terça-feira, 31 de outubro de 2017

Também faço isto muito bem 6

Foto Hernâni Von Doellinger

Carlos Drummond de Andrade 5

o anjo bom matou o anjo mau
e jogou seu corpo no rio.


As água ficaram tintas
de um sangue que não descorava
e os peixes todos morreram.


Mas uma luz que ninguém soube
dizer de onde tinha vindo
apareceu para clarear o mundo,
e outro anjo pensou a ferida
do anjo batalhador.


Carlos Drummond de Andrade

(Carlos Drummond de Andrade nasceu no dia 31 de Outubro de 1902. Morreu em 1987.)

I want to ride my bicycle 30

Foto Hernâni Von Doellinger

Marquesa de Alorna 2

[Eu cantarei um dia da tristeza]

Eu cantarei um dia da tristeza
por uns termos tão ternos e saudosos,
que deixem aos alegres invejosos
de chorarem o mal que lhes não pesa.

Abrandarei das penhas a dureza,
exalando suspiros tão queixosos,
que jamais os rochedos cavernosos
os repitam da mesma natureza.

Serras, penhascos, troncos, arvoredos,
ave, ponte, montanha, flor, corrente,
comigo hão-de chorar de amor enredos.

Mas ah! que adoro uma alma que não sente!
Guarda, Amor, os teus pérfidos segredos,
que eu derramo os meus ais inutilmente.


Marquesa de Alorna

(Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre nasceu no dia 31 de Outubro de 1750. Morreu em 1839.)

Offshore, se fashavore 51

Foto Hernâni Von Doellinger

D. Duarte

Muito prezada e amada esposa Rainha D. Leonor, Senhora, vós me pediste que fizesse a colectânea de algumas coisas que havia escrito para bom governo das nossas consciências e vontades. E dado que sei, graças a Nosso Senhor, que tudo quereis muito perfeito com virtuosa aplicação, satisfazendo o vosso desejo considerei que seria melhor feito em forma de um só tratado, com alguns aditamentos. E assim o fiz para vos deleitar e tomar, em o fazendo, algum resguardo de cuidados, com racional ocupação de tempo.
E além disso, por sentir que, pensando como sobre isto hei-de escrever, saberia mais desta moral e virtuosa ciência, e que me fará guardar de fazer coisas mal feitas, por serem contrárias do que escrevo, ainda que seja obra para eu fazer de forma genérica, posto que a todos, independentemente do estrato social, é necessário saber como devem seguir virtudes, guardando-se de pecados e outras faltas. E além disso para alguns desta pequena leitura se poderem aproveitar, acrescentando saber liberto de muitos erros; porque, das obras breves e simples, os de não grande entendimento e pouco saber melhor aprendem que das subtil e altamente escritas.


"Leal Conselheiro", D. Duarte

(D. Duarte nasceu no dia 31 de Outubro de 1391. Morreu em 1438.)

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Nova corrida, nova viagem 29

Foto Hernâni Von Doellinger

Carvalho Calero 4

[E agora som um velho patrom que...]

E agora som um velho patrom que
se senta ao sol no banco de um passeio.
A minha vida fica atrás. Foi minha?
Quem fum outrora?

Fum eu - este que agora som - aquele
que estes mesmos carreiros transitava
um tempo perseguindo a borboleta
ilusória do amor, e neste mesmo
banco torrava o coraçom, ao sol
do rosto de umha forma feminina,
já nom sei qual, ao meu carom sentada?

A minha boca que articula agora
um monológico silêncio é
aquela que sabia dialogar
consoante a gramática perdida?

Nem apego me fica ao que onte fum,
nem ao que onte regia o meu falar
e o concertava com o falar seu.

Nacim já velho neste banco ao sol,
e aquel que outrora fum morreu em mim,
e sinto-o como um outro
que nom herdei, pois nada tenho del.

Mocidade nom tivem; som um velho
de poucos anos, que nacim assi.
Apócrifa é a história
com que alguns me encadeiam
às alegres tristezas de um passado
de harmonioso furor primaveral.

Sentado neste banco, tam só espero
que de mim mesmo brote o sono. Aquela
moça que se detém perante mim
- talvez onte ao meu lado se sentava -,
estorva-me hoje, e a seguir convido-a
a sua via, pois furta-me o sol.

"Reticências...", Carvalho Calero

(Carvalho Calero nasceu no dia 30 de Outubro de 1910. Morreu em 1990.)

Caminho 415

Foto Hernâni Von Doellinger

Maria Amélia Neto 2

A viagem

Acabo de chegar,
Irmão,
E vim de longe.

Vi rostos
Inclinados sobre a terra
E o torpor do mundo
Num olhar.
Vi as pedras
Da estrada
Ensanguentadas
E o sol
Feito poeira
Sobre as pedras.
Vi a sombra
Da noite
A diluir-se
No frio da madrugada.

Agora
A Morte caminha atrás de mim,
Irmão,
E acabo de chegar. 

"O Vento e a Sombra", Maria Amélia Neto

(Maria Amélia Neto nasceu no dia 30 de Outubro de 1928) 

Mobiliário urbano (propriamente dito) 46

Foto Hernâni Von Doellinger

Alfredo Guisado 2

Ante Deus

Quando te vi eu fui o teu voar
E desci Deus pra me encontrar em mim.
Voei-me sobre pontes de marfim
E uma das pontes, Deus, em meu olhar!

Aureolei-me de oiro em sombra fria
E meus voos caíram destruídos.
Foram dedos de Deus os meus sentidos.
Meu Corpo andou ao colo de Maria.

