Por mais voltas que desse ao quarteirão, eram sempre vinte e cinco, e não saía dali.
domingo, 28 de fevereiro de 2021
Paulo Mendes Campos 5
Quando o olhar adivinhando a vida
Prende-se a outro olhar de criatura
O espaço se converte na moldura
O tempo incide incerto sem medida
As mãos que se procuram ficam presas
Os dedos estreitados lembram garras
Da ave de rapina quando agarra
A carne de outras aves indefesas
A pele encontra a pele e se arrepia
Oprime o peito o peito que estremece
O rosto o outro rosto desafia
A carne entrando a carne se consome
Suspira o corpo todo e desfalece
E triste volta a si com sede e fome.
[Amor Condusse Noi Ad Una Morte]
Paulo Mendes Campos
(Paulo Mendes Campos nasceu no dia 28 de Fevereiro de 1922. Morreu em 1991.)
sábado, 27 de fevereiro de 2021
Os engolidores
Engolidores, há-os. Como por exemplo engolidores de sapos, metaforicamente falando, engolidores de fogo, que na verdade não engolem mas borrifam, e engolidores de espadas. Engolidores de copas e engolidores de ouros não sei, mas engolidores de paus também há-os.
P.S. - Hoje, último sábado de Fevereiro, é Dia do Engolidor de Espadas.
Desarmado em parvo
Cabisbaixo e de mala na mão, o homem-bala apresentou-se logo de manhãzinha na rulote da gerência. Ia-se embora, para casa. Tinha descoberto durante a noite que era objector de consciência.
Que culpa é que o vinho tem?
(No próximo programa abordaremos as não menos fracturantes problemáticas do mau fígado, do mau-olhado e do mausoléu.)
Ruy Belo 8
O valor do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
O vento das árvores o vento dos cabelos
O vento do inverno o vento do verão
O vento é o melhor veículo que conheço
Só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em agosto
Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento
O vento actualmente vale oitenta escudos
Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto
(Ruy Belo nasceu no dia 27 de Fevereiro de 1933. Morreu em 1978.)
Albino Magaia 4
Peregrinação
Esta alma que sonha com mundos impossíveis
veio talvez de outras esferas
habitar a terra numa peregrinação cósmica
em busca da verdade.
Tatuada de revolta de nascença
sonha com mundos impossíveis
luta pela liberdade pelo amor.
Vencida pela rudeza palpável
de uma geração sem norte
mártir de uma sociedade injusta
um dia voltará a bater asas
prosseguindo a peregrinação cósmica
em busca da verdade.
Veio talvez de outras esferas
lançar um escarro numa geração sem norte
desafiar - com risco de perder
uma sociedade que não conhece outras esferas
nem pode entender uma revolta de nascença
nem pode (sem reprimir)
ver escarro de uma alma limpa...
Albino Magaia
(Albino Magaia nasceu no dia 27 de Fevereiro de 1947. Morreu em 2010.)
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021
Antón Zapata García 4
que Galiza non ten na súa fala
as virtudes do mármore e da cera,
do aceiro, do xílgaro e da ala?
¿Quén fúi o malpocado que nacera
con irta condizón de besta mala,
pra non ver que non houbo quen pudera
torcer o seu camiño nin matal-a?
¡Fuxe can!... ¡Vaite can!... Dareiche broa...
o tesouro da lingua non herdaras",
un consello dareiche encol da Lúa
e do mar de Galiza, cando brúa:
Antón Zapata García
(Antón Zapata García nasceu no dia 26 de Fevereiro de 1886. Morreu em 1953.)
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021
Gémeos afastados
Eram gémeos mas não pareciam. E compreende-se: nasceram com três anos de diferença.
Rio-me por tudo e por nada
Gosto das escorregadelas em casca de banana. É humor de casca-grossa. Mas prefiro os trambolhões em pele de cereja - piada fina. A vida é uma comédia e há quem não saiba...
P.S. - Hoje, 25 de Fevereiro, é Dia Internacional da Commedia Dell'Arte.
Cesário Verde 8
Lúbrica
Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás de por mim morrer,
Morrer muito contente.
Lançastes, no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cenas de rapazes!
Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!
Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso,
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:
Do teu rostinho oval
Os olhos tão nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.
Teus olhos sensuais,
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.
As grandes comoções
Tu neles, sempre, espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...
Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais
Que muitas bibliotecas!
