quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Quando os óscares eram acúrsios 9

Foto Hernâni Von Doellinger

Os velhos cinemas, que é deles?
O cinema foi sempre a coisa mais importante da minha vida até deixar de ser. Creio que a última vez em que entrei numa sala de cinema levava pela mão o meu filho para vermos "O Rei Leão", portanto no Verão de 1994 e lamentavelmente era a versão portuguesa. 
Comecei cedo, ainda de calças curtas e a dar uso na leitura das legendas às primeiras letras que trazia aprendidas da escola. Era o tempo do cinema ao ar livre na parada das traseiras dos velhos Bombeiros, na Rua José Cardoso Vieira de Castro, entre os dois palacetes. Debaixo da escadaria do quartel foi montada uma espaçosa e saudável cabina de projecção, toda ela feita em lusalite, e o terreiro enchia-se de cadeiras. O operador era o Porinhos, se não me engano, eu via os filmes de camarote, isto é, da janela do quarto do meu padrinho e tio Américo derivado à ausência de idade, depois o cinema acabou sem mais nem menos, a parada lá ficou, como o próprio nome indica, e o barraco, de tão jeitoso, aproveitou-se para arrecadação das tralhas do meu avô.
Ainda em Fafe, mais tarde, tornei-me ferrinho do Teatro-Cinema, andei pelas aldeias com o Pimenta, de catrel e altifalantes, a anunciar os "magníficos" filmes que, pelo Verão, passavam no campo de futebol e eram tão fraquinhos, frequentei bissextamente o salão inacabado do Martinho da Granja, se a memória não me atraiçoa, e fui uma ou duas vezes ao Estúdio Fénix. Entretanto, levado pela vida, tinha-me virado para Braga - São Geraldo e Teatro-Circo -, e para Guimarães - São Mamede e Jordão. Vi cinema, de forma avulsa e por exemplo, em Vila Real, Figueira da Foz, Amadora, Lisboa, Dublin ou Bordéus, onde estivesse e pudesse.
Instalei-me no Porto e não me escapou um: Águia D'Ouro, Batalha, Carlos Alberto, Charlot, Coliseu, Estúdio, Estúdio Foco, Estúdio 400, Júlio Dinis, Lumière, Nun'Álvares, Olímpia, Passos Manuel, Pedro Cem, Rivoli, Sá da Bandeira, Terço, Trindade, Vale Formoso e até o Vitória, na Circunvalação mas tecnicamente do lado de Rio Tinto, Gondomar.
E agora, que é deles? Onde estão os cinemas do Porto? Partiram todos em tournée? E tornarão? Eu sei que também não vou ao cinema há 25 anos, mas a culpa não é minha. É do meu filho, que cresceu depressa demais.

De Paris, com amor

Foto Hernâni Von Doellinger

Os franceses são uns exagerados. Os parisienses abusam. E se o assunto for o amor, l'amour, então é que ninguém os atura. Compreende-se: os parisienses são os únicos que realmente têm sempre Paris. "Casablanca" é omisso quanto a aloquetes (cadeados, se lido em Lisboa). Não se sabe, por isso, se Rick e Ilsa se juraram aferrolhadamente um ao outro numa qualquer ponte da Cidade Luz e deitaram a chave ao rio, como agora se usa, mas vamos admitir que sim. Era bonito ter começado dessa maneira, no Sena, a moda que por acaso até já chegou cá, graças a Deus temperada com recato e parcimónia, como convém a um país de brandos costumes.

(Publicado originalmente no dia 23 de Maio de 2012)

Só destes, tenho sete 60

Foto Hernâni Von Doellinger

Gabriel Mariano 2

Única dádiva

Os engajadores levaram
a nossa única dádiva
e já ninguém devolve
o que nos foi roubado.

Longa é a ladeira que a fome alonga.

Enquanto eu vivo
as perguntas duram
E eu vivo da fome
interrogativamente.

Longa é a ladeira que a fome alonga.

Como podem ladrões
rondar meus olhos
se amor só
meus olhos tem?

Longa é a ladeira que a fome alonga
terralonginquamente.


"12 Poemas de Circunstância", Gabriel Mariano

(Gabriel Mariano nasceu no dia 18 de Maio de 1928. Morreu no dia 28 de Fevereiro de 2002.)

I want to ride my bicycle 84

Foto Hernâni Von Doellinger

Paulo Mendes Campos 3

Despede teu pudor

Despede teu pudor com a camisa
E deixa alada louca sem memória
Uma nudez nascida para a glória
Sofrer de meu olhar que te heroíza

Tudo teu corpo tem, não te humaniza
Uma cegueira fácil de vitória
E como a perfeição não tem história
São leves teus enredos como a brisa

Constante vagaroso combinado
Um anjo em ti se opõe à luta e luto
E tombo como um sol abandonado

Enquanto amor se esvai a paz se eleva
Teus pés roçando nos meus pés escuto
O respirar da noite que te leva.

Paulo Mendes Campos

(Paulo Mendes Campos nasceu no dia 28 de Fevereiro de 1922. Morreu em 1991.)

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Salvemos o gaivotal da Riguinha e Carcavelos

Foto Hernâni Von Doellinger

O estuário da ribeira da Riguinha e Carcavelos é a principal atracção turística da Praia de Matosinhos. E tem um valor ecológico incalculável. Mas não está legalmente protegido e essa omissão é um perigo. Vamos admitir que, por absurdo, algum maluco episodicamente com poder se lembrava de subterrar o curso de águas, introduzindo-o directamente no oceano: assim se destruiria um dos mais interessantes e bem frequentados gaivotais da costa portuguesa. Estão a ver o desastre?
Mais uma pergunta, já agora, e esta dirigida a quem manda, mas upa upa: para quando a criação da Reserva Natural do Gaivotal da Praia de Matosinhos? Era uma garantia, ficava o assunto resolvido.
A este santuário, estrategicamente localizado mesmo aos pés da famosa Anémona da Olá, as gaivotas acorrem aos milhares e ao cheiro. Porque a Riguinha cheira. O estuário da Riguinha e Carcavelos parece a desembocadura de um esgoto. A Riguinha tem tudo para ser um bom esgoto, mas é uma ribeira de papel passado. Quando chove, a ribeira alimenta-se das sarjetas das ruas e as gaivotas agradecem. As águas são gordurosas e amiúde recheadas, são ora pretas ora castanhas, sobretudo castanhas. E as gaivotas apreciam. E todo este património não se pode perder.
As gaivotas, que têm merda na barriga mas não na cabeça, não se acreditam que a Riguinha é uma ribeira. Acham que é um esgoto. E eu até as compreendo.

Foto Hernâni Von Doellinger

(Texto profético publicado originalmente no dia 11 de Dezembro de 2012. Meia dúzia de anos depois, a Câmara de Matosinhos tende finalmente a concordar com as gaivotas - isto é, a ribeira da Riguinha não é ribeira nenhuma, é um esgoto -, e já pensa em canalizar a porcaria para 300 metros da costa. Subsiste a magna questão: e o gaivotal?)

Quando os óscares eram acúrsios 8

Foto Hernâni Von Doellinger

Teatro Jordão, da pornografia à morte lenta
Riscado da lista de pagamentos da Capital Europeia da Cultura 2012, o Teatro Jordão está para ali, com todo o aspecto de abandonado e esquecido, a um mês de fazer 75 anos. É mais uma triste metáfora do desgraçado país que somos. Já li sobre reabilitações, orquestras sinfónicas, bandas, academias, artes dramáticas e visuais, universidades, estudos, anteprojectos, projectos - e nada. Tretas e mais metáforas. Havia umas obras marcadas para terem início em 2013 e eu não sei porquê mas não acredito nelas. Já não há metáforas que aguentem. Não sei o que Guimarães pensa ao certo do caso, mas a mim parece-me que o azar do Jordão é a vizinhança: o mau-olhado do Centro Cultural Vila Flor que lhe fica resvés e come tudo, tudo, tudo, como o Sebastião da cantiga.
Também não sei o que o Teatro Jordão significa realmente para os vimaranenses e se a cidade reivindica a preservação física da velha sala de espectáculos. Sei o que o Jordão significa para mim, mas a minha memória vai para além das pedras. A casa pode vir abaixo, que as recordações daqui não saem.
"Chove em Santiago", o filme de Helvio Soto sobre os últimos dias do governo de Salvador Allende e o golpe militar no Chile, vi-o pela primeira vez no Jordão de casa cheia e a explodir de repente numa enorme manifestação antifascista, comício de ignição espontânea, de raiva, o pessoal de pé em cima das cadeiras, de punhos cerrados e erguidos, com uma única e cada vez mais vociferada palavra de ordem - Filhos da puta! Filhos da puta!! Filhos da puta!!!
Andávamos ainda com o fogo do 25 de Abril no rabo e ninguém nos aturava. Bons tempos aqueles, havia sonhos.
O Jordáohe, como se chama em Guimaráes, foi também o cinema dos meus primeiros filmes pornográficos. Era a novidade. A pornografia tinha chegado há pouco, com a liberdade, que afinal é sempre um pau de dois bicos. Devo esclarecer, por falar nisso, que os filmes pornográficos do Jordão faziam muito mal aos intestinos, pior do que garrafão de vinho doce bebido de uma assentada. Nos intervalos era um ver se te avias para ir à retrete, filas imensas de braguilhas aflitas à porta das sentinas, porque os urinóis para o caso não serviam.
Quando me internacionalizei, um ou dois anos depois, em França, pude verificar que com os estrangeiros, muito mais batidos na matéria, a coisa funcionava de maneira diferente. Para além de cada qual poder escolher o lugar que quisesse na sala praticamente às moscas, não era preciso esperar pelo intervalo nem ir à casa de banho. Os castiços dos franceses, toujours en avance...

