Ia já para três dias que o tractor
parara e a regadeira não via pinga de água trasfegada do Tejo.
O arrozeiro, apertado pelo patrão,
andava numa dobadoura, por marachas e linhas, a deitar olho aos canteiros de
espiga mais loira, fazendo piques, agora aqui, agora ali, para que as águas
fossem caminhando para a vala de esgoto e os ranchos pudessem meter foices no
arrozal.
De pá ao alto, descansada no ombro,
o "seu Arriques" já pensava na volta a casa, pois da sangria à recolha do bago
poucas semanas iam.
- Que rica seara! Andei-me nela que
nem sombra atrás d’alma penada, mas o patrão arrinca para cima de quarenta
sementes. Se os outros a pudessem comer côa inveja...
E lançava a vista sobre o manto de
panículas aloiradas, que os camalhões percintavam e a aragem branda enrugava,
como mareta em oceano de oiro.
Mais além e aqui, uma mancha ou
outra de verde a denunciar o cromo que o sol lhe arrancava, indício de algum
cabeço que as enxadas, no armar da terra, não haviam derrubado.
- S’o patrão não andasse de fogo no
rabo por mor do rancho, seis dias de molho davam-lhe uns saquitos bem bons.
Assim... ainda adrega uma seara como por aqui não há outra.
Andava por oito meses que corria
aqueles combros de alto a baixo. Primeiro, de bandeirolas a tirar miras para o
erguer das travessas e a mandar homens na rebaixa, até os tabuleiros poderem
receber uma lâmina de água para a sementeira; depois, a dirigir aquele caudal
que todos os dias entrava Lezíria dentro, pela regadeira mestra, não fossem
afogar-se os pés de arroz ou morrer alguns por míngua.
Quantas noites não pregara olho a
traçar planos para os canteiros da ponta de baixo que pareciam avessos a
receber frescura? Então, erguia-se da esteira para percorrer o arrozal, levando
as estrelas por camaradas mais a endecha da água e o zangarreio das rãs.
"Gaibéus", Alves Redol
(Alves Redol nasceu no dia 29 de Dezembro de 1911. Morreu em1969.)
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