"O Livro de Cesário Verde", Cesário Verde
(Cesário Verde nasceu no dia 25 de Fevereiro de 1855. Morreu em 1886.)
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021
Ladies first?
David Mourão-Ferreira 8
depois dos dentes, dos lamentos,
estamos deitados, lado a lado,
e desfolhamos sofrimentos.
Temos trint'anos, mais trezentos
de sofredora exaltação.
É este o cabo dos tormentos?
Ai, não e não! Ainda não.
Saboreamos o passado
por entre os beijos mais violentos
e mais subtis que temos dado.
E o monumento dos momentos
oscila, desde os fundamentos,
a tão febril consagração.
Mas estacamos, sonolentos.
Agora, não. Ainda não...
Tudo se torna esbranquiçado:
eram azuis, são já cinzentos
os horizontes do pecado...
Há nos teus ombros turbulentos
cintilações, pressentimentos...
Os nossos corpos descerão
para que abismos lamacentos?
Ah! não, e não! Ainda não!
Eis-vos, de novo, movimentos
que apunhalais a inquietação!
E assim unidos gritaremos
que não e não! que ainda não!
"Música de Cama", David Mourão-Ferreira
(David Mourão-Ferreira nasceu no dia 24 de Fevereiro de 1927. Morreu em 1996.)
Rosalía de Castro 10
Grilos e ralos, rans albariñas,
Sapos e bichos de todas crás,
Mentras ô lonxe cantan os carros,
¡Que serenatas tan amorosas,
N'os nosos campos sempre nos dan!
Tan sô acordarme d'elas,
Non sey o que me fai,
Nin sey s'é ben,
Nin sey s'é mal.
"Follas Novas", Rosalía de Castro
(Rosalía de Castro nasceu no dia 24 de Fevereiro de 1837. Morreu em 1885.)
José Augusto Seabra 2
Arde o infinito
no altar de Paulo
pelo céu aflito
a rasar as chamas
voando num grito
da fachada alta:
a última epístola
lida pela alma
da pátria. Tão tarde
para a eternidade?
"Poemas do Nome de Deus", José Augusto Seabra
(José Augusto Seabra nasceu no dia 24 de Fevereiro de 1937. Morreu em 2004.)
terça-feira, 23 de fevereiro de 2021
Microcontos & outras miudezas 235
- Faz discursos?
- Rezo pai-nossos.
Memória
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021
Levante-se o réu!
Foi levado a tribunal por matar o vício. Ele não sabia que era crime.
Matava o tempo por desfastio. Era um indivíduo frio e calculista.
Crime, disseram-lhe 3
Todas as manhãs matava o bicho. Depois o PAN foi para o Parlamento e ele passou a andar em jejum até ao meio-dia. E então matava o bicho.
Reuniram-se em segredo - disfarçados, desconfiados, culpados e urgentes. Eram os últimos, resistentes e irredutíveis como os gauleses. Uma candeia sigilosa e tremente alumiava o silêncio. Sentaram-se à volta de uma generosa vitela assada à moda de Fafe, clandestinos antes do tempo. Antes que seja crime.
- Mais vale só do que mal acompanhado - disse o recluso n.º 14.112. E fugiu.
Justiça
- Mais vale uma pomba na mão do que duas a voar - defendeu-se o pedófilo, em tribunal. Mandaram-no para casa.
Foi julgado e condenado por ter ligado a pedir o 224. O 112 achou que era gozo, chamada falsa. A verdade é que foram realmente precisas duas ambulâncias...
Mãos ao ar!, disseram ao maneta. E o maneta deixou-se ficar. Mataram-no por causa disso.
Denunciado por ter tossido em casa, foi detido pela polícia, presente ao juiz e metido em prisão preventiva. O vizinho delator morreu de caganeira naquele mesmo dia.
- Tem razão, senhor doutor juiz: se eu soubesse o que sei hoje...
- E então o que é que sabe?...
- Eu, senhor doutor juiz? Eu? Eu não sei nada...
Ponha-se no meu lugar
"Ponha-se no meu lugar, senhor doutor juiz", disse o réu. "Isso queria você", respondeu-lhe o meritíssimo.
Cala-te, boca
Se ele abrisse a boca e contasse tudo o que sabia a seu próprio respeito, estava bem fodido. Por isso comprou um assobio...
domingo, 21 de fevereiro de 2021
O'Neill, no Dia da Língua Materna
a ler as notícias…
Era uma vez a língua portuguesa
Cê tá topando?!...
