Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
- ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
- Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
- O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...
Mário Quintana
quarta-feira, 31 de dezembro de 2014
terça-feira, 30 de dezembro de 2014
Workshop de fotografia com Gaspar de Jesus
Curso de iniciação à fotografia ministrado pelo mestre Gaspar de Jesus. Em Fevereiro, no Parque Biológico de Gaia. Informações e inscrições, aqui.
Gaspar de Jesus, fotojornalista e professor de Fotografia, trabalhou em A Capital, O Primeiro de Janeiro, A Bola, TV Guia, Notícias Magazine e Autores. Artista premiado, realizou uma vintena de exposições individuais e participou em inúmeras exposições colectivas, dentro e fora do País. Foi formador em cursos do FAOJ e integrou o quadro de formadores do IPF-Porto. É co-autor dos livros "Portugal e o Ambiente", "Reencontros - Portugal em Fotografia", "Daqui Houve Nome Portugal", "21 Retratos do Porto para o Século XXI", "Porto Cidade com Alma" e "Porto sem Filtro". É autor do blogue Arte Fotográfica e promotor das tertúlias Com a Arte no Olhar.
segunda-feira, 29 de dezembro de 2014
Augusto Fera 2
Nélson Fafe
Com pétalas de rosas, orvalhadas,
escrevi o teu nome sobre a mesa.
Mas um vento menino, com destreza,
alagou as dez letras perfumadas.
Com a pluma dos dedos eu escrevi
as dez letras em página de areia,
mas os lírios das mãos da maré cheia
não quiseram teu nome escrito ali.
Nisto percebi eu que me foi dito:
Nélson Fafe não deve ser escrito
com rosas, grãos de areia ou alabastros;
Escrevei-o no grude da memória,
perpetuai-o nos mármores da história,
com pétalas, mas só pétalas de astros.
"Cruz de Chumbo e Outros Poemas", Augusto Fera
(Augusto Fera nasceu no dia 29 de Dezembro de 1939. Morreu em 2012.)
Com pétalas de rosas, orvalhadas,
escrevi o teu nome sobre a mesa.
Mas um vento menino, com destreza,
alagou as dez letras perfumadas.
Com a pluma dos dedos eu escrevi
as dez letras em página de areia,
mas os lírios das mãos da maré cheia
não quiseram teu nome escrito ali.
Nisto percebi eu que me foi dito:
Nélson Fafe não deve ser escrito
com rosas, grãos de areia ou alabastros;
Escrevei-o no grude da memória,
perpetuai-o nos mármores da história,
com pétalas, mas só pétalas de astros.
"Cruz de Chumbo e Outros Poemas", Augusto Fera
(Augusto Fera nasceu no dia 29 de Dezembro de 1939. Morreu em 2012.)
Alves Redol 2
Ia já para três dias que o tractor
parara e a regadeira não via pinga de água trasfegada do Tejo.
O arrozeiro, apertado pelo patrão, andava numa dobadoura, por marachas e linhas, a deitar olho aos canteiros de espiga mais loira, fazendo piques, agora aqui, agora ali, para que as águas fossem caminhando para a vala de esgoto e os ranchos pudessem meter foices no arrozal.
De pá ao alto, descansada no ombro, o "seu Arriques" já pensava na volta a casa, pois da sangria à recolha do bago poucas semanas iam.
- Que rica seara! Andei-me nela que nem sombra atrás d’alma penada, mas o patrão arrinca para cima de quarenta sementes. Se os outros a pudessem comer côa inveja...
E lançava a vista sobre o manto de panículas aloiradas, que os camalhões percintavam e a aragem branda enrugava, como mareta em oceano de oiro.
Mais além e aqui, uma mancha ou outra de verde a denunciar o cromo que o sol lhe arrancava, indício de algum cabeço que as enxadas, no armar da terra, não haviam derrubado.
- S’o patrão não andasse de fogo no rabo por mor do rancho, seis dias de molho davam-lhe uns saquitos bem bons. Assim... ainda adrega uma seara como por aqui não há outra.
Andava por oito meses que corria aqueles combros de alto a baixo. Primeiro, de bandeirolas a tirar miras para o erguer das travessas e a mandar homens na rebaixa, até os tabuleiros poderem receber uma lâmina de água para a sementeira; depois, a dirigir aquele caudal que todos os dias entrava Lezíria dentro, pela regadeira mestra, não fossem afogar-se os pés de arroz ou morrer alguns por míngua.
Quantas noites não pregara olho a traçar planos para os canteiros da ponta de baixo que pareciam avessos a receber frescura? Então, erguia-se da esteira para percorrer o arrozal, levando as estrelas por camaradas mais a endecha da água e o zangarreio das rãs.
"Gaibéus", Alves Redol
(Alves Redol nasceu no dia 29 de Dezembro de 1911. Morreu em1969.)
O arrozeiro, apertado pelo patrão, andava numa dobadoura, por marachas e linhas, a deitar olho aos canteiros de espiga mais loira, fazendo piques, agora aqui, agora ali, para que as águas fossem caminhando para a vala de esgoto e os ranchos pudessem meter foices no arrozal.
De pá ao alto, descansada no ombro, o "seu Arriques" já pensava na volta a casa, pois da sangria à recolha do bago poucas semanas iam.
- Que rica seara! Andei-me nela que nem sombra atrás d’alma penada, mas o patrão arrinca para cima de quarenta sementes. Se os outros a pudessem comer côa inveja...
E lançava a vista sobre o manto de panículas aloiradas, que os camalhões percintavam e a aragem branda enrugava, como mareta em oceano de oiro.
Mais além e aqui, uma mancha ou outra de verde a denunciar o cromo que o sol lhe arrancava, indício de algum cabeço que as enxadas, no armar da terra, não haviam derrubado.
- S’o patrão não andasse de fogo no rabo por mor do rancho, seis dias de molho davam-lhe uns saquitos bem bons. Assim... ainda adrega uma seara como por aqui não há outra.
Andava por oito meses que corria aqueles combros de alto a baixo. Primeiro, de bandeirolas a tirar miras para o erguer das travessas e a mandar homens na rebaixa, até os tabuleiros poderem receber uma lâmina de água para a sementeira; depois, a dirigir aquele caudal que todos os dias entrava Lezíria dentro, pela regadeira mestra, não fossem afogar-se os pés de arroz ou morrer alguns por míngua.
Quantas noites não pregara olho a traçar planos para os canteiros da ponta de baixo que pareciam avessos a receber frescura? Então, erguia-se da esteira para percorrer o arrozal, levando as estrelas por camaradas mais a endecha da água e o zangarreio das rãs.
"Gaibéus", Alves Redol
(Alves Redol nasceu no dia 29 de Dezembro de 1911. Morreu em1969.)
domingo, 28 de dezembro de 2014
Inglês de Sousa 2
Eram sete horas, a noite estava escura, e o céu ameaçava chuva.
Terminara a ceia, composta de cebola cozida e pirarucu assado, o velho Salvaterra dera graças a Deus pelos favores recebidos; a sora Maria dos Prazeres tomava pontos em umas velhas meias de algodão muito remendadas; a Anica enfiava umas contas destinadas a formar um par de braceletes, e os dois rapazes, espreguiçando-se, conversavam em voz baixa sobre a última caçada. Alumiava as paredes negras da sala uma candeia de azeite, reinava um ar tépido de tranqüilidade e sossego, convidativo do sono. Só se ouviam o murmúrio brando do Tapajós e o ciciar do vento nas folhas das pacoveiras. De repente, a Anica inclinou a linda cabeça, e pôs-se a escutar um ruído surdo que se aproximava lentamente.
- Ouvem? - perguntou.
O pai e os irmãos escutaram também por alguns instantes, mas logo concordaram, com a segurança dos habitantes de lugares ermos:
- É uma canoa que sobe o rio.
- Quem há de ser?
- A estas horas - opinou a sora Maria dos Prazeres - não pode ser gente de bem.
- E por que não, mulher? - repreendeu o marido -, isto é alguém que segue para Irituia.
- Mas quem viaja a estas horas? - insistiu a timorata mulher.
- Vem pedir-nos agasalho, redargüiu. - A chuva não tarda, e esses cristãos hão de querer abrigar-se.
"Contos Amazônicos", Inglês de Sousa
(Inglês de Sousa nasceu no dia 28 de Dezembro de 1853. Morreu em 1918.)
