sábado, 30 de novembro de 2019

Mário Soares e a afundação

Uma vez era campanha eleitoral e saí do trabalho, na tripeiríssima Rua de Santa Catarina, para apanhar o autocarro 37 no Largo dos Lóios. E quando cheguei à Avenida dos Aliados, que é a meio caminho, esbarrei num enorme ajuntamento que rodeava e seguia um Carocha de tecto de abrir. Era muito povo, agitando bandeiras e gritando palavras de ordem tão desordenadas que eu não percebia o que as pessoas diziam. Aproximei-me, chamado pela curiosidade ou não sei por quê, furei pelo meio daquele fervor todo e consegui chegar ao carro. Quem é que lá estava de cabeça de fora e braço pré-presidencial em aceno à multidão? Mário Soares em pessoa. Era ele!
Eu fiquei a um metro do homem. E deixei-me ficar. O Volkswagen careca andava devagar. E eu deixei-me ir. Mas só percebi depois, muito depois. O cortejo desceu à Praça, subiu a Rua dos Clérigos, passou pelos Leões e pelo Hospital de Santo António, entrou na Rua D. Manuel II e quando dou fé Mário Soares está em frente ao Palácio de Cristal. O esquisito, o inexplicável, é que eu também lá estava. A um metro do homem. Eu fui atrás dele e não sabia.
Foi no ano de 1986 e é a história que eu costumo contar quando quero explicar o que é o carisma. Carisma é aquilo: aquele íman, aquele poder sobre as massas, mesmo sem abrir a boca, aquela força invisível que uns poucos têm de aglutinar e empolgar tudo e todos à sua volta, até a mim, que sou um cínico.

A Vida, que me tem sido tão boa, concedeu-me vinte anos mais tarde, nas Presidenciais de 2006, a prenda extraordinária de poder acompanhar no terreno, profissionalmente, a última verdadeira campanha eleitoral de que Portugal deve ter memória. E seguindo Mário Soares, que se borrifava cada vez mais para os soundbites, para os assessores de imprensa e até para o seu ausente director de campanha, que ele frequentemente não sabia muito bem quem era. Em vez de apelar ao voto, em vez de criticar a concorrência, Soares contava histórias em pequenos auditórios vagamente frequentados, falava de António Sérgio, de Álvaro Cunhal, de Agostinho da Silva, de Camilo Castelo Branco (lembro-me, em Famalicão), de Antero de Quental. Contava Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Irene Lisboa, José Gomes Ferreira, José Régio, Almada Negreiros, Vitorino Nemésio, Miguel Torga, Carlos Queiroz, Adolfo Casais Monteiro, Manuel da Fonseca, Sophia de Mello Breyner Andresen, Carlos Oliveira, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny, Natália Correia, Alexandre O'Neill, David Mourão-Ferreira, Alberto Lacerda, Ruy Belo, amigos ou conhecidos em graus diversos. E eu regalado.
Ora bem. Mário Soares morreu fará apenas três anos em Janeiro. A fundação que leva o seu nome, e à qual ele deu os seus últimos anos de vida, acumula prejuízos, perde mecenas e patrocínios, qualquer dia alguém terá de apagar a luz. Agora eu outra vez: não me interessa a fundação e para onde vai, incomoda-me é que leve o nome de Mário Soares...

Interlúdio fotográfico 195

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 183

O homem que sabia de codornizes
José Mário Branco. Conta a jornalista Catarina Carvalho, do DN, que José Mário Branco lhe disse uma vez, durante a produção de um disco para uma fadista famosa, que aquilo era trabalho de rigor, de filigrana. "É chupar os ossinhos da codorniz", explicava o mestre.
Fiquei contente. José Mário Branco sabia de quase tudo e, tomem lá, até sabia de codornizes. E eu não sei de nada, mas desunho-me satisfatoriamente com as codornizes. A minha platónica relação com José Mário Branco era de admiração e reverência. Sobretudo respeito: silêncio, que se vai ouvir José Mário Branco. A partir de hoje a nossa relação é de camaradagem, acho que tenho esse direito. Que ninguém separe o que a codorniz uniu. E era mais duas bifanas e dois fininhos, se faxavor!

P.S. - No mesmo DN escreve-se sobre "tetos" para os sem-abrigo em Lisboa. Tetos, pois. Quando forem horas de mamar, chamem-me.

Ele há dias
Há dias que são noites.

O Zarco do Castelo do Queijo
João Gonçalves Zarco, da nobre família dos Zarcos de Valdevez, foi um navegador português e cavaleiro fidalgo da Casa do Infante D. Henrique, que o encarregou de organizar o povoamento e administrar a zona funchalense da Ilha da Madeira enquanto Alberto João Jardim não chegasse. Dito e feito. Quando se reformou, o velho Zarco, que não era tolo e tinha agasalhado uns cobres, abriu uma escola em Matosinhos mas escolheu a Foz, no Porto, para morar, instalando-se desafogadamente na famosa Rotunda do Castelo do Queijo, a que também chamam Praça de Gonçalves Zarco exactamente em homenagem à estátua equestre de D. João VI.

Nem sempre carne ou peixe
Como diz a minha sogra. "Nem sempre carne ou peixe. De vez em quando também é preciso comer um bocadinho de bacalhau." 