Era o princípio activo de um certo e
determinado medicamento. Quando perdeu o cê, derivado ao acordo
ortográfico, deixou de fazer efeito...
"A minha pátria é a língua portuguesa", escreveu o nosso Fernando Pessoa. "A Pátria não é a raça, não é o meio, não é o conjunto dos aparelhos econômicos e políticos: é o idioma criado ou herdado pelo povo. Um povo só começa a perder a sua independência, a sua existência autônoma, quando começa a perder o amor do idioma natal. A morte de uma nação começa pelo apodrecimento da língua", escreveu Olavo Bilac, o brasileiro e sensato.
Bilac (1865-1918) e Pessoa (1888-1935). Não quero saber aqui quem é ovo ou quem é galinha, nem me interessa como assunto, de momento, o miserável, escusado e alegado acordo ortográfico. Lembrei-me foi dos professores doutores da mula ruça, traidores à pátria, que enchem a boca de "periúdos", de "interésses", de "rúbricas", de "perzeveranças", de "mediúcres". Enchem a boca e apodrecem a língua. Apodrecem a língua e matam a nação.
António Costa, por exemplo. Já era tempinho de aprender a falar português, depois de, em 2015, ter aprendido a não falar mandarim. Não há lá pelos corredores e gabinetes de São Bento quem saiba ensinar ao nosso primeiro-ministro a basezinha das regras de concordância, alguém que o proíba de comer sílabas enquanto fala? Falar com a boca cheia é, para além do mais, falta de educação.
Tectos falsos com garantia
- Estes tectos são mesmo falsos?
- Como judas...
Já repararam na quantidade de palavras da língua portuguesa que usam escusadamente um eme final? O eme que se escreve mas não se lê. Podia passar aqui o dia inteiro a dar exemplos uns atrás dos outros - abrevio porém dando seis, como os dedos de uma mão mais um: rodage, vantage, viage, sabotage, calibrage, portage, arage, garage. E afinal são oito, os dedos de uma mão mais três da outra. Para que é que estas palavras precisam do eme no fim se o eme no fim não se diz? E logo a letra eme, a das três perninhas, tantas perninhas, menos duas apenas do que as cinco patas do cavalo.
O eme, faço notar, que ainda por cima é a letra minúscula mais obesa do nosso abecedário. Um escândalo! Uma evidente desnecessidade e um tremendo desperdício de espaço num país com somente noventa e dois mil quilómetros quadrados. Mas isto os da troika não viram, e aos do acordo ortográfico a avaria também lhes passou ao lado. Salta aos olhos que estes doutores da mula ruça não andam de metro e muito menos de camioneta. Não falam com pessoas, nunca foram a Fafe. Ou, se calhar, faltou-lhes corage para acabarem de vez com a coisam...
Do marxismo
Depois de ter inventado o comunismo, Marx fez comédia em Hollywood, cantou "A mula da cooperativa" e a "Pomba branca", candidataram-no à Presidência da República, abriu um restaurante em Fafe, foi inspector canino numa série da TVI e jogou a defesa direito no Benfica e no FC Porto. Actualmente diz piadas na rádio.
P.S. - O "Manifesto Comunista", de Karl Marx e Friedrich Engels, foi publicado no dia 21 de Fevereiro de 1848.
sábado, 20 de fevereiro de 2021
Chove. E não é dia de Natal.
- Para a semana eles dão chuva.
- E que se coma, nada?...
O meteorologista
- O que tu querias era sol na eira e chuva no nabal...
- E o que é que tu tens contra os microclimas?...
O astrólogo
- E aqui chove sempre assim?
- Quer-se dizer, é de luas...
O lavrador
- Quem semeia ventos, colhe tempestades...
- E o que é que tu percebes de agricultura?...
O objector de consciência
- Chuva civil não molha militar!
- E bala militar não mata civil?...
O mal-agradecido
- Chove que Deus a dá!
- Escusava era de dar tanta...
O analfabeto
- Eu chovo, tu choves, ele chove...
O aferidor de pesos e medidas
- Esta noite choveu a cântaros!
- A almudes, se faz favor...
O previdente
- Nem que chova canivetes?
- Exactamente.
- Abertos?
- Não há problema...
- E se forem picaretas?
- Fechadas?...
O pragmático
- Ui, o que chove!...
- Mas é lá fora...
O respondão
- Vai chover...