Já agora: ao contrário do que muito boa gente pensa que sabe, incluindo alguns figurões com alegadas responsabilidades literárias, "Chove em Santiago", célebre verso de abertura de um belíssimo poema de Federico García Lorca, não se refere a Santiago do Chile, mas a Santiago de Compostela. À minha querida Santiago de Compostela, pela qual o poeta e dramaturgo andaluz também se enamorou.
Lorca publicou em 1935 um pequeno livro a que deu o nome de "Seis Poemas Galegos". Em galego o escreveu e o poema mais conhecido do opúsculo é exactamente este:

Madrigal á cibdá de Santiago

Chove en Santiago,
meu doce amor.
Camelia branca do ar
brila entebrecida ô sol.
 

Chove en Santiago
na noite escura.
Herbas de prata e de sono
cobren a valeira lúa.
 

Olla a choiva po-la rúa,
laio de pedra e cristal.
Olla no vento esvaído,
soma e cinza do teu mar.
 

Soma e cinza do teu mar,
Santiago, lonxe do sol;
ágoa da mañán anterga
trema no meu corazón.


Federico García Lorca 


(Publicado originalmente no dia 16 de Outubro de 2013)

Foi um peido que me fugiu...
O Dia dos Enganos era celebrado em Fafe com pompa e circunstância. Era uma tradição. Na minha terra, naquele tempo, festas assim familiares como por exemplo o Entrudo tinham as suas normas, liturgia própria. Pelo Entrudo, se me dão licença, eram os peidos-engarrafados no Cinema, um fedor que eu sei lá mas uma risota, ou se calhar um risoto, como hoje será mais fino. Durante o resto do ano, no Cinema, só peidos biológicos, caseiros, que, não desfazendo, também eram uma categoria. Eram peidos subversivos, contra o governo, que nos alimentava a couves e tínhamos de as comprar. Mas o Dia dos Enganos, que foi ao que vim: no Dia dos Enganos saíamos para a rua, ali no Santo Velho, estrategicamente colocados entre os tascos do Paredes e do Zé Manco, e dizíamos a quem passava: - Ó senhor, olhe o que lhe caiu!...
- Foi um peido que me fugiu... - levávamos de resposta, que também fazia parte. Um sucesso!
É, bons tempos: pobretes mas alegretes. Os peidos eram o nosso escape natural, o epítome do divertimento que se podia...


(Publicado originalmente no dia 1 de Abril de 2016)

Os passarinhos, tão engraçados 76

Foto Hernâni Von Doellinger

Ruy Belo 6

Um dia não muito longe não muito perto

Às vezes sabes sinto-me farto
por tudo isto ser sempre assim
Um dia não muito longe não muito perto
um dia muito normal um dia quotidiano
um dia não é que eu pareça lá muito hirto
entrarás no quarto e chamarás por mim
e digo-te já que tenho pena de não responder
de não sair do meu ar vagamente absorto
farei um esforço parece mas nada a fazer
hás-de dizer que pareço morto
que disparate dizias tu que houve um surto
não sabes de quê não muito perto
e eu sem nada pra te dizer
um pouco farto não muito hirto e vagamente absorto
não muito perto desse tal surto
queres tu ver que hei-de estar morto?


"Homem de Palavra(s)", Ruy Belo

(Ruy Belo nasceu no dia 27 de Fevereiro de 1933. Morreu em 1978.)

Offshore, se fashavore 246

Foto Hernâni Von Doellinger

Baptista-Bastos 3

Ou por outra: esboça-se-lhe nos lábios finos um sorriso. Sorri à lembrança do que lhe acontecera na noite anterior, copos e copos, o feltro da bebida aquecida na concha das mãos, aturdido e crispado. O bar, sujo de tristeza. E a penumbra envolvente, com o atrito do álcool no cérebro, torda o reduzido quadrilátero, onde as pessoas povoam as sombras com vozes, num excelente potencial de espaço para se beber até as palavras ficarem suficientemente trôpegas, até os gestos adquirirem uma descoordenação mole, sonolenta, todavia liberta. [...]

"Elegia Para Um Caixão Vazio", Baptista-Bastos

(Baptista-Bastos nasceu no dia 27 de Fevereiro de 1933. Morreu em 2017.)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Quando os óscares eram acúrsios 7

Foto Hernâni Von Doellinger

Quando Ben-Hur foi impedido de entrar no Presépio
Ben-Hur queria entrar no Presépio. Chamou o grupinho do costume - Spartacus, Maximus, Maciste, Hércules, Sansão, Demétrio, Ursus e Nuno Salvação Barreto -, não fosse a coisa dar para o torto. E lá foram. O Pescador do Laguinho, que sabia kung fu e era segurança em part-time, impediu-lhes terminantemente o acesso: - Noite temática, meus senhores, hoje é só anjos, pastores e reis magos. Ordens de cima. Apareçam pela Páscoa... 

Ia morrendo por causa de quatro passadeiras
Vamos supor que era a Grand Central Terminal de Nova Iorque e estávamos no quentinho do cinema. Mas estávamos em Vila do Conde à chuva e era um tanque público no quarteirão da Santa Casa da Misericórdia. Eu passando. Um carrinho de bebé sem condutor sai lentamente do lavadouro, primeiro em câmara lenta como nos filmes e depois, rapidamente embalado pela força da realidade, adeus passeio, vou para a estrada da morte que se faz tarde. Ia. Naquele momento exacto sinto o primeiro impulso de heroísmo de toda a minha vida, voo para o carrinho a pensar na TVI, no YouTube, na medalha do 10 de Junho (pensa-se em muita merda numa fracção de segundos), rezo a Nosso Senhor, falta-me o ar de repente, é o coração que me entope cobardemente a garganta, as pernas tremem-me como varas verdes mas desta vez não falham, voo para o carrinho e agarro-o já no milagroso resvés com um Toyota Yaris que passa nas horas e me enche de nomes, mas é o menos. Graças a Deus. Respiro. A mãe grita, de mãos espetadas na cabeça desgrenhada, Ai o carrinho, e o pai berra Olha o carrinho, e dá mais uma puxa no paivante.
O carrinho?, interpelo eu e repito, mais fodido do que outra coisa, O carrinho? E a criança, caralho?, A criança?, as palavras saem-me aos soluços e eu preciso de uma cadeira para morrer ali sentado. Mas qual criança?, dizem-me os dois, com caras combinadas de quem me manda à merda com a senha número um e portanto sem cadeira, Qual criança?, e riem-se afinadíssimos da minha agonia. Tinham praticamente razão: olhei para o carrinho que mantinha nas mãos cerradas e aflitas, o bebé eram quatro passadeiras lavadas, enroladas e ainda pingantes - as quatro filhas da puta pelas quais eu só não faleci prematuramente porque sou um gajo cheio de sorte.  


P.S. - A famosa cena do carrinho de bebé descendo a escadaria, com a criança dentro, no meio do tiroteio, em "Os Intocáveis", de 1987, já tinha sido vista em "O Couraçado Potemkine", de 1925.

(Publicado originalmente no dia 16 de Janeiro de 2014)

O andar de John Wayne
Gostava de ter um andar como o do John Wayne. Vivia num T0 com vista para a parede.
..

Mobiliário urbano (propriamente dito) 107

Foto Hernâni Von Doellinger

José Mauro de Vasconcelos 6

Casa nova. Vida nova e esperanças simples, simples esperanças.
Lá vinha eu entre seu Aristides e o ajudante, no alto da carroça, alegre como o dia quente.
Quando ela saiu da rua descalça e entrou na Rio-São Paulo foi aquela maravilha, a carroça agora deslizava macia e gostosa.
Passou um carro lindo ao nosso lado.
- Lá vai o carro do português Manuel Valadares. Quando íamos atravessando a esquina da Rua dos Açudes, um apito ao longe encheu a manhã.
- Olhe seu Aristides. Lá vai o Mangaratiba.
- Sabe tudo você, não?

