quarta-feira, 31 de março de 2021

Brincar em serviço

Ele nunca brincava em serviço. O que, para um palhaço de circo, era talvez contraproducente. 

P.S. - Hoje, 1 de Abril, é Dia Internacional da Diversão no Trabalho.

Mais uma voltinha...

Foto Hernâni Von Doellinger

Mente-me que eu gosto!

Parece que não, mas hoje é Dia dos Enganos. Dia das Mentiras. Com isto da política, das redes sociais, dos jornais à rasca e das televisões sensacionalistas, que são todas, todos os dias são dia das mentiras, que agora se dizem em estrangeiro fake news, e quase passa despercebida a velhinha efeméride residente do primeiro de Abril. 

Arreganha a tacha!

Era um mentiroso compulsivo. E mentia com quantos dentes tinha. Exactamente trinta e dois simetricamente divididos por duas falsas gengivas enfiadas de tacha arreganhada num copo de água choca em cima da mesinha-de-cabeceira.

Sinceramente

"Mente-me, que eu gosto", disse ela. "Por isso é que te amo tanto", disse ele.

Aldrabons e aldramaus

Por que razão medram tanto os aldrabões em Portugal? Por que razão vamos a votos e damos a mama aos aldrabões, de variada cor, e há mais de quarenta anos, como se por acaso acreditássemos neles - nos aldrabões? Os aldrabões que antes e/ou depois estão nos bancos, nas edepês, nas caixas, nas renes, nas cepês, nas referes, nas misericórdias, nos metros, nos centímetros, nas construtoras, nas destrutoras, nos superescritórios de advogados, nos supermercados de escravos, nas fundações, nas afundações, nas jotas, nas motas, nas assessorias, nas tias, nas televisões e nos jornais, no parlamento, na moinice enfim, e têm do povo uma vaga ideia. Por que razão?
Andava com esta dúvida fisgada nem sei há que tempos, mas ontem tive a inesperada revelação, quase sem querer, ao ouvir um minhoto retinto a falar. O homem antigo falava de não sei quem e chamava-lhe aldrabom. Aldrabom. Os minhotos de cá de baixo falamos assim (e eu até tenho uma certa vaidade na nossa maneira de falar), trocamos o ão pelo om, daí a confusom, e se calhar acreditamo-nos: ora aí está um aldra que é bom, pensamos na melhor das intenções e caímos na esparrela. Porque aí é que a porca torce o rabo: eles não são aldrabons - são aldramaus.

Com papas e bolos

- O senhor é um bocado mentiroso, não é?
- Minto com quantos dentes tenho...
- E são assim tantos?...

Era, era!

E o que é que eu estava dizer, que não era mentira?...

As mulheres e a idade (quiz)

Quantos anos terá uma mulher que diz que tem cinquenta?...

Eu morra aqui

"Eu morra aqui se não é verdade", disse. E morreu. E era verdade. A vida às vezes parece parva...  

Eu seja ceguinho!, disse o cego

Na política não há mentirosos. Há inverdadeiros. Porque os políticos não dizem mentiras - declaram inverdades. Porque os políticos não mentem - faltam à verdade. Mas justificam a falta. Porque, na política, a verdade é alternativa tal qual a corrente pode ser alternada. Porque na política moderna há narrativas e há desenhos, quer-se dizer: há ficção, fingimento, dissimulação, invenção, sugestão, engodo, engano. Mentira, não. 

Mais depressa se apanha um nariz

Foto Hernâni Von Doellinger

Tectos falsos com garantia

- Estes tectos são mesmo falsos?
- Como judas...

O beijo de Judas e a covid-19

Se fosse hoje, Jesus Cristo não teria morrido. E nós íamos todos para o inferno.

Pelo sinal

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 30 de março de 2021

Fundo do desemprego

Viu um anúncio a pedir idiotas e lá foi ele. Estava no fundo do desemprego e respondia a todos os anúncios. 