- Vai tu!
O distraído
- Olhe que está a chover...
O meu espertíssimo telemóvel garante-me que lá fora, a esta hora, faz um rico dia de sol. Olho agora mesmo pela janela e chove copiosamente. Quando apanhar uma sombrinha, vou mandar arranjar a janela.
Perspicácia
Aquilo ontem é que foi chover. Será do tempo?
Deixai vir a mim os animaizinhos!
Havia um cão que tinha um dono muito bem mandado: obediente, brincalhão, carinhoso, esperto. Só lhe faltava ladrar...
Os bois chamam-se pelos nomes
O
porco é Ruço. A porca Vadia. A vaca Amarela. O boi Bonito. O touro
Osborne. A turina Malhada. O cão Bobi. A cadela Cadela. O cachorro Kent.
O gato Pantufas. A gata Gostosa. A cabra Cega. A ovelha Dolly. O
cabrito Montês. O cavalo Silva. O burro Velho. O rato Mique. O coelho
Branco. O leopardo Negro. A chinchila Mila. O furão Furão. A tartaruga
Ninja. A mulher Alheia. O homem Erecto. O peixe Dourado. O surfista
Prateado. A sardinha Biba. A pita Arisca. A periquita Alegre. O pombo
Armando. O crocodilo Lontra. A lontra Pilantra. O pato Patola. O galo
Badalo, a galinha Balbina, o pinto Jacinto e o peru Gluglu.
Assim se chamam os bois pelos nomes.
Macaquinhos no sótão
Tinha macaquinhos no sótão. Denunciado pela vizinha, foi detido e preso. Os animais seguiram para o jardim zoológico.
Cataminha, catatua, catadela
- É uma catatua esse pássaro tão vistoso que trazes ao ombro?...
- É, é: uma cataminha.
A realização do homem no século XXI
Adoptar um cão, comprar um bonsai e escrever no Facebook e similares.
Troco neto por um cão (pago a diferença)
Três
rapazes nos arrabaldes dos sessenta anos bem servidos, certamente
amigos de longa data, gente bem, meninos da Foz no seu tempo, fazem o
costumeiro passeio higiénico matinal na avenida à beira-mar. O da
esquerda empurra um carrinho de bebé com uma vaidade que só vista, e é
bonita de se ver. Os outros dois vão à rasca até às orelhas,
envergonhadíssimos com "a situação", evitam ser reconhecidos por quem
passa, como por exemplo eu, que não os conheço de lado nenhum, mais
desconforto era impossível. O da direita puxa o do meio pela manga e
diz-lhe, tapando a boca com a mão, como fazem agora os treinadores e
jogadores de futebol quando querem falar da mãe de alguém e sabem que há
câmara de televisão por perto: - Se inda ao menos fosse um cão, um
canito! Agora o caralho do neto...
Não é metáfora política. É a vida.
O amigo da onça
O
defeito dele não era ser amigo da onça. Era amigo da onça, da leoa, da
pantera, da gazela, da girafa, da égua, da vaca, da macaca, da galinha,
da pata, da avestruz, da gata, da cadela e das ratas em geral. Havia
quem o incensasse como paradigma da amizade aos animais. A mulher
chamava-lhe galdério, tarado.
O amigo dos animais
Etelvino
Ferraz da Cunha gosta muito de animais. Coelhos, perdizes, tordos e
sobretudo toiros. E só lamenta que em Portugal não sejam de morte.
Meia dose de xenofobia
A
chinesinha descia a rua em direcção à praia, e levava o cãozito pela trela.
Achei aquilo tão esquisito. Como se eu levasse a passear um frango de
churrasco.
Quem me dera ser cão
"Portugueses já gastam mais com cães do que com bebés", dizia uma vez a capa do semanário Expresso. Acontece no país certo.
P.S. - Hoje, 20 de Fevereiro, é Dia Mundial do Animal de Estimação. É também Dia Mundial da Justiça Social, mas isto que não saia daqui.
sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021
Deus perdoa. A idade não.
- Então hoje não vai o bifinho?
- Peixinho, se faz favor.
- Faz questão?
- De princípio.
- Sexta-feira..., Quaresma..., pois..., quer-se dizer que o amigo é católico...
- Praticamente.
- Praticante?
- Ex-praticante. Sabe como é: a idade não perdoa. Mas continuo ligado à modalidade.