- Conheço o grito dele.
Só as patas dos cavalos fazendo o toque-toque na estrada. Observei que a carroça não era muito nova. Ao contrário. Mas era firme, económica. Com mais duas viagens traria todos os nossos cacarecos. O burro não parecia muito firme. Mas eu resolvi agradar.
- O senhor tem uma carroça muito linda, seu Aristides.
- Dá pro que serve.
- E o burro também é bonito. Como se chama ele? - Cigano.
Ele não queria muito conversar.

"O Meu Pé de Laranja Lima", José Mauro de Vasconcelos

(José Mauro de Vasconcelos nasceu no dia 26 de Fevereiro de 1920. Morreu em 1980.)

Caminho 617

Foto Hernâni Von Doellinger

Antón Zapata García 2

O herbedeiro de Lourido

[...]
Qué lediza miral-o,
pra os meus ollos de neno mariñeiro,
cando iba, pol-o outón, leval-a moaxe,
non ben cantaba o galo
da casa no poleiro!:
un ferrado de millo,
a pê, dendes de Laxe,
tripando no morrillo
da branca carretera, ou pol-a praia
onde o Ártabro salaia,
ou pol-o mal camiño, costa arriba,
de croios pren e hirtada pedra viva...
[...]

Antón Zapata García

(Antón Zapata García nasceu no dia 26 de Fevereiro de 1886. Morreu em 1953.)

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Desfile das forças em parada

Foto Hernâni Von Doellinger

Caio Fernando Abreu 5

Adriana estava sentada em uma poltrona, folheando um livro sem muito interesse. Suas roupas eram modestas, mas não pobres, tinha longos cabelos negros que nunca prendia e seus olhos também eram negros, dando-lhe uma expressão triste que jamais se apagava, nem mesmo quando ela sorria.
Subitamente, uma batida à porta. Adriana assustou-se, mas logo levantou correndo para abrir, não sem antes arrumar os cabelos com as delicadas mãos.
- Boa noite, Adriana - disse o homem a quem a jovem atendeu.
- Oh, Fernando! - falou ela, com sua voz quente e vibrante.
- Fernando, tenho tanta coisa para contar... O homem entrou. Estava ricamente vestido, mas seu rosto era vulgar. Tinha a testa muito larga, contrastando com os olhos miúdos e vivos que examinavam a moça com avidez.
Adriana fê-lo sentar e, tomando as mãos dele entre as suas, levou-as à boca, roçando-as suavemente com os lábios. 
- Querido - ela disse comovida -, há mais uma estrela no céu, há mais um anjinho aos pés da Virgem Maria...
- Que significa isso, Adriana? - perguntou Fernando, com o largo sobrecenho franzido.
A moça, surpreendida com a reação, não conseguiu falar e fez um quase imperceptível aceno com a cabeça. Por fim conseguiu balbuciar timidamente algumas palavras.
- S-sim, Fernando... Agora poderemos nos casar e... então nós iremos viver no seu castelo, Fernando... no castelo de Saint-Marie... nós e nosso filhinho...
Fernando, furioso, deu-lhe um empurrão gritando:
- Idiota! Você pensava que eu, o senhor de Saint- Marie, iria casar-me com você? Com você, uma zinha qualquer? Mulheres iguais a você, Adriana, encontram-se aos montes em qualquer lugar, mulheres que com um gesto oferecem-se a qualquer homem!

"Ovelhas Negras", Caio Fernando Abreu
 
(Caio Fernando Abreu nasceu no dia 12 de Setembro de 1948. Morreu no dia 25 de Fevereiro de 1996.)

Quando os óscares eram acúrsios 6

Foto Hernâni Von Doellinger

Sobreviventes do fim do mundo
Gosto daqueles filmes da moda que contam o fim do mundo, os diversos modelos de fim do mundo, e a luta heróica dos sobreviventes. Catástrofes de proporções apocalípticas, cenários dantescos, a estrada da morte, o-drama-a-tragédia-o-horror. O planeta desaparece e, no seu regenerador desaparecimento, traz à tona os melhores dos melhores de todos nós, americanos por certo. O pai-herói, a mãe-coragem, o bebé-milagre, o Sepúlveda-Taberneiro, de quem ninguém sabia há mais de quarenta anos, desde que pôs os cornos à mulher no Sabugal e fugiu com a espanhola. Para a América. Dão bons títulos nos jornais.
Estes filmes fazem-me acreditar na redenção da humanidade. Os sobreviventes são a esperança num futuro melhor. Espera... - mas qual futuro e quais sobreviventes? Se o mundo acabou, como é que há sobreviventes?...

Do preço do brushing ao Império dos Sentidos
Disseram-me que me faziam um brushing por quatro euros e meio. O panfleto metido na caixa do correio sugere que se trata de uma promoção para o "Mês do Amor", e eu acho que compreendo, embora seja um gajo antigo, do tempo em que nem havia Dia dos Namorados. Quatro euros e meio são novecentos escudos: sinceramente não sei se isto é uma pechincha ou marketing enganador, estou por fora do mercado, não ando por aí a apreçar o brushing, e ainda não decidi se gosto que mo façam em salding, mas percebo a ideia.
Ao contrário do que os falsos moralistas defendem, o brushing é uma coisa como outra qualquer. Faz parte. Por exemplo: muitas mulheres gostam e têm muita pena de não fazerem brushing por causa do atraso de vida dos seus maridos, que só admitem o brushing na cabeça das outras e gabam-se. São fariseus de carregar pela boca.
O panfleto oferece também "Nuances", por quinze euros e meio, "Extenções" por trinta euros e meio, e "Alisamento (tudo incluído)", por trinta e cinco euros e meio. Colocada assim a questão, não digo que não vá lá, embora precise de pedir um empréstimo ao banco. Trinta e cinco euros e meio são sete contos e quinhentos, mas, valha-me Deus, é "alisamento" e com "tudo incluído".
Oito euros e meio custa o "brushing+corte". Preços comparados, até parece barato, mas nesse é que não me apanham - vi uma vez num filme, chamava-se "O Império dos Sentidos". Dasse!...

P.S. - Esclareço os potenciais interessados que os preços acima reportam a Fevereiro de 2014. Actualmente, segundo acabo de ser informado novamente pela caixa do correio, "brushing+corte+creme" andará à volta dos quinze euros. Em promoção, é preciso que se note...

(Publicado no dia 3 de Agosto de 2016) 

RTP Alzheimer
Os programadores da RTP Memória acham que os seus provectos telespectadores sofrem todos de Alzheimer ou então são os próprios programadores que padecem deste mal. Das duas, uma!
Os programadores da RTP Memória acham que os seus provectos telespectadores sofrem todos de Alzheimer ou então são os próprios programadores que padecem deste mal. Das duas, uma!
O que é que eu estava a dizer? Ah!, já sei. Os programadores da RTP Memória acham que os seus provectos telespectadores sofrem todos de Alzheimer ou então são os próprios programadores que padecem deste mal. Das duas, uma! Só assim se explica que nos andem a dar, de quinze em quinze dias, o "Crime no Expresso do Oriente", com Albert Finney, ou a "Morte ao Sol", com Peter Ustinov, numa confusão de Poirots também ela pouco adequada ao público-alvo do canal. Entre estes dois, já agora, eu por acaso prefiro o David Suchet, mas isso não interessa para aqui.
O que aqui interessa é que ainda há pior do que esta perigosa overdose de Agatha Christie. Parece impossível, mas há! E o pior é levar com a xaropada da "Máscara do Ranger" pelo menos quatro vezes em menos de meio ano, e duas delas para aí num mês, como se tivesse sido receitada pelo médico. Por favor, alguém que pare com isto! Isto é crime, é violência psicológica contra idosos!  


(Publicado originalmente no dia 3 Abril de 2012)

Também faço isto muito bem 163

Foto Hernâni Von Doellinger

Cesário Verde 6

Eu e ela

Cobertos de folhagem, na verdura,
O teu braço ao redor do meu pescoço,
O teu fato sem ter um só destroço,
O meu braço apertando-te a cintura;

Num mimoso jardim, ó pomba mansa,
Sobre um banco de mármore assentados.
Na sombra dos arbustos, que abraçados,
Beijarão meigamente a tua trança.

Nós havemos de estar ambos unidos,
Sem gozos sensuais, sem más ideias,
Esquecendo para sempre as nossas ceias,
E a loucura dos vinhos atrevidos.

Nós teremos então sobre os joelhos
Um livro que nos diga muitas cousas
Dos mistérios que estão para além das lousas,
Onde havemos de entrar antes de velhos.

Outras vezes buscando distracção,
Leremos bons romances galhofeiros,
Gozaremos assim dias inteiros,
Formando unicamente um coração.