Terminara a ceia, composta de cebola cozida e pirarucu assado, o velho Salvaterra dera graças a Deus pelos favores recebidos; a sora Maria dos Prazeres tomava pontos em umas velhas meias de algodão muito remendadas; a Anica enfiava umas contas destinadas a formar um par de braceletes, e os dois rapazes, espreguiçando-se, conversavam em voz baixa sobre a última caçada. Alumiava as paredes negras da sala uma candeia de azeite, reinava um ar tépido de tranqüilidade e sossego, convidativo do sono. Só se ouviam o murmúrio brando do Tapajós e o ciciar do vento nas folhas das pacoveiras. De repente, a Anica inclinou a linda cabeça, e pôs-se a escutar um ruído surdo que se aproximava lentamente.
- Ouvem? - perguntou.
O pai e os irmãos escutaram também por alguns instantes, mas logo concordaram, com a segurança dos habitantes de lugares ermos:
- É uma canoa que sobe o rio.
- Quem há de ser?
- A estas horas - opinou a sora Maria dos Prazeres - não pode ser gente de bem.
- E por que não, mulher? - repreendeu o marido -, isto é alguém que segue para Irituia.
- Mas quem viaja a estas horas? - insistiu a timorata mulher.
- Vem pedir-nos agasalho, redargüiu. - A chuva não tarda, e esses cristãos hão de querer abrigar-se.
"Contos Amazônicos", Inglês de Sousa
(Inglês de Sousa nasceu no dia 28 de Dezembro de 1853. Morreu em 1918.)
O Natal comove-me. E o caldo de couves também.
Gosto do Natal. Isto é: não gosto do Natal, mas a minha mulher e o meu filho gostam muito, e portanto eu gosto do Natal - temos de ser uns para os outros se queremos manter acesa a lareira da felicidade familiar, ou o radiador a óleo, cada um governa-se conforme pode. Gosto do Natal, dizia, mas o Natal incomoda-me, perplexa-me, e era precisamente por aqui que eu queria começar, antes que me passe o espanto. Porque, não sei se sabiam, o Natal é um paradoxo, alegra e deprime, e é também um equívoco: marcado para o dia 25, toda a gente sabe que é na noite de 24. A única certeza religiosa e cientificamente homologada é que o Natal é em Dezembro... "mas em Maio pode ser".
O Natal dá-me saudades do Menino Jesus e do meu pai. Nunca acreditei no Pai Natal e não gosto de Coca-Cola. Velhos com barbas brancas, bastamos euzinho cá em baixo e o Imenso lá em cima. Quanto ao xarope, fico-me pelo da tosse, muito agradecido. O Menino Jesus é que era, e ainda hoje acredito. O Menino Jesus e o meu pai deviam ser da corda, porque era o meu pai quem me punha no sapatinho as avelãs, os chocolatinhos e o par de meias que o Menino Jesus me dava, isso eu sabia. Tão unha com carne deveriam ser os dois que o Menino Jesus nasceu no dia 25 de Dezembro e o meu pai, tudo combinado lá entre eles, morreu de véspera.
O Natal comove-me. As árvores com luzinhas, as músicas tão tlim-tlim-tlam, o pacote de meio quilo de esparguete no saco do Banco Alimentar, os programas de televisão marca jingobel, a patriótica greve dos operários da TAP em defesa da bandeira da companhia e da independência nacional, a mensagem de Sua Excelência o Senhor Presidente da República e Excelentíssima Esposa, a comida, a comida, a comida, tudo ajuda à missa da minha sazonal e imensa comoção. E o vinho também.
Este ano até já estava a ficar agoniado de tanto me comover. Resolvi, para desenfastiar, fazer um caldo de couves. Isso, um caldo de couves. Foi na noite de 25 exactamente. Uns olhinhos de couve-galega, feijão vermelho, batata mal desfeita, uma tirinha de toucinho salgado, um niquinho de vaca, azeite com fartura natalícia. A panela foi à mesa de gala, fumegante como a velha locomotiva que arrastava o comboio até Fafe nos tempos em que eu não me comovia por tudo e por nada e em que a minha memória era o futuro.
Foi o nosso jantar. O caldo estava antigo, de repetir e lamber os beiços. Repeti e lambi. O calor, o sabor, o odor, o estupor, quero dizer, o estupor do caldo caiu que nem ginjas, sossegando-me o estômago mais a alma. E, como num filme, tornou-me à casinha do Santo Velho, à roda da mesa com os meus irmãos, a minha mãe, o meu pai e o Menino Jesus que ainda não tinha nascido. Tornou-me à minha avó de Basto, na cozinha de chão de terra da Casa do Carreiro que cheirava sempre ao meu caldo. Que saudades! E de repente topei-me de olhos humedecidos, turvos, outra vez como no flashback do cinema. De cabeça enfiada na malga, desculpei-me da boca para fora que era do vapor, e pensei: caralho, estás a chorar por causa de um caldo de couves, não tens vergonha? Ainda por cima, este tem carne...
O Natal dá-me saudades do Menino Jesus e do meu pai. Nunca acreditei no Pai Natal e não gosto de Coca-Cola. Velhos com barbas brancas, bastamos euzinho cá em baixo e o Imenso lá em cima. Quanto ao xarope, fico-me pelo da tosse, muito agradecido. O Menino Jesus é que era, e ainda hoje acredito. O Menino Jesus e o meu pai deviam ser da corda, porque era o meu pai quem me punha no sapatinho as avelãs, os chocolatinhos e o par de meias que o Menino Jesus me dava, isso eu sabia. Tão unha com carne deveriam ser os dois que o Menino Jesus nasceu no dia 25 de Dezembro e o meu pai, tudo combinado lá entre eles, morreu de véspera.
O Natal comove-me. As árvores com luzinhas, as músicas tão tlim-tlim-tlam, o pacote de meio quilo de esparguete no saco do Banco Alimentar, os programas de televisão marca jingobel, a patriótica greve dos operários da TAP em defesa da bandeira da companhia e da independência nacional, a mensagem de Sua Excelência o Senhor Presidente da República e Excelentíssima Esposa, a comida, a comida, a comida, tudo ajuda à missa da minha sazonal e imensa comoção. E o vinho também.
Este ano até já estava a ficar agoniado de tanto me comover. Resolvi, para desenfastiar, fazer um caldo de couves. Isso, um caldo de couves. Foi na noite de 25 exactamente. Uns olhinhos de couve-galega, feijão vermelho, batata mal desfeita, uma tirinha de toucinho salgado, um niquinho de vaca, azeite com fartura natalícia. A panela foi à mesa de gala, fumegante como a velha locomotiva que arrastava o comboio até Fafe nos tempos em que eu não me comovia por tudo e por nada e em que a minha memória era o futuro.
Foi o nosso jantar. O caldo estava antigo, de repetir e lamber os beiços. Repeti e lambi. O calor, o sabor, o odor, o estupor, quero dizer, o estupor do caldo caiu que nem ginjas, sossegando-me o estômago mais a alma. E, como num filme, tornou-me à casinha do Santo Velho, à roda da mesa com os meus irmãos, a minha mãe, o meu pai e o Menino Jesus que ainda não tinha nascido. Tornou-me à minha avó de Basto, na cozinha de chão de terra da Casa do Carreiro que cheirava sempre ao meu caldo. Que saudades! E de repente topei-me de olhos humedecidos, turvos, outra vez como no flashback do cinema. De cabeça enfiada na malga, desculpei-me da boca para fora que era do vapor, e pensei: caralho, estás a chorar por causa de um caldo de couves, não tens vergonha? Ainda por cima, este tem carne...
sábado, 27 de dezembro de 2014
quinta-feira, 25 de dezembro de 2014
Irene Lisboa
Nova, nova, nova, nova
Não era a minha alma que queria ter.
Não era a minha alma que queria ter.
Esta alma já feita, com seu toque de sofrimento
e de resignação, sem pureza nem afoiteza.
Queria ter uma alma nova.
Decidida capaz de tudo ousar.
Nunca esta que tanto conheço, compassiva, torturada
de trazer por casa.
A alma que eu queria e devia ter…
Era uma alma asselvajada, impoluta, nova, nova,
nova, nova!
Irene Lisboa
(Irene Lisboa nasceu no dia 25 de Dezembro de 1892. Morreu em 1958.)
nova, nova!
Irene Lisboa
(Irene Lisboa nasceu no dia 25 de Dezembro de 1892. Morreu em 1958.)
terça-feira, 23 de dezembro de 2014
Filinto Elísio 2
Uns lindos olhos, vivos, bem rasgados,
Um garbo senhoril, nevada alvura;
Metal de voz que enleva de doçura,
Dentes de aljôfar, em rubi cravados:
Fios de ouro, que enredam meus cuidados,
Alvo peito, que cega de candura;
Mil prendas; e (o que é mais que formosura)
Uma graça, que rouba mil agrados.
Mil extremos de preço mais subido
Encerra a linda Márcia, a quem of'reço
Um culto, que nem dela inda é sabido:
Tão pouco de mim julgo que a mereço,
Que enojá-la não quero de atrevido
Co'as penas, que por ela em vão padeço.
"Sonetos", Filinto Elísio
(Filinto Elísio nasceu no dia 23 de Dezembro de 1734. Morreu em 1819.)
Um garbo senhoril, nevada alvura;
Metal de voz que enleva de doçura,
Dentes de aljôfar, em rubi cravados:
Fios de ouro, que enredam meus cuidados,
Alvo peito, que cega de candura;
Mil prendas; e (o que é mais que formosura)
Uma graça, que rouba mil agrados.
Mil extremos de preço mais subido
Encerra a linda Márcia, a quem of'reço
Um culto, que nem dela inda é sabido:
Tão pouco de mim julgo que a mereço,
Que enojá-la não quero de atrevido
Co'as penas, que por ela em vão padeço.
"Sonetos", Filinto Elísio
(Filinto Elísio nasceu no dia 23 de Dezembro de 1734. Morreu em 1819.)
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segunda-feira, 22 de dezembro de 2014
Álvaro Cunqueiro 2
Acolá están as illas...
Acolá están as illas. Paso a man polo lombo do vento
que mas deu coma un can no monte dá perdiz
agardo que se ergan e voen sobre o mar.
A alma anda nestes inventos porque non lle abonda
o que é como é do mundo
quixer facer pombas con auga e amieiros de pruma
e en vez de carro que polos camiños do monte
baixase cantando a lúa arrastrada
por un tiro de peixes prateados.
- Pro estes inventos soio sirven
pra distraer a alma das suas contas,
tanto de amor e bágoas, dez por cento
de perdidos amores, e oitenta de soedade
que a vistes áspera como unha camisa de estopa
e queres pór unha ollada de seda no mencer
e nóna tés, veciño da tristura e do medo
a metade de ti morto sin enterrar
pra que a outra metade se decate.
Entón disimulando canto, e coas mentiras
fágome unha sorrisa de xardín en festas.
"Herba Aquí ou Acolá", Álvaro Cunqueiro
(Álvaro Cunqueiro nasceu no dia 22 de Dezembro de 1911. Morreu em 1981.)
Acolá están as illas. Paso a man polo lombo do vento
que mas deu coma un can no monte dá perdiz
agardo que se ergan e voen sobre o mar.
A alma anda nestes inventos porque non lle abonda
o que é como é do mundo
quixer facer pombas con auga e amieiros de pruma
e en vez de carro que polos camiños do monte
baixase cantando a lúa arrastrada
por un tiro de peixes prateados.
- Pro estes inventos soio sirven
pra distraer a alma das suas contas,
tanto de amor e bágoas, dez por cento
de perdidos amores, e oitenta de soedade
que a vistes áspera como unha camisa de estopa
e queres pór unha ollada de seda no mencer
e nóna tés, veciño da tristura e do medo
a metade de ti morto sin enterrar
pra que a outra metade se decate.
Entón disimulando canto, e coas mentiras
fágome unha sorrisa de xardín en festas.
"Herba Aquí ou Acolá", Álvaro Cunqueiro
(Álvaro Cunqueiro nasceu no dia 22 de Dezembro de 1911. Morreu em 1981.)
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domingo, 21 de dezembro de 2014
Onde é que eu já vi esta cara?
Devo andar a ficar parecido com alguém. São cada vez mais as pessoas que olham para mim na rua, e eu não estava habituado. Sempre achei que tinha cara de ninguém, tão incógnito e invisível fui toda a minha vida, e não me estou a queixar, constato apenas, porque senstato ainda podia ser pior, se não me engano. Dou um exemplo, por exemplo: chovesse a cântaros e corresse eu em coiro a subir e a descer desalmada e inutilmente as escadas da Arcada, a verdade é que nem a polícia municipal tomava conta da ocorrência. Era como se eu não existisse, mesmo com o pirilau ao léu. De acordo com as detalhadas notas da minha agenda de 1911, que agora mesmo compulso e sentornozelo, pratiquei esta patusca habilidade duas ou três vezes, talvez quatro ou cinco, os apontamentos estão um bocado esborratados, e só abandonei a modalidade por indicação médica. O médico da caixa sempre me chamou Sr. Serafim porque nunca tomou razoável sentido a quem eu era. Eu próprio quantas e quantas vezes passei por mim sem me conhecer de lado nenhum, não serei portanto o primeiro nem o último a atirar a primeira ou a derradeira pedra à autoridade distraída ou ao serviço nacional de saúde relapso, respectivamente. Serei, por uma questão de princípio, o do meio.
Mas ao que interessa: agora, na rua, espreitam-me de cima a baixo. Faço imediatamente o teste da braguilha, porque a braguilha não engana, mas há muito que eu retirei a braguilha de cotio, só a uso ao fim-de-semana com hífenes e eu ao fim-de-semana com hífenes não saio. Ando portanto intrigado, diria até assaz incomodado, mas estaria a mentir se o dissesse, e eu só minto às quintas-feiras dos anos bissextos, e por isso hoje não digo. Por outro lado, a palavra assaz é particularmente parva.
Fui ao espelho ver o que se passava. Há coisa de dez minutos, fui ao espelho. E faço questão de informar que não me via ao espelho desde 1879, mais ou menos no dia do São Francisco de Regadas, ou desde 1901, por alturas da Senhora das Neves da Lagoa, não tenho bem presente. Fui ao espelho (sei que é a terceira vez que digo que fui ao espelho, e com esta já é a quarta) e aconteceu o seguinte: encontrei-me realmente com um tipo vagamente parecido comigo. Será isso?
Mas ao que interessa: agora, na rua, espreitam-me de cima a baixo. Faço imediatamente o teste da braguilha, porque a braguilha não engana, mas há muito que eu retirei a braguilha de cotio, só a uso ao fim-de-semana com hífenes e eu ao fim-de-semana com hífenes não saio. Ando portanto intrigado, diria até assaz incomodado, mas estaria a mentir se o dissesse, e eu só minto às quintas-feiras dos anos bissextos, e por isso hoje não digo. Por outro lado, a palavra assaz é particularmente parva.
Fui ao espelho ver o que se passava. Há coisa de dez minutos, fui ao espelho. E faço questão de informar que não me via ao espelho desde 1879, mais ou menos no dia do São Francisco de Regadas, ou desde 1901, por alturas da Senhora das Neves da Lagoa, não tenho bem presente. Fui ao espelho (sei que é a terceira vez que digo que fui ao espelho, e com esta já é a quarta) e aconteceu o seguinte: encontrei-me realmente com um tipo vagamente parecido comigo. Será isso?
sábado, 20 de dezembro de 2014
sexta-feira, 19 de dezembro de 2014
Alexandre O'Neill 2
Os lagartos ao sol
Expõe ao sol a perna escalavrada,
Expõe ao sol a perna escalavrada,
no Jardim do Príncipe Real,
uma velha inglesa. Não há nada
tão bonito (pra mim), so natural.
E conversamos: "Heliterapia
medicina barata em Portugal".
Accionista do sol, ajudo à missa:
"But, não muito, que senão faz mal".
Gozosos, eu e a velha, ali ficamos
à mercê de meninos e marçanos.
Ela, a inglesa, de perninha à vela;
e eu, o português, à perna dela.
Talvez que, se Briol nos conservara,
Talvez que, se Briol nos conservara,
alguém um dia nos ajardinara.
"De Ombro na Ombreira", Alexandre O'Neill
(Alexandre O'Neill nasceu no dia 19 de Dezembro de 1924. Morreu em 1986.)
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Manoel de Barros 2
A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
- eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.
"Retrato do Artista Quando Coisa", Manoel de Barros
(Manoel de Barros nasceu no dia 19 de Dezembro de 1916. Morreu há pouco mais de um mês.)
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
- eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.
"Retrato do Artista Quando Coisa", Manoel de Barros
(Manoel de Barros nasceu no dia 19 de Dezembro de 1916. Morreu há pouco mais de um mês.)
Vitorino Nemésio 2
Pedra de canto
Ainda terás alento e pedra de canto,
Mito de Pégaso, patada de sangue da mentira,
Para cantar em sílabas ásperas o canto,
De rima em -anto, o pranto,
O amor, o apego, o sossego, a rima interna
Das almas calmas, isto e aquilo, o canto
Do pranto em pedra aparelhada a corpo e escopro,
O estupro de outrora, a triste vida dela, o canto,
Buraco onde te metes, duplamente: com falo,
Falas, fá-la chorar e ganir, com falo o canto
No buraco de grilo onde anoiteces,
No buraco de falso eremita onde conheces
Teu nada, o dela, o buraco dela, o canto
De pedra, sim, canteiro por cantares e aparelhares
Com ela em rua e cama o falo fá-la cheia,
Canteiro porque o falo a julga flores, o canto
Áspero do canteiro de pedra e sémen que tu és
(No buraco do falo falaste),
Tu, falazão de amor, que a amas e conheces.
Amas a quem? Conheces quem? Pobre Hipocrene,
Apolo de pataco, Camões binocular, poeta de merda,
Embora isso em sangue dessa pobre alma em ferida:
A dela, a tua, cadela a tua pura e fiel no canto
De lama e amor como não há no charco em torno,
Maravilhoso canto só de soprares na ponta a um corno
E logo a sílaba e o inferno te obedecem
E as dores íntimas dela nas tuas falas se conhecem,
Sua íntima vergonha inconfessada desponta,
Passiflora penada, pequenina vulva triste
Em teu sémen sarada e já livre de afronta:
O canto em pedra e voz, psicóide e bem vibrado,
Límpido como vidro a altas horas lavado,
Como o galo de bronze pela dor acordado,
No amor e na morte alevantado,
Da trampa mentirosa resgatado,
Como Dante o lavrou em pedra de Florença
E Deus to deu de amor por ela no atoleiro?
Flor menina de orvalho em amor verdadeiro?
Ainda terás amor e pedra de canto,
Fé nela e sua dor de arrependida e enganada,
Ou, enfim, amor a fogo dado e perdão puro...
Eu quero lá saber! Amor de Deus no canto
De misericórdia e paz, mesmo para os violentos
Da violada violeta, a breve miosótis
Ao canto unida e em tuas lágrimas orvalhada?
Cala-te e humilha-te como ela,
Que é maior do que tu no canto
E a esta hora só bebe talvez água salgada,
Oh poeta de água doce!
Mas, antes de calar espada e voz, responde:
Ainda terás alento e pedra de canto
Para cantar estas coisas,
Encantar outra vez a donzela roubada ou nina morta,
Enfim, o teu amor?
Dize lá, sem-vergonha,
Homem singelo:
Pois se nisto me mentes nunca mais a verás.
(Quem fala?)
"Caderno de Caligraphia e Outros Poemas a Marga", Vitorino Nemésio
(Vitorino Nemésio nasceu no dia 19 de Dezembro de 1901. Morreu em 1978.)
Ainda terás alento e pedra de canto,
Mito de Pégaso, patada de sangue da mentira,
Para cantar em sílabas ásperas o canto,
De rima em -anto, o pranto,
O amor, o apego, o sossego, a rima interna
Das almas calmas, isto e aquilo, o canto
Do pranto em pedra aparelhada a corpo e escopro,
O estupro de outrora, a triste vida dela, o canto,
Buraco onde te metes, duplamente: com falo,
Falas, fá-la chorar e ganir, com falo o canto
No buraco de grilo onde anoiteces,
No buraco de falso eremita onde conheces
Teu nada, o dela, o buraco dela, o canto
De pedra, sim, canteiro por cantares e aparelhares
Com ela em rua e cama o falo fá-la cheia,
Canteiro porque o falo a julga flores, o canto
Áspero do canteiro de pedra e sémen que tu és
(No buraco do falo falaste),
Tu, falazão de amor, que a amas e conheces.
Amas a quem? Conheces quem? Pobre Hipocrene,
Apolo de pataco, Camões binocular, poeta de merda,
Embora isso em sangue dessa pobre alma em ferida:
A dela, a tua, cadela a tua pura e fiel no canto
De lama e amor como não há no charco em torno,
Maravilhoso canto só de soprares na ponta a um corno
E logo a sílaba e o inferno te obedecem
E as dores íntimas dela nas tuas falas se conhecem,
Sua íntima vergonha inconfessada desponta,
Passiflora penada, pequenina vulva triste
Em teu sémen sarada e já livre de afronta:
O canto em pedra e voz, psicóide e bem vibrado,
Límpido como vidro a altas horas lavado,
Como o galo de bronze pela dor acordado,
No amor e na morte alevantado,
Da trampa mentirosa resgatado,
Como Dante o lavrou em pedra de Florença
E Deus to deu de amor por ela no atoleiro?
Flor menina de orvalho em amor verdadeiro?
Ainda terás amor e pedra de canto,
Fé nela e sua dor de arrependida e enganada,
Ou, enfim, amor a fogo dado e perdão puro...
Eu quero lá saber! Amor de Deus no canto
De misericórdia e paz, mesmo para os violentos
Da violada violeta, a breve miosótis
Ao canto unida e em tuas lágrimas orvalhada?
Cala-te e humilha-te como ela,
Que é maior do que tu no canto
E a esta hora só bebe talvez água salgada,
Oh poeta de água doce!
Mas, antes de calar espada e voz, responde:
Ainda terás alento e pedra de canto
Para cantar estas coisas,
Encantar outra vez a donzela roubada ou nina morta,
Enfim, o teu amor?
Dize lá, sem-vergonha,
Homem singelo:
Pois se nisto me mentes nunca mais a verás.
(Quem fala?)
"Caderno de Caligraphia e Outros Poemas a Marga", Vitorino Nemésio
(Vitorino Nemésio nasceu no dia 19 de Dezembro de 1901. Morreu em 1978.)
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Ernesto Guerra da Cal
Conselho de amigo
Cultiva o teu futuro
com amor
porque ele é o lugar
onde tens que passar
o resto da tua vida
Cultiva Deus
com amor
ainda maior
porque
com sorte
com Ele irás passar
o resto da tua morte
"Espelho Cego", Ernesto Guerra da Cal
(Ernesto Guerra da Cal nasceu no dia 19 de Dezembro de 1911. Morreu em 1994.)
Cultiva o teu futuro
com amor
porque ele é o lugar
onde tens que passar
o resto da tua vida
Cultiva Deus
com amor
ainda maior
porque
com sorte
com Ele irás passar
o resto da tua morte
"Espelho Cego", Ernesto Guerra da Cal
(Ernesto Guerra da Cal nasceu no dia 19 de Dezembro de 1911. Morreu em 1994.)
quinta-feira, 18 de dezembro de 2014
Luís Pimentel
Cunetas
¡Outra vez, outra vez o terror!
Un dia e outro dia,
Sen campás, sen protesta.
Galicia ametrallada nas cunetas
dos seus camiños.
Chéganos outro berro.
Señor ¿que fixemos?
- Non fales en voz alta -
¿Ata cando durará este gran enterro?
- Non chores que poden escoitarte.
Hoxe non choran mais que os que aman a Galicia -
¡Os milleiros de horas, de séculos,
que fixeron falta
para facer un home!
Teñen que encher ainda
as cunetas
con sangue de mestres e de obreiros
Lama, sangue e bágoas nos sulcos
son semente.
Docemente chove.
Enviso, arrodeame unha eterna noite.
Xa non terei palabras pra os meus versos.
Desvelado, pola mañá cedo
Baixo por un camiño.
Nos pazos onde se trama o crime
Ondean bandeiras pingando anilina.
Hai un aire de pombas mortas.
Tremo outra vez de medo.
Señor, isto é o home.
Todas as portas están pechadas.
Con ninguen podes trocar teu sorriso.
Nos arrabais
bandeiras batidas e esfarrapadas.
Deixa atrás a vila.
Ti sabes que todos os dias
hai un home morto na cuneta
que ninguén coñece ainda
Unha muller sobre o cadaver do seu home
Chora.
Chove.
¡Negra sombra, negra sombra!
Eu ben sei que hai un misterio na nosa terra,
Mais alá da neboa,
Mais alá do mar,
Mais alá da chuvia,
Mais alá do bosque.
"Poesía Enteira", Luís Pimentel
(Luís Pimentel nasceu no dia 18 de Dezembro de 1895. Morreu em 1958.)
¡Outra vez, outra vez o terror!
Un dia e outro dia,
Sen campás, sen protesta.
Galicia ametrallada nas cunetas
dos seus camiños.
Chéganos outro berro.
Señor ¿que fixemos?
- Non fales en voz alta -
¿Ata cando durará este gran enterro?
- Non chores que poden escoitarte.
Hoxe non choran mais que os que aman a Galicia -
¡Os milleiros de horas, de séculos,
que fixeron falta
para facer un home!
Teñen que encher ainda
as cunetas
con sangue de mestres e de obreiros
Lama, sangue e bágoas nos sulcos
son semente.
Docemente chove.
Enviso, arrodeame unha eterna noite.
Xa non terei palabras pra os meus versos.
Desvelado, pola mañá cedo
Baixo por un camiño.
Nos pazos onde se trama o crime
Ondean bandeiras pingando anilina.
Hai un aire de pombas mortas.
Tremo outra vez de medo.
Señor, isto é o home.
Todas as portas están pechadas.
Con ninguen podes trocar teu sorriso.
Nos arrabais
bandeiras batidas e esfarrapadas.
Deixa atrás a vila.
Ti sabes que todos os dias
hai un home morto na cuneta
que ninguén coñece ainda
Unha muller sobre o cadaver do seu home
Chora.
Chove.
¡Negra sombra, negra sombra!
Eu ben sei que hai un misterio na nosa terra,
Mais alá da neboa,
Mais alá do mar,
Mais alá da chuvia,
Mais alá do bosque.
"Poesía Enteira", Luís Pimentel
(Luís Pimentel nasceu no dia 18 de Dezembro de 1895. Morreu em 1958.)
O Natal dos pré-cegos
As árvores acendem-se, tremeluzem como se estivessem bêbadas, e é o que ouço na rua às pessoas que comem palavras, ainda que palavras pequenas, palavras ínfimas, as pessoas comem o artigo definido à falta de alimento substantivo, comem migalhas, palavras de uma letra só porque a fome é tanta e tudo o que vem à rede é peixe, e mais vale comer palavras, ainda que resumidas e insossas, do que não comer nada ou comer merda com chantili. Ouço:
- Então, se não voltar a ver, um bom Natal e feliz ano novo...
- Para si também, se não voltar a ver, um Natal feliz e muitas prosperidades...
P.S. - Cegos era o que se chamava antigamente aos invisuais de hoje em dia. Os invisuais de hoje em dia vêem muito melhor do que os cegos de antigamente, e têm muito mais classe, têm diploma de invisuais, olha o respeitinho. Gosto da volta que os nossos aforismos também levaram derivado à modernidade e ao decoro: o maior invisual é aquele que se recusa a vislumbrar; ou: em terra de invisuais quem tem um globo ocular em satisfatórias condições de funcionamento é presidente da república. É a badalhoca da semântica, mãe de todos os eufemismos, que vai para a cama com qualquer e dá para os três lados. Havia também os moucos ou surdos - serão agora chamados insonoros, para que ninguém se melindre ou ofenda. E é o que eu digo: a palavras loucas, orelhas insonoras.
- Então, se não voltar a ver, um bom Natal e feliz ano novo...
- Para si também, se não voltar a ver, um Natal feliz e muitas prosperidades...
P.S. - Cegos era o que se chamava antigamente aos invisuais de hoje em dia. Os invisuais de hoje em dia vêem muito melhor do que os cegos de antigamente, e têm muito mais classe, têm diploma de invisuais, olha o respeitinho. Gosto da volta que os nossos aforismos também levaram derivado à modernidade e ao decoro: o maior invisual é aquele que se recusa a vislumbrar; ou: em terra de invisuais quem tem um globo ocular em satisfatórias condições de funcionamento é presidente da república. É a badalhoca da semântica, mãe de todos os eufemismos, que vai para a cama com qualquer e dá para os três lados. Havia também os moucos ou surdos - serão agora chamados insonoros, para que ninguém se melindre ou ofenda. E é o que eu digo: a palavras loucas, orelhas insonoras.
quarta-feira, 17 de dezembro de 2014
Afrânio Peixoto 2
Os dias passavam no Barro Branco numa sucessão rápida e descuidada, ao passo que se operava a conformação necessária do tempo e que as distrações incessantes do campo tomavam a atenção de Paulo. E percebendo que lhe voltava a serenidade e a paz, mais se absorvia nas diversões simples da vida da roça, que o tinham valido. Ele, que sempre fora um desatento à natureza, nessa inconsciência espantada das crianças inteligentes que vêem e ouvem, mas sentem apenas exteriormente a representação da própria curiosidade e imaginação, era agora quase um epicurista sutil, a retirar de cada aspecto da natureza - pedra, águas, árvore, ninhos, casa rústica, ou paisagem - uma multidão de observações felizes, logo da primeira impressão transformadas em imagens tumultuosas... Constante nesse vezo irreprimível de trocar a percepção das coisas sentidas em representação adequada ou fantasiosa, comparava-se, e aos artistas, a moedeiros obcecados que onde encontrem uma cintilação de ouro, no minério, na escória, na pepita, são levados a cunhar a medalha nítida e perfeita que lhe dará o circular e viver para o gozo humano. Muitas vezes, saindo para o campo, armado de espingarda e de petrechos de caça, e volvendo sem ter dado um tiro, nem se lembrando, mesmo ao acaso, de acordar um eco na floresta, ele se dizia pago dessas horas de excursão, enlameado embora, ou arranhado de espinhos, pois caçara imagens, vendo, contemplando, divagando...
"A Esfinge", Afrânio Peixoto
(Afrânio Peixoto nasceu no dia 17 de Dezembro de 1876. Morreu em 1947.)
"A Esfinge", Afrânio Peixoto
(Afrânio Peixoto nasceu no dia 17 de Dezembro de 1876. Morreu em 1947.)
Erico Veríssimo 2
Só agora Amaro acredita que a Primavera chegou: de sua janela vê Clarissa a brincar sob os pessegueiros floridos. As glicínias roxas espiam por cima do muro que separa o pátio da pensão do pátio da casa vizinha. O menino doente está na sua cadeira de rodas; o sol lhe ilumina o rosto pálido, atirando-lhe sobre os cabelos um polvilho de ouro. Um avião cruza o céu, roncando - asas coruscantes contra o azul nítido.
Amaro sente no rosto a carícia leve do vento. Infla as narinas e sorve o ar luminoso da manhã.
Não há dúvida: a Primavera chegou. Os pessegueiros estão floridos, as glicínias se debruçam sobre o muro, o menino doente já mostra no rosto magro a sombra dum sorriso.
- Lindo! - exclama Amaro interiormente.
E se tentasse exprimir em música o momento milagroso? Quem sabe? Clarissa ainda corre sob as árvores. Grita, sacode a cabeleira negra, agita os braços, pára, olha, ri, torna a correr, perseguindo agora uma borboleta amarela.
Longe, lampeja um pedaço do rio. Mais longe ainda, a sombra azulada dos morros. E por cima de tudo, a porcelana pura do céu.
Amaro caminha para o piano. Seus dedos magros batem de leve nas teclas. Duas notas tímidas e desamparadas: mi, sol... Mas a mão tomba desanimada. O olhar morto passeia em torno, vê as imagens familiares: a cama desfeita, os livros da noite, empilhados sobre o mármore da mesinha-de- cabeceira, a escrivaninha com papéis em desordem; nas paredes brancas, a máscara mortuária de Beethoven e o espelho oval por cima da pia, o espelho que rebrilha, reflectindo na superfície lisa o semblante dum homem triste...
"Clarissa", Erico Veríssimo
(Erico Veríssimo nasceu no dia 17 de Dezembro de 1905. Morreu em 1975.)
Amaro sente no rosto a carícia leve do vento. Infla as narinas e sorve o ar luminoso da manhã.
Não há dúvida: a Primavera chegou. Os pessegueiros estão floridos, as glicínias se debruçam sobre o muro, o menino doente já mostra no rosto magro a sombra dum sorriso.
- Lindo! - exclama Amaro interiormente.
E se tentasse exprimir em música o momento milagroso? Quem sabe? Clarissa ainda corre sob as árvores. Grita, sacode a cabeleira negra, agita os braços, pára, olha, ri, torna a correr, perseguindo agora uma borboleta amarela.
Longe, lampeja um pedaço do rio. Mais longe ainda, a sombra azulada dos morros. E por cima de tudo, a porcelana pura do céu.
Amaro caminha para o piano. Seus dedos magros batem de leve nas teclas. Duas notas tímidas e desamparadas: mi, sol... Mas a mão tomba desanimada. O olhar morto passeia em torno, vê as imagens familiares: a cama desfeita, os livros da noite, empilhados sobre o mármore da mesinha-de- cabeceira, a escrivaninha com papéis em desordem; nas paredes brancas, a máscara mortuária de Beethoven e o espelho oval por cima da pia, o espelho que rebrilha, reflectindo na superfície lisa o semblante dum homem triste...
"Clarissa", Erico Veríssimo
(Erico Veríssimo nasceu no dia 17 de Dezembro de 1905. Morreu em 1975.)
terça-feira, 16 de dezembro de 2014
Olavo Bilac 2
O pássaro cativo
Armas, num galho de árvore, o alçapão
E, em breve, uma avezinha descuidada,
Batendo as asas cai na escravidão.
Dás-lhe então, por esplêndida morada,
A gaiola dourada;
Dás-lhe alpiste, e água fresca, e ovos, e tudo.
Por que é que, tendo tudo, há de ficar
O passarinho mudo,
Arrepiado e triste sem cantar?
É que, criança, os pássaros não falam.
Só gorjeando a sua dor exalam,
Sem que os homens os possam entender;
Se os pássaros falassem,
Talvez os teus ouvidos escutassem
Este cativo pássaro dizer:
"Não quero o teu alpiste!
Gosto mais do alimento que procuro
Na mata livre em que voar me viste;
Tenho água fresca num recanto escuro
Da selva em que nasci;
Da mata entre os verdores,
Tenho frutos e flores
Sem precisar de ti!
Não quero a tua esplêndida gaiola!
Pois nenhuma riqueza me consola,
De haver perdido aquilo que perdi...
Prefiro o ninho humilde construído
De folhas secas, plácido, e escondido
Entre os galhos das árvores amigas...
Solta-me ao vento e ao sol!
Com que direito à escravidão me obrigas?
Quero saudar as pombas do arrebol!
Quero, ao cair da tarde,
Entoar minhas tristíssimas cantigas!
Por que me prendes? Solta-me, covarde!
Deus me deu por gaiola a imensidade!
Não me roubes a minha liberdade...
Quero voar! Voar!"
Estas cousas o pássaro diria,
Se pudesse falar,
E a tua alma, criança, tremeria,
Vendo tanta aflição,
E a tua mão, tremendo, lhe abriria
A porta da prisão...
Olavo Bilac
(Olavo Bilac nasceu no dia 16 de Dezembro de 1865. Morreu em 1918.)
Armas, num galho de árvore, o alçapão
E, em breve, uma avezinha descuidada,
Batendo as asas cai na escravidão.
Dás-lhe então, por esplêndida morada,
A gaiola dourada;
Dás-lhe alpiste, e água fresca, e ovos, e tudo.
Por que é que, tendo tudo, há de ficar
O passarinho mudo,
Arrepiado e triste sem cantar?
É que, criança, os pássaros não falam.
Só gorjeando a sua dor exalam,
Sem que os homens os possam entender;
Se os pássaros falassem,
Talvez os teus ouvidos escutassem
Este cativo pássaro dizer:
"Não quero o teu alpiste!
Gosto mais do alimento que procuro
Na mata livre em que voar me viste;
Tenho água fresca num recanto escuro
Da selva em que nasci;
Da mata entre os verdores,
Tenho frutos e flores
Sem precisar de ti!
Não quero a tua esplêndida gaiola!
Pois nenhuma riqueza me consola,
De haver perdido aquilo que perdi...
Prefiro o ninho humilde construído
De folhas secas, plácido, e escondido
Entre os galhos das árvores amigas...
Solta-me ao vento e ao sol!
Com que direito à escravidão me obrigas?
Quero saudar as pombas do arrebol!
Quero, ao cair da tarde,
Entoar minhas tristíssimas cantigas!
Por que me prendes? Solta-me, covarde!
Deus me deu por gaiola a imensidade!
Não me roubes a minha liberdade...
Quero voar! Voar!"
Estas cousas o pássaro diria,
Se pudesse falar,
E a tua alma, criança, tremeria,
Vendo tanta aflição,
E a tua mão, tremendo, lhe abriria
A porta da prisão...
Olavo Bilac
(Olavo Bilac nasceu no dia 16 de Dezembro de 1865. Morreu em 1918.)
segunda-feira, 15 de dezembro de 2014
domingo, 14 de dezembro de 2014
João Sarmento Pimentel
Vindo do sul, um miradouro da estrada real mostra de surpresa a "formosa imagem" que é, no dizer de frei Heitor Pinto, "como alma deste reino".
Até nós outros, quando lhe pronunciamos o nome cá dos cafundós do exílio, sentimos mil saudades e recordamos aquela época, já distante para além dos seus oito ou dez lustros, em que todos éramos, senão poetas, prosadores de largo fôlego e contundentes adjectivações, moços dos quinze aos vinte e poucos anos.
Pelas manhãs domingueiras de Abril e Maio íamos aos eirados de Santa Clara namorar a paisagem da cidade soalheira e colorida, alpendrada no outro lado do rio Mondego, e aquelas airosas e risonhas tricanas que passavam a caminho do mercado, xaile cruzado sobre o peito repontão, pernas ao léu, sainha de regueifa na cintura e arregaçada até pelo joelho, a ponta do pé enfiada nos chapins bordados e calcanhar a dar, a dar, na borda da albarda marcando a andadura ligeira do burrico peludo, manhoso e contente. [...]
"Memórias do Capitão", João Sarmento Pimentel
(João Sarmento Pimentel nasceu no dia 14 de Dezembro de 1888. Morreu em 1987.)
Até nós outros, quando lhe pronunciamos o nome cá dos cafundós do exílio, sentimos mil saudades e recordamos aquela época, já distante para além dos seus oito ou dez lustros, em que todos éramos, senão poetas, prosadores de largo fôlego e contundentes adjectivações, moços dos quinze aos vinte e poucos anos.
Pelas manhãs domingueiras de Abril e Maio íamos aos eirados de Santa Clara namorar a paisagem da cidade soalheira e colorida, alpendrada no outro lado do rio Mondego, e aquelas airosas e risonhas tricanas que passavam a caminho do mercado, xaile cruzado sobre o peito repontão, pernas ao léu, sainha de regueifa na cintura e arregaçada até pelo joelho, a ponta do pé enfiada nos chapins bordados e calcanhar a dar, a dar, na borda da albarda marcando a andadura ligeira do burrico peludo, manhoso e contente. [...]
"Memórias do Capitão", João Sarmento Pimentel
(João Sarmento Pimentel nasceu no dia 14 de Dezembro de 1888. Morreu em 1987.)
sábado, 13 de dezembro de 2014
Sócrates escutado a pedir dinheiro a amigo
Fico-me pelo título do Expresso. "Sócrates escutado a pedir dinheiro a amigo". Fico-me pelo título, porque o resto já não interessa. O resto, sendo geralmente outra coisa, mais gasosa do que sólida, já nada acrescenta ou retira ao efeito demolidor do título. Técnicas. No caso do Expresso, a técnica do peido fino. Estes tipos dos jornais de hoje em dia, engravatados e de fatos às riscas (verticais), não sabem mas aprenderam tudo com o falecido 24horas, que curiosamente os enojava, e querem ser todos como o Correio da Manhã, que é o que é e mete-lhes raiva por causa das vendas.
Confesso a minha triste venalidade. Não sou como o alegado primeiro-ministro de Portugal, que nunca na vida fez ou pediu favores a ninguém. Na minha terra não se diria melhor para definir um pequeno filho da puta: nunca pediu ajuda nem nunca ajudou ninguém. Eu, ao contrário do alegado primeiro-ministro de Portugal, peço favores, que remédio, e creio que também já fiz alguns. Também já pedi dinheiro a amigos. Aliás, farto-me de pedir dinheiro à minha mulher, e a minha mulher é minha amiga. A sorte que tenho é que não sou escutado (por acaso até sou, somos todos; quase todos), e decerto por isso é que ainda não estou no xelindró nem na manchete do Expresso. Eu e o alegado e imaculado primeiro-ministro de Portugal temos tecnoformas de vida completamente diferentes. Provavelmente antagónicas.
Eu sempre acreditei que os amigos são para as ocasiões. E que quem tem amigos não morre na cadeia.
Confesso a minha triste venalidade. Não sou como o alegado primeiro-ministro de Portugal, que nunca na vida fez ou pediu favores a ninguém. Na minha terra não se diria melhor para definir um pequeno filho da puta: nunca pediu ajuda nem nunca ajudou ninguém. Eu, ao contrário do alegado primeiro-ministro de Portugal, peço favores, que remédio, e creio que também já fiz alguns. Também já pedi dinheiro a amigos. Aliás, farto-me de pedir dinheiro à minha mulher, e a minha mulher é minha amiga. A sorte que tenho é que não sou escutado (por acaso até sou, somos todos; quase todos), e decerto por isso é que ainda não estou no xelindró nem na manchete do Expresso. Eu e o alegado e imaculado primeiro-ministro de Portugal temos tecnoformas de vida completamente diferentes. Provavelmente antagónicas.
Eu sempre acreditei que os amigos são para as ocasiões. E que quem tem amigos não morre na cadeia.
sexta-feira, 12 de dezembro de 2014
Alberto de Serpa
Tédio
Há instantes tão longos,
há horas tão monótonas,
há dias tão pesados,
que perdoamos à vida
só porque vai passando...
Alberto de Serpa
(Alberto de Serpa nasceu no dia 12 de Dezembro de 1906. Morreu em 1992.)
Há instantes tão longos,
há horas tão monótonas,
há dias tão pesados,
que perdoamos à vida
só porque vai passando...
Alberto de Serpa
(Alberto de Serpa nasceu no dia 12 de Dezembro de 1906. Morreu em 1992.)
quinta-feira, 11 de dezembro de 2014
Manuel Rodríguez López
És un refugallo
A tua dona xa lavóu
moitisma roupa de traballo.
Sodes dous vellos.
Esas maus deformes apuraron
os folgos todos
e o tacto.
Por qué che estrana que o patrón
queira porte no paro?
Perdiche a lixeireza,
rebordache as alasas, meu coitado.
Agora xa non rendes; que estás feito
un refugallo!
"Soldada Mínima", Manuel Rodríguez López
(Manuel Rodríguez López nasceu no dia 11 de Dezembro de 1934. Morreu em 1990.)
A tua dona xa lavóu
moitisma roupa de traballo.
Sodes dous vellos.
Esas maus deformes apuraron
os folgos todos
e o tacto.
Por qué che estrana que o patrón
queira porte no paro?
Perdiche a lixeireza,
rebordache as alasas, meu coitado.
Agora xa non rendes; que estás feito
un refugallo!
"Soldada Mínima", Manuel Rodríguez López
(Manuel Rodríguez López nasceu no dia 11 de Dezembro de 1934. Morreu em 1990.)
Estou mesmo a ver o filme 11
quarta-feira, 10 de dezembro de 2014
Clarice Lispector 2
Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou - o tempo da cozinheira dar um grito - e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante no beiral de telhado e, enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade, tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa, como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos.
Foi então que aconteceu. De pura afobação, a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro.
"Laços de Família", Clarice Lispector
(Clarice Lispector nasceu no dia 10 de Dezembro de 1920. Morreu em 1977.)
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou - o tempo da cozinheira dar um grito - e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante no beiral de telhado e, enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade, tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa, como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos.
Foi então que aconteceu. De pura afobação, a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro.
"Laços de Família", Clarice Lispector
(Clarice Lispector nasceu no dia 10 de Dezembro de 1920. Morreu em 1977.)
terça-feira, 9 de dezembro de 2014
José Rodrigues Miguéis 2
Não. Nada de proas homéricas singrando rio acima, batidas de ignotos mares, a fundar a capital do futuro Império-que-foi: mas um homem hirsuto e furtivo, talvez em busca da liberdade, que um dia assomou aqui e, com a mão afeita ao sílex, arredou o espesso canavial a olhar com espanto a serena e virgem expansão das águas, onde o sol se espelhava, quente e glorioso como um deus possessivo.
Ergueu a choça à beira-ria, ao abrigo do juncal, onde convergiam as águas dos abruptos morros e colinas. E constituiu família, pedra angular duma história e dum carácter. Tudo data da entrada em cena desse homem seminu e ungulino.
Para trás, toda esta orla caótica da Meseta, selva aspérrima esparsamente povoada de gentes entre si estranhas e hostis, dormitava na inocente bruteza primordial. Com o tempo vagoroso, vieram vindo incertas caravanas de nómades e rechaçados. Isto era um cabo-do-mundo, onde (como na Roma de Rómulo e Remo ou no, mais tarde, Far-West) a ninguém se perguntava o nome nem a origem. Fixaram-se perto da gente bisonha do lugar: as barreiras naturais que separam os homens, uma vez vencidas, fundem-nos melhor. Alguns terão vindo pelos meandros do litoral; um dia a primeira canoa desceu o rio, a medo. O coio de aventureiros maltrapidos espraiou-se pela margem pantanosa, pescando e caçando. Havia lugar para todos.
O sítio era malsão, e do mar distante chegavam a espaços mercadores e agressores, bem armados e apetrechados homens do bronze: numa hora de perigo, a horda inorgânica subiu a íngreme colina, carregando a prole e as magras posses, em busca de abrigo e baluarte. Assim nasceu a Acrópole, e com ela a unidade, o compacto e o poder.
José Rodrigues Miguéis
(José Rodrigues Miguéis nasceu no dia 9 de Dezembro de 1901. Morreu em 1980.)
Ergueu a choça à beira-ria, ao abrigo do juncal, onde convergiam as águas dos abruptos morros e colinas. E constituiu família, pedra angular duma história e dum carácter. Tudo data da entrada em cena desse homem seminu e ungulino.
Para trás, toda esta orla caótica da Meseta, selva aspérrima esparsamente povoada de gentes entre si estranhas e hostis, dormitava na inocente bruteza primordial. Com o tempo vagoroso, vieram vindo incertas caravanas de nómades e rechaçados. Isto era um cabo-do-mundo, onde (como na Roma de Rómulo e Remo ou no, mais tarde, Far-West) a ninguém se perguntava o nome nem a origem. Fixaram-se perto da gente bisonha do lugar: as barreiras naturais que separam os homens, uma vez vencidas, fundem-nos melhor. Alguns terão vindo pelos meandros do litoral; um dia a primeira canoa desceu o rio, a medo. O coio de aventureiros maltrapidos espraiou-se pela margem pantanosa, pescando e caçando. Havia lugar para todos.
O sítio era malsão, e do mar distante chegavam a espaços mercadores e agressores, bem armados e apetrechados homens do bronze: numa hora de perigo, a horda inorgânica subiu a íngreme colina, carregando a prole e as magras posses, em busca de abrigo e baluarte. Assim nasceu a Acrópole, e com ela a unidade, o compacto e o poder.
José Rodrigues Miguéis
(José Rodrigues Miguéis nasceu no dia 9 de Dezembro de 1901. Morreu em 1980.)
segunda-feira, 8 de dezembro de 2014
O novo quartel da GNR de Fafe
"Obras do novo quartel da GNR arrancam sábado", anunciava o sítio da Câmara Municipal de Fafe. E eu pensei: as obras; os operários; as máquinas; no sábado; horas extra; a seguir mete-se o domingo; e na segunda-feira é feriado. Não é lá grande princípio. Mas depois acho que consegui perceber: a notícia do arranque das obras afinal era truque, falava-se apenas do folclórico "lançamento da primeira pedra" - cuidado com as cabeças! -, em homenagem aos autarcas vigentes e ao Senhor Secretário de Estado da Administração Interna, que faria o favor da visita. E todos terão posado para a fotografia, de sapatinho dirópito e capacete, como brevemente se confirmará. Quer-se dizer: só tenho quem me goze.
Fernanda de Castro
Urgente
Urgente é construir serenamente
seja o que for, choupana ou catedral,
é trabalhar a pedra, o barro, a cal,
é regressar às fontes, à nascente.
É não deixar perder-se uma semente,
é arrancar as urtigas do quintal,
é fazer duma rosa o roseiral,
sem perder tempo. Agora. Já. É urgente.
Urgente é respeitar o Amigo, o Irmão,
é perdoar, se alguém pede perdão,
é repartir o trigo do celeiro.
Urgente é respirar com alegria,
ouvir cantar a rola, a cotovia,
e plantar no pinhal mais um pinheiro.
"Poesia II", Fernanda de Castro
(Fernanda de Castro nasceu no dia 8 de Dezembro de 1900. Morreu em 1994.)
Urgente é construir serenamente
seja o que for, choupana ou catedral,
é trabalhar a pedra, o barro, a cal,
é regressar às fontes, à nascente.
É não deixar perder-se uma semente,
é arrancar as urtigas do quintal,
é fazer duma rosa o roseiral,
sem perder tempo. Agora. Já. É urgente.
Urgente é respeitar o Amigo, o Irmão,
é perdoar, se alguém pede perdão,
é repartir o trigo do celeiro.
Urgente é respirar com alegria,
ouvir cantar a rola, a cotovia,
e plantar no pinhal mais um pinheiro.
"Poesia II", Fernanda de Castro
(Fernanda de Castro nasceu no dia 8 de Dezembro de 1900. Morreu em 1994.)
Florbela Espanca 2
Volúpia
No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frémito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!
A sombra entre a mentira e a verdade...
A nuvem que arrastou o vento norte...
- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!
Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!
E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...
"Charneca em Flor", Florbela Espanca
(Florbela Espanca nasceu no dia 8 de Dezembro de 1894. Morreu em 1930.)
No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frémito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!
A sombra entre a mentira e a verdade...
A nuvem que arrastou o vento norte...
- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!
Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!
E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...
"Charneca em Flor", Florbela Espanca
(Florbela Espanca nasceu no dia 8 de Dezembro de 1894. Morreu em 1930.)
domingo, 7 de dezembro de 2014
Soledade Summavielle 3
Prelúdio
Antes que o tempo estanque a voz e a vida,
eu volto a cantar.
Não com aquele acento de pureza
prometido nos meus primeiros versos.
Mas sempre com a íntima certeza
desta sinceridade que lhes dou
- espelho de mim mesma -
coisa que o tempo ainda não levou.
"Tumulto", Soledade Summavielle
(Soledade Summavielle nasceu no dia 7 de Dezembro de 1907. Morreu em 2000.)
Antes que o tempo estanque a voz e a vida,
eu volto a cantar.
Não com aquele acento de pureza
prometido nos meus primeiros versos.
Mas sempre com a íntima certeza
desta sinceridade que lhes dou
- espelho de mim mesma -
coisa que o tempo ainda não levou.
"Tumulto", Soledade Summavielle
(Soledade Summavielle nasceu no dia 7 de Dezembro de 1907. Morreu em 2000.)
Ary dos Santos 2
O poema original
Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutra pasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse ao abismo
e faz um filho às palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever em sismo.
Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte
faz devorar em jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.
Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce à rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.
Original é o poeta
que chega ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.
Esse que despe a poesia
como se fosse mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer.
"Resumo", Ary dos Santos
(Ary dos Santos nasceu no dia 7 de Dezembro de 1936. Morreu em 1984.)
Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutra pasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse ao abismo
e faz um filho às palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever em sismo.
Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte
faz devorar em jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.
Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce à rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.
Original é o poeta
que chega ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.
Esse que despe a poesia
como se fosse mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer.
"Resumo", Ary dos Santos
(Ary dos Santos nasceu no dia 7 de Dezembro de 1936. Morreu em 1984.)
sábado, 6 de dezembro de 2014
Urbano Tavares Rodrigues 3
Destino
I
Trago na fonte
e estrela do fogo
da minha revolta
Nunca aceitaria qualquer tirania
nem a do dinheiro
nem a do mais justo ditador
nem a própria vida eu aceito...
tal como ela é
com todas as promessas
do amor e da juventude
e a parda doença
de envelhecer
a morte em cada dia
antecipada
II
Na mais lebrega alfurja
ou na cama de folhas macias
da floresta
onde a chuva te adormeceu
há sempre um idamante de sol
cujos raios te penetram de
ventura
ao sonhares a palavra
liberdade
III
Quando a terra poluída
tiver sorvido
toda a água dos lagos e das
fontes
hei-de levar o meu fantasma
até ao porto sonoro
onde a esperança cai a pique
sobre o mar dos desejos sem limite
"Horas de Vidro", Urbano Tavares Rodrigues
(Urbano Tavares Rodrigues nasceu no dia 6 de Dezembro de 1923. Morreu em 2013.)
I
Trago na fonte
e estrela do fogo
da minha revolta
Nunca aceitaria qualquer tirania
nem a do dinheiro
nem a do mais justo ditador
nem a própria vida eu aceito...
tal como ela é
com todas as promessas
do amor e da juventude
e a parda doença
de envelhecer
a morte em cada dia
antecipada
II
Na mais lebrega alfurja
ou na cama de folhas macias
da floresta
onde a chuva te adormeceu
há sempre um idamante de sol
cujos raios te penetram de
ventura
ao sonhares a palavra
liberdade
III
Quando a terra poluída
tiver sorvido
toda a água dos lagos e das
fontes
hei-de levar o meu fantasma
até ao porto sonoro
onde a esperança cai a pique
sobre o mar dos desejos sem limite
"Horas de Vidro", Urbano Tavares Rodrigues
(Urbano Tavares Rodrigues nasceu no dia 6 de Dezembro de 1923. Morreu em 2013.)
quarta-feira, 3 de dezembro de 2014
Cem poemas para salvar a nossa vida
Adolfo Luxúria Canibal, Capicua, Mário Cláudio, João Luís Barreto Guimarães, Daniel Jonas e Francisco José Viegas são algumas das presenças confirmadas para a décima edição da Festa da Poesia, evento que assinala a data do nascimento e da morte de Florbela Espanca. A inicitiva da Câmara Municipal de Matosinhos decorre de domingo a terça-feira - dias 7, 8 e 9 de Dezembro - e ficará certamente marcada pelo lançamento da antologia "Cem Poemas para Salvar a Nossa Vida". Mais informação e programa, aqui.
terça-feira, 2 de dezembro de 2014
segunda-feira, 1 de dezembro de 2014
Nestor de Holanda
Presentes de Natal
As noites de Natal existem para me mostrar que os anos têm sido arrancados das folhinhas. E me lembram de que já vou carregando, no corpo, na alma, no coração, as tatuagens do tempo.
Houve o Natal dos carneirinho manso, que meu pai me deu para ser saudade hoje. Houve o da flauta, o do velocípede, o da bicicleta.
Depois, o das obras de Júlio Verne.
Mais adiante, o da Enciclopédia e Dicionário Internacional.
Um dia, fui visitar casa amiga. E a empregada me anunciou:
- Aí está um rapaz.
Desde então, o Natal se foi transformando em pijamas, camisas, gravatas, lenços.
Noutra visita:
- Aí está um moço.
Notem que, no caso, moço é mais velho que rapaz...
Meu Natal passou a faturar abotoaduras, alfinetes de gravata, carteiras de cédulas ou de níqueis, cintos e agendas.
Agora, quando visito algum amigo, as empregadas me anunciam:
- Aí está um senhor.
Quando o dono da casa é cortês, ri:
- Que senhor, que nada, Maria. É o Iolando. Entra velho.
O velho, em tom fraterno, remoça mais a gente. Acho horrível ser senhor.
Assim, o último Natal me deixou mágoa estranha. Porque pessoa querida, das que sempre me presentearam no nascimento do Cristo, apareceu com uma caixinha embrulhada em papel multicolor. Todo alegria, abri o embrulho e a caixinha.
Eram uns suspensórios!...
"Telhado de Vidro - Volume I", Nestor de Holanda
(Nestor de Holanda nasceu no dia 1 de Dezembro de 1921. Morreu em 1970.)
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