Entre a bisca lambida e o bilhar às três tabelas
Era um atleta de mão cheia. Dele se dizia, e com razão, que dava cartas no jogo de bilhar. Passou ao lado de uma grande carreira, exactamente porque nunca percebeu que bisca lambida é uma coisa e as três tabelas são outra. As duas juntas, com efeito, não fazem modalidade.
P.S. - Hoje, 19 de Fevereiro, é Dia do Desportista. Ou Dia do Esportista, como se escreve e diz no Brasil.
Xosé María Díaz Castro 9
Polos días do Carmio a festa chega ó río.
(Xosé María Díaz Castro nasceu no dia 19 de Fevereiro de 1914. Morreu em 1990.)
Caminho 876
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021
A sarça ardente (ou presunção e água-benta)
Quando Moisés disse todo vaidoso "A minha vida dava um filme", Deus ficou bastante chateado, chegou lume ao monte e proclamou: - Agora apaga-o, que o Noé gastou-me a água toda.
António Aleixo 9
Quantas sedas aí vão,
quantos brancos colarinhos,
são pedacinhos de pão
roubados aos pobrezinhos!
"Este Livro Que Vos Deixo...", António Aleixo
(António Aleixo nasceu no dia 18 de Fevereiro de 1899. Morreu em 1949.)
Lêdo Ivo 4
A clandestina
- Quem é esta clandestina
que dentro de mim viaja
e de mim não se separa
mesmo quando estou dormindo
e aparece nos meus sonhos
breve e leve como a neve?
Quem é esta clandestina
doce e branca e feminina
que me segue quando saio
sombra em mim dissimulada
e torna a voltar comigo
colada ao cair da tarde?
Quem é esta clandestina
que de mim não desembarca?
Sou seu trem ou seu navio?
Seu barco ou seu avião?
E sua voz me responde:
- És meu berço e meu jazigo.
Antes mesmo de nasceres
eu já estava contigo.
até o fim da viagem.
(Lêdo Ivo nasceu no dia 18 de Fevereiro de 1924. Morreu em 2012.)
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021
Somos pó...
"Lembra-te, ó homem, que és pó e ao pó hás-de voltar", diz a Bíblia logo na terceira página, ainda as coisas estavam a começar a compor-se. Convenhamos: a Bíblia não é lá muito inspiradora para os cocainómanos em recuperação...
O melhor amigo da mulher
O cão é o melhor amigo do homem. Da mulher, há quem diga que é o gato.
P.S. - Hoje, 17 de Fevereiro, é Dia Mundial do Gato ou Dia Internacional do Gato. Há quem diga que é no dia 8 de Agosto.
Maria Braga Horta 4
A moça da Praça Mauá
De onde vem?
Para onde vai
a moça de olhos de gata?
Parou na praça.
Pararam
grumetes em torno dela.
A moça não tem destino:
só tem caminho de ir,
no escuro da vida, ao cais
onde espera os marinheiros
(urgentes, por demorado
percurso na solidão).
São eles que vêm e vão...
Não lhe trazem "souvenirs"
nem contam as aventuras
do mar e de estranhos portos.
Nem passado e nem presente
lhe contam. Nem ela os tem
para contar a ninguém.
Iguais, no seu merecido,
[...]
(Maria Braga Horta nasceu no dia 17 de Fevereiro de 1913. Morreu em 1980.)
Rogério Rodrigues 3
[...]
Quando passeares na cidade, não te esqueças das montanhas.
Ali se escondem os espíritos, os abandonados pelo tempo,
os banidos ladrões falhados no assalto à alegria.
Serei uma sombra, um nome vago, um morrer
sem memória. Não serei, Obscuro nulo de nada. Talvez um grão.
Estou de abalada para dentro de mim, sem bornal nem seguro.
Mas como eu sonho que um violino me toque como
se eu fosse o violino e a sua melodia. Flor,
deixa-me os espinhos e respira. Sinto que é brisa.
[...]
Rogério Rodrigues
(Rogério Rodrigues nasceu no dia 17 de Fevereiro de 1947. Morreu em 2019.)
Xosé Luís Franco Grande 2
Navego pola estrela dos meus soños
e sin sair de min eu vou moi lonxe,
sempre cara ningures…
Lonxe de min, moi lonxe,
eu vou sin volta polo mar do esquenzo,
onde poría medo dar con un.
E de vagar afúndome nun soño
onde xa non se sabe
si un volve, vai ou ven…!