Beatos ou pagãos, vida à paxá,
Nós leremos, aceita este meu voto,
O Flos-Sanctorum místico e devoto
E o laxo Cavalheiro de Flaublas...


"O Livro de Cesário Verde", Cesário Verde

(Cesário Verde nasceu no dia 25 de Fevereiro de 1855. Morreu em 1886.)

Mobiliário urbano (propriamente dito) 106

Foto Hernâni Von Doellinger

Servindo à pinta

- Com quantos paus de faz uma canoa?
- Ignoro.
- E com quantas copas?...

Vida de cão 419

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 24 de fevereiro de 2019

João Bigotte Chorão (1933-2019)

Céu nublado. Chuva. Como estas nuvens hostis, assim os homens - certos homens - nos ocultam a límpida face do céu.

"Diário Quase Completo", João Bigotte Chorão

(João Bigotte Chorão nasceu no dia 18 de Outubro de 1933. Morreu ontem.)

Quando os óscares eram acúrsios 5

Foto Hernâni Von Doellinger

A ignorância é óptima para a pele
Fui tratar da renovação do cartão do cidadão e, é preciso ter azar, despacharam-me em menos de um quarto de hora. Eu contava passar a tarde inteira refastelado nas instalações de Alferes Malheiro, embora tivesse marcado para as catorze um encontro com o Lopes e com as bifanas da Conga, mas ainda não era meio-dia e já me despejava no meio da rua sem saber o que fazer com os seguintes cento e vinte e tal minutos da minha vida. É isto, desabituei-me de ir à Baixa...
Ameaçava ameaçar chover. Vi uma daquelas livrarias de campanha montada mesmo à frente do meu nariz e entrei. Lá dentro, o refugo do costume ao habitual preço da uva mijona, nada de razoavelmente interessante, mas às vezes nunca se sabe...
Uma simpática funcionária, diria entre os trinta e os quarenta e, abeirou-se-me e perguntou, de sorriso engatilhado:
 
- Posso ajudá-lo?
- Ando só a ver, muito obrigado. Mas, já agora, diga-me, por favor: tem alguma coisa do Montalbán?
- De quem?
- Do Vázquez Montalbán, histórias do Pepe Carvalho...
- Quem?
- Pepe Carvalho.
- Saiu este ano?
- Não. No geral, são livros já com uns anitos...
- E o género?
- Policial, talvez. Mas dizer policial é dizer muito pouco. Policial literário e gastronómico, se for possível, e de repente não sei dizer melhor...
- Pepe Carvalho? Esse autor acho que não temos.
- Desculpe. O autor é Manuel Vázquez Montalbán. O herói dos livros é que se chama Pepe Carvalho, detective privado, uma espécie de Sherlock Holmes espanhol, mas versão séculos XX-XXI.
- Então é conhecido em Espanha...
- Acredito que sim, e em Portugal também. E no resto do mundo, se calhar. Não é que seja abonatório por aí além, mas até já fizeram filmes de um ou dois livros do Montalbán, quer ver?

Resolvi ser eu a ajudar a solícita porém desinformada funcionária. Ando exactamente a reler a Série Pepe Carvalho que as Edições ASA em boa hora começaram e em má hora interromperam, após a eucaliptal intervenção da Leya. Fui à mochila e saquei o "Assassinato no Comité Central", que por acaso acabei ainda na espera desse princípio de tarde. Expliquei à senhora:

- Vê?
- Ah! Montalbán é que é o autor. Eu estava a perceber que Pepe Carvalho é que...
- Esta era uma belíssima colecção da ASA que infelizmente...
- Ah! Livros da ASA não tenho.
- Mas Montalbán já foi publicado em português por outras editoras, pelo menos pela falecida Regra do Jogo e pela Caminho, se não me engano, há até uns livrinhos de bolso, tenho um, "As Termas"...
- "Assassinato no Comité Central", esse aí... 
- Olhe, foi um dos que deram filme. Neste, quem faz de Pepe Carvalho no cinema é, veja lá, o Patxi Andión...
- Quem?
- O Patxi Andión, o famoso cantor espanhol, o cantautor, o poeta, o escritor...
- Não estou a ver...
- Então, o Patxi Andión, ainda outro dia esteve aqui na Casa da Música...
- Não, não conheço. E até gosto de música espanhola, mas não da música pimba...
- Minha senhora, o Patxi Andión...

Ia gastar mais um pouco do meu atamancado latim para explicar à gentil funcionária quem é Patxi Andión, mas desisti. Preferi ser agradável e mentir com quantos dentes tenho, e são todos menos os sisos inferiores. Disse:

- ... Pois, evidentemente a menina é nova demais para conhecer o Patxi, o Pepe e o Montalbán. A menina é de uma geração tipo mais... tipo.
- Ai não se deixe enganar pela aparência. Estou é muito bem conservada... - devolveu-me a amável funcionária, enfim sorrindo, e corando de satisfação e vaidade.

Cientificamente provado: a ignorância faz bem à pele. Por outro lado, as bifanas estavam di-vi-nais. E o Lopes, que parece que é bruxo, trouxe-me "O Seminarista", de Rubem Fonseca. "O Seminarista"! Só tenho quem me goze...  


(Publicado originalmente no dia 10 de Abril de 2015)

O jornalista cultural
Homem de cultura, colaborador em jornais e televisões, nome com assinatura reconhecida nos melhores suplementos de artes e letras, inclusive blogues, Bonifácio de Montalvar foi ao cinema de reprise. Viu "Guerra e Paz", de King Vidor, com Audrey Hepburn, Henry Fonda, Mel Ferrer e o italiano Vittorio Gassman, mais uns tantos. Gostou do enredo, ou da estória, como preferia dizescrever. E declarou no foyer da despedida, alto e bom som, para que ficasse lavrado em acta: - Isto, sim, dava um bom livro. Como é que ninguém se lembrou?...

Também faço isto muito bem 162

Foto Hernâni Von Doellinger

David Mourão-Ferreira 6

Canção primaveril

Anda no ar a excitação
de seios súbito exibidos
à torva luz de um alçapão,
por onde os corpos rolarão,
mordidos!

Ou é um deus, ou foi a Morte
que nos vestiu este torpor;
e a Primavera é um chicote,
abrindo as veias e o decote
ao meu amor!

Esqueço que os dedos têm ossos:
é só de sangue esta carícia;
apenas nervos os pescoços...
Mas nos teus olhos, nos meus olhos,
a luz da morte brilha. 

David Mourão-Ferreira

(David Mourão-Ferreira nasceu no dia 24 de Fevereiro de 1927. Morreu em 1996.)

Music was my first love 41

Foto Hernâni Von Doellinger

António Pereira 2

Pequeno poema

Em minha casa somos todos poetas:
O meu pai vive o mar como quem vive um poema
E sonha alto com as maresias...
A minha mãe sonha comigo todos os dias,
A minha avó sonha com o céu rezando terços...
E eu, talvez o menos poeta,
Escrevo os versos...

António Pereira

(António Pereira nasceu no dia 24 de Fevereiro de 1914. Morreu em 1978.)

Os passarinhos, tão engraçados 75

Foto Hernâni Von Doellinger

Rosalía de Castro 7

Foi a Páscoa enxoita
 
Foi a Páscoa enxoita,
choveu en San Xoán;
a Galicia a fame
logo chegará.


Con melanconía
miran para o mar,
os que noutras terras
tén que buscar pan.


"Follas Novas", Rosalía de Castro

(Rosalía de Castro nasceu no dia 24 de Fevereiro de 1837. Morreu em 1885.)

Caminho 616

Foto Hernâni Von Doellinger

Teófilo Braga 3

Os dez anõezinhos da Tia Verde-Água

Era uma mulher casada, mas que se dava muito mal com o marido, porque não trabalhava nem tinha ordem no governo da casa; começava uma coisa e logo passava para outra, tudo ficava em meio, de sorte que quando o marido vinha para casa nem tinha o jantar feito, e à noite nem água para os pés nem a cama arranjada. As coisas foram assim, até que o homem lhe pôs as mãos e ia-a tosando, e ela a passar muito má vida. A mulher andava triste por o homem lhe bater, e tinha uma vizinha a quem se foi queixar, a qual era velha e se dizia que as fados a ajudavam. Chamavam-lhe a Tia Verde-Água:
– Ai, Tia! vocemecê é que me podia valer nesta aflição.
– Pois sim, filha; eu tenho dez anõezinhos muito arranjadores, e mando-tos para tua casa para te ajudarem.

[...]

"Contos Tradicionais do Povo Português", Teófilo Braga

(Teófilo Braga nasceu no dia 24 de Fevereiro de 1843. Morreu em 1924.)