Marx, o da harpa
Depois de ter inventado o comunismo, Marx fez comédia em Hollywood, cantou "A mula da cooperativa", foi candidato à Presidência da República e abriu um restaurante em Fafe. Actualmente diz piadas na rádio e joga a defesa direito no FC Porto.

P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Março de 2014. O comediante Harpo Marx, que se chamava de baptismo Adolph Arthur Marx, nasceu no dia 23 de Novembro de 1888. Não era mudo, mas em cena só comunicava por gestos, buzinas e assobios. E tocava muito bem harpa. Exactamente: Harpo, o da harpa.

Ai flores do verde pino

Foto Hernâni Von Doellinger

Anderson de Araújo Horta 3

Descoberta 

Neste lar, nosso amor, pobre de arneses,
foi prenúncio feliz de um grande dia.
E refletia-se em nós dois, às vezes,
calmo porto a que Deus nos conduzia.

Você nasceu nos meios montanheses,
tendo o brasão apenas da Poesia...
sem lanças, sem broquéis e sem paveses,
mas tendo o grande amor dos pais por guia!

Quando você nasceu, nasceu gritando,
como quem toma posse, de repente,
de uma terra inda há pouco conquistada...

De modo que eu me vi também chorando,
sem saber traduzir corretamente
a sua primeiríssima balada!


Anderson de Araújo Horta 

(Anderson de Araújo Horta nasceu no dia 30 de Novembro de 1906. Morreu em 1985.)

O dono da bola

Foto Hernâni Von Doellinger

Fernando Pessoa 9

[Dá a surpresa de ser]

Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter que haver madrugada.

E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?

"Cancioneiro", Fernando Pessoa

(Fernando Pessoa nasceu no dia 13 de Junho de 1888. Morreu no dia 30 de Novembro de 1935.)

Que perfeito coração

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Black Friday: leve cinco e pague seis!!!

Era comprador compulsivo e fanático por promoções, adorador de sextas-feiras negras. Um relâmpago que entrava, escolhia, pagava e saía das grandes, pequenas e remediadas superfícies num abrir e fechar de olhos das câmaras de vigilância, que realmente nunca o viram. Acreditava que 13,99 são treze e não catorze euros. Se lhe aparecesse à frente "Leve cinco e pague seis!!!", letreiro jeitoso em vermelho e amarelo rematado por veementes pontos de exclamação, ele aproveitava logo...

Interlúdio fotográfico 194

Foto Hernâni Von Doellinger

Poesias completas e praticamente reunidas (vol. XIV)

Santinho!
Viva!
Viva Portugal!
Viva a República e a Monarquia!
Viva a Igreja e a Maçonaria!
Viva a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Vila Real de Santo António, não desfazendo de todas as outras associações humanitários de bombeiros voluntários do resto do País que têm nome mais curto, como, por exemplo, Fão ou Freixo de Espada à Cinta!
Viva!

Viva císsimo!
Viva mente!
Viva quente!
Vá para dentro!

Viva cidade!
Viva Villa!
Viva Zapata!
Viva México!
Arriba, arriba! Ándale, ándale!
Viva Las Vegas!
Ó Elvis, ó Elvis, bisavós à vista!
Viva!

Santinho!

Insondabilidade
Quando tirou
a última pedra
do caminho,
enterrou-se em lama
até aos tornozelos.

Alvíssaras
Perdeu a cabeça
e pôs anúncio no jornal.

Faz-lhe muita falta.

Fábula do cão ão ão e do gato poliglota
No tempo em que
os animais falavam,
o cão disse:
ão, ão, ão.
E o gato perguntou:
és gago ou quê,
ó chien de merde?

O gato era, com efeito, um chat.

Caracol
Ca... ra... col... ... ...

Riminha
O caracol
leva a casa
a tiracol.

Vá lá, façam as pazes!...

Foto Hernâni Von Doellinger

Eu morra aqui

"Eu morra aqui se não é verdade", disse. E morreu. E era verdade. A vida às vezes parece parva.

Vai um picolé?

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Era uma vez um assessor

Era uma vez um assessor que tinha uma deputada. Quando percebeu que a deputada diletante gostava de dar tanto nas vistas como ele petulante, o assessor opinioso despediu a deputada exibicionista e comprou um saia-casaco lindo de morrer.

Também faço isto muito bem 290

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 182

Relativamente a essa matéria
- Relativamente a essa matéria, senhor deputado, devo esclarecer que não tenho nada a acrescentar relativamente a essa matéria.
- E relativamente à outra matéria, senhor primeiro-ministro?
- Relativamente à outra matéria, senhor deputado, devo esclarecer que não tenho nada a acrescentar relativamente à outra matéria.
- Bem me parecia, senhor primeiro-ministro!
- Ainda bem que nos entendemos, senhor deputado!

Lições de História: Albert Hofmann 
Atenção ao dia 16 de Novembro, muita atenção! Neste dia, mas em 1938, o químico suíço Albert Hofmann sintetizou pela primeira vez na História o LSD. E sintetizou desta maneira: baixem o volume ao amarelo, que eu não consigo ouvir o azul...