Xosé Luís Franco Grande
(Xosé Luís Franco Grande nasceu no dia 17 de Fevereiro de 1936. Morreu em 2020.)
terça-feira, 16 de fevereiro de 2021
Já me tinhas dito
Luísa Dacosta 7
(Luísa Dacosta nasceu no dia 16 de Fevereiro de 1927. Morreu em 2015.)
Lois Pereiro 8
cal visión dunha imaxe entresoñada
no seu peito en perfecta simetría
cun interno tremor que me fascina
desexaría entrar nela e refuxiarme
no seu corpo secreto para sempre
protexido da morte
coa súa vida
féndeme o corpo un húmido arrepío
e bícame as vértebras con furia
nun vértigo de dor e de tenrura.
"Poesía Última de Amor e Enfermidade", Lois Pereiro
(Lois Pereiro nasceu no dia 16 de Fevereiro de 1958. Morreu em 1996.)
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021
A morte do maneta
Mãos ao ar!, disseram ao maneta. E o maneta deixou-se ficar. Mataram-no por causa disso.
O carnaval do O'Neill
Pelo braço ou pelo nariz
Vem ao baile vem ao baile
E vais ver como te ris
Deixa a tristeza roer
As unhas de desespero
Deixa a verdade e o erro
Deixa tudo vem beber
Vem ao baile das palavras
Que se beijam desenlaçam
Palavras que ficam passam
Como a chuva nas vidraças
Vem ao baile oh tens de vir
E perder-te nos espelhos
Há outros muito mais velhos
Que ainda sabem sorrir
Vem ao baile da loucura
Vem desfazer-te do corpo
E quando caíres de borco
A tua alma é mais pura
Vem ao baile vem ao baile
Pelo chão ou pelo ar
Vem ao baile baile baile
E vais ver o que é bailar.
Alexandre O'Neill, "No Reino da Dinamarca"
domingo, 14 de fevereiro de 2021
Até que a morte
Já ia no sétimo matrimónio e garantia que nunca casara por amor. Por interesse então?, perguntavam-lhe. Que não. Por dinheiro? Também não. Que casou sempre por acaso...
Homem de famílias
O casamento, para ele, era tudo. Aliás, tinha dois. A mesmo tempo.
Os meus três primeiros casamentos
Os meus três primeiros casamentos correram todos muito bem. Foram, por
ordem de entrada, o casamento do meu padrinho e tio Mérico com a minha
tia Laura, o casamento do meu tio Zé da Bomba com a minha tia Lena e o
casamento da minha irmã Nanda com o meu cunhado Álvaro. Depois dos meus
três primeiros casamentos, fui evidentemente a outros, incluindo ao meu,
que também não desfazendo. E é a vida...
Convidados
Compareceram todos: o Sr. Moura, o Sr. Bragança, o Sr. Almeida, o Sr.
Maia, o Sr. Castelo Branco, o Sr. Guimarães, o Sr. Paredes, o Sr.
Abrantes, o Sr. Monchique, o Sr. Évora, o Sr. Braga, o Sr. Lamego, o Sr.
Leiria, o Sr. Almada, o Sr. Viana e o Sr. Baião. Eram um grupo bastante
homogéneo e deveras representativo. Inesperadamente apareceu também o
Sr. Antunes. Ele é preciso ter lata...
O divórcio aos cinquenta anos era-lhe um desgosto muito grande. Ainda por cima trocado por dois rapazes de vinte e cinco...
Branca de Neve brincava às casinhas com a casa dos sete anões. Com os anões brincava aos médicos, há quem diga.
"Cheiras a cerveja", disse ela. "Aproveita", disse ele.
O simpático casal Carter, Jimmy e Rosalynn, estão à beira de comemorar 75 anos de casamento, tantos quantos contarão de vida o pândego Donald Trump e George W. Bush, o inventor das armas químicas do Iraque. Jimmy Carter e Rosalynn Smith Carter têm o matrimónio mais duradouro de toda a história presidencial dos Estados Unidos. E os americanos estão todos contentes, porque acham sempre que são os maiores. Eles não sabem que, em Portugal, o Casal Garcia, since 1939, é só fazer as contas, já vai em 82 anos...
O matrimónio é a herdança que a mãezinha dá ou deixa. Um bom matrimónio tem casas, carros, terrenos, jóias e muito dinheiro no banco.