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Ocasos de fogo 17

Foto Hernâni Von Doellinger

Diz o Público que Arnaldo Matos

Diz o jornal Público que Arnaldo Matos, que Arnaldo Matos, que Arnaldo Matos, que Arnaldo Matos, que Arnaldo Matos, que Arnaldo Matos, que Arnaldo Matos, que Arnaldo Matos, que Arnaldo Matos, que Arnaldo Matos e que Arnaldo Matos. Se calhar tem razão. Eu, que conheci de ginjeira os arnaldos matos nas erregeás do liceu de Guimarães e nos comícios do salão dos bombeiros de Fafe, é que não sabia.

Interlúdio fotográfico 75

Foto Hernâni Von Doellinger

A igreja que abusa e varre para debaixo do tapete

O cardeal e os foguetes
O cardeal-patriarca de Lisboa garantiu ontem, em entrevista à rádio TSF e ao jornal Diário de Notícias, que não conhece casos de pedofilia na Igreja portuguesa. Mas, à cautela, acrescentou que "não podemos estar a deitar foguetes antes da festa, porque um caso pode sempre aparecer". Faz muito bem o senhor D. José Policarpo. Foguetes, não! Ainda lhe rebentam nas mãos.

(Publicado no dia 19 de Dezembro de 2011)

Os nossos bispos, a pedofilia e a hipocrisia deles
José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa, garantia em Dezembro do ano passado, meia dúzia de dias antes do Natal, que não conhecia casos de pedofilia na Igreja portuguesa. Mas também dizia que o melhor era não "deitar foguetes antes da festa, porque um caso pode sempre aparecer". Pois pode e é preciso ter cuidado. Não faltam por aí manetas, por eles, os foguetes, lhes terem rebentado nas mãos - avisei eu.
Ontem, José Policarpo anunciou que os bispos portugueses querem que as vítimas de abusos sexuais por parte de membros do clero participem os casos "às autoridades civis competentes".
Não sei se o cardeal arrepiou caminho apenas para salvar as mãozinhas ou se teve um rebate de consciência. Mas este desafio dos bispos, tal como foi lançado cá para fora, enrodilhado em alegadas questões legais (e não morais, valha-nos Deus), é uma indecência e de uma hipocrisia e crueldade para com as vítimas que envergonham o Jesus Cristo que as excelências reverendíssimas deviam pregar e viver.
Quem é esta gente que fala em nome da minha Igreja e já não sabe o que é o amor ao próximo e a caridade cristã? O que é que acontece a esta gente quando se veste de vermelho, para tão escandalosamente desdenhar dos mais fracos e indefesos, dos estropiados?

E, no entanto, José Policarpo e os seus bispos (não sei quem os empurrou) deram um passo em direcção à verdade: há pedófilos e vítimas de pedofilia na Igreja portuguesa. A Hierarquia anda muito devagar e por isso eu só lhe peço que tente, para já, mais um passo. Um pequeno passo até ao enorme tapete para baixo do qual tem varrido, pelo menos ao longo dos últimos quarenta anos, os diversos casos de abusos sexuais sobre menores que conhece e a que fecha os olhos. E que tenha a dignidade mínima de expor, expurgar e fazer castigar os violadores e não as vítimas.

(Publicado no dia 20 de Abril de 2012)

Os bispos e a pedofilia: mais um pequeno passo
Eurico Dias Nogueira, antigo arcebispo de Braga, é da minha opinião: a Igreja Católica portuguesa "esteve demasiado calada" sobre os casos de pedofilia que aconteceram no seu seio. Em entrevista à rádio Antena 1, o prelado confirma ter informações de casos de abusos sexuais de menores dentro da instituição, que critica por ter tentado "abafar" as situações, sem "resolver" o problema. "Fazia-se isso secretamente", diz.
E querem saber como é que a Hierarquia "abafava" os casos? Por exemplo, mudando os padres pedófilos de paróquia em paróquia e de escola em escola, assim multiplicando o número de vítimas.

(Publicado no dia 21 de Abril de 2012)

Os bispos e a pedofilia: mais um pequeno passo 2
Manuel Morujão, padre porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, continua a falar demais e a falar de menos. Agora a propósito da pedofilia no interior da Igreja. É. Não têm emenda os nossos bispos: dão um passinho em frente e logo dois passos atrás. Não têm emenda e não têm perdão.

(Publicado no dia 11 de Dezembro de 2012)

E as provas? E os nomes?
A Conferência Episcopal Portuguesa garante ter dado "passos muito concretos na luta contra a pedofilia". Deu? Pois então que apresente provas, que diga nomes, como exige àqueles que denunciam os abusos praticados no interior da Igreja. Porque "não se deve dizer mais do que a verdade".

(Publicado no dia 4 de Janeiro de 2013)

O homem que sabia uma coisa terminada em "ia"
José Policarpo sabia de uma coisa terminada em "ia". Pedofilia?, perguntaram-lhe logo. Não, de pedofilia não sei nada, respondeu. Compaixão?, insistiram. Vão-se lixar, isso não interessa para nada e nem sequer termina em "ia", protestou o príncipe da Igreja na reforma. Economia, sei é de economia, acabou por se abrir o emérito, parece que um tudo nada afrontado com a maneira leviana como sindicatos e oposição estão a governar Portugal. Ou então seriam gases.

(Publicado no dia 27 de Outubro de 2013)

Igreja reúne-se de emergência
"A Igreja vai reunir-se de emergência na segunda-feira, em Fátima", avisa o JN. Não sei se é verdade, mas, a ser, é preciso tomar nota: em Fátima evidentemente, e de emergência. E por que razão reúne a Igreja portuguesa, de emergência, em Fátima? Por causa da pedofilia interna? Não. Por causa da fome externa? Não. Por causa da pobreza geral? Não. Por causa do desemprego dos outros? Não. Por causa da crise de vocações sacerdotais? Não. Por causa da falta de povo e de fé nas igrejas e nas procissões? Não. Por causa do burquíni? Não. Por causa dos incêndios de Verão? Não. Por causa do terramoto em Itália? Não. Por causa dos atentados na Turquia? Não. Por causa da guerra na Síria? Não, não e não. "A Igreja vai reunir-se de emergência na segunda-feira, em Fátima, para decidir a resposta a enviar ao Estado, que recentemente notificou a maioria das 4376 paróquias a nível nacional para pagarem imposto municipal sobre imóveis dos seus edifícios e terrenos."

(Publicado no dia 26 de Agosto de 2016)

Os gays, ou quando a Igreja não sabe ser mãe
Diz que vai por aí uma certa e determinada confusão a propósito de umas tais declarações da "psicóloga católica" Maria José Vilaça. A Psicologia Católica é uma especialidade clínica (suponho) que eu ignorava, mas não sou dos que negam à partida uma ciência que desconheço. Portanto...
Maria José Vilaça diz que disse à revista Família Cristã que ter um filho homossexual é como ter um filho toxicodependente. "Eu aceito o meu filho, amo-o se calhar até mais, porque sei que ele vive de uma forma que eu sei que não é natural e que o faz sofrer", diz que disse a senhora doutora. Quer-se dizer, ter um filho homossexual ou toxicodepente é o mesmo que ter um filho trolha que a mãezinha sempre soube que nasceu para ser presidente da república. Isto é, ter um filho homossexual, toxidependente ou trolha é praticamente como ter um filho propriamente dito...

Também não sabia dos homossexuais católicos, que certamente serão completamente diferentes dos homossexuais protestantes, dos homossexuais ortodoxos, dos homossexuais judeus, dos homossexuais budistas, dos homossexuais islâmicos, dos homossexuais agnósticos, dos homossexuais ateus, dos homossexuais bissextos e dos homossexuais apenas. Mas, palavra de honra, não quero saber o que é que objectivamente os diferencia...

Mas sei que, por exemplo, a Igreja Católica Apostólica Romana, que impõe o celibato aos seus funcionários de topo (de padres ao Papa) e lhes exige a castidade, desculpa-lhes o pinanço com mulheres, ainda que casadas, e varre para debaixo do tapete o abuso sobre rapazinhos, posto que inocentes. Os clérigos homossexuais que exigem os seus direitos também me fazem rir, porque não sei qual foi a parte que eles não perceberam quando, no acto da ordenação, perante família e testemunhas, se deitaram no chão aos pés do bispo e aceitaram e juraram desatarraxar a pila para todo o sempre, amém.
A ver se me explico: os padres católicos, enquanto a "Lei" for lamentavelmente assim, não podem reclamar direito a sexualidade de marca nenhuma - nem homo, nem hetero, nem bi, nem pan, nem tudo ao monte e fé em Deus, nem sequer à punheta, escusam de vir com paninhos quentes. Não há sexo para ninguém! Os padres não podem ser sexuais.
O lamentável, o triste, o nojo é que a Igreja instrumental, especialista circense em malabarismos hipócritas, cirrosada em pecado e vício até aos entrefolhos, continue a oprobrizar os seus filhos homossexuais que afinal nunca juraram a Deus castidade e que só querem ser felizes com quem escolheram e acreditando e vivendo em Jesus, tenham ou não cartão de católico em dia. Uma Igreja assim não é boa mãe... 

