terça-feira, 22 de julho de 2014

A sesta do meu avô da Bomba

Foto Hernâni Von Doellinger

Eu ainda não sabia que se chamava assim, mas o primeiro adulto que eu vi a fazer a sesta foi o meu avô Manuel, o 17 da Bomba, que não era terrorista e ganhara a perigosa alcunha derivado a ser o bombeiro número 17 e quarteleiro dos bombeiros de Fafe. O meu avô morava no quartel dos bombeiros, que, para todos os efeitos, era a Bomba.
Naquela casa só se comia e bebia do bom e do melhor. Depois do almoço, o meu avô descia até à camarata e estendia-se numa das camas, tapando a cara com o Jornal de Notícias. O JN era, naquela altura, um jornal grande, muito jeitoso para a sesta, e o meu avô, contrariando a regra geral, gostava de dormir sob aqueles assuntos.
As minhas tarefas em relação à sesta do meu avô eram ir buscar o JN e passar de vez em quando pela camarata para, se necessário, corrigir a posição do jornal. Tinha uma terceira tarefa, não editorial, que era andar em bicos de pés e de bico calado.
O Jornal de Notícias do meu avô era comprado a meias com o Sr. Ferreira do Hospital, que o lia primeiro, e depois eu ia buscá-lo, ou então ficava cada um com metade das páginas e a uma certa hora eu fazia a troca, já não me lembro bem.
O Sr. Ferreira do Hospital e o meu avô foram amigos e cúmplices toda a vida. Eram unha com carne, apesar de diferentes como a água e o vinho: o Sr. Ferreira era comunista, tinha estado preso, e o meu avô... antes pelo contrário. Para além de comunista, o Sr. Ferreira era um homem bom, um grande Homem que eu admirava e gostava de ouvir. Anos passados, aos domingos, eu à beira de ir para a tropa e sem emprego, o Sr. Ferreira cumprimentava-me com uma nota de 20 escudos escondida na mão tremente.
O meu avô da Bomba fazia a sesta muito bem. Naquele tempo ainda não era moda dizer-se que a sesta faz bem à saúde, o que até vinha mesmo a calhar ao meu avô, que era "uma pessoa muito doente". Era também preguiçoso, como vim a concluir mais tarde, o que me livrou do divã do psiquiatra e despesas adjacentes, uma vez que consegui perceber sozinho que tenho bem a quem sair.
Quando éramos miúdos, o meu avô punha-nos a bulir como gente grande, a mim e ao meu irmão Nelo. Eu era pau para toda a colher: limpava os capacetes e outros amarelos com solarine Coração e uma espécie de pó de talco, lavava as viaturas, verificava o óleo e colocava água nos radiadores, anotava as quilometragens, lavava, punha a secar e enrolava as mangueiras depois dos incêndios, metia baterias à carga, enchia as baterias com água da chuva colhida num garrafão com funil que estava no telhado, ia chamar motoristas para as saídas urgentes de ambulância, servia de bombeiro, varria o "parque do material", levava avisos a casa dos bombeiros, atendia o telefone, tocava a sirene (era a parte de que eu mais gostava), hasteava as bandeiras aos domingos e dias de festa, ia à cave buscar vinho, "sempre a assobiar!", segundo ordens superiores. Enfim, eu é que era o verdadeiro Bomba. E não saía de lá. Também porque naquela casa só se comia e bebia do bom e do melhor.

Tenho-me esquecido de ir buscar o jornal para o meu avô da Bomba e também já há muito que não estou com o Sr. Ferreira do Hospital. Aqueles dois nem devem ter reparado. Estão entretidos a meterem-se um com o outro, foram sempre assim, ou então dormem uma bela sesta, cada qual com a sua metade de JN sobre o rosto. Quando nos voltarmos a encontrar, os três, ainda nos havemos de rir disto tudo.

(Texto escrito e publicado no dia 8 de Outubro de 2011. Meto-lhe hoje a fotografia, e também lá estou, armado em Hitchcock de trazer por casa. Portanto: a foto da foto do meu avô é minha e muito fraquinha, infelizmente. O meu avô da Bomba merecia melhor, mas desta vez tenho uma boa desculpa: fiz a fotografia a correr e praticamente na clandestinidade, pouco antes de ser expulso do magnífico edifício da escola de bailado que, honra lhe seja, empresta a garagem aos Bombeiros.)