Corsino Fortes 7
Porta de sol
Das colinas de colmo
com portas de sol
Descem crianças
nuas e magras
como violas
As costelas dentro das cordas
Todas
primogénitas
do mesmo ventre
E filhas
Do mesmo vulcão E da mesma viola
Da mesma rocha E do mesmo grito
A ilha roda no rosto da criança
com a "vareta presa" na roda do vento
Nem sempre
A criança respira
um pulmão
roto de mapas
E assim
como as ilhas
Ao pôr-do-sol
Se alimentam
De fonema
Cada criança
É ditongo de leite
com sangue nas vogais
(Corsino Fortes nasceu no dia 14 de Fevereiro de 1933. Morreu em 2015.)
sábado, 13 de fevereiro de 2021
É hoje! É hoje!
Hoje é Dia Internacional do Preservativo. Deixe-se de coisas, vá lá ao fundo da gaveta, vá!...
A mão que cumprimentou Agostinho da Silva
Cyro Armando Catta Preta 5
"Velho Retrato", Cyro Armando Catta Preta
(Cyro Armando Catta Preta nasceu no dia 13 de Fevereiro de 1922. Morreu em 2010.)
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021
Notícias da retaguarda 5
Era uma pessoa muito dada. Contra todas as recomendações, acolheu de braços abertos o novo coronavírus. Que descanse em paz!
A importância do retrovisor no combate à pandemia
O espelho retrovisor central é um instrumento da máxima importância dentro de um veículo automóvel. Serve para pendurar coisas. Não coisas quaisquer, à sorte, mas coisas próprias de pendurar num retrovisor. Por exemplo, seria impensável pendurar num retrovisor uma gabardina molhada ou um guarda-chuva aberto, porque o retrovisor não é um cabide, é um retrovisor. E no retrovisor penduraram-se, ao longo da história, terços e senhoras de Fátima fosforescentes, relíquias sagradas da Terra Santa contrafeitas, árvores mágicas ambientadoras, castanholas, galhardetes dos Bombeiros de Montalegre, da Junta de Canas de Senhorim, da Câmara de Nelas, do Real Madrid e do Benfica, fitinhas vermelhas do Leixões, miniaturas de casais minhotos e folclóricos, óculos de sol e óculos de chuva, porta-chaves, porta-aviões, trevos de quatro folhas, estrelas de cinco pontas, cornos de besouro ou escaravelho e cornos em geral, patas de coelho, figas, ferraduras, CD, mesmo largos anos depois de ter passado a novidade, e agora penduram-se as máscaras. Exactamente: o sítio da máscara higiénica e sanitárica que nos protege da pandemia e da morte é o retrovisor, o que só lhe medra a relevância - ao retrovisor.
Ora bem: eu não tenho carta de condução, não sei conduzir e não tenho carro. E faço questão de elencar estas três fundamentais asserções, porque elas, as asserções, parecendo sinónimas e redundantes, não o são, não o são. Não o são. Na verdade, há quem não tenha carta de condução, saiba conduzir e não tenha carro; há quem não tenha carta de condução, saiba conduzir e tenha carro; há quem tenha carta de condução, não saiba conduzir e não tenha carro; há quem tenha carta de condução, saiba conduzir e não tenha carro; e até há quem tenha carta de condução, saiba conduzir e tenha carro - o que é uma raríssima coincidência. O mais certo é eu não ter esgotado todas as variáveis possíveis, mas desconfio que já perceberam o meu ponto de vista: não tenho carta de condução, não sei conduzir e não tenho carro. Portanto não tenho retrovisor.
Chegados aqui - de transporte público, evidentemente -, a grande dúvida que se me coloca é a que se segue: onde é que eu penduro a máscara? Na cara com certeza que não, porque me corta o ar e ainda ontem estive para morrer três vezes quando fui à peixaria, uma, e à padaria, duas. Por outro lado, e agora é uma dúvida mais pequena, alguém me saberá informar se haverá alguma brecha legal que me permita, vá lá, dar a volta às normas da Direcção-Geral da Saúde (DGS, como a pide), dispensando-me liminarmente do uso da máscara sufocante e substituindo-a, digamos, por um CD, com o nariz enfiado no buraco, o que já seria algum arejo? Haverá? Era o que eu gostava de saber...
P.S. - Mais sobre retrovisor, mas de outro ângulo, aqui.
A verdade é estas: os cães já não conseguem aguentar mais um confinamento. Estão exaustos! Regra geral nunca tinham saído de casa.