(Publicado no dia 14 de Novembro de 2016)

Bispo pede campanha contra pedofilia na Igreja
O título deste texto é mentira, e o que se segue também. O bispo de Viana do Castelo, Anacleto Oliveira, apelou hoje ao Presidente da República para "liderar a mobilização de toda a nação" numa "causa nacional" contra a pedofilia na Igreja, por considerar que o que tem sido feito "não chega".
"Nada há de mais poderoso e eficaz [do] que um povo inteiro unido pela mesma causa, no comum modo de viver e pensar, numa mesma cultura", fez notar o prelado, defendendo que "chegou a hora" de o País "gritar bem alto: basta de pedofilia nos colégios católicos, nos seminários e nas sacristias".
A última parte desta última parte também é inventada. A versão verdadeira, que tem a ver com incêndios e é um bocado de rir, está no jornal Público, que copiou da agência Lusa.
Repiro: o título deste texto é mentira. E é pena.

(Publicado no dia 20 de Agosto de 2017)

Cardeal-patriarca fala do que não sabe
Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa, não sabe nada de casamento - o que até se compreende, porque é solteiro. Também não sabe nada de sexo - o que se pode aceitar, porque certamente nunca praticou. Ainda assim, ignorante em toda a linha, debita palpite sobre os dois assuntos, defendendo que os católicos recasados "em situação irregular" devem ser aconselhados a viverem sem relações sexuais.
Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa, sabe muito bem da pedofilia na Igreja portuguesa. Falando do que sabe e do que realmente lhe diz respeito, gostaria de o ouvir propor que os padres devem ser aconselhados a deixarem as pilinhas dos meninos em paz.

(Publicado no dia 8 de Fevereiro de 2018)

P. S. - Apanhado de textos do Tarrenego! publicado no dia 21 de Agosto de 2018, com dois acrescentos. Hoje, no seu discurso de Natal, o Papa Francisco garantiu que a Igreja "nunca mais encobrirá ou desvalorizará" os abusos sexuais perpetrados por membros do seu clero e apelou aos padres abusadores para que se entreguem às autoridades. Em Portugal, os nossos bispos, como é seu timbre, continuarão galhardamente a assobiar para o lado e a varrer para debaixo do tapete...

(Publicado no dia 21 de Dezembro de 2018)

(Hoje, dia 23 de Fevereiro de 2019. O cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, admitiu ontem, em Roma, "reforçar" o que é feito pela Igreja Católica em Portugal para prevenir os abusos sexuais e apoiar as vítimas. Isto é: nada.)

Quando os óscares eram acúrsios 4

Foto Hernâni Von Doellinger

Com uma facada, era tiro e queda
Sou dos filmes de cobóis desde pequenino e particular consumidor dos spaghetti de Sergio Leone com molho de Ennio Morricone. Tenho-os na despensa, a colecção completa e indispensável. Gosto. Gosto e assobio. Vejo-os sempre que me apetece, e se dão na televisão (como dão de vez em quando na RTP 2, cada vez menos, ou agora nestes canais que nos saem do bolso, como por exemplo no Fox Movies ainda aqui atrasado), não mando ninguém ver por mim. Vejo. Vejo e assobio. Porém, ao fim destes anos todos e após milhões de sessões, devo confessar o seguinte: continuo sem perceber a morte dos bandidos. Há ali qualquer coisa que não bate certo. Quer-se dizer - os bandidos é como tordos, morrem uns atrás dos outros até chegar ao chefe, e assim é que está bem, mas já repararam à custa e ao fim de quantos balázios? Já contaram quantas balas são precisas para matar um bandido, um só, nem que seja um simples soldado raso, figurante praticamente? Mais de dezasseis e todas na muche, até que o estafermo do bandido, um só, aceite esticar de vez o pernil, deixando o filme avançar. É muita despesa e má propaganda à inquestionável pontaria, por exemplo, de um atirador da marca de Clint Eastwood. Em contrapartida, quando a coisa é resolvida à facada, o mau da fita morre logo à primeira. Tiro e queda, já viram?
Acho mal. E no entanto assobio. Ennio Morricone é que sabe...

P.S. - Ennio Morricone está a despedir-se, aos 90 anos e depois de dar música a mais de 500 filmes e programas de televisão. Não digo adeus Morricone, digo viva Morricone, porque Morricone não vai, Morricone fica. No ouvido. No meu cinema paraíso. E eu assobio...

Estou preparado para o Natal
Estou preparadíssimo para o Natal: "Quo Vadis", "As Sandálias do Pescador", "A Bíblia", "Barrabás", "Ben-Hur", "Os Dez Mandamentos", "A Túnica", "A Última Tentação de Cristo", "Jesus de Nazaré", "Jesus Cristo Superstar", "A Paixão de Cristo", "Spartacus", "Demétrio, o Gladiador", "Sansão e Dalila", "O Sinal da Cruz", "O Evangelho Segundo São Mateus" - venham, que eu estou à espera.
E, se quiserem, mandem também "Sete Noivas para Sete Irmãos", "A Máscara do Ranger", "E Tudo o Vento Levou", "Um Violino no Telhado", "Música no Coração", "O Feiticeiro de Oz", "Citizen Kane", "O Prisioneiro de Alcatraz", "Cinema Paraíso", "As Pontes de Madison County", "A Ponte do Rio Kwai", "O Expresso de Von Ryan", "Mamma Mia!", "Os Canhões de Navarone", "Rambo", "Doze Indomáveis Patifes", "O Bom, o Mau e o Vilão" ou "A Vida de Brian". Nosso Senhor quando nasce é para todos.

P.S. - Estou também preparadíssimo, evidentemente, para o Carnaval, para a Páscoa e para os Fiéis Defuntos.

O melhor actor do mundo
A conversa já tem alguns anos. Ao balcão do salão de bilhares, o empregado do bar e alguns clientes ligados à famosa "segurança da noite" nortenha discutem animadamente sobre uma questão fundamental: quem é o melhor actor do mundo - Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger ou Jean-Claude Van Damme? As opiniões dividem-se, ameaçam-se. E eu, ao lado, penso: evidentemente esqueceram-se do Steven Seagal e do Chuck Norris.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 105

Foto Hernâni Von Doellinger

Limpeza no futebol

O guarda-redes que faz a mancha é depois obrigado a limpá-la?...

Vida de cão 418

Foto Hernâni Von Doellinger

O especialiszt

Era o verdadeiro e definitivo especialiszt. Ouvissem-no tocar a "Sonata em si menor" e perceberiam porquê...

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Quando os óscares eram acúrsios 3

