Durão Barroso gosta muito de privados - aviões, ilhas, barcos e talvez bancos; por causa de Durão Barroso e de outros que querem ser durões barrosos quando forem grandes, o PSD mexe com pinças na valente cagada que os secretários de Estado do Governo PS fizeram; os invejosos do CDS esperneiam e esperneiam, mas apenas porque ninguém os convida para lado nenhum e eles também gostam de andar de cu tremido; é inacreditável que os secretários de Estado que foram à bola a França por conta da Galp ainda sejam secretários de Estado.
(O prestígio internacional de Durão Barroso não era realmente coisa de se deitar fora. Lembram-se? José Ramos-Horta (ex-presidente de Timor-Leste e co-Nobel da Paz com Dom Ximenes Belo em 1996) lançou a candidatura do nosso Zé Manel ao mesmo prémio em 2008. E deu em águas de bacalhau! Quatro anos depois, o ilustríssimo galardão foi atribuído à União Europeia. Quer-se dizer: ao Barroso só faltou um bocadinho assim...)
Fino era o Paulo Portas: para que não se lhe possa apontar nada, ele é que oferecia viagens aos seus futuros patrões. Em quatro anos, o então vice-primeiro-ministro e ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros levou a Mota-Engil seis vezes à América Latina. Hoje Portas é consultor da Mota-Engil para a... América Latina. Durão Barroso está na Goldman Sachs. Consta que é charmain...
P.S. - Publicado originalmente no dia 5 de Agosto de 2016. Com quase um ano de atraso, em Julho de 2017, os secretários de Estado que foram à bola a França por conta da Galp acabaram por demitir-se. Rocha Andrade, que nos pôs as contas em dia, se calhar faz falta. Quanto a Pereira Coutinho, que já foi o quinto mais rico de Portugal, vendeu o jacto, o helicóptero e a ilha em Angra dos Reis (trindade ostentatória que Barroso conhecia de ginjeira e de borla), perdeu e desfez-se de negócios, faliu ou insolveu-se, sobrevive, sei lá, à pala da Segurança Social e um destes dias ainda o vou descobrir por aí sem-abrigo. José Manuel Durão Barroso, esse, foi eleito presidente da Comissão Europeia no dia 22 de Julho de 2004. Faz hoje anos. E parabéns à prima!...
Fulanos, sopranos e beltranos
Os sopranos têm, por definição, o tom de voz mais agudo e com mais alcance de mulher ou de rapaz muito novo. Se os sopranos forem homens, os puristas preferem chamar-lhes contratenores, que há quem confunda com contentores. Os sopranos dividem-se essencialmente em sete partes: soprano ligeiro, soprano lírico-ligeiro, soprano lírico, soprano lírico-spinto, soprano lírico-dramático, soprano dramático e soprano ultraligeiro. Também podem ser saxofones ou clarinetes, por exemplo. Nos Estados Unidos, os Sopranos ainda piam mais fino: são mais que as mães, maus como as cobras e convictos frequentadores de meretrizes. São extremamente mafiosos e profundos conhecedores, estes sim, de contentores, blocos de cimento e rios. Quando inadvertidamente apanhados por famílias inimigas, e desmembrados como manda a lei, os Sopranos são chamados, por divertimento, meios-sopranos. Os Sopranos americanos fizeram uma excelente série de televisão e agora vão dar em filme, que terá por título, corrigido, "Os Contratenores". O melhor Soprano do mundo (portanto, o pior) chamava-se Tony e padecia de ansiedade.
P.S. - Publicado originalmente no dia 12 de Janeiro de 2019. Hoje, 22 de Julho, é Dia do Cantor Lírico. No Brasil.
Vendo pontos de vista para o mar
Podiam ter-me perguntado
Tinha mais duas ou três coisas para dizer sobre este assunto, mas, cá está, não me vêm à cabeça, não me lembro.
O meu cão
O meu cão fica-me muito em conta. Não come mas cala, dispensa vacinas e vitaminas, nunca vai ao veterinário, não precisa de casota nem de agasalhos para o Inverno, e só me custa o preço da trela. O meu cão conhece o dono e não morde a mão que não o alimenta. Se todos fôssemos cães assim, vínhamos mesmo a calhar ao Governo da Nação.
O meu cão faz-se muito bem de morto e corre atrás de qualquer merda que lhe atire. Só lhe falta falar. O meu cão não ladra às pessoas, não fornica as pernas transeuntes, não abocanha, não caga no passeio, não mija nos pneus do carro do vizinho, não tem pulgas nem chatos, nem anda por aí a emprenhar cadelas mais ou menos oferecidas. É como se não existisse. O meu cão é um exemplo de cidadão.
Já mo quiseram comprar e eu não o vendi. Foi um vendedor de ilusões. Oferecia-me um país inteiro sem pretos em troca do meu cão. Nã! Antes quero o cão. E os pretos!
quarta-feira, 21 de julho de 2021
Daniel, profeta e domador de leões
Daniel foi mediano profeta e consta da Bíblia no, exactamente, Livro de
Daniel. Trabalhou na Babilónia como vidente e porventura cartomante,
interpretando sonhos e visões, e tinha três amigos esquisitamente
chamados Sadraque, Mesaque e Abednego. Foi também domador de leões, com
um anjo como partenaire, dando início a essa lamentável tradição circense.
A fama chegou-lhe apenas em 1973, quando entrou numa canção do Elton John.
P.S. - A Igreja Católica celebra o profeta Daniel, também chamado Beltessazar, no dia 21 de Julho.
Era uma vez uma hamburgueria gourmet
Moro em Matosinhos, na famosa zona dos restaurantes e marisqueiras, que se acotovelam porta sim, porta sim. Pensava portanto que não lembraria ao diabo estabelecer-se aqui no meu território com uma dessas autoproclamadas hamburguerias gourmet, mas a alguém lembrou. Quando, ainda de vidros tapados, vi cá fora os letreiros, pensei: isto nem sequer vai abrir. Mas abriu, e agora penso: daqui a quantos dias é que isto vai fechar? Porque a verdade é esta: o gourmet não se dá à minha volta, e juro que a culpa não é minha. Evidentemente não o frequento, mas, tirando isso, mais nada...
Lembra-se o caro leitor da história do fumeiro, faz agora quatro anos? Foi assim:
Do outro lado da minha estrada (o caro leitor já reparou que, nas nossas cidades, as ruas agora não são ruas, são estradas, e estradas com engarrafamentos e perigosas?), dizia: do outro lado da minha estrada há uma daquelas pequenas lojas tipo "regional gourmet". Azeitonas em frasco, cogumelos em frasco, meles em frasco, geleias em frasco, licores em frasco, frascos em frasco, dois presuntos em fraco, azeites e vinhos em caro, prateleiras um fiasco. Num benévolo gesto de boas-vindas, mal abriu o estabelecimento fui lá cheirar e avisar que o conceito é uma treta e que gourmet a sério é em minha casa, mesmo em frente, porque aqui a comida é muito boa, e gourmet deveria ser isso, mas não estamos abertos ao público. O gourmet - a ver se eu me sei explicar - quer-se da boca para dentro e não da boca para fora, mas não faço concorrência.
Estas lojinhas abrem e infelizmente não vendem nada. São "regionais" porém franchising, very tipical e very vazias, de produtos e clientes. O toque de "qualidade" é dado em palavras "estrangeiras", o que só abona a favor do produto made in Portugal. A loja da minha estrada tinha primeiro uma menina, que passava a vida na ombreira da porta a fumar, fumar, fumar.
A loja não abria desde que o ano entrou. Pensei que tinha sido o fim. Mas graças a Deus enganei-me, que de desemprego já basto eu. A loja reabriu hoje: não está lá a menina, mas um rapaz. Que passa a vida na ombreira da porta a fumar, fumar, fumar. Nas costas, os dois presuntos pendurados no cabide tisicam e agradecem - assim se produz o genuíno fumeiro nacional.
Entretanto. Passou-se uma semana e a lojinha fechou de vez: veio uma carrinha limpar as escanzeladas prateleiras, três sacos de plástico bastaram e lá se foi mais um posto de trabalho, por assim dizer, que é o que a mim me importa. Fico infeliz por ter razão: o conceito era realmente uma treta. Esta gente não sabe o que é massa com bacalhau e o prato a esbordar...
Por falar nisso, hora de almoço: espreito a hamburgueria gourmet, dando-lhe uma última oportunidade. Os únicos "clientes" que vejo são o pessoal da casa, à mesa. Já foste!, digo cá para comigo. É o raio deste microclima sul-matosinhense...
Pois meu dito, meu feito. A coisada acima é do princípio do ano, 11 de Janeiro. Hoje passei pela hamburgueria gourmet da minha zona e, fatal como o destino e com ponto de exclamação e tudo, lá estava afixado o aviso na porta fechada: "Trespasse!"...
Gosto da palavra parreca
Gosto da palavra parreca. Pachacha, não. Nem crica. Pito, cona, buceta, siririca, vulva, rata, pássara, passarinha ou perereca, apesar de legalmente registadas, então é que nem admito. Pior, só mesmo vagina, uma obscenidade que me tira do sério e absolutamente comparável à alarvidade de chamarem pénis ao pirilau. Pénis e Vagina (neste caso leia-se vajaina, se não for incómodo) até parecem nomes de um casal da Mattel, e se calhar ambos de virilhas vazias, como os outros dois, o Ken e a Barbie.
Da parreca é que eu gosto. Para além de uns rebuçados de açúcar suponho que amarelo, formatados em pequenos ladrilhos e embrulhados em papéis de cores diversas e garridas, vendia-se antigamente nas feiras e festas de Fafe uma espécie de doce alegadamente em forma de pato, ou de pata, vá lá - e esse doce era a parreca.
Diga-se em abono da verdade, o doce resumia-se a uma somítica camada exterior de açúcar, agora branco, se não me engano, e o resto era um pedaço de massa castanha, azeda e dura como cornos, para lamber, lamber, lamber, lamber... até se desfazer à força de dentes, se a gente não desistisse antes. Era coisa para umas horas, se respeitada na íntegra.
Os meninos dançam?
Lembram-se do futebol de salão? O que é que nos vinha à cabeça quando se falava de futebol de salão? O salão. Uns cavalheiros vestidos de fraque e com um número nas costas e umas cavalheiras despidas nas costas e no resto, agarrados um ao outro e rodopiando pelo rinque árabe do Palácio da Bolsa como Fred Astaire e Ginger Rogers e uma bola pequenina no meio, um árbitro e o apito, um júri e tabuletas. Para evitar confusões, o futebol de salão passou a chamar-se futsal. E é o sucesso que se sabe...
P.S. - Hoje, 21 de Julho, é Dia do Dançarino de Salão. No Brasil.
E lá iam os dois, Hemingway e Baptista-Bastos
Andávamos ambos, mas evidentemente eu era invisível. Tínhamo-nos conhecido alguns anos antes, numa viagem à Irlanda. Eu iniciante no ofício e ele O Grande BB, nesse tempo ainda intrépido "praticante do desporto líquido", como gostava de dizer, e contador ininterrupto de extraordinárias histórias que outros jornalistas da capital desmereciam por inveja. Diziam-lhe nas costas que ele inventava reportagens e entrevistas. Não sei se inventava ou não inventava - isto é, caguei! Eu queria era ouvir o Senhor Baptista-Bastos. Aprender. Ouvia-o embatocado, reverente, assombrado, deliciado. Ouvia-o enquanto ele me apresentava abundantemente à Guinness e ao Jameson, e os invejosos também à roda, flatulando améns, onzeneiros e hipócritas. Ia eu apenas no segundo pint, ao balcão do Kitty O'Sheas's Bar, em Dublin, e já lhe pedia "E daquela vez?..."
Baptista-Bastos gostava, inchava. Dizia, como se estivesse a dar-me corda, "O puto vai longe". Enganou-se redondamente. O mais longe que fui foi aos Açores, e ali estávamos os dois, descendo no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo, ilha Terceira.
Eu num sino, se fosse visível, o coração aos saltos e a cabeça num turbilhão. "O Baptista não faz ideia da vaidade que tenho por ir aqui à sua beira", confessei-lhe de repente, atrapalhando palavras. "Baptista, não", corrigiu-me, "sou Armando para a família e amigos do peito ou Baptista-Bastos para o geral, mas você, que já é da minha equipa, chame-me Amigo Bastos, que é como eu prefiro". Percebi o generoso raspanete como se, para o BB, Amigo fosse nome próprio e Bastos o apelido. (Quer-se dizer: AB.) E creio que percebi bem.
- Mas oiça lá: à sua beira, foi o que disse? Que expressão tão bonita! À sua beira...
- É assim que se fala na minha terra. Sou de Fafe...
- Fafe? Justiça de Fafe, não é? Grande terra, terra de gente vertical...
Por aqueles dias mantivemos longas conversas em que eu só ouvia. Baptista-Bastos contou-me de Soares, de Cunhal, de Salazar, de Caetano, do PCP, do PS, do pai, de tipografia, de Lisboa, do Bairro Alto, de jornais, de jornalistas e "simpatizantes", de tertúlias, da boémia, da noite, de sábios, de analfabetos diplomados, de livros, de Aquilino, de Branquinho da Fonseca, de Carlos de Oliveira, de Manuel Mendes, de Eugénio de Andrade, do amigo Manuel da Fonseca. Da beleza da sua mulher, do orgulho nos filhos. E de freiras pentelhudas, e de mulheres, e de mulheres, e de mulheres...
Insistia nas suas basezinhas, que já então eram um clássico: que os jornalistas se tratam por tu e são camaradas, porque colegas são as putas, e tratava-me por você. E não me lembro se me perguntou se eu sabia onde estava no 25 de Abril, e eu por acaso sabia.
Já no aeroporto de Lisboa, no regresso a casa, Baptista-Bastos fez questão de apresentar-me à mulher, que era realmente uma senhora muito bela, e a um dos filhos. Quando nos despedimos ofereceu-me o seu excelentíssimo livro de reportagens "As Palavras dos Outros", com um recadinho escrito ali na hora na terceira página, e, como se estivesse a chamar passageiros para o voo do Porto, repetiu tonitruante o essencial de tudo o que copiosamente me ensinara na ilha: - Doellinger, não se esqueça, ler e escrever todos os dias!...
Não esqueço, Amigo Bastos.
P.S. - Publicado originalmente no dia 9 de Maio de 2018. O aventureiro e escritor norte-americano Ernest Hemingway, autor de "Por Quem os Sinos Dobram", "Adeus às Armas" e "O Velho e o Mar", Prémio Pulitzer de Ficção em 1953 e Prémio Nobel da Literatura em 1954, nasceu no dia 21 de Julho de 1899. Não curiosamente, o nosso Baptista-Bastos foi prefaciador de Hemingway em Portugal.
terça-feira, 20 de julho de 2021
Era o Lopes
Eu levo os telemóveis e os amigos muito a sério (à séria, se lido em Lisboa). Se o meu telemóvel toca, e é raro, eu atendo. Sempre. Ainda ontem: eu estava aqui nas traseiras, por acaso sem o telemóvel à mão, e ouvi-o tocar na cozinha, virada para a rua. Fui lá a correr: não era o telemóvel, era a máquina de lavar roupa, que as máquinas de lavar roupa agora também tocam. O que é que eu fiz? Atendi a máquina de lavar roupa, evidentemente, e era o Lopes...
E sobretudo Deus
Eram dois amigos antigos, amigos do peito, leais, assíduos, generosos, cúmplices, irredutíveis, amigos com agá grande. Ainda por cima tinham Deus em comum: um acreditava, o outro não.
O melhor amigo
Os Sousas do sexto-direito têm um cão. O cão é o melhor amigo do homem. O melhor amigo da mulher é o Gustavo da Tabacaria.
Saudações inimigas
Escrevi aí a uma criatura e, no final, mandei-lhe um "grande abraço". A criatura despachou-me e, no final, mandou-me, para a troca, "saudações amigas". Saudações amigas? Mas, Senhor Bispo, o que raio são saudações amigas? Evidentemente serão o contrário de saudações inimigas, mas o que são saudações inimigas? Abraço, eu sei: o abraço é sólido, palpável, vê-se, sente-se, dá-se, recebe-se, aperta-nos, aproxima-nos, humaniza-nos. Agora, saudações amigas...
Apoio
- Força, meu amigo, força! Nestes momentos é que é preciso ter força. Coragem, força! Força, hã!...
- Importa-se de sair e de me deixar cagar em paz?...
Mais vale quase do que realmente
O grande Asdrúbal
segunda-feira, 19 de julho de 2021
Um bobsleigh em segunda mão
Sou dado a invernos. Melhor que chova em Santiago. E que neve e que gele. Ou então nada disso, que ao ponto a que chegámos também não interessa, mas Santiago, sempre Santiago, mesmo sem bobsleigh e ainda que faça sol. Um dia destes lá iremos, eu, a mulher, o filho e o futuro - pobres e a pé, se Deus quiser, mas vamos. E tem de ser rápido, antes que uns certos e determinados bandalhos nos matem à fome em primeira mão.
Vá à Galiza e não pague
Exactamente ontem, o galego Xóan Vasquez Mão, secretário-geral do Eixo, teve a peregrina ideia de desafiar todos os espanhóis a passarem pelas nossas ex-scut sem pagar portagens e sem medo de multas, dando a entender que o Governo português lhe prometeu que vai continuar a fechar os olhos a esse tipo de infracções quando praticadas por nuestros hermanos. E foi a partir daí que tudo se precipitou.
Numa corrida contra o tempo, uma intensa campanha publicitária está a ser preparada de ambos os lados da fronteira, para explicar às respectivas populações os exactos contornos desta inovadora operação de permuta. Foram imediatamente lançados dois slogans, embora o objectivo seja um só: para cima do rio Minho a campanha tem por título "Portugal é de rir", de Valença para baixo a campanha denomina-se "A Galiza é de graça".
Cá, os espanhóis têm à borla as auto-estradas que nós pagamos, mas lá, em contrapartida, os portugueses passarão a dispor de um interessante portefólio de fiados sem cobrança que inclui, entre outras notáveis instituições galegas, a Zara, o Corte Inglés, as bombas da Cepsa em Tui (logo a seguir à ponte velha), o Hostal de los Reyes Catolicos, o polbo á feira, o lacón con grelos, a empanada, os pementos de Padrón, o albariño e até missas de sétimo dia na Catedral de Santiago de Compostela.
É vestir, abastecer, dormir, comer, beber, rezar e vazar. Português não paga! É tudo para o tecto, para o calo. E, se houver galegos desinformados que não gostem, que vão receber ao BES! Ou, então, que façam o favor de passar pelo posto de turismo mais próximo. Está tudo previsto no protocolo.
Mas atenção, portugueses: as portagens nas auto-estradas espanholas são para continuar a pagar. O contrário seria uma ilegalidade. E uma imoralidade.
Galiza de ida e volta
Almoço, às terças, quintas, sábados e domingos; jantar, às segundas, quartas e sextas. Entre mim e a minha mulher, quem almoçar não janta no dia seguinte e quem jantar não almoça no dia seguinte. Ementa única para almoço e jantar: meia malga de caldo de couves sem azeite e um papo-seco seco. Quem comer o caldo de couves sem azeite deixa o papo-seco seco para o outro, que fica automaticamente sem direito a caldo. Parece complicado, mas não é. É tudo uma questão de organização e fé. Creio que a coisa vai funcionar, assim nos deixem morrer em paz.
Portanto fui despedir-me da minha Galiza. E sabeis que mais? Paguei portagens. Paga-se portagens nas auto-estradas da Galiza e os portugueses também. Sempre pagaram. Não há excepções nem ofertas. Mas os meus irmãos galegos são uns pândegos e resolveram embirrar com as nossas ex-scut que nos entram a nós, portugueses, pelos bolsos dentro depois de nos terem sido prometidas e entregues como "sem custo para os utilizadores".
Primeiro foi Xóan Vasquez Mao, secretário-geral do Eixo Atlântico, a desafiar todos os espanhóis a passarem pelas nossas ex-scut sem pagarem portagens e sem medo de multas, dando a entender que tinha garantida a cumplicidade do Governo português. Agora são vários hotéis de Vigo a oferecerem aos clientes portugueses o valor das portagens na A28 nos programas especiais de passagem de ano para contrariar a quebra de negócio já sentida no Natal. E sugerem à hotelaria do Norte de Portugal que faça o mesmo com os seus clientes galegos.
Vamos lá ver em que param as modas. Já que ninguém nos dá nada do lado de cá, até pode ser que, por tabela, ainda acabemos por ganhar alguma coisa com os do lado de lá.
P.S. - Publicado originalmente no dia 29 de Dezembro de 2011, não sei como as coisas estão agora, dez anos passados. A Ponte Internacional Valença-Tui foi inaugurada no dia 19 de Julho de 1993.
Espírito de contradição
Ao contrário de todos os outros ciclistas, ele gostava de correr da frente para trás. Provocava muita confusão e inúmeros acidentes, realmente, mas, lá está, cada um é como cada qual.
As despesas da corrida
O falso escalador
domingo, 18 de julho de 2021
Assim sim
Sensibilidade e bom senso
- É pá, pensava que já tinhas morrido...
P.S. - Jane Austen, autora de "Sensibilidade e Bom Senso" e "Orgulho e Preconceito", morreu no dia 18 de Julho de 1817. Tinha 41 anos.
sábado, 17 de julho de 2021
Quando a Guerra dos Cem Anos passou por Fafe
A Batalha de Castillon foi levada a efeito em 1453, faz hoje exactamente
568 anos, e ficou na História como a derradeira e decisiva batalha da Guerra dos Cem Anos, que decorreu razoavelmente entre franceses e ingleses. A França ganhou, e félicitations à la cousine.
A Guerra dos Cem Anos chama-se Guerra dos Cem Anos porque durou cento e
dezasseis anos, mas chamar Guerra dos Cento e Dezasseis Anos à Guerra
dos Cem Anos não dava jeito nenhum aos historiadores e contabilistas
bancários, e assim começaram os arredondamentos.
Eu cuido que a Batalha de Castillon se efectivou em Fafe, numa antiga
elevação entre a Ponte do Ranha, o Socorro, a Fábrica do Papelão, a casa
da Dona Aurora e o Estádio. Ali se situava, com efeito, o famoso monte
de Castelhão, como se diz em português, ou Castilhom, como se diz em fafês.
O monte de Castelhão era um sítio aprazível para a realização de todo o
tipo de batalhas, como por exemplo brincar aos cobóis, e tinha um
belíssimo pionono, de que infelizmente não há muita certeza. Mas
isso é outra história.