19 comentários:

  1. Obrigado por me trazer à memória uma pessoa de quem gosto muito. Não o seu avô, que não conheci... mas o Sr. Ferreira! Fazia-me o subido favor, percebi mais tarde, de me deixar fazer-lhe companhia ao almoço enquanto comia as suas açordas, que a minha avó teimava em afirmar que era a Sra. Florinda que não lhe dava outra coisa de comer!... o que, evidentemente, não era verdade! Ele gostava mesmo das açordas... e eu dele!

    j.

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  2. Obrigado eu pelo comentário. Já valeu a pena o texto! Tenho na ideia qualquer dia falar mais detalhadamente do Sr. Ferreira. Eu também gosto muito de açordas, que em Fafe, se bem me lembro, seriam çordas, não?

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    1. Belíssimo texto! Adorei ler sobre o teu avô e sobre o Senhor Ferreira do Hospital.
      Dois homens da minha vida, também!

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  3. Será de mim, ou a qualidade e conteúdo dos seus textos têm vindo a subir vertiginosamente???
    O português é escorreito como sempre, mas o Humor inteligente que lhes dá forma é riquíssimo.
    Tem sido muito importante para mim bater-lhe à porta diariamente.
    Parabéns Hernâni
    Gaspar de Jesus

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  4. Mais um comentário, chegado por via alternativa:

    "GRANDE 17! HOMENAGEM MERECIDA A QUEM DEFENDIA AS BOAS CAUSAS, TENDO PASSADO PARA O SEU FILHO ZÉ ESSE GENE DE BONDADE. ESSES, OS BONS BOMBAS É SALUTAR PODERMOS RECORDAR.
    OS BOMBAS DE HOJE SAO COMO OS FERRARIS E OS PORSCHES, VISTOSOS E CAROS! OS ANTIGOS SIM ERAM DE OUTRA "CHAPA", DURA DE INDEIREITAR MAS TAMBEM DIFICIL DE AMASSAR.
    UM GRANDE ABRAÇO E OBRIGADO."

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  5. O livro lá continua a ser escrito... Muito bem escrito! E nem de revisor precisas!
    Abraço,
    Moura

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  6. Obrigado por mais este pedaço de história de Fafe
    Como diria o outro: "É muito bom e sabe tão bem"
    Fica-se sempre à espera do próximo
    Abraço
    João Carlos Lopes

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  7. Obrigado Nane. A fotografia esta exposta nas instalações novas do quartel dos Bombeiros de Fafe. Ao ler este texto cada vez mais sinto orgulho em pertencer aos Bombas e a continuar a admirar a casa da Bomba que os viu nascer. Abraço Miguel

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  8. Obrigado, Se Nane. Vá lá escrever bem ao .....! Abraço. Luís Carvalho

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  9. Sr. Ferreira do Hospital, meu Avô paterno, bem agradado fiquei quando li esta publicação que lhe faz referencia. Fiquei a conhecer mais um amigo do seu largo conjunto de amigos da altura. Pelo caracter que me é percetível do Sr. Manuel Vondoellinger encaixa perfeitamente no do meu avô, pelo que se percebe a sua tão verdadeira amizade. Do meu avô guardo a memoria das tardes em que partilhava comigo as paginas do jornal "O Avante", que fazia questão que eu o lê-se para ele, tendo eu apenas 10 anos de idade. Foi um lutador contra o antigo regime, sofreu na pele com isso, e era homem de confraternizar com todas as pessoas, de todos os quadrantes políticos. Contam-se pelos dedos as pessoas que hoje em dia lutam por ideais políticos como ele lutou. Não era só os escudos que o meu avô tirava do bolso, lembro-me também de andar no bolso com rebuçados "catraios" que dava a qualquer criança que o abordasse ou que visse entrar no hospital. Da minha avó, a Sra. Florinda, fazia sim senhor a açorda, ou çorda como lhe queiram chamar, ela chamava-lhe "bitela com trigo ensopado", e nós lá íamos comendo sempre sob o seu olhar atento. Parabéns pela publicação, Abraço. Armando Abreu.

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