Foto Hernâni Von Doellinger

De volta ao Tatu (ou a grandeza dos pequenos)
O Tatu está de volta. Perguntar-me-ão: mas qual Tatu?, e eu poderia dar uma certa e determinada resposta, rimada e bem conhecida aí por uns tantos, porém, pessoa educada que sou, digo simplesmente: o Tatu da "Ilha da Fantasia", que a RTP Memória em boa hora, dezanove em ponto, resolveu pôr a arejar. O Tatu (Tattoo) era o francês Hervé Villechaize, um excelente anão mas fracativo actor. Ainda assim, gosto mais de o ver trabalhar do que, por exemplo, ao ultrafamoso Tyrion Lannister (Peter Dinklage) da "Guerra dos Tronos", essa tão aclamada série de culto que a mim não me assiste. Exactamente. Se andavam à procura do gajo que, a nível mundial, nunca viu um episódio da "Guerra dos Tronos", spoilers tampouco, podem mandar suspender as buscas - c'est moi.
Anões e o mundo do espectáculo - assunto menor? Não creio. Falo primeiro por mim, que, perguntado ainda na escola primária acerca das minhas perspectivas de futuro, respondi que quando fosse grande queria ser anão para ir para o circo. E antes de mim já havia o Peter Pan e depois de mim saiu da cartola aquela improvável linha média - Adelino Teixeira, Alves, Vítor Martins e Octávio - com que mestre José Maria Pedroto calou Wembley-o-Velho e empatou a arrogante Inglaterra, no nosso mítico ano de 1974. Parece que ainda os estou a ouver, em Dolby 4-4-2, subindo em passinhos curtos a estrada dos tijolos amarelos: The house began to pitch. The kitchen took a slitch. It landed on the Wicked Witch in the middle of a ditch, Which was not a healthy situation for the Wicked Witch.
Dos pequenos, sim, reza a História. Coloquemos pois os anões em cima da mesa, porque merecem. Se me pedissem uma shortlist dos mais famosos, sendo que a fama se mede em televisão e cinema, eu escolheria:
Talvez a Thumbelina (Debbie Lee Carrington), de "Desafio Total". Talvez o Mini Me (Verne Troyer), de "Austin Powers: O Espião Irresistível". Talvez o múltiplo Oompas Loompas (Deep Roy)", em "A Fantástica Fábrica de Chocolate". Talvez o duende Marcus (Tony Cox), em "Um Pai Natal para Esquecer". Talvez o professor Filius Flitwick (Warwick Davis), na saga "Harry Potter". Talvez o Mickey Abbott (Danny Woodburn), na série "Seinfeld". Talvez o "Arnold" Gary Coleman. Talvez o R2-D2 (Kenny Baker), da "Guerra das Estrelas". Talvez o Wee-Man (Jason Acuña), do "Jackass" da MTV. Talvez o munchkin Karl Slover, do "Feiticeiro de Oz". Talvez James Cagney, Mickey Rooney, Edward G. Robinson ou o apalpador Dustin Hoffman. Evidentemente poderia juntar à lista o Danny DeVito e o Tom Cruise, mas estes, peço desculpa, dizem-me muito pouco. Talvez...
Ou talvez o fogoso Nelson Ned, que era de outras artes e me dava cabo da cabeça aos domingos à tarde, nos castigadores altifalantes dos Comandos, da Amadora a Santa Margarida. Ou talvez o anão do Multibanco. Ou talvez, porque não?, o Sr. José Nogueira, de Fafe, que, em meados do século passado, esteve quase a ir para Lisboa e ser famoso. Ou ainda talvez, puxando ao sentimento, as minhas duas queridas avós, a Bó de Basto e a Bó da Bomba, pequerrichas também, ou o senhor Flórido Engraxador ou o César da Recta ou o senhor Clemente que fazia pipas e escadas para as vindimas e decilitrava aguardente como um alambique. Talvez...
Mas que fique registado que o meu anão favorito é uma anã. Chama-se Cadence Roth, Cady para os amigos, e chegou a ser a mulher mais pequena do mundo, se tivesse de facto existido. Conheci-a num livro, "Talvez a Lua", de Armistead Maupin. Procurem o livro. Descubram a Cady.

(Publicado originalmente no dia 10 de Dezembro de 2017) 

A piquena Annie
Ai o que ele gostava de traulitar a cantiga da piquena Annie! Traulitava mansinho, trampolinando os dedos no braço de mogno da poltrona de Magda: tamóro, tamóro, ai labiá tamóro, Iori ou Li ha-dei auei...

Vida de cão 417

Foto Hernâni Von Doellinger

O governante hipocondríaco e metódico

Por indicação médica, tomava quatro medidas por dia - uma ao levantar, uma depois de almoço, uma antes de jantar e uma ao deitar. Rigorosamente.

Também faço isto muito bem 161

Foto Hernâni Von Doellinger

Morrer cedo, sim, mas o mais tarde possível

Que havia de morrer cedo - dizia, angustiado, desde que fizera 25 anos. E estava coberto de razão: faleceu aos cento e dois, eram cinco da manhã.

Offshore, se fashavore 245

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Benfica processa o Porto que processa o Benfica

Benfica processa o FC Porto que processa o Benfica que processa o FC Porto que processa o Benfica que processa o FC Porto que processa o Benfica que processa o FC Porto que processa o Benfica que processa o FC Porto que processa o Benfica que processa o FC Porto que processa o Benfica que processa o FC Porto que processa o Benfica que processa o FC Porto que processa o Benfica que processa o FC Porto que processa o Benfica que processa o FC Porto que processa o Benfica que processa o FC Porto que processa o Benfica que processa o FC Porto que...

Quando os óscares eram acúrsios 2

Foto Tarrenego!

O meu tio Al Pacino
Eu tenho um tio que se parece com o Al Pacino quando o Al Pacino parece bem. O meu tio Zé de Basto não é actor e nunca foi a Hollywood. É um mestre pedreiro de mão cheia, arte que herdou do pai, o meu avô Bernardino, e tentou duas vezes a emigração, em Inglaterra e em França, mas não se deu. As saudades matavam-no. Saudades da mulher, a querida tia Margarida, do sino da igreja de Passos, das leiras suadas mas generosas, da comida feita à lareira, dos amigos do peito, de uns tiros às perdizes, de umas boas malgas de vinho verde e sobretudo dos filhos, duas moças e dois moços que lhe enchem o coração.
Eu e o meu tio Zé de Basto, que trato por você e a quem peço a bênção, fazemos pouca diferença de idade. Ainda fomos parceiros de aventuras durante os dias das férias grandes que eu, em miúdo, passava na aldeia. Ele era já um rapazola. E juntos éramos um desastre.

Foi o meu tio quem me ensinou a andar de mota de pau, o que correu muito bem e até nem lhe deu grande trabalho, porque, se não sabem ficam agora a saber, nas motas de pau não se anda, cai-se. E eu nasci para aquilo: era trambolhão de criar bicho.
O meu tio largava-me carreiro abaixo e ao fim de dois metros eu já tinha deixado a mota para trás, enrodilhado em séries de espectaculares e descontrolados vira-cus que só acabavam lá no fundo da ribanceira, com as costas espetadas numa árvore e a mota a cair-me em cima e em cheio, de rodas para o ar, a girarem, a girarem, como nos filmes...
Eu punha-me a pé no meio de uma nuvem de pó, zonzo, pronto a chorar, com a boca cheia de sangue e de terra, os joelhos a discutirem com os cotovelos quem é que estava mais esfolado, e o meu tio só se ria lá de cima. O que é que eu havia de fazer? Ria-me também. Vinham buscar a mota para o local de partida e lá ia eu outra vez de cangalhas até bater na árvore que já me conhecia de ginjeira, e quando íamos dois ainda era pior.

O Al Pacino não conhece o meu tio Zé de Basto. Calha bem, porque o meu tio Zé de Basto também não conhece o Al Pacino. Por aí, estão ela por ela. Onde o meu tio fica a ganhar ao americano é no alambique. Exactamente. O meu tio tinha um extraordinário alambique, onde queimava o vinho estragado da vizinhança, e fazia uma aguardente tão medonha que era um sucesso. As autoridades fecharam-lhe o alambique. Acho que mais do que uma vez. E sendo certo que, no seu tempo, Al Pacino também não destilava nada mal, a verdade é que não me consta que tivesse um alambique.
Ao contrário do outro Al Pacino, o meu tio Zé de Basto nunca ganhou um Óscar. Mas merece o Nobel. Foi ele quem inventou uma talhadura de infalibilidade papal para curar bebedeiras, sejam elas de que tamanho forem. O revolucionário método, experimentado e comprovado pelo meu próprio tio, consiste basicamente em arriar as calças e chapinar o traseiro na água fresca de uma levada. A versão urbana, descartado o uso do rio Douro ou do oceano Atlântico, por questões de segurança, passará inevitavelmente pelo bidé, devendo juntar-se gelo à água do cano, para recriar as condições naturais do tratamento original. E é remédio santo.

O meu tio Zé de Basto é um homem geralmente feliz, às vezes austero e honrado sempre. Teve sorte com os filhos que tem. Ele e eu também somos compadres, baptizei-lhe o rapaz mais velho: é "o nosso Nane" como eu. E é como compadres que gostamos de nos abraçar, "Eeehhh compaaaaaaaadre!!!...", com umas valentes palmadas no lombo, quando nos reencontramos. E eu gosto muito de abraçar o meu tio Al Pacino.

P.S. - Na foto, cavalgando à la minuta as vastas pradarias de Cima da Arcada, em Fafe, algures por uma Senhora de Antime ou por um 16 de Maio no tempo do faroeste em cuecas: eu e o meu tio Al Pacino, o xerife.

(Publicado originalmente no dia 15 de Outubro de 2011)

Também faço isto muito bem 160

Foto Hernâni Von Doellinger

Hoje, Dia Internacional da Língua Materna

As rosas

Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.


Sophia de Mello Breyner Andresen

Uma casa no parque

Foto Hernâni Von Doellinger

Plínio Ramos Coelho

Foi o boto

Cabelos negros, lábios de pitanga
Ali no porto, busto desvestido...
Perto, apenas um boto emerge... A tanga
Cai, desvendando um triângulo incendiado.

E a cunhã nada, imita o boto, manga
Em mergulhos seguidos e este atraído
Aproxima-se e funga e mostra zanga,
Afastando-se como se fugido.

E sai dágua a cunhã com relutância...
No alvor, afugentada a escuridão
O mesmo banho e um rastro de fragrância...

Um dia, em vez do boto um rapagão
A cunhã encontrou e com tanta ânsia
Entregou-se em atroz fornicação!