P.S. - O subsídio de desemprego foi criado no dia 31 de Março de 1975.

De vaquinha para o desemprego

As viagens de casa para o desemprego e do desemprego para casa custavam-lhes os olhos da cara. Organizaram-se. Agora vão de vaquinha. Para e do desemprego. 

Estou? Estou?! Estou?...

Foto Hernâni Von Doellinger

Cu de Judas

Mandaram-no para o cu de Judas e ele foi. Era escuro... 

Acorda!

Foto Hernâni Von Doellinger

Pura Vázquez 7

Bisbarra desta dor

Quixen coller do vento o salgadío pulo
da flor brillante i-o arelar que fire.

O noitébrego xeo das derrotas.
Os saregos do saibo dos meus beixos,
e a beleza das praias relembradas.

Voráxes do meu tempo e luces nídias
voltarían cal dornas fuxitivas
de ribeiras que alongan ó infinito.

Detrás dun mar lonxíncuo de soidades
ateime contra o gris agraz de nube
coa opulencia marela das mimosas,
os abrochos e os érvedos. O luxo
primaveral de herbiñas e camelias.

vou na bisbarra desta dor chegando
ata un destempo alto e repetido
nas longas estacións que tece o invemo.


"A Música dos Tempos", Pura Vázquez

(Pura Vázquez nasceu no dia 31 de Março de 1918. Morreu em 2006.)

Fermín Bouza Brey 7

Trova das sete naos

Refenda das sete naos
ben ouviredes contar...

Elas eran sete naos
todas de engebre cristal
- sete bágoas orfas de ollos
que as quixeran derramar -,
que c-un paxaro prisado
por un mar témero van
- cada paxaro unha trova
virge de beizo mortal -.

Non teñen ren de aparello,
nin foz onde aparellar.

Levan por treu âs estrelas,
Deus do Ceu por capitán.

Á unha chaman Pensamento,
â outra chaman Libertá.
Os nomes que as outras portan
son de outo paraio real...

Pol-a costa verdegada
que dín de Jacobusland,
no intre da media noite
anda a serea á cantar.
As cántigas que ela deita
na vida ouviredes tal!

Âs aves que van prisadas
dalles moita señardá.

Deus do Ceu aloumiñado
ben as quijera ceibar
e as sete naos pulidas
todas de engebre cristal,
escáchanse nos brandidos
penedos da beiramar.

Os sete paxaros ceibes
â nacenza da mañán,
pol-as grañas infinidas
ben os veredes voar.

No bico locen saudades
da boa Jacobusland;
seu brasón no firmamento
as sete queren formar
que seja voz no silenzo,
lumieira na escuridá
para a terra da lanzalía
entre as terras a lanzal.

Pousaron no setestrelo
eternamente á cantar!


"
Nao Senlleira", Fermín Bouza Brey

(Fermín Bouza Brey nasceu no dia 31 de Março de 1901. Morreu em 1973.)

Caminho 884

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 29 de março de 2021

Contra a discriminação do mercurocromo

Foi notícia: em 2015 Portugal ocupava um honroso nono lugar ex aequo no ranking mundial dos países com maior consumo de álcool. Feitas as contas, cada português (incluindo os portugueses que não bebem) bebeu naquele ano uma média de 12,5 litros de álcool. O relatório da Organização Mundial da Saúde então divulgado era uma vez mais omisso no que diz respeito aos números do consumo de mercurocromo. O que se lamenta.

P.S. - O éter etílico foi usado pela primeira vez como anestésico durante uma cirurgia realizada no dia 30 de Março de 1842. Autor da façanha: o médico e farmacêutico americano Crawford Long.

Cientificamente provado

O álcool afecta de forma diferente o homem e a mulher. O mercurocromo não.

O intolerante

Era realmente uma pessoa com um feitio difícil. Tinha um problema com o álcool. E outro com o betadine. 