E os amigos do Pina, que é deles?
Quando Manuel António Pina morreu, por assim dizer, em Outubro de 2012, os amigos de Manuel António Pina fundaram o Clube dos Amigos à Espera do Pina. Outros amigos de Manuel António Pina fundaram o Círculo Literário e Artístico Manuel António Pina. Sinceramente achei então que o Pina não merecia tanto. Quero dizer: não merecia tanta vaidade e inveja, tanto umbiguismo, tanto acotovelamento, tanta sede de aparecer à pala do desaparecido, vamos um supor. O Pina de certeza que não sabia que tinha tantos amigos. E ainda por cima amigos desavindos, dissidentes. Que fartura! Duas-colectividades-duas em nome do Pina, no Porto que ainda há pouco enterrara e responsara a Fundação Eugénio de Andrade, com o descaramento de quem limpa as mãos à parede depois de limpar o cu sem papel. Eugénio de Andrade, esse - não sei se tem amigos ou se alguém espera por ele...
Ignoro o que se passa hoje em dia com aquelas duas pressurosas e exclusivas agremiações pinaculares. Desconheço se ainda existem, se bolem, se fazem saraus literários ou pelo menos almoço de Natal, se são nenhuma ou se se multiplicaram por vinte. O Pina é grande e chega para todos: para os compinchas de verdade e para os simpatizantes, curiosos, atrevidos e outros aproveitadores. Eu sou um simples admirador das palavras de Manuel António Pina, só lhe conhecia a voz da televisão e da rádio, naquele falar de quem fala, e do olá no elevador do Edifício JN, e parece que o estou a ouvir dizer: - Sirvam-se.

P.S. - Escrito a partir de um texto publicado originalmente no dia 26 de Novembro de 2013.

Ambos os dois
A minha sogra tem oitenta e sete anos e padece de um apetite voraz. Prato, sopa e sobremesa em quantidades que eu aqui não digo para evitar a abertura de um conflito diplomático com a Somália. Digamos apenas que a minha sogra é uma multidão a comer. No outro dia perguntei-lhe:
- E agora, quer fruta ou bolo?
- Pode ser - respondeu-me a minha sogra.
- Pode ser o quê? - insisti, até porque a minha sogra é um bocadinho surda quando quer.
- Fruta e bolo - esclareceu a minha sogra, sem sequer olhar para mim.

Colombo, o do ovo
Quando Colombo pôs o ovo, foi o assombro geral. O respeitável público ainda esperou por um coelho da cartola ou, vá lá, um par de pombas brancas de um lenço. Mas nada. O ovo era número único e foi assim que ficou na História.

P.S. - No dia 19 de Novembro de 1493, Cristóvão Colombo desembarcou numa ilha chamada Borinquen, que ele vira pela primeira vez de véspera e que hoje é Porto Rico. Anos mais tarde Colombo construiu um centro comercial e duas torres de escritórios na zona de Benfica, em Lisboa.

Luiz Ruas 3

[...]
discurso

faz mistério palhaço
e ri teu riso esbandalhado.
gargalha palhaço e faz sofrer
os que contigo riem e sofrem
e vivem.
canta a tua ideologia tirânica
ó clown sentenciado
para fazer chorar os que riem.
ninguém entende tua vida mascarado
que se esconde atrás da cortina
das pinturas e das vestes.
onde está tua face palhaço onde?
além do além do horizonte
nas nuvens ou atrás da máscara?
onde está teu riso palhaço onde?
no pranto que improvisas
ou na dor que não gargalhas?
palhaço.
interrogação verde no cenário de carmim.
palhaço. olha o palhaço.
havia inocência e terror pureza e crime
em teus olhos abertos para o mundo.
luzes.
as luzes da ribalta não revelam
o que não dizem também
nem as cores nem os saltos nem as cambalhotas

que fazes no trapézio longínquo.
palhaço. quem já viu tua face
tua única face?
aquela que não é partida
aquela que não é pintada?
quem já beijou tua boca verdadeira?

[...]

"Aparição do Clown", Luiz Ruas

(Luiz Ruas nasceu no dia 28 de Novembro de 1931. Morreu em 2000.)

Cão de olhos que afligem

Foto Hernâni Von Doellinger

O caguinchas e o chupista

Ora muito bem. O caguinchas é o cagarola, o não-se-astrebe, o medricas, o medroso, o merdoso, o maricas, o coninhas, o cobardolas, o caga-na-saquinha (cá está), o cagão, o varas-verdes, também o receoso, o temeroso, o fraco, o covarde ou o cobarde, mas esta parte já não tem piada nenhuma.
E o chupista? O chupista é o comedor, o parasita, o gosma, o chulo, o mamador, o mamão, o lambão, o sanguessuga, o rapador, o papa-jantares, o moina, o moinante, o chorinhas, o pedincha, o pedinchão, o videirinho, também o beberolas, o cachaceiro, o beberrão, o interesseiro, o extorsionário, o chantagista, o nosso banco, o oportunista ou o aproveitador, mas esta parte já não tem piada nenhuma.
Caguinchas e chupista. Feitios. Se estes dois desgraçados traços de carácter coincidirem numa mesma e única pessoa, então, consoante o feitio dominante, estaremos na presença de um chupinchas ou de um caguista.

P.S. - Chupiu era um tasco em Fafe, entre o Estádio e o Belinho, no gaveto do início do Picotalho com a Rua José Ribeiro Vieira de Castro, e evidentemente não tem nada a ver com esta história.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Seios (sei-os)

Foto Hernâni Von Doellinger

Porque não há
Padarias que em vez de pão nos dêem seios
Logo pela manhã?