Agora durmo Cristo em véus pagãos.
São tapetes de Deus as minhas mãos.
Regresso Ânsia pra alcançar os céus.

Ergo-me mais. Sou o perfil da Dor.
Sobre os ombros de Deus olho em redor
E Deus não sabe qual de nós é Deus!

"Ânfora", Alfredo Guisado 

(Alfredo Guisado nasceu no dia 30 de Outubro de 1891. Morreu em 1975.)

Lugares-(in)comuns 287

Foto Hernâni Von Doellinger

Luís Guimarães Filho 2

Pálida

A palidez que envolve essa tristeza
É como um véu de angústia verdadeira...
Devia ser assim a atroz beleza
De Jeanne d’Arc entrando na fogueira!

Por isso ó bela, ó bela gondoleira,
Que tens no olhar as noites de Veneza,
E tens nos lábios a saudade inteira
De uma manhã de beijos de princesa...

Por isso eu amo a doce luz que veste
O teu martírio de tristezas feito,
Como um manto de luar por Deus tecido...

E vejo em ti a palidez celeste
Que a Virgem tinha... quando uniu ao peito
Os lábios de Jesus recém-nascido!

"Ave Maria", Luís Guimarães Filho

(Luís Guimarães Filho nasceu no dia 30 de Outubro de 1878. Morreu em 1940.)

domingo, 29 de outubro de 2017

Em Fafe, entre a ignorância e a incompetência


Realizou-se em Fafe, neste fim de semana, o 43.º Congresso da Liga dos Bombeiros Portugueses. Bagatela social nos dias que vivemos, neste país a fogo e cinza. O Facebook da Câmara de Fafe soube da coisa, mas o site da Câmara de Fafe ainda não tomou conhecimento.

P.S. - O comendador Marta Soares, do PSD, ex-deputado, ex-presidente de câmara, ex-comandante de bombeiros, filarmónico, animador de centros de convívio e aeroclubes, piloto aviador encartado, ex-árbitro de futebol, jornalista amador, confrade da chanfana, fala-barato a tempo inteiro e sobretudo presidente da Assembleia Geral do Sporting, foi reeleito presidente da Liga. Dos Bombeiros...

sábado, 28 de outubro de 2017

Vida de cão 253

Foto Hernâni Von Doellinger

O contador de anedotas

Levava um banquinho e sentava-se em Cima da Arcada, de guarda-sol, se fosse o caso, e um caderninho de folhas quadriculadas, sempre. Via sair, e tomava nota. Saíam do Mário da Louça, do Talho, da Caixa, do Martins da Avenida, da Câmara, do Casinhas, da Senhora Eufémia, do Alfredo Sapateiro, das Lobas, da Loja Nova, da Casa da Cera, dos Armazéns Cunha, do Banco. Saíam, e ele registava. Analfabeto de nascença, utilizava a técnica do Miguel Cantoneiro, ecumenicamente adaptada: uma cruzinha para os como ele, uma cruz para os menos mal e um cruzeiro para os cagões locais. À noite, em casa, depois da sopa e antes do terço, fazia a soma, por escalões, e comparava com os dias anteriores, as contas todas certinhas. Era um excelente contador de anedotas.

Fafe e a Chama (e lá íamos, cantando e rindo...)

Foto Hernâni Von Doellinger

A Mocidade Portuguesa era uma organização juvenil do Estado Novo e, em certo sentido-descansar-à vontade, complementava ou concorria na paz do Senhor com os escuteiros de que a Igreja Católica resolvera tomar conta, pelo sim e pelo não. Para os devidos efeitos, e a bem da Nação, a Mocidade Portuguesa era fascista, embora a rapaziada não fizesse ideia, e os escuteiros eram, nas desbragadas palavras do humorista brasileiro Juca Chaves, "um bando de garotos vestidos de idiotas, comandados por um idiota vestido de garoto". Consta que Juca Chaves teve de pedir desculpas por esta tirada...
Mas vamos ao que interessa: Fafe. Fafe dos anos sessenta do século passado, no vestíbulo da Revolução. Naquele tempo Fafe era uma terra tão fascista como todas as outras terras de Portugal, mas, convém não esquecer, muito mais antifascista do que a maioria. Fafe tinha evidentemente Legião Portuguesa, Mocidade, Concordata, União Nacional, grémios, casas do povo, chapéu na mão, fascistas desde pequeninos, salazaristas mais que o próprio, bufos da Pide, falsos bufos da Pide, simples filhos da puta e regedores de pistola à cinta, mas tinha também a Fábrica do Ferro, o Bugio, operários informados, comunistas, associações culturais, grupos de teatro, jornais, o Senhor Teixeira e Castro, gente a querer saber, o Senhor Maciel, o Teatro-Cinema, a Dona Laura Summavielle, o Major Miguel Ferreira, dezenas de presos políticos, o Café Avenida, o Senhor Saldanha, o Senhor Ferreira do Hospital, outros senhores saldanhas e ferreiras do hospital de quem não sei ou não me lembro agora. Fafe teve mártires do fascismo. Procurem-nos na antiga Feira Velha: estão lá dois nomes importantes - Joaquim Lemos de Oliveira, o Repas, e Gervásio da Costa, fafenses que deram a vida pela Liberdade. Foram assassinados pela Pide.

O nomes continuam lá, não continuam? A praça foi baptizada por causa deles, dos nossos, fafenses, Mártires do Fascismo. O Repas e o Gervásio. Não era uma homenagem urbi et orbi a todos os mártires de todos os fascismos, de todos os sítios e de todos os tempos. Os nomes dos nossos continuam lá na nossa praça, não continuam? Digam-me que sim, por favor, nem que seja mentira...