Cavalo à solta

Foto Hernâni Von Doellinger

Ovos de Páscoa

Os ovos de Páscoa são de coelha. Evidentemente. 

Na cruz

Foto Hernâni Von Doellinger

Lucila Nogueira 5

A boba da tragédia

Querem que eu seja fria e invulnerável
mas eu persisto a boba da tragédia
o sangue a explosão o peito aberto
e no jogo da vida a mais perplexa

chamam de experiência essa dureza
que enfeia o rosto e os gestos envelhece
eu vivo desarmada e de surpresa
nascendo a cada instante mais liberta

"Peito Aberto", Lucila Nogueira 

(Lucila Nogueira nasceu no dia 30 de Março de 1950. Morreu em 2016.)

Também faço isto muito bem 544

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 28 de março de 2021

Reservado o direito de admissão

Foi má ideia aquele letreiro à porta do consultório - "Proibida a entrada de animais". Era um veterinário...

P.S. - A Escola de Medicina Veterinária foi criada no dia 29 de Março de 1830. 

Gaiolas

- Boa tarde. Faz gaiolas?
- Por medida.
- Faz-me uma?
Fez.
- E para pássaros?...

O amigo dos animais

É veterinário porque gosta muito de animais. Coelhos, perdizes, tordos, javalis e sobretudo toiros. E só lamenta que em Portugal não sejam de morte.

Macaquinhos no sótão

Tinha macaquinhos no sótão. Denunciado pela vizinha, foi detido e preso. Os animais, após vistoria veterinária, seguiram para o jardim zoológico.

Os bois chamam-se pelos nomes

O porco é Ruço. A porca Vadia. A vaca Amarela. O boi Bonito. O touro Osborne. A turina Malhada. O cão Bobi. A cadela Cadela. O cachorro Kent. O gato Pantufas. A gata Gostosa. A cabra Cega. A ovelha Dolly. O cabrito Montês. O cavalo Silva. O burro Velho. O rato Mique. O coelho Branco. O leopardo Negro. A chinchila Mila. O furão Furão. A tartaruga Ninja. A mulher Alheia. O homem Erecto. O peixe Dourado. O surfista Prateado. A sardinha Biba. A pita Arisca. A periquita Alegre. O pombo Armando. O crocodilo Lontra. A lontra Pilantra. O pato Patola. O galo Badalo, a galinha Balbina, o pinto Jacinto e o peru Gluglu.
Assim se chamam os bois pelos nomes.

Lágrimas

Foto Hernâni Von Doellinger

Pastelaria e graças a Deus

Comeu um cardeal, dois jesuítas e três seminaristas. Bebeu quatro taças de Casal Garcia, persignou-se e deu graças a Deus. 

P.S. - Os primeiros jesuítas, os da ordem religiosa, chegaram ao Brasil no dia 29 de Março de 1549.

Via crucis

Foto Hernâni Von Doellinger

Luís Antônio Pimentel 5

A jovem romântica
tirou todos os espinhos
do balcão florido.


Luís Antônio Pimentel 

(Luís Antônio Pimentel nasceu no dia 29 de Março de 1912. Morreu em 2015.)

Abaixo de carro de compras

Foto Hernâni Von Doellinger

Centros históricos

Os centros históricos são como os chapéus: há muitos. Ljubinko Drulovic que o diga e Mário Jardel que agradeça. Mas calcanhar de Madjer só houve um. O resto são imitações.

P.S. - Hoje, 28 de Março, é Dia Nacional dos Centros Históricos.

Domingo do Ramos

O Ramos tem um domingo por ano. É hoje.

Abastecimento

Foto Hernâni Von Doellinger

Armando Silva Carvalho 5

O amor nas escadas do metro

De quem é o braço?
E os cabelos sujos, roídos pela caspa
e falta de água?
E a perna que enlanguesce sob o tecido ruço
que não retém memória?

Meu deus, dirão os velhos ao descer com vagares
as escadas do metro, a mocidade agora
é sexo só e sujo a rolar pelo chão.