Plínio Ramos Coelho

(Plínio Ramos Coelho nasceu no dia 21 de Fevereiro de 1920. Morreu em 2001.)

Deixai vir a mim as pombinhas 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Coelho Neto 6

A sala clareou de jato e a luz forte do gás, esbatendo-se no jardim, como que ainda mais lhe adensou as sombras crepusculares. Cesário passou a mão pela calva e, espreguiçando-se, bocejou estrondosamente:
- Diabo! Estou com uma famosa courbature. Dobrou-se para trás, com as mãos nos rins e, firmando-se, estendeu o braço para a chama loura do gás: Bem andou Jeová criando a luz antes de mais nada. Entanto há na sua grande obra alguma coisa anterior ao Fiat... a avareza, por exemplo... que dizes? Essa claridade entra-nos pelos olhos e vai até o mais fundo do cérebro como o sol atravessando os vidros de uma claraboia. E ainda há luz lá fora.
Lançou o olhar ao exterior e, voltando-se:
- Dize, que tal achas o pensamento que um dia procurei apertar em um soneto? e avançando com grandes gestos dramáticos, foi até a porta e levantou os olhos para o céu de opala: Ouve lá, não está em metro ainda. Digo-te a coisa como a recebi do gênio. A cena do soneto simples, tristonha: um crepúsculo. Eu digo então: Expira o sol! e atirou o braço esticado para o teto. Expira o sol... e Deus!... arma no céu um catafalco: a noite, trazendo para cirial do morto o plenilúnio. Que te parece? indagou e, fitando-o com grandes olhos: Mas que tens, homem? Estou aqui a falar-te como Apuleio aos bárbaros. Que tens? Jorge caminhava ao longo da sala, de mãos para as costas, parando, de instante a instante, para ouvir o "filósofo". Que tens?

"Inverno em Flor", Coelho Neto

(Coelho Neto nasceu no dia 21 de Fevereiro de 1864. Morreu em 1934.)

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Quando os óscares eram acúrsios

Foto Hernâni Von Doellinger

O meu cinema paraíso
Parece o reclame de um salão de cabeleiro unissexo. "Sansão & Dalila". Desinteresso-me primeiro, mas ele está ali mesmo à minha frente, colado na carruagem do metro, e de repente começa a exercer sobre mim um fascínio inesperado e misterioso. Olho melhor, a ver se percebo o que se passa comigo. Ah!, afinal é a ópera de Camille Saint-Saëns, que vai à cena no Coliseu do Porto. É "Sansão e Dalila". O e não é comercial, é apenas truque gráfico, modernice. Pronto, está tudo esclarecido...
Mas não estava! O anúncio continuava a chamar por mim. Que raio de poder hipnótico poderia ter aquele pedaço de papel plastificado? As palavras mágicas não paravam de ecoar na minha cabeça, "Sansão e Dalila", "Sansão e Dalila", "Sansão e Dalila"! Resolvi-me, levantei-me do meu lugar, dei dois passos em frente, tirei os óculos, semicerrei os olhos e tentei espreitar para dentro do reclame. O metro apitou, uma, duas, três vezes, e o reclame abriu-se num clarão como se fosse o meu espelho de Alice, puxando-me pelos colarinhos e levando-me aos confins do meu passado, numa viagem instantânea até ao tempo em que

eu era um miúdo. Éramos todos uns miúdos. E íamos em bando até à porta da D. Laura Summavielle, filha, que morava à beira da Igreja Nova. Os Summavielles (Sumaviéis, na versão fafense) eram os donos do Teatro-Cinema de Fafe, do Cinema. E nós íamos pedir à D. Laura, que devia ser o melhor coração da família e para mim era o melhor coração do mundo, que nos levasse a ver o filme de graça. E a boa senhora levava.
A coisa tinha o seu ritual. Esperar à porta do cinema não valia, tínhamos que ir mesmo a casa da D. Laura, que também não era longe. Éramos para aí uns seis ou sete, às vezes menos, consoante o lado para que tinham acordado os pais de cada qual, e devíamos lá chegar pelo menos com uma boa meia hora de avanço em relação à hora de saída prevista da senhora. Chegávamos e esperávamos. Não se batia à porta, não se tocava na campainha, esperávamos apenas, calados como ratos, porque o mais pequeno ruído podia deitar tudo a perder.
A senhora saía, encarava-nos sempre com um grande sorriso e nós continuávamos sem dizer nada, nem era preciso. Púnhamo-nos atrás dela, em fila, como pintainhos seguindo a mãe galinha, e, agora que penso nisto, acho que devia ter sido uma coisa bonita de se ver, aquele extraordinário grupo a atravessar o Largo da Igreja e a descer até ao Cinema, na máxima compostura e no mais religioso silêncio.
A D. Laura entrava e nós ficávamos cá fora, bem guardados pelo Sr. Leitão porteiro, que era mau como as cobras e vestia um capote castanho, com botões dourados e gola vermelha, que até parecia um general soviético, embora na bilheteira é que estivesse o Sr. Castro, comunista, alfaiate e bom amigo.
Perdíamos os desenhos animados, perdíamos os "documentários", mas na horinha do arranque do filme a sério vinha a ordem da D. Laura e imediatamente desatávamos a correr Cinema acima, dois andares a bater chancas em chão de soalho com escarradores, numa trovoada que quase deitava a casa abaixo, até chegarmos ao nosso sítio. Só ali voltávamos a portar-nos bem, sempre perante o olhar bondoso e compreensivo da nossa benfeitora, que, do seu camarote ao lado da cabina de projecção do Sr. Reinaldo Pires, nos lançava mais um sorriso, com o dedo de chiu sobre os lábios finos.
O nosso sítio era uma frisa e cheirava a veludo velho e tabaco. Quase que pertencíamos ao filme! O som dos altifalantes entrava-nos pelo corpo dentro, estremecia-nos, eu era do tamanho dum buraco do nariz do Maciste e tinha que me afastar para não ser sugado. Foi ali que eu conheci pessoalmente o Ursus, o Spartacus, o Ben-Hur e o Hércules e podem crer que aqueles cenários de papelão só pareciam de papelão. Eu sei, porque estive nos filmes. Fui eu que ajudei o Sansão a dizer "morra Sansão e todos os que aqui estão", para eu e ele nos vingarmos da traidora da Dalila e acabarmos com o filme logo ali, porque aquilo não se faz, e não me venham dizer que ele não disse nada disto.
Perguntassem ao "Sandim". Ele é que ia à estação de comboios "buscar os artistas", num carrinho com rodas de madeira. Mas não trazia os beijos todos. Não cabiam nas bobinas, decerto. As cópias dos filmes eram velhas, cheias de cortes, no melhor e mais quentinho passavam sempre à frente. Como o Jornal da Igreja Nova trazia uma sinopse das películas do fim-de-semana, nós achávamos que o Sr. Arcipreste fazia um visionamento prévio e culpávamo-lo por aquele imperdoável acto de censura. Mal eu sabia que ainda havia de ser feito um filme sobre esta história, mas em italiano.
No meu Cinema, no tempo em que o que eu queria era crescer para ver filmes "para maiores de 17", havia também umas senhoras da Rua de Baixo e de Santo Ovídio que faziam de arrumadoras e tomavam conta do buffet, onde serviam gasosas, laranjadas, café de cafeteira e rebuçados mulatos. Ao intervalo, enquanto o ardina entrava plateia dentro com a edição do Norte Desportivo de domingo à noite, já com os resultados e relatos dos jogos todos, os espectadores recebiam umas senhas para irem lá fora tomar café em condições.
No meu Cinema liam-se as legendas em voz alta para os analfabetos. O respeito e a, como hoje se diria, segurança eram zelados pelo Senhor Barroco, pelos Sr. José e Sr. António do Santo e pelo Sr. António Quim, que eu sempre confundi com o outro, o de "Zorba, o Grego". Foi na companhia desta gente que eu cresci. Mal comecei a ganhar, passei a ter bilhete reservado para todas as sessões e, depois do 25 de Abril, até vi o "Último Tango em Paris". Duas vezes.

Deixei Fafe no início da década de 1980 e o meu Cinema entrou em ruína. Pensei que outros tivessem ficado a tomar conta, mas enganei-me. Depois de 25 anos de inactividade, muita politiquice e um impressionante trabalho de recuperação, o Teatro-Cinema de Fafe reabriu portas em 2009, sem Maciste, sem Sansão nem Dalila, sem o Sr. José do Santo e sem a D. Laura Summavielle. Já lá não estão, já cá não estão. O novo Teatro-Cinema de Fafe, que só conheço por fora, funciona agora como entreposto cultural camarário. O que é certamente aplaudível e tem muito mais cagança, mas não é a mesma coisa.

(Publicado originalmente no dia 26 de Setembro de 2011)