A Mocidade Portuguesa (Organização Nacional Mocidade Portuguesa) tinha bandeiras dos Heróis do Mar e as bandeiras chamavam-se pendões ou estandartes, tinha fardas catitas, toques de clarim e toque de caixa, cintos com S de Salazar na fivela, comandantes-de-castelo, saudação nazi-fascista e hino privativo, Lá vamos, cantando e rindo, levados, levados, sim. Tinha também umas mochilas de lona muito jeitosas e acampamentos, e eu invejava a vida daquela moçarada. E tinha a Chama, assim com capitular.
A Chama era um sarau realizado ao ar livre e à volta de uma fogueira com as achas obsessivocompulsivamente organizadas num círculo mais que perfeito: diziam-se poemas, cantava-se, representava-se teatrinho, ensinavam-se urbanidades, exaltava-se o amor à Pátria. Uma vez houve uma Chama nas traseiras da Escola Industrial, aquele pequeno terreiro hoje esmagado pelo anfiteatro da Biblioteca Municipal de Fafe, o que demonstra mais uma vez que, como dizia o saudoso Eduardo Guerra Carneiro, "isto anda tudo ligado". Era do lado da frente da escola, actualmente jardim da Casa da Cultura, que a Mocidade montava formatura ao fim-de-semana, para depois arruar vila adiante, e eu atrás, de passo certo, levado, levado sim...
Mas a tal Chama. Eu fui ver. Do meu Santo Velho ao Santo Novo, onde ficava a Escola Industrial, eram campos de milho e quintais com árvores de fruta, para além de uma ou duas ramadas de uvas de onde, na época, gaipelávamos a bom gaipelar até nos desfazermos em tremendas caganeiras, com licença de vosselências. Por aí ia. A meio do caminho havia uma nora desactivada, mais à frente um mina já com motor, e o que eu gostava de carregar no botão verde e pôr a geringonça a aguar, sufocando-a logo a seguir com o botão vermelho, para fugir dali a cem à hora, antes que quem de direito desse pelo basqueiro e corresse a esticar-me o orelhame...

Queria também contar o que se segue, porque esta memória não me larga: o casarão de lavrador anexo ao velho edifício onde funcionava a Escola Industrial tinha uma espécie de túnel, obra em arco, baixinho, esconso, escuro, por onde se passava de um lado para o outro, das traseiras para a frente ou vice-versa, e ali se faziam umas belas emboscadas para apalpar moças, infelizmente com mais vontade do que jeito. Hoje chamam àquilo tudo Avenida das Forças Armadas e é bem feito.

A Chama foi uma merda. Os miúdos (mais velhos do que eu, é preciso que se note) representavam muito mal, os poeminhas eram lengalengas, as cantigas desafinadas, e pela primeira vez na minha vida a começar assisti a uma branca: uma menina ou um menino tinha decorado qualquer coisa para dizer mas não se lembrava de quê - e, depois de várias tentativas a seco, encharcou definitivamente e desatou a chorar. Fiquei triste com ele (ou ela), mas não fiquei freguês.

P.S. - Especialistas em fivelas de cintos garantem que o S nas fivelas dos cintos da Mocidade Portuguesa não tinha nada a ver com Salazar, posto que quereria dizer, isso sim, "Servir no Sacrifíco" ou somente "Servir". Poissssss! As SS eram a Segurança Social de Hitler e o Z não é de Zorro mas de Zeferino...

Só destes, tenho sete 14

Foto Hernâni Von Doellinger

Adalgisa Nery 5

A razão de eu me gostar

Eu gosto da minha forma no mundo
Porque representa uma fagulha,
Porque mostra um instante doce e perverso
Da ideia, do gesto e da realização
De Deus no Universo.
Eu gosto dos erros que pratico
Porque vejo a pureza colocada na minha essência
Desde o Início
Lutar contra todo o mal que em mim existe
E ser tão maior, que sobre a minha miséria
Ela ainda persiste
Eu gosto de espiar
O meu olho direito
Ver o esquerdo chorar,
De sentir a minha garganta se enrolar de dor
Porque em troca de tanta coisa dolorosa
Ele construiu em mim uma coisa gloriosa,

Que é o amor.

"A Mulher Ausente", Adalgisa Nery

(Adalgisa Nery nasceu no dia 29 de Outubro de 1905. Morreu em 1980.)

Offshore, se fashavore 50

Foto Hernâni Von Doellinger

José Chagas 2

Lavoura azul

Trabalho nuvens como quem trabalha
o chão que é seu, mas eu não tenho chão.
Cultivador da natureza falha,
planto no azul o que de azul me dão.

Sobre o campo de nuvens cresce a palha
de sonho e cobre a minha solidão.
E esse abrigo de sonhos me agasalha
contra os falsos azuis que vêm e vão.

Minha roça no ar produz estrelas,
mas eu não tenho mãos para colhê-las,
nesta safra de azul que é nova e antiga.

Sou lavrador do quanto não se lavra
e preciso que eu ceife na palavra
o maduro do azul e a sua espiga.


"Lavoura Azul", José Chagas

(José Chagas nasceu no dia 29 de Outubro de 1924. Morreu em 2014.)

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Só destes, tenho sete 13

Foto Hernâni Von Doellinger

Natércia Freire

Canção do verdadeiro abandono

Podem todos rir de mim,
podem correr-me à pedrada,
podem espreitar-me à janela
e ter a porta fechada.

