Uma vez era campanha eleitoral e saí do trabalho, na tripeiríssima Rua de Santa Catarina,
para apanhar o autocarro 37 no Largo dos Lóios. E quando cheguei à Avenida dos Aliados, que é a meio
caminho, esbarrei num enorme ajuntamento que rodeava e seguia um Carocha
de tecto de abrir. Era muito povo, agitando bandeiras e gritando
palavras de ordem tão desordenadas que eu não percebia o que as pessoas
diziam. Aproximei-me, chamado pela curiosidade ou não sei por quê, furei
pelo meio daquele fervor todo e consegui chegar ao carro. Quem é que lá
estava de cabeça de fora e braço pré-presidencial em aceno à multidão?
Mário Soares em pessoa. Era ele!
Eu fiquei a um metro do homem. E deixei-me ficar. O Volkswagen careca
andava devagar. E eu deixei-me ir. Mas só percebi depois, muito depois. O
cortejo desceu à Praça, subiu a Rua dos Clérigos, passou pelos Leões e
pelo Hospital de Santo António, entrou na Rua D. Manuel II e quando dou
fé Mário Soares está em frente ao Palácio de Cristal. O esquisito, o
inexplicável, é que eu também lá estava. A um metro do homem. Eu fui
atrás dele e não sabia.
Foi no ano de 1986 e é a história que eu costumo contar quando quero
explicar o que é o carisma. Carisma é aquilo: aquele íman, aquele poder
sobre as massas, mesmo sem abrir a boca, aquela força invisível que uns
poucos têm de aglutinar e empolgar tudo e todos à sua volta, até a mim,
que sou um cínico.
A Vida, que me tem sido tão boa, concedeu-me vinte anos mais tarde,
nas Presidenciais de 2006, a prenda extraordinária de poder acompanhar
no terreno, profissionalmente, a última verdadeira campanha eleitoral de
que Portugal deve ter memória. E seguindo Mário Soares, que se borrifava
cada vez mais para os soundbites, para os assessores de imprensa e
até para o seu ausente director de campanha, que ele frequentemente não
sabia muito bem quem era. Em vez de apelar ao voto, em vez de criticar a
concorrência, Soares contava histórias em pequenos auditórios vagamente
frequentados, falava de António Sérgio, de Álvaro Cunhal, de Agostinho
da Silva, de Camilo Castelo Branco (lembro-me, em Famalicão), de Antero
de Quental. Contava Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Irene Lisboa,
José Gomes Ferreira, José Régio, Almada Negreiros, Vitorino Nemésio,
Miguel Torga, Carlos Queiroz, Adolfo Casais Monteiro, Manuel da Fonseca,
Sophia de Mello Breyner Andresen, Carlos Oliveira, Eugénio de Andrade,
Mário Cesariny, Natália Correia, Alexandre O'Neill, David
Mourão-Ferreira, Alberto Lacerda, Ruy Belo, amigos ou conhecidos em
graus diversos. E eu regalado.
Ora bem. Mário Soares morreu fará apenas três anos em Janeiro. A fundação que leva o seu nome, e à qual ele deu os seus últimos anos de vida, acumula prejuízos, perde mecenas e patrocínios, qualquer dia alguém terá de apagar a luz. Agora eu outra vez: não me interessa a fundação e para onde vai, incomoda-me é que leve o nome de Mário Soares...
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