Mas quem deita o olhar com mais ternura
e calma
sobre o novelo dos dois
descobre no ar em volta a tessitura tensa
do desejo, um halo amarrotado pela fugaz curvatura
do sonho.

E na lama pérfida que se sobrepõe aos beijos
a parábola fiel às gerações
da terra.

Forçoso será então que caia a chuva,
e cubra a carne sôfrega
exposta à multidão.
Os solitários amaldiçoam toda a inocência
exibida em degraus, caída de bocas tão imundas,
tão perto do inferno
e do êxtase.

O amor pode ser também dalguns que passam
de olhos feridos,
o coração apertado de sangue
e breve compaixão.

Mas só os dois, ali, enleados na energia da alma,
são um palco da alegria do mundo,
gratuito,
à distância da morte e da sua serpente
circular.

São jovens, e estão a soletrar
tão mansos, o horror apreendido pelas bocas
que despontam,
como a planta se eleva do chão endurecido,
como o animal à luz no limiar do medo.

Os dois, ali, expectantes, transparentes, nus,
na natureza de sempre.

"De Amore", Armando Silva Carvalho

(Armando Silva Carvalho nasceu no dia 28 de Março de 1938. Morreu em 2017.) 

sábado, 27 de março de 2021

Camisola poveira, como o próprio nome indica

Foto Hernâni Von Doellinger

As pancadas de Jean-Baptiste Poquelin

O francês Jean-Baptiste Poquelin inventou as famosas pancadas de Jean-Baptiste Poquelin, as quais, secas e consecutivas, batidas no piso do palco, anunciavam ao público o início de um espectáculo teatral. Alguém alvitrou, no entanto, que chamar pancadas de Jean-Baptiste Poquelin às pancadas de Jean-Baptiste Poquelin não tinha jeito nenhum, até soava mal ao ouvido, e que chamar-lhes, por exemplo, pancadas de Molière seria muito mais engraçado. Tinha razão o perspicaz alvitrador. As pancadas mudaram então o nome para Molière e Jean-Baptiste Poquelin também. Assim se passaram as coisas.

P.S. - Hoje, 27 de Março, é Dia Mundial do Teatro. No Brasil é também Dia do Circo.

O papel de uma vida

Entrou em palco e disse:
- Vou sair.
E saiu.

A última viagem

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 26 de março de 2021

O livro

Chegou à última página com o coração dilacerado entre a euforia e o desalento. Que mundo extraordinário, o livro. Quinhentas e sessenta e três páginas cheias de mistério, de sonho, de imaginação, de fantasia, certamente romance, amores e desamores, aventuras e desventuras, acção, suspense, final inesperado. Por outro lado, pensou, acariciando-lhe vagarosamente a lombada, num gemido mal disfarçado de suspiro: - Ah, se eu soubesse ler!...

P.S. - Hoje, 26 de Março, é Dia do Livro Português. No Brasil é Dia do Cacau.

Os livros

Gosto de afagar os livros que leio. Cheiro-os. Protejo-os. Guardo-os com mil cuidados. E deixei de emprestá-los!

Dos livros

Isto só lá vai à lombada. É dos livros.  

Livraria

Transpôs a porta sagrada, procurou instintivamente à direita a piazinha de água-benta que não encontrou, genuflexou e benzeu-se num silêncio e num respeito que só vistos, caminhou lentamente até à estante, no mais profundo recolhimento, pegou no livro como quem pega em asa de borboleta ferida, afagou-o, ao livro, abriu-o como que a medo, em ângulo recto não mais, folheou-o sem destino mas com mil cuidados, contemplativo, num deleite adivinhatório de santidade gozosa. Tinha acabado de entrar numa livraria.