Alexandre O'Neill, "No Reino da Dinamarca"

Temperaturas

Diz o Fahrenheit ao Celsius, quero dizer, diz o físico alemão Daniel Gabriel Fahrenheit ao astrónomo sueco Anders Celsius: - Andas a ferver em pouca água, pá!...

P.S. - Anders Celsius nasceu no dia 27 de Novembro de 1701.

E parece que foi ontem... 5

Foto Hernâni Von Doellinger

Riminha

O caracol
leva a casa
a tiracol.

Aos bons velhos tempos 7

Foto Hernâni Von Doellinger

Mas para quem fica os tempos são realmente outros: mais abertos, flexíveis quanto baste. Os novos ingleses entraram na vida dos portuenses e os portuenses conseguiram salvo-conduto para aceder às impenetráveis fortalezas britânicas de antigamente. Os estilos de vida acomodaram-se, as instituições desmistificaram-se. Mantêm-se, of course, os rituais e os sports no clube, as festas na Feitoria, as recepções de Junho no Consulado, pelo aniversário da Rainha, e a emoção dos momentos de glória vividos nas raras visitas da realeza das Ilhas. Isabel II esteve no Porto em 1957 e voltou, por consoladoras quatro horas, em 1985. E o herdeiro, príncipe Carlos, deslocou-se à Invicta em 1987, para inglês ver mas agora também para português ver.
Perdido o império do vinho - hoje com lucros vindimados meio por meio com os portugueses -, serão apenas vinte e cinco as famílias súbditas de Sua Majestade a manterem-se no negócio que mais fortemente ligou os ingleses ao Porto, num total aproximado de quatrocentas famílias e cerca de mil e duzentos cidadãos.
Resta a memória de néon na noite do Douro gaiense em nomes de marca... inglesa. E dos bons velhos tempos, para a História e para a cidade do Porto, perduram as obras, as instituições as lembranças e a tradição. E, em exclusivo para o portuense de calção, chinelo e bronzeador - a Praia, na Foz, baptizada dos Ingleses.
Que longe vai o tão acercado ano de 1895, em que o de referencíssima The Lavadores Review - The Only Organ of English Opinion in Lavadores publicava os resultados do críquete e contava as últimas das society and miscellany news.

P.S. - Sétima e última parte de um trabalho que escrevi para a edição de Junho de 1992 da revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Lembrei-me dele a propósito de uma recente reportagem do jornalista David Mandim no DN Life.

Vida de cão 489

Foto Hernâni Von Doellinger

Iniciação

Mandaram-no foder. E ele foi. E gostou bastante.

Do alto desta pirâmide...

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Mário Cesariny 9

Homenagem a Cesário Verde

Aos pés do burro que olhava para o mar
depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas cozidas

Pouco depois cada qual procurou
com cada um o poente que convinha.
Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário Verde
que ainda há passeios ainda há poetas cá no país!


"Pena Capital", Mário Cesariny

(Mário Cesariny nasceu no dia 9 de Agosto de 1923. Morreu no dia 26 de Novembro de 2006.)

Interlúdio fotográfico 193

Foto Hernâni Von Doellinger

Ele há dias 4

Há dias que se não nascessem tinham de ser inventados.

Também faço isto muito bem 289

Foto Hernâni Von Doellinger

Álvaro Pacheco 3

Canto da lavadeira do rio

Bate roupa, bate sol
bate fome, bate peitos
bate carne descarnada
na pedra, no coarador.

 
Precisa anil para a roupa
do patrão ficar branquinha
tinindo na estearina.

 
Bate vida, a vida toda
bate a morte, a juventude
fica no rio, na pedra
se esgarça na correnteza
a pureza de menina
o sonho simples (de pobre)
os meninos espiando
ela só não vendo nada.

 
Precisa roupas, fiapos
um fiapinho de nada
pra chegar no céu enxuta.


Álvaro Pacheco 

(Álvaro Pacheco nasceu no dia 26 de Novembro de 1933)

Aos bons velhos tempos 6

Foto Hernâni Von Doellinger

"Como são outros os tempos!...", desabafa Mr. Jennings, que somente abandonou o Porto para terminar os estudos em Inglaterra e para ajudar o seu país servindo na RAF (Força Aérea) durante a II Grande Guerra, no que foi secundado pela esposa, Lilan, que se alistou na WRAF. Ambos nascidos em Portugal, os seus três filhos e os nove netos estão todos em Inglaterra, trabalhando ou estudando.
Ainda existem ingleses de quarta e de quinta gerações estabelecidos no Porto, naturalmente cada vez menos. Mas agora, numa comunidade que ocupa na cidade o terceiro lugar em número, depois dos franceses e dos alemães, e com outros e diversificados negócios - ensino, bancos e seguros, têxteis e finalmente vinho do Porto -, são cada vez mais os que aqui chegam apenas para comissões de serviço de dois ou três anos ou os que, sem nunca cá terem estado antes regularmente, nos escolhem como parceiros de reforma.
É a educação dos filhos que faz com que, antes do desejado, muitos jovens casais ingleses regressem à pátria. Conta David Bain que são poucos os compatriotas que acreditam no ensino português e lhe confiam a descendência. E a Escola Inglesa do Porto - diz - pratica preços (cerca de 600 contos/ano por aluno) que fazem com que os pais que não desistem de cá ficar prefiram enviar as crianças, logo aos oito anos, para escolas internas inglesas. Foi o que ele próprio fez com os seus dois filhos.

P.S. - Sexta parte de um trabalho que escrevi para a edição de Junho de 1992 da revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Lembrei-me dele a propósito de uma recente reportagem do jornalista David Mandim no DN Life.  

Um minuto o nosso beijo

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Einstein, o culturista

O Dia do Físico realiza-se sorrateiramente a 19 de Maio derivado a um tal Albert Einstein, alemão americanizado, guedelhudo e linguarudo, precursor dos Beatles e inventor dos Rolling Stones, do buraco negro, do bigode libertário e dos ginásios a céu fechado e céu aberto, amigo de Pôncio Pilates e sócio de Che Guevara num abastado negócio de T-shirts, tatuagens e posters. O Alberto era, com efeito, um gajo de abdominais bem definidos, muito dado à malhação, ao halterofilismo, ao triatletismo, ao lançamento do disco e do livro, ao culturismo e a todos os tipos de bombas, nomeadamente a atómica.
Einstein nasceu a 14 de Março e morreu a 18 de Abril. E por isso, feita a equação, noves fora, dá 19 de Maio. Científico.

P.S. - Publicado originalmente no dia 19 de Maio de 2019. No dia 25 de Novembro de 1915, Albert Einstein apresentou a formulação das equações de campo da sua Teoria Geral da Relatividade em quatro páginas publicadas numa revista da Academia de Ciências da Prússia.

Também faço isto muito bem 288

Foto Hernâni Von Doellinger

Ele há dias 3

Há dias que mais valia não terem nascido.

Menino, eu queria patinar em tuas ondas

Foto Hernâni Von Doellinger

Oswaldo Osório 3

Cavalos de sílex

ainda estávamos em guerra quando fomos à lua
e tínhamos fome e feridas nos olhos de cegar

agarrávamos o futuro com a luz do laser
e as flores gelavam aqui donde partíamos com carbúnculos nos braços

pássaros de pio futuro por onde andávamos
deixámos a terra grávida de salamandras esventradas

ganhávamos o pão nosso cada dia com medidas de suor
e um inverno de vómito estarrecia sob as raízes

as galáxias mediam-se por braçadas de legumes ou milho ou arroz
que no-las distanciavam e as estrelas fugiam perseguidas
por cavalos de sílex

o sonho criava lodo cada manhã
as palavras mal nasciam apodreciam em limo

nesta situação-limite os seios o sexo o sémen
convenceram os homens nas suas fábricas
de cavalos de sílex

tarde

peitos punhos pulsos resolvemos ousar nosso pão


Oswaldo Osório

(Oswaldo Osório nasceu no dia 25 de Novembro de 1937)

Sob as luas os cães cheiram os cus uns aos outros

Foto Hernâni Von Doellinger

Eça de Queirós 7

Mas as tias entravam, sonolentas daquele longo terço no oratório. O Albuquerquezinho despertou, acamou com furor as suas repas, e erguendo-se,  disse em redor com satisfação:
- Pois senhoras, passou-se o bocadito da noite.
Deram então um castiçal a Artur, com recomendações infinitas: que apagasse a luz antes de adormecer, que não deixasse os fósforos espalhados por causa dos ratos...
- Eu estou lá ao pé, eu estou lá ao pé - disse o Albuquerque. - Eu lá vigiarei. E se o amigo quiser alguma coisa, é bater na parede! Vamos, boas noites!
E subiram para o corredor, o Albuquerquezinho, adiante, devagar, bocejando, puxando-se pelo corrimão.
- Pois amigo - disse - não há nada melhor do que uma sonecazinha, depois das torradas. Que elas hoje estavam más; mas, enfim, foi dia de hóspede. O que o amigo deve vir, é cansado. Três horas de diligência... Oiça lá, as conveniências são ao fundo do corredor.

"A Capital", Eça de Queirós

(Eça de Queirós nasceu no dia 25 de Novembro de 1845. Morreu em 1900.)

Caminho 743

Foto Hernâni Von Doellinger

Jenaro Marinhas del Valle 2

[...]
Venhem sentar umha em cada extremo do banco. Os rapazes, no centro, entregues a beijos e alouminhos, nem se inteiram. Dona Reverenciana carraspeia para se fazer notar. Sem resultado. Dona Claustófila carraspeia mais forte. Sem resultado. Ambas intercambiam gestos de estranheza, de escándalo, de indignaçom. A rapaza monta a cavalo no regaço do moço e joga-lhe cos cabelos, depois tira do peto um maço de cigarros e pede-lhe lume. El apalpa-se buscando e nom encontra. A rapaza descavalga e vai sentar-se ao lado do home em petiçom de lume. Fumam.
O rapaz estende os braços por trás das cabeças das senhoras e atraí-nas para si colhidas dos ombros. Deixam levar-se. O moço umha após outra beija-as nos beiços. Gargalhada da rapariga. As senhoras arroubadas, fecham os olhos de mao pousada nos joelhos do moço e vam-nas subindo pola coxa acima. O rapaz agita-se sentindo as cóxegas com um riso contido. As maos das senhoras esploram a barriga, o peito. Mais cóxegas e risos estremecidos. As maos descem corpo abaixo, chegam às virilhas. Grito do moço que se ergue dum brinco, colhe a moça por umha mao e sai correndo com ela.
[...]

"O Assento", Jenaro Marinhas del Valle

(Jenaro Marinhas del Valle nasceu no dia 25 de Novembro de 1908. Morreu em 1999.)

Qualquer caminho leva a toda a parte

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 24 de novembro de 2019

O homem que sabia de codornizes

José Mário Branco. Conta a jornalista Catarina Carvalho, do DN, que José Mário Branco lhe disse uma vez, durante a produção de um disco para uma fadista famosa, que aquilo era trabalho de rigor, de filigrana. "É chupar os ossinhos da codorniz", explicava o mestre.
Fiquei contente. José Mário Branco sabia de quase tudo e, tomem lá, até sabia de codornizes. E eu não sei de nada, mas desunho-me satisfatoriamente com as codornizes. A minha platónica relação com José Mário Branco era de admiração e reverência. Sobretudo respeito: silêncio, que se vai ouvir José Mário Branco. A partir de hoje a nossa relação é de camaradas, acho que tenho esse direito. Que ninguém separe o que a codorniz uniu. E era mais duas bifanas e dois fininhos, se faxavor!

P.S. - No mesmo DN escreve-se sobre "tetos" para os sem-abrigo em Lisboa. Tetos, pois. Quando forem horas de mamar, chamem-me.

Quem deitou a alegria ao lixo?

Foto Hernâni Von Doellinger

Ele há dias 2

Há dias que são noites.

As árvores crescem sós. E a sós florescem.

Foto Hernâni Von Doellinger

António Gedeão 7

Vidro côncavo

Tenho sofrido poesia
como quem anda no mar.
Um enjoo.
Uma agonia.
Saber a sal.
Maresia.
Vidro côncavo a boiar.

Dói esta corda vibrante
A corda que o barco prende
à fria argola do cais
Se uma onda que a levante
vem logo outra que a distende.
Não tem descanso jamais.

"Movimento Perpétuo", António Gedeão

(António Gedeão nasceu no dia 24 de Novembro de 1906. Morreu em 1997.)

Os cães gerais ladram às luas

Foto Hernâni Von Doellinger

Love is in the air

Parzinho de namorados. Romântico e fumador. O rapaz dá uma passa no respectivo cigarro e a seguir lança ao ar uma imensa nuvem de fumo. A rapariga dá uma passa no respectivo cigarro e a seguir o rapaz lança ao ar uma imensa nuvem de fumo. O que é extraordinário.

Aos bons velhos tempos 5

Foto Hernâni Von Doellinger

Esta apetência pelo social justificará a criação dos vários clubes ingleses. Os de golfe, em Espinho e Armamar, de que posteriormente se desligaram, e o Oporto Cricket & Lawn Tennis Club, estabelecido no Campo Alegre, sendo este o descendente final de uma sucessão de fusões iniciada em 1855 e que inclui, correndo o risco de errar por omissão, os desaparecidos Oporto British Club, então na Rua das Virtudes, o Oporto Cricket and Quoites Club, o Candal Lawn Tennis Club, The Vila Nova Lawn Tennis & Croquet Club, possivelmente entre outros.
Fundado no original exclusivamente para patrícios, o Clube Inglês tem hoje 514 sócios de 24 nacionalidades, com os portugueses em igualdade numérica com os britânicos, mas ainda e sempre sem direito a voto. Um dos mais antigos e assíduos frequentadores do clube é o cidadão britânico nascido em Portugal Gwyn Jennings, de 71 anos, investido em guardião da memória colectiva.
Mostra documentos e fotos, conta do primeiro jogo de críquete, em 1898, e as "tareias" que levavam cada vez que os cavalheiros do club defrontavam equipas de marinheiros compatriotas de passagem pelo Porto. Conta do campo relvado mais a sul da Europa, dos primeiros campos de ténis, dos confrontos com Lisboa, dos matches, dos sporstmen e, claro, do football.
Jennings conta de como o association foi afinal trazido primeiro para o Porto, e não para Lisboa, pela mão (quem sabe se pelo pé) de Carlos Chambers, que, para os lados de Matosinhos, em terrenos hoje ocupados pela Eduardo & Ferreirinha, desbravou o primeiro rectângulo de jogo, outra vez lavrado à noite pela revolta ignorante e inocente dos caseiros residentes. Conta do - atenção, muita atenção! - emblema do Leixões, como uma raqueta de ténis e um bastão de críquete. Conta do Boavista, criado pelos empregados da têxtil Graham. Conta enfim de Norman Hall, com fotos a atestar, intransponível back da equipa do primeiro título nacional ganho pelo FC Porto, na época de 1921-1922.

P.S. - Quinta parte de um trabalho que escrevi para a edição de Junho de 1992 da revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Lembrei-me dele a propósito de uma recente reportagem do jornalista David Mandim no DN Life.

Interlúdio fotográfico 192

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 23 de novembro de 2019

Marx, o da harpa

Depois de ter inventado o comunismo, Marx fez comédia em Hollywood, cantou "A mula da cooperativa", foi candidato à Presidência da República e abriu um restaurante em Fafe. Actualmente diz piadas na rádio e já não joga a defesa direito no FC Porto.

P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Março de 2014. O comediante Harpo Marx, que se chamava de baptismo Adolph Arthur Marx, nasceu no dia 23 de Novembro de 1888. Não era mudo, mas em cena só comunicava por gestos, buzinas e assobios. E tocava muito bem harpa. Exactamente: Harpo, o da harpa.

Conta-me, ó cisne, a tua velha história

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 181

Respeitinho
Lá vão ligeiros, marido e mulher conversando pela rua, ele à frente e ela um passo atrás, coisa de antigos. Têm uma filha. Casou. Lá vai jovem e ligeira conversando pela rua com o marido a estrear, ela atrás, o homem um passo adiante, porque o respeito é muito bonito.

Jacuzzi!
Contra a injustiça e a mentira, o indignado escritor gritou: - Jacuzzi! E entrou para a história. 

O circo éramos nós
Compreendo as bancadas vazias dos circos. Os circos são, por estes dias tristes e desesperançados, um luxo e uma redundância. Um anacronismo. A magia e o sonho são delito. A felicidade foi proibida por decreto. A gargalhada, se for popular, é considerada um desperdício. A "escola moderna" é aquela que ensina que a "vida não é só alegria", diz o ministro Nuno Crato. A escola moderna é aquela que fecha, digo eu. Não há dinheiro, não há circo.
O circo somos nós - camelos, ursos, jacarés em camisolas contrafeitas, asnos e leões mansos. Homens-bala de pólvora seca, malabaristas, contorcionistas, ilusionistas, equilibristas, palhaços - somos nós, porque nos mandam e porque somos o único circo a que temos direito. Vivemos na corda bamba e sem rede. Tiraram-nos a rede, esticam-nos a corda, caímos que nem tordos sem capacete. Por mim, deixo em testamento: quando já não houver ninguém em cima dela, podem também levar a corda. Usem-na.
Por outro lado: o circo está na cidade. E eu vou-me rir, vou-me rir, vou-me rir.

P.S. - Texto publicado originalmente no dia 25 de Outubro de 2012, em plena vigência do governo da troika e Passos Coelho.

Ele há dias
Há dias que nunca deveriam apresentar-se ao serviço.

Isto das idades
O quarentão é a média de todos nós. O cinquentão começa a desconfiar da vida. O sexagenário passa a constar das notícias. O septuagenário anda em contramão na auto-estrada. O octogenário é porque se safou no acidente. O nonagenário quer que os quarentões, os cinquentões os sexagenários, os septuagenários e os octogenários se fodam e refodam. Os centenários só se realizam de cem em cem anos, e está certo.

Também faço isto muito bem 287

Foto Hernâni Von Doellinger

Herberto Helder 7

[Uma criança disse]

Uma criança disse: "Quando eu crescer, vou cortar as flores grandes para não haver vento."
Largas crianças amarelas nos parques podres. Amarelas como os inquilinos das luzes. Como os lugares culpados da maior existência de Deus.
As crianças tremem com a mão dentro do movimento.


Uma criança disse: "Um anjo é uma gaivota."
"Um anjo é um homem como os outros, o que é, tem asas."
E outras: "Um anjo é um pássaro cantador."
"Um anjo é uma andorinha. Tem uma coroa."
"Um anjo é um homem que tem o sol pendurado atrás da cabeça."
E uma outra sonhou que tinha engolido o sol.


Crianças trespassadas pela sua própria exactidão.
As orelhas das crianças servem para as pedras serem pedras que ouvem. Pedras plurais.
Os livros com crianças delirantes, as paisagens na voz.

Crianças são as letras antigas com que se escreve a única palavra insuportavelmente viva.
Uma criança disse: "Olha a minha sombra natural exactamente branca."
A mesma: "Era um tempo decisivo, assim como uma casa cheia de lobos." E contou a seguir uma história em que tudo tinha a cor verde, desde as pessoas aos animais e objectos. O próprio ar era verde.


As crianças são uma verdade impraticável.
As crianças começam a construir, tijolo a tijolo, suas mães monumentais. Depois partem para os pensamentos como para uma ascendente morte aos degraus.

Uma criança disse: "Dá-me aquele ramo de estrelas maduras."

Herberto Helder

(Herberto Helder nasceu no dia 23 de Novembro de 1930. Morreu em 2015.)

Vojo 742

Foto Hernâni Von Doellinger

Álvaro Moreyra 2

Mistério

Chamam certas mulheres de infelizes.
E dizem que elas são da vida alegre...

"Circo", Álvaro Moreyra

(Álvaro Moreyra nasceu no dia 23 de Novembro de 1888. Morreu em 1964.)

Aqui jaz o mar

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Nem sempre carne ou peixe

Como diz a minha sogra. "Nem sempre carne ou peixe. De vez em quando também é preciso comer um bocadinho de bacalhau."

Também faço isto muito bem 286

Foto Hernâni Von Doellinger

Xohana Torres 4

Có tempo húmido iso tan de todos:
que somos, que valemos. Unha tolemia
devóranos cando a vila se molla.

"Tempo de Ría", Xohana Torres 

(Xohana Torres nasceu no dia 22 de Novembro de 1931. Morreu em 2017.)

Caminho 741

Foto Hernâni Von Doellinger

Leandro Pita Romero 3

Arredouse uns pasos. Brincaron no aire unhas chamuscas de esca. Un carreiriño de lume correu cara á porta ó tempo que o home se alonxaba a grandes pasos.

"O Anarquista", Leandro Pita Romero

(Leandro Pita Romero nasceu no dia 22 de Novembro de 1898. Morreu em 1985.)

Vida de cão 488

Foto Hernâni Von Doellinger

Carlos Cardoso 4

Quando eu era miúdo
costumava jogar à bola com a malta da rua
"Foi falta".
"Não foi não senhor".
"Claro que foi".
Mas tínhamos sempre solução
para que o jogo continuasse.
E sempre o jogo continuava.
Até que um dia
um árbitro
nos veio estragar
o encanto democrático
dos nossos desentendimentos
infantis.

Carlos Cardoso 

(Carlos Cardoso nasceu em 1951. Morreu no dia 22 de Novembro de 2000.)

Destrói as ondas, não a prancha!

Foto Hernâni Von Doellinger

A gozona

- Tem sumo de tomate?
- Mas com certeza, minha senhora...
- E os espermatozóides, safam-se?...

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Verde que te quero azul

Foto Hernâni Von Doellinger

Lições de História 56: João Gonçalves Zarco

João Gonçalves Zarco, da nobre família dos Zarcos de Valdevez, foi um navegador português e cavaleiro fidalgo da Casa do Infante D. Henrique, que o encarregou de organizar o povoamento e administrar a zona funchalense da Ilha da Madeira enquanto Alberto João Jardim não chegasse. Dito e feito. Quando se reformou, o velho Zarco, que não era tolo e tinha agasalhado uns cobres, abriu uma escola em Matosinhos mas escolheu a Foz, no Porto, para morar, instalando-se desafogadamente na famosa Rotunda do Castelo do Queijo, a que também chamam Praça de Gonçalves Zarco exactamente em homenagem à estátua equestre de D. João VI.

Interlúdio fotográfico 191

Foto Hernâni Von Doellinger

A pergunta da moda

- Tem sumos naturais?
- Naturalmente.
- Era um copo de tinto, se faz favor...

Aos bons velhos tempos 4

Foto Hernâni Von Doellinger

O primeiro cônsul britânico para o Porto terá sido nomeado pelo rei Carlos I em Fevereiro de 1642, datando da segunda metade desse século XVII as primeiras referências à feitoria, porém sem ligação a um edifício concreto. Esse edifício, o que hoje conhecemos na esquina das ruas do Infante D. Henrique e de São João, veio finalmente a ser construído por volta de 1786, um prédio magnífico, bem o espelho do poder e do sucesso entre nós dos mercadores ingleses. O estilo "inglês", ditado pelo desenho de John Whitehead, seguia a nova escola do arquitecto John Carr, que assinalaria também com a sua chancela, directa ou indirectamente, através do discípulo português Joaquim Sampaio, as linhas do Hospital de Santo António, da igreja britânica, do Palácio da Bolsa, da Universidade e das Caves Sandeman. No Porto agonizava o barroco italiano de Nasoni, e os ingleses marcavam a cidade.
Pela última das feitorias britânicas espalhadas pelo mundo passaram as estratégias dos grandes negócios, mas também os bailes de gala ou os lanches elegantes, as realezas aliadas e, posteriormente, os dignitários da República. Em todo o caso, do importante pólo dinamizador de todo o comércio dos ingleses no Porto já pouco ou nada resta, tirando o edifício e a tradição.
Hoje - adoptando o nome de British Association - a velha feitoria será "talvez o mais exclusivo clube do mundo", no dizer de David Bain, economista de 42 anos que ocupa o cargo de tesoureiro da instituição. Um "clube de exportadores de vinho", com cerca de trinta sócios, e só homens, entre ingleses e portugueses. Os sócios portugueses são dois directores-gerais em empresas britânicas ou a elas ligadas, mas, é preciso que se note, não têm direito a voto.
A feitoria vai servindo como sala de visitas e de promoção social e comercial do vinho do Porto, organizando um jantar anual, festas de Natal e de Verão e, sempre só para homens, um almoço semanal, às quartas-feiras, envolvendo cerca de vinte comensais, entre associados e convidados. às quartas-feiras, porque - esclarece David Bain - noutros tempos não havia distribuição de correio nesse dia e, por ser nulo o despacho à tarde, os nossos fleumáticos amigos poderiam sem reservas embrenhar-se pelos deleites das divinas ambrosias servidas...

P.S. - Quarta parte de um trabalho que escrevi para a edição de Junho de 1992 da revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Lembrei-me dele a propósito de uma recente reportagem do jornalista David Mandim no DN Life.  

Vida de cão 487

Foto Hernâni Von Doellinger

Eduardo White 4

Levanto-me. 
Vou supor-me a resistir. Lentamente até fugir.
Descubro corridas as cortinas das janelas deste quarto virado para Oriente. Afasto-as, e os olhos navegam pelos telhados das casas lá em baixo. São inúmeras e quadradas. Unidas como se quisessem cuidados umas das outras. Talvez por dentro nem transpirem assim tanta solidariedade. Mas eu penso nas presenças que as tornam vivas e humanas, nas conversas que esconderão, nas crianças debruçadas para o beijo ou para a música, as refeições acesas pelos fogões. Afinal, hoje é domingo e toda a gente é um horizonte de si. Estão felizes com certeza, e se não estão tentam, por decerto terem pouco do que rir noutros dias. O domingo é quase tétrico de nos vermos tão nitidamente. É, no fundo, como a morte onde se prevê aquele poeta.

"Janela para Oriente", Eduardo White

(Eduardo White nasceu no dia 21 de Novembro de 1963. Morreu em 2014.)