Com palavras de ilusão
não me convence ninguém.
Tudo o que guardo na mão
não tem vislumbres de além.

Não sou irmã das estrelas,
nem das pombas nem dos astros.
Tenho uma dor consciente
de bicho que sofre as pedras
e se desloca de rastos.

Natércia Freire

(Natércia Freire nasceu no dia 28 de Outubro de 1919. Morreu em 2004.)

I want to ride my bicycle 29

Foto Hernâni Von Doellinger

Paulo Varela Gomes 3

O camião saiu do meio das bonitas casinhas nos arredores de Mapuça e foi andando todo contente, sempre a apitar, por uma estrada alcatroada que tinha coqueiros de ambos os lados, arrozais zonzos de tanta cor esmeralda e tão brilhantes brilhos de água, uma igreja faiscante de branco contra uma encosta encharcada de verde. Aquilo era lindo, lindo, palavra de honra.

"Era Uma Vez em Goa", Paulo Varela Gomes

(Paulo Varela Gomes nasceu no dia 28 de Outubro de 1952. Morreu em 2016.)

Caminho 414

Foto Hernâni Von Doellinger

Xosé Filgueira Valverde 4

Un loureiro esguío
i-un cantar antigo,
no Santo do Mar.


Un loureiro illado
i-un cantar lonxano,
no Santo do Mar.


Un cantar antigo,
por amor amigo,
no Santo do Mar.


Un cantar lonxano
por amor amado
no Santo do Mar.


Por amor amigo,
das ondas traído
ó Santo do Mar.


Por amor amado,
das ondas levado
ó Santo do Mar.


Das ondas traído,
co loureiro esguío
do Santo do Mar.


Dos ventos levado,
co loureiro illado
do Santo do Mar.


"Seis Cantigas de Mar in Modo Antico", Xosé Filgueira Valverde 

(Xosé Filgueira Valverde nasceu no dia 28 de Outubro de 1906. Morreu em 1996.)

Vida de cão 252

Foto Hernâni Von Doellinger

Américo Durão 2

A água

Eu fui a sombra a converter-se em luz,
E fui a névoa a transformar-se em cor,
E fui o pranto a consagrar a dor,
Quando brilhei nos olhos de Jesus.

E fui a nuvem a buscar a altura,
E recebi do Sol a cor da chama.
Caí na terra e converti-me em lama
Para a tornar melhor e menos dura!

Fui pranto de perdão e de humildade...
E foi nuns olhos cheios de saudade
Que mais linda me fiz e desejei!...

E fui rio... e fui mar... e onda... e espuma...
E, em sonho de Poetas, fui a bruma...
O vago... o indeciso... o que não sei...
 


"Penumbras", Américo Durão 

(Américo Durão nasceu no dia 28 de Outubro de 1894. Morreu em 1969.)

Offshore, se fashavore 49

Foto Hernâni Von Doellinger

Nilo Ramos 2

Exaltação

Pelos almos jardins de encantadas esferas
Ando agora a vagar. Enche-me o coração,
Miragens, ilusões, esperanças, quimeras...
Sinto cheia de sol, cheia de primaveras,
A vida palpitar numa estranha efusão!


Abrem-se as portas de ouro e de luz dos meus sonhos
E fogem para longe a desventura e a dor...
De ânsias e sensações, revestem-se, risonhos,
Agitados, brutais, nervosos e medonhos,
À suprema eclosão do nosso imenso amor!


Estou cheio de ti, oh! meiga pecadora
Tão pura para mim, como é o azul do céu!
Por toda parte vejo, oh! visão tentadora,
A tua imagem santa e divinizadora
Em frente aos olhos meus como um radioso véu!

[...]

Nilo Ramos 

(Nilo Ramos nasceu no dia 28 de Outubro de 1984. Morreu em 1935.)

Estou mesmo a ver o filme 78

Foto Hernâni Von Doellinger

Vianna Moog 5

Karl Wolff procurava interessar-se, mas não conseguia. Um Brasil do Amazonas ao Chuí, limitando-se ao norte com Mampituba ou com o Oiapoque era-lhe indiferente. Ele mesmo não sabia, nem podia compreender como o Brasil chegava a constituir um Estado independente. Por mais que revolvesse a memória, esta só lhe restituía fatos vagos, imprecisos, esfuminhados, coisas da escola, dispersas, desconexas. Primeiro uma data, 1500, depois um nome, Pedro Álvares Cabral, o Seu Cabral das últimas canções carnavalescas; algumas guerras sem importância contra os franceses e os holandeses; o 7 de Setembro, onde aparecia um príncipe de espada desembainhada, cercado de cavaleiros, à margem de um riacho, como no motivo de tapete que acabara de ver na sala de honra do Centro; a guerra do Paraguai, que o Brasil não teria vencido se não fosse a ajuda dos primeiros colonos alemães; o 13 de Maio, que proclamou a libertação da negrada, uma gente que podia afinal de contas continuar escrava e não precisava andar por aí a faltar com respeito aos arianos. Depois, uma série de revoluções, de correrias, de requisições que só serviam para atrapalhar o comércio e a indústria, fruto exclusivo do esforço germânico.

"Um Rio Imita o Reno", Vianna Moog 

(Vianna Moog nasceu no dia 28 de Outubro de 1906. Morreu em 1988.)

Mobiliário urbano (propriamente dito) 45

Foto Hernâni Von Doellinger

As minhas frases favoritas 116

A sério?!...

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Os passarinhos, tão engraçados 37

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 53

O que fazer com este presépio?
Joseph Ratzinger tinha 85 anos quando, em 2012, escangalhou o presépio. Tirou a vaca e o burro, porque - dizia o então Papa de serviço - no local do nascimento de Jesus "não havia animais". Portanto também não havia ovelhinhas, o que quer dizer que também não houve pastorinhos do deserto. Sobram, isso sim, os três reis magos. Gente fina, vinho de outra pipa. Reis. E magos (porque o champanhe ainda não tinha sido inventado). Esses, é certo, estiverem lá, em representação de toda a humanidade - segundo Bento XVI. Estiveram os reis magos e os anjos cantores.
Eu por acaso até era mais dado a acreditar no burro e na vaca do que na mirabolante história de Gaspar, Melchior e Baltasar, uma boa linha média para quem jogue em 4-3-3, mas que se há-de fazer? Mais de dois mil anos a aquecerem o Menino com os respectivos bafos e é este o pagamento que o burrinho e a vaquinha recebem.
Sempre atento às verdadeiras e mais urgentes necessidades do mundo e da cristandade, Ratzinger resolveu escangalhar o presépio. Estava no seu direito. Mas no meu não mexe!

Jardins que sobem pelas paredes
O jornal anunciou: em Lisboa há um jardim que sobe pelas paredes. Na Madeira havia outro.

O circo somos nós
Compreendia as bancadas vazias dos circos. Os circos eram, por aqueles dias tristes e desesperançados, um luxo e uma redundância. Um anacronismo. A magia e o sonho eram delito. A felicidade foi proibida por decreto. A gargalhada, se fosse popular, era considerada um desperdício. A "escola moderna" era aquela que ensinava que a "vida não é só alegria", dizia o então ministro da Educação Nuno Crato, que é desse tempo que falo. A escola moderna é aquela que fecha, dizia eu. Não há dinheiro, não há circo.
O circo somos nós - camelos, ursos, jacarés em camisolas, asnos e leões mansos. Homens-bala de pólvora seca, malabaristas, contorcionistas, ilusionistas, equilibristas, palhaços - somos nós, porque nos mandam e porque somos o único circo a que temos direito. Vivemos na corda bamba e sem rede. Tiraram-nos a rede, esticam-nos a corda, caímos que nem tordos sem capacete. Por mim, deixo em testamento: quando já não houver ninguém em cima dela, podem também levar a corda. Usem-na.
Por outro lado: o circo está na cidade. E eu vou-me rir, vou-me rir, vou-me rir...

Eu quero uma república das bananas. E do pão.
A questão foi pertinentemente colocada numa reportagem televisiva, aqui há coisa de cinco anos, portanto no tempo do Passos e do Cavaco. Que República queremos ter? Se me perguntassem a mim - mas a mim só me perguntam o caminho para o IKEA de Matosinhos -, eu tinha a resposta na ponta da língua: quero uma república das bananas. E das maçãs e dos pêssegos, do pão e do carapau, do frango de aviário e do leite, da massa de cotovelo e da água. Uma república republicana, com comida na mesa, até na mesa dos trabalhadores. E com trabalho para os trabalhadores. E com gente séria no Governo. E com um presidente que seja da República e deste mundo (como parece que temos agora...).
É decerto por ter estas ideias malucas que ninguém me pergunta nada, a não ser o caminho para o IKEA de Matosinhos. É. Só os galegos desorientados é que querem saber a minha opinião... 

A ver navios 153

Foto Hernâni Von Doellinger

Faustino Rey Romero

O merlo larpeiro      
 
Máis que merlo cantor, eres larpeiro.
(Se che ofendo, disculpa o que che digo.)
Nomearche a cereixa, a uva, o figo…
Auga debe facerche no peteiro.
 
Esta sona que tes de lambisqueiro
xa non é nova, que che ven de antigo,
porque dunha figueira es máis amigo
que da póla lustrosa dun loureiro.
 
É o teu gozo meirande andar de esmorga,
pois sabes que ó que ten baldeira a andorga
elle imposible ter o ánimo ergueito.
 
Anque o teu proceder eu non comparto,
cando vexo que tes o buche farto,
que che faga, desexo, bon proveito.


"Escolanía de Melros", Faustino Rey Romero 

(Faustino Rey Romero nasceu no dia 27 de Outubro de 1921. Morreu em 1971.)

Caminho 413

Foto Hernâni Von Doellinger

Graciliano Ramos 5

Um amigo em talas

O meu antigo companheiro de pensão Amadeu Amaral Júnior, um homem louro e fornido, tinha costumes singulares que espantavam os outros hóspedes.
Para falar com propriedade, aquilo não era exatamente pensão, mas isto não tem importância: com um pouco de esforço podíamos admitir que estávamos numa pensão de gente bem comportada. Bocejávamos em demasia, contávamos as pessoas que subiam ou desciam um morro próximo, dormíamos cedo e recebíamos com regularidade a visita do gerente do estabelecimento, o major Nunes, ótima criatura que deixou o cargo por lhe faltar o espírito do negócio.
Amadeu Amaral Júnior vestia-se com sobriedade: usava uma cueca preta e calçava medonhos tamancos barulhentos. Fora isso, o que tinha em cima do corpo era a barba, economicamente desenvolvida, uma barba enorme. Parecia um troglodita. Alimentava-se mal, espichava-se na cama, roncava o dia inteiro e passava as noites acordado, passeando, agitando o soalho, o que provocava a indignação dos outros pensionistas. Quando se cansava, sentava-se a uma grande mesa ao fundo da sala e escrevia o resto da noite. Leu um tratado de psicologia e trocou-o em miúdo, isto é, reduziu-o a artigos, uns quarenta ou cinquenta, que projetou meter nas revistas e nos jornais e com o produto vestir-se, habitar uma casa diferente daquela e pagar ao barbeiro.
[...]

"Linhas Tortas", Graciliano Ramos
 
 
(Graciliano Ramos nasceu no dia 27 de Outubro de 1892. Morreu em 1953.)

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

A crise veio de sapatilhas

Foto Hernâni Von Doellinger

Da profissão ao emprego vai semântica e não só

- Profissão?
- Jardineiro.
- Onde trabalha?
- Estou desempregado.
- Então porque disse que é jardineiro?
- Porque é a minha profissão.
- Mas eu perguntei-lhe...
- Perguntou-me pela profissão: sou jardineiro. Se me perguntasse pelo emprego: desempregado.
- Portanto, é ex-jardineiro...
- Não. Portanto, sou jardineiro. Ex-empregado.

Vida de cão 251

Foto Hernâni Von Doellinger

Darcy Ribeiro 2

Idos sidos 

Que é que fiz, não fiz, de mim?
Que é que fiz na vida, da vida?
Quem sou eu? Esse eu que me sou.

Minhas mãos me pendem soltas.
Inúteis para fazimentos.
Só servem para escrever, acarinhar.

Não sei dançar, nunca soube.
Olho, idiota, o céu estrelado.
Não conheço estrela nenhuma.

As árvores, tantíssimas, que vi,
Recordo inumeráveis, enormíssimas,
Não sei quem são.

Diante das flores me extasio.
Tolo, só reconheço rosas, orquídeas, cravos.
A música clássica me atordoa, cansa.

Quem sou eu, septuagenário,
Que esgoto meu tempo de me ser aqui?
Insciente, perplexo, inexplicado.

Só cheio de saudades de mim.
De tantos eus que fui. Sidos. Idos.
Somos descartáveis, sei, mas dói. 

"Eros e Tanatos", Darcy Ribeiro 

(Darcy Ribeiro nasceu no dia 26 de Outubro de 1922. Morreu em 1997.)

Estou mesmo a ver o filme 77

Foto Hernâni Von Doellinger

Murilo Araújo 5

Toada do negro no banzo
 
Negro
quando cava, quando cansa,
quando pula, quando tomba,
quando grita, quando dança,
quando brinca, quando zomba
sente gana de chorá...


Negro
quando nasce, quando cresce,
quando luta, quando corre,
quando sobe, quando desce,
quando véve, quando morre
negro pena sem pará...


Negro, aponta o ponto -
ai Umbanda!
ginga tonto, tonto -
ai Umbanda!
Negro aponta: Oôu!


Negra nua, nua -
ai Umbanda!
toma a bença à lua -
ai Umbanda!
samba nua... Oôu!


Xangô!
Meu céu s'ecureceu.
Exú me despachou...
Calunga me prendeu...


Xangô! Xangô! Xangô!
Meu rancho se acabou...
Meu reino - mar levou...
Meu bem morêu... morreu.


Negro
negro chora, negro samba
na macumba do quilombo,
com malafo pra moamba
dando bumba no ribombo!
do urucungo e do ganzá!


Negro
cae no congo, cae no congo,
dos mirongas ao muganga,
todo o bando nesse jongo...
roda, negro - roda a tanga
chora banzo no gongá.


Negro aponta o ponto -
ai Umbanda!
ginga tonto, tonto -
ai Umbanda!
Negro aponta: Oôu!


Se Xangô chegasse...
ai Umbanda!
E me carregasse -
ai Umbanda!
Coisa boa... Oôu!


"As Sete Cores da Infância", Murilo Araújo
 
(Murilo Araújo nasceu no dia 26 de Outubro de 1894. Morreu em 1980.)

Vai, vai, pescador, filho do vento, irmão da aurora 23

Foto Hernâni Von Doellinger

As minhas frases favoritas 115

- É pá, pensava que já tinhas morrido...

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Globetrotter 7

Foto Hernâni Von Doellinger

A mãe, o pai e o filho da mãe

A mãe: - Vai para casa da mamã!...
O filho: - Mas, ó mãe...
A mãe: - Vai chamar mãe a outra!
O filho: - Ó pai!
O pai: - Quê?
O filho: - Olhe a mãe...
O pai: - Era o que faltava...

Nova corrida, nova viagem 28

Foto Hernâni Von Doellinger

Manuel Lago González 3

O tesouro de Santa María

Reina Urraca, reina Urraca
malafada te fadou
que foche unha triste reina
tendo tan gran corazón.
 
Si despois qu'enviudache
do Conde que era tan bó,
non te casaras co Rey
D. Alfonso d'Aragón;
Si suidaras de Galicia
e lle tiveras amor
a terra que t'acramaba
y o neno que Dios che dou,
non serias o que foche
vállate Dios.
[...] 
 
Manuel Lago González

(Manuel Lago González nasceu no dia 25 de Outubro de 1865. Morreu em 1925.)

Caminho 412

Foto Hernâni Von Doellinger

Manuel Leiras Pulpeiro 3

Desque lle a peta botaron,
naide máis foi á Frouseira;
soilo Dios puxo froliñas
por entremédias das penas;
froliñas pequerrichiñas,
e agrouladas, que semellan
bágoas de sangue calladas
no bico das carrasqueiras;
froliñas que, con ser froles,
caladamente se queixan
de que tanto, tanto tarden
en cobrar-se contas vellas!

"Cantares Gallegos", Manuel Leiras Pulpeiro

(Manuel Leiras Pulpeiro nasceu no dia 25 de Outubro de 1854. Morreu em 1912.)

Mobiliário urbano (propriamente dito) 44

Foto Hernâni Von Doellinger

Felicidade é coisa pouca e tudo

Vou a Oliveira de Azeméis, por exemplo, e levo uma data de "Ó jovem!", geralmente dito por pessoas de bandeja na mão e com idade para serem, vá lá, meus netos. Afino! Ai, se soubessem como eu afino!... Por outro lado: vou a Fafe, por exemplo, e as pessoas, algumas com idade para serem, vá lá, meus filhos, chamam-me "Meu rico menino!", e eu gosto. Fico feliz da vida!... Quer-se dizer: todas as terras são por exemplo, mas algumas são mais por exemplo do que outras. E neste particular, deixem-me que vos diga, Fafe é, modéstia à parte, uma terra por exemplíssimo...

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Vida de cão 250

Foto Hernâni Von Doellinger

Antônio Rangel Bandeira 2

Amor e medo 

És bela, eu velho;
Tens amor, eu tédio.
Que adianta seres
Bela, se a beleza
É coisa externa que
Não está no coração?
E minha velhice
Não te interessa
Já que, na vida,
Seguimos destinos
Opostos.

Tens amor, bem sei
É próprio da idade,
Que amor é
Tão somente impulso
Da natureza cega,
Para perpetuar
A miséria amarga
De nosso próprio
Infortúnio.
És bela, fui moço,
Tens amor, eu... medo. 

Antônio Rangel Bandeira 

(Antônio Rangel Bandeira nasceu no dia 24 de Outubro de 1917. Morreu em 1988.)

I want to ride my bicycle 28

Foto Hernâni Von Doellinger

Ramalho Ortigão 5

O homem mais perfeitamente educado por um mestre foi Stuart Mill. Aos vinte anos de idade ele tinha aprendido com James Mill, seu pai, tudo quanto a ciência pode ensinar a um sábio e a um filósofo. E todavia Stuart Mill conta-nos na sua autobiografia que, ao perguntar um dia a si mesmo se seria feliz, uma vez realizadas nas instituições e nas ideias todas as reformas que ele projectava criar, a sua consciência lhe respondera: não. "Senti-me então desfalecer - diz ele. - Todas as fundações sobre que se tinha arquitectado a minha vida se desmoronaram de repente." Mais tarde ele sentiu a dor, sentiu depois o amor, o amor apaixonado, absorvente, enorme, dominando todo o seu ser, submetendo a força dissolvente da análise; e foi só então que ele se sentiu homem, revivendo para a natureza, forte da grande força que a natureza lhe comunicava, equilibrado para sempre no seu destino, cingido ao coração palpitante de uma mulher que ele amou - ele o sábio, o filósofo, o reformador frio e implacável - com o amor illimitado, entusiástico, cavalheiresco, que as velhas lendas líricas atribuem aos grandes amantes célebres.

"As Farpas", Ramalho Ortigão 

(Ramalho Ortigão nasceu no dia 24 de Outubro de 1836. Morreu em 1915.)

Offshore, se fashavore 48

Foto Hernâni Von Doellinger

Raimundo Monteiro 2

Eu
 
Meus olhos tristes não choram
Mas a minha alma padece...
O orgulho que me enaltece
É como o orgulho de um rei!
Mágoas, que os outros deploram,
Dão-me coragem sem termo...
O meu espírito enfermo
Às tempestades lancei.
 
Árvore seca do monte
Ao sol e às chuvas morrendo,
Num desespero tremendo
Minore a insânia da dor...
Entre horizonte e horizonte,
Hirto e fatal agonizo...
Enquanto, longe, diviso
A nuvem leve do amor.
 
Nuvem de gaze tão leve
Que se desfaz na distância...
Como a azulada inconstância
Das ondas que vêm e vão!
E a fantasia se atreve
A colori-la com as tintas
Tão rubramente distintas
Da minha amarga paixão!
 
De tédio sofro e esmoreço
Como um beduíno sem rumo...
E em vãos temores consumo
O meu  orgulho de um rei!
Mas, sempre audaz, reconheço
Que não fiz mal quando a vida,
Numa arrogância atrevida,
Às tempestades lancei! 

Raimundo Monteiro

(Raimundo Monteiro nasceu no dia 24 de Outubro de 1882. Morreu em 1932.)

Voltaremos à tragédia logo que possível

Pedimos desculpa por esta interrupção: Cristiano Ronaldo ganhou o prémio da FIFA para melhor futebolista da temporada 2016-2017. A tragédia dos incêndios segue dentro de momentos.

domingo, 22 de outubro de 2017

Chester, muito mais do que ajudante de xerife


Matt Dillon era o xerife de Dodge City, e Chester o seu leal ajudante. Naquele tempo todos queriam ser Tarzan ou Mandrake, Buck Jones ou Fantasma, Mascarilha ou Cisco Kid. Os "artistas". Mas o Álvaro escolheu modestamente ser Chester, actor secundário, e assim se rebaptizou num involuntário equívoco cheio de ironia: na verdade, Álvaro Moreira Mendes nasceu para ser primeira figura, protagonista. E foi. No seu ofício de indústria, no movimento associativo, na intervenção cívica, na amizade fraterna e íntegra, foi sempre dos melhores, um fafense excelentíssimo, um homem maior do que o próprio nome, maior do que a alcunha sacada dos livrinhos de cobóis, maior do que o lugar que lhe queiram dar os menestréis da história recente de Fafe, tão desperdiçada em umbiguismos e bagatelas, maior do que melhor ou pior pensem dele. Acerca da opinião dos outros a seu respeito, creio, aliás, que o Chester não se coibiria de dizer, alto e bom som: caguei!!! E diria alto e bom som porque não sabia falar de outra maneira...
Onde o Álvaro chegasse, constava. Ele encarregava-se de avisar logo à entrada, por entre raios e coriscos, avançando como um tornado de grau cinco, a enorme mão calejada e aberta desbravando caminho, oferecendo-se para um abraço, para uma palmada nas costas à moda antiga. Ser imperfeito como todos nós, mas menos imperfeito do que a maioria de nós, e muito menos imperfeito do que eu, por exemplo, o Chester tinha um coração enorme, desmesurado, e uma boca do tamanho do coração. Fazia amigos com a mesma facilidade com que fazia inimigos. E também deu alguns pontapés na vida.
O Chester era generoso, impulsivo, excessivo e puro. E amiúde foi a primeira e principal vítima da sua generosidade sem peso nem medida. Era um bom selvagem, uma força da natureza.
Era meu amigo. Forjámos a nossa cumplicidade no tasco, evidentemente. Nas tardadas de Inverno passadas à volta da braseira na cozinha da Dona Isabel, no Toninho Nacor, onde eu, com os bolsos cheios de cotão, ia levado pelo tio Américo. Em 1976, Barcelos acolheu o Campeonato da Europa de Hóquei Patins Sub-21 (juniores, chamavam-se então). O Chester falou do assunto. Comprámos duas assinaturas para o torneiro inteiro, e todas as noites lá íamos de Vauxhall até Barcelos por estrada nacional, que era o que havia, víamos os dois ou três jogos do programa, regressávamos a Fafe e eu chegava a casa já de madrugada. Fomos campeões.
Mais ou menos por essa altura o Grupo Nun'Álvares estava instalado no edifício que fora posto da GNR, em frente à Igreja Matriz, e que hoje é, creio não estar enganado, casa paroquial. Ali foi construído um rinque em cimento e organizado, em 1977, o primeiro torneiro de futebol de salão em Fafe. Salão ao ar livre, é preciso que se note. Nunca falhei um jogo. Um dia vou à bilheteira comprar o bilhete do costume, está lá o Chester (o Chester tinha o seu quê de Deus, também estava em toda a parte) e entregou-me um livre-trânsito passado em meu nome e que dizia "Convidado da Organização - Prémio Assiduidade". Resultado: deixei de pagar para entrar e guardo religiosamente aquele cartão, como se fosse um santinho...
Quando terminei a minha felizmente efémera passagem pela tropa, o Álvaro foi a primeira pessoa a oferecer-me um emprego a sério e até já tinha tratado de tudo para eu tirar a carta de condução. Apareceu-me melhor, o Álvaro incentivou-me a aceitar a outra proposta, e ainda hoje não tenho carta.
O Chester alegrava-se quando me via em Fafe. Fazia questão que se soubesse que gostava muito de mim. E a verdade é que eu também gostava muito dele. E no entanto falhei-lhe miseravelmente na altura da vida em que por certo ele mais precisou dos amigos...
Felizes os ignorantes: quem não conheceu o Chester, não sabe o que perdeu. Trabalhador incansável, empreendedor contumaz, o Chester é uma história extraordinária e isto é um humilde lembrete. Álvaro Moreira Mendes. Uma vida que dava um livro, um nome que merece rua.

P.S. - A peculiar fotografia acima chegou-me às mãos através do Pimenta, outro que tal. Peço desculpa por não identificar o seu autor, mas de momento não sei quem é.

Espero que ao receberes esta 35

Foto Hernâni Von Doellinger

Eneida de Moraes 2

[...]
Operando minhas rugas, eu poderia depois pensar sem que outras rugas nascessem, ou a operação me proibiria, cassaria meu direito a pensar? A quem estaria enganando sem rugas, a mim ou aos outros? E se depois da operação plástica eu ficasse com uma cara imbecil se bem que formosa? Se eu me procurasse e não me encontrasse? Pensei em minha mãe muito jovem ensinando que o importante é ter sempre saúde mental, física e moral. Pensei em George Sand dizendo: - "Quando me examino vejo que as duas químicas paixões de minha vida foram a maternidade e a amizade." Com essas duas paixões quantas rugas terão nascido naquela tão fabulosa mulher?
De qualquer modo, cumprimentemo-nos: dentro em breve, neste país, com as operações plásticas a preço módico - cinquenta mil cruzeiros -, não mais haverá brotinhos, balzacas ou coroas. Infelizmente a divisão de classes continuará por algum tempo, e por isso no Brasil daqui a pouco só serão velhas as mulheres trabalhadoras como eu e centenas de outras, e as mulheres operárias, aos milhares.
Manteremos as rugas: elas contam nosso destino.

 "Aruanda", Eneida de Moraes

(Eneida de Moraes nasceu no dia 23 de Outubro de 1904. Morreu em 1971.)

The Way 411

Foto Hernâni Von Doellinger

Xervasio Paz Lestón 2

Vinte anos

¡Vinte anos sin xusticia
baixo silentes campas!
¡Na espera, en tanto afoga
tombal silencio o chau da pátrea!…
Catro lustros
na agarda,
rilando nos sartegos
a impodencia dos xustos contra a infamia.
¡Catro lustros clamando
castigo pra canalla!

[...]

Xervasio Paz Lestón

(Xervasio Paz Lestón nasceu no dia 23 de Outubro de 1898. Morreu em 1977.)

Estou mesmo a ver o filme 76

Foto Hernâni Von Doellinger