Kafka à beira-mar

Entro no metro. Viagem curta, de Matosinhos Sul até à Senhora da Hora, apenas quinze minutos e mudança de linha para Vila do Conde. Sento-me num daqueles bancos frente com frente, éramos quatro, dois de cada lado e, se fosse futebol, a bola seria redonda. Ninguém conhecia ninguém. Os dois rapazes e a rapariga, os três mais para os trinta do que para os vinte, cabeças para baixo e graves, rapam dos bolsos os respectivos telemóveis como se se conhecessem de outras encarnações e estivessem combinados, e jogam, ela, e mensajam, eles, automaticamente, ignorantes uns dos outros, numa simbiose perfeita. Eu vou à mochila e tiro o livro. "Kafka à Beira-Mar", de Haruki Murakami. Pensei: é o que diz a minha mãe - sempre a destoar, eu.  

A minha cara

Ofereceram-me um livro. "É a tua cara", disseram-me. O livro resumia-se a uma fotografia. E era realmente a minha cara.

Há palavras que nos beijam como se tivessem boca

A senhora sentada à minha frente faz croché - que raro. Eu leio um livro. O resto do metro espreita o telemóvel, fala para o telemóvel, escreve no telemóvel, joga no telemóvel, tira selfies com o telemóvel, põe o telemóvel entre pernas, aconchegadíssimo às intimidades, em alarmante modo de vibração. O metro inteiro é um telemóvel amarelo de duas carruagens, dois refractários e razoáveis orgasmos. Como quem não quer a coisa, a senhora sentada ao lado da senhora sentada à minha frente que faz croché desvia um olho do telemóvel e procura-me a capa do livro. Chega lá. Abana a cabeça, sentenciosa, faz cara de caso, deita-me uns olhos, ambos, num misto de decepção e de censura. Percebo-a: não leio José Rodrigues dos Santos. Leio "Poesias Completas & Dispersos", de Alexandre O'Neill, calhamaço como os do outro, mas calhamaço sem culpa de autor, calhamaço que dá gosto. Folheio-o com o respeito e o cuidado de quem folheia uma bíblia. E é. Vou naquela parte em que O'Neill me diz "A estouvaca": deitada atravessada / na estrada / a malhada / vai ser atropelada / foi. Palavra do senhor.

Mais valia estar calado

Queixei-me. Do meu irmão. Que me ofereceu um livro com oitocentas e noventa e cinco páginas. E escrevi: "É a prova que faltava. Aquele gajo não me grama..."
Foi pelos meus anos. Agora pelo Natal o meu irmão ofereceu-me, do mesmo autor, um livro com 362 páginas. Francamente, senti-me desconsiderado. É um bocadinho como - e a literatura que me perdoe - passar de cavalo para burro. Eu estava à espera de um livro com pelo menos duas mil setecentas e trinta e oito páginas e sai-me isto. Esta como hei-de dizer, este digamos assim, este... opúsculo!
Realmente. Aquele gajo não me grama...

Escritor e tudo

É um autor impaciente e impulsivo. Publicou o seu primeiro livro sem sequer o ter escrito, e a obra revelou-se o sucesso que se vê: vai na décima sétima edição e já ganhou quatro prémios literários - um, internacional. Para além disso, é também pintor, performer, crítico de cinema, prefaciador, antiquário, amigo n.º 1 de Manuel António Pina, forcado amador, talhador de trasorelhos, apresentador de telejornais e prepara-se para lançar o seu segundo disco de originais.

És cá dos meus

O homem caminhava vagarosamente ao lado da mulher. Curvado pelo peso de, fiz as contas, setenta e tantos anos bem medidos, caminhava ainda assim com uma dignidade evidente. O homem velho, de casaco e digno, pé ante pé até ao café de praia e ao milagre do sol-pôr, levava as mãos atrás das costas. E nas mãos, reparei, um livrinho da Colecção Vampiro, a antiga: "O Imenso Adeus", de Raymond Chandler.
Caramba!, és cá dos meus - pensei. E apeteceu-me dar-lhe um abraço...

Biblioteca pública

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 25 de março de 2021

Trofafafe, trofafafe, trofafafe...

Houve um tempo em que Fafe era o fim do mundo. Tenho testemunhas. Gente que se metia no comboio em Ouagadougou ou em Anchorage, vamos um supor, às tantas desprecatava-se, passava pelas brasas e quando acordava já estava em Fafe, porque não havia volta a dar, o mundo acabava ali, numa parede à frente do nariz, rés-do-chão da Rua do Retiro. Era também o fim da linha da CP. Ou o princípio, consoante o ponto de vista. Mas, chegando a Fafe, saía-se do comboio e da estação, subia-se a rampa até ao Zé da Menina, respirava-se fundo, olhava-se para o Largo e fazia-se vida. Se forem num instante à minha terra, ainda vão encontrar quem conte como fez. Perguntem ao Gino.
Depois a automotora começou a madrugar só para mim, para me trazer ao namoro ao Porto e tornar-me a casa à noite, Fafe desistiu do comboio e queixou-se muito quando lho "tiraram".
Hoje o fim do mundo é em Guimarães. É lá que está o muro. Para além dali, nada. É um fim do mundo indoor, asmático e com luzinhas de discoteca, uma boa merda à beira do nosso fim do mundo antigo, que era outra categoria - ao ar livre, com couves, tomates, cheiro a alfádega e só saúde. Ainda por cima, o nosso fim do mundo era feminino: dizia-se em Fafe, não sei explicar porquê, "a" fim do mundo.
O mundo está, portanto, mais pequeno. Isto é científico. Mingou 14 quilómetros. Este aperto mundial, de mais a mais num tempo em que os bons vão caindo como tordos, daria jeito para que nos aconchegássemos um bocadinho, trocássemos olás de boca, para que nos abraçássemos se fosse o caso, e no entanto apartamo-nos cada vez mais uns dos outros, de cabeças enfiadas em caixinhas de cores com teclas ou figurinhas de arrastar com os dedos. E agora é a pandemia a afastar-nos. Parece que estamos oficialmente proibidos uns dos outros.
Ia-me esquecendo: a outra conclusão a tirar, e igualmente científica, é que Fafe já não é deste mundo.

P.S. - Publicado originalmente no dia 23 de Novembro de 2013. No dia 25 de Março de 1977 a Companhia de Caminhos-de-Ferro Portugueses, SARL passa a CP, empresa pública. Nesse mesmo dia realiza-se a última viagem comercial de uma locomotiva a vapor, em via larga, em Portugal. A espécie de onomatopeia do título era muito usada no tempo em que havia comboio.

Coitados dos comboios

Quando me dizem que a greve na CP "vai perturbar comboios" eu acho mal e, palavra de honra, fico com pena. Dos comboios.

Campanhã blues

Foto Hernâni Von Doellinger

O bom ladrão

Fafe, algures pelos finais da década de sessenta do século passado. Na sala de aula da agora desaparecida Escola da Feira Velha, no meio da parede, por cima do quadro negro, um Cristo crucificado. Carmona à direita da cruz, Salazar ironicamente à esquerda. Eu, que naquela altura já tinha umas luzes bíblicas, nunca percebi qual destes dois era o bom ladrão...

P.S. - Publicado originalmente no dia 26 de Julho de 2018. No dia 25 de Março de 1928 o general Óscar Carmona foi eleito presidente da República. Era candidato único. A oposição estava proibida. Curiosamente, o dia 25 de Março é dedicado pela Igreja Católica a São Dimas, o bom ladrão.

quarta-feira, 24 de março de 2021

Super Pop Limão Reserva 2017

Era um escanção com um paladar e um olfacto apuradíssimos, premiados. Até adivinhava o detergente de lavar os copos...  

P.S. - Hoje, 24 de Março, é Dia do Escanção.

A fome e a vontade de comer

Entreguei a urina para exame. O técnico, mais analítico era impossível, sem sequer olhar para mim, automaticamente, perguntou:
- Está fresca? Trouxe directo do frigorífico?
E eu fui franco:
- Não. Fiz há pouco, ainda está quentinha.
- É pena.
Com gestos elegantes, competentes, o técnico pegou no boião e verteu o seu conteúdo num balão de pé alto, com o cuidado milimétrico de deixar o copo um pouco abaixo de meio cheio. E disse, ainda sem me pôr os olhos:
- Espere aí um bocadinho, que já leva os resultados.
E eu esperei, todo contente com a novidade. O Serviço Nacional de Saúde vai de vento em popa.
Delicadamente, o técnico pegou no copo pela base, afastando-o de si com todo o respeito, e começou a girá-lo vagarosamente, olhando a bom olhar o seu conteúdo, no contraste com a parede branca. E tomou notas. Colocou o copo sobre a mesa e rodou-o em pequenos círculos, primeiro devagar, depois acelerando, para finalmente o levar ao nariz, uma vez, duas vezes. Inalou, compenetradíssimo, e tomou notas. Sorveu uma pequena quantidade de líquido, mantendo-o na boca sem engolir, apreciou-o por momentos com todo o profissionalismo e finalmente cuspiu-o. E compilou as notas:
- Muito bem. Ora, portanto, cor amarela palha, aspecto límpido, reacção a 6,0 e densidade a 1,013. Proteínas, glicose, corpos cetónicos, pigmentos biliares, nitritos e sangue não detectáveis. Urobilinogénio a 0,2 e atenção a esses leucócitos. Estão de 10 a 25, vá ver isso. Células epiteliais e eritrócitos, 0 a 2...
E eu, à rasca:
- Está no gozo, não está?
- Não. É a sério! - respondeu-me o técnico, fitando-me enfim olhos nos olhos e passando a explicar:
- Então você não me conhece? Nunca me viu na televisão? Eu sou, quero dizer, eu era provador de vinhos, escanção famoso, abençoado por um paladar indiscutivelmente gourmet, milimétrico, definitivo. Era dono de uma considerável cadeia de restaurantes e garrafeiras de alto lá, mas quê, veio a crise. A crise antes da epidemia. A crise da fartura, digo melhor: Portugal hoje em dia divide-se em duas partes, os chefes de cozinha e os fadistas, e tanto uns quanto os outros são mais que as mães. Eu, que, não é para me gabar, até me desunhava razoavelmente na fadistice, meti-me nos comes e bebes, mas fiz mal. Com tanta gente no ramo, acabei por cair, como o Newton avisara. É muito cão ao mesmo osso. Que remédio, abandonei a cozinha, despedi-me e fui para longe. Resolvi falir em grande estilo e pus anúncio no jornal. Arranjei emprego aqui no laboratório do hospital a fazer de conta das minhas antigas competências. Quer saber? Os aparelhos de análises à urina estão avariados e inactivos há mais de meio ano, não há dinheiro para camas quanto mais para os mandar arranjar, e, olhe, não me posso queixar, juntou-se a fome com a vontade de comer.
- Ó valha-me Deus, também analisa fezes? Isto é: para além de provador de mijo, também come merda?...

Diplomaticamente falando

Foto Hernâni Von Doellinger

Gonzalo López Abente 7

Dentro do seu corazón

Vina chegar nun abrente,
envolveita na alborada
e de roibéns coroada
a neve da súa frente;
no fulgor tremelucente
dun colar de pedraría
o milagre relucía
da belida face, como
cando Deus abriu o gromo
de lus do primeiro día.

Vina chegar no tesouro
mergullada da fervenza
que o seu cabelo destrenza
nunha fumarada de ouro;
presa nun ensoño louro
xermolando na paixón
e a cabalgar na ilusión
voadora dun salaio,
tiña máis gromos que maio
dentro do seu corazón.

Vina cruzar pola vía
frorida da mocedade,
vestida coa maxestade
escentilante do día;
o seu ollar refulxía
no zénit; con emozón
desfóllase unha canzón
e ao compás dos seus rumores
abalan logradas frores
dentro do seu corazón.

Vina ir pola vereda
melancónica da tarde;
na súa cabeza arde
vermella cofia de seda,
lourido o solpor enreda
coas xoias do seu xubón
que a negra desilusión
deixa, nun xiado sono,
máis follas secas que outono
dentro do seu corazón.

Vina ir polos vieiros
da nuite, na face súa
rebrila o livor da lúa
e o bagullar dos luceiros,
enloitada de nubeiros,
desfrorando unha oración,
pola tebrosa rexión
marcha, con dorido porte,
levando o frío da morte
dentro do seu corazón.

"Decrúa", Gonzalo López Abente

(Gonzalo López Abente nasceu no dia 24 de Março de 1878. Morreu em 1963.)

Caminho 883

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 23 de março de 2021

Weather report

- Isto é que tem estado!...
- Realmente...
- E então hoje!...
- Lá isso...
- O que é que eles dão para amanhã?
- Eu...
- Pois. Então até logo, vizinho.
- Vá pela sombra, vizinha.
É, o elevador aproxima muito as pessoas. O elevador e o boletim meteorológico.

P.S. - Hoje, 23 de Março, é Dia Mundial da Meteorologia. Por outro lado:  o primeiro elevador de Elisha Graves Otis foi instalado em Nova Iorque no dia 23 de Março de 1857.

O tempo é o melhor remédio

"Céu pouco nublado ou limpo. Vento em geral fraco do quadrante leste, temporariamente de noroeste
durante a tarde. 
Pequena subida da temperatura máxima. Acentuado arrefecimento noturno. Ondas de noroeste com 1 a 1,5 metros, passando gradualmente a ondas inferiores a 1 metro." - de acordo com a previsão do Instituto Português do Mar e da Atmosfera para hoje. E pronto: é dinheiro que poupo na farmácia.

E para a semana?

- Para a semana eles dão chuva.
- E que se coma, nada?... 

Será do tempo?

Dias esquisitos estes: tanto chove como faz sol. Será do tempo?

segunda-feira, 22 de março de 2021

Presunção e água-benta

Entrou na pequena capela e persignou-se com toda a presunção. É que não havia água-benta...  

A gota de água

- Agora é que foi a gota de água - disse o brincalhão, pousando desajeitadamente o copo vazio do seu décimo terceiro uísque. Posto isto, vomitou com assinalável pertinácia em cima do excelentíssimo público.  

Cuidado com as constipações

Água vai! Mas vinho ainda vai melhor... 

Um Tales de Mileto

A água é o princípio de todas as coisas; o vinho é o fim - dizia o filósofo antigo. Um tal... um tal... um Tales de Mileto.

Também faço isto muito bem 543

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 21 de março de 2021

Uma boa trancada

Fafe. No monte de São Jorge havia o Pionono, assim com maiúscula, é justo que se diga. Pionono era nome próprio, sítio, geografia. "Vou ao Pionono". Ia-se ao Pionono. E o Pionono era naquele tempo muito mais do que um acomodado cabeço, crescia sem fim à vista, misterioso, palpitante, labiríntico, agigantava-se floresta, cenário de filme, de livrinho de aventuras, de fantasia e crime. Ao Pionono ia-se aos pinheiros pelo Natal, ia-se esgaçar umas pernadas de carvalho para o trono da cascata do Santo António, ia-se aos fentos ou ao mato para o eido ou às giestas secas para espertar a lareira do chão da cozinha, ia-se brincar aos cobóis, ia-se cagar ao monte e ia-se dar umas trancadas, e o que eu gostava da palavra trancadas, mesmo sem conseguir então alcançar, coitadinho, o que ela quereria dizer.
O Pionono hoje é casas e está bem. Uma rua a descer para quem vem e, a mesma, a subir para quem vai. À merda. Monte é que... viste