Na verdade - e aqui que ninguém nos vê -, o melhor da televisão é que agora dá rádio.
Eu sou pela Antena 1 desde pequenino, ainda a Antena 1 se chamava Emissora Nacional e dava os resultados da 3.ª divisão e dos distritais já pela noite dentro e era uma comoção tremenda ouvir dizer Fafe, Associação Desportiva de Fafe, no Philips da mesinha de cabeceira dos meus pais. Ficávamos ali todos à espera, a família, como se estivéssemos a rezar o terço mas de boca calada, angustiados e alerta, porque aquilo era dito uma só vez, como no "Alô, Alô", e com a rapidez do "não dispensa a consulta do prospecto". Vamos supor: o jogo do Fafe tinha sido em Arcos de Valdevez, que naquela altura era muito longe e não havia telemóveis (eu sei que é difícil de acreditar); não fora o rádio e só saberíamos o resultado a altas da madrugada, se tivéssemos vagar para isso, quando a excursão regressasse ao Largo, e não era certo. O resultado. Porque o vinho também é bom, mas às vezes atrapalhava as contas.
"Bom dia, boa tarde ou boa noite, conforme a hora e o local em que nos escuta". Ouço portanto rádio. Sou antigo, sou do tempo da rádio a preto-e-branco. Sou um prezado ouvinte e com muito gosto. Prefiro os dicionários encadernados à Wikipédia e os livros de uma forma geral às séries televisivas "de culto". Prefiro o éter à água oxigenada. A dominical Tarde Desportiva, David Ferreira sempre e aquela meia hora dos dias da semana a seguir ao meio-dia ligam-me sacramentalmente à Antena 1.
O rádio faz parte da minha vida, acompanha-me desde que me lembro de mim, conserva-me as mais doces memórias, frescas ou em banho-maria consoante a época do ano. Como por exemplo:
Todas as noites. Após a oração ao anjo da guarda e o sinal-da-cruz feito "sem aldrabices" por ordem expressa e vigilante da nossa mãe, íamos para o nosso quartinho de duas camas, uma cama para a Nanda e a cama maior para o Nelo e para mim. A nossa mãe deitava-se enfim, exausta e nós não sabíamos, e ligava o rádio na Emissora Nacional. Dava teatro. Do lado de cá do tabique, eu, o Nelo e a Nanda pedíamos "mais alto". Também queríamos. (Ou)víamos silentes e na maior das comoções, porque aquelas histórias não eram para brincadeiras. Interrompíamos apenas para um que outro pedido de esclarecimento acerca da senhora que fazia a vida negra ao senhor e que, todos concordávamos com a nossa mãe, era "uma cabra", embora eu não visse nisso grande defeito. Na escola já tinha feito algumas redacções sobre "A cabra" e por isso sabia que a cabra é um animal doméstico e serve, nomeadamente, para a nossa alimentação, que era assim que a coisa se rematava.
O teatro terminava, vinha a ficha técnica - porventura Jorge Alves, Manuel Lereno, Carmen Dolores, Rui de Carvalho, Eunice Muñoz ou Canto e Castro... nos papéis de -, mas a nossa mãe só desligava depois do "Samuel Dinis ensaiou", que era mesmo o fim, e o rádio dizia "Denis". Trocávamos boas-noites dum lado para o outro do tabique. "Agora vamos dormir", mandava a nossa mãe, e nós apertávamo-nos aos cobertores, contentes pela soirée e mortinhos por obedecer.
Todas as noites. Cinco ou dez minutos passados, a minha mãe dava um toquezinho na parede e perguntava, numa voz de embalar:
- Estais a dormir?
- Eu estou - respondia sempre eu.
- Lindo menino - dizia a minha mãe. E eu adormecia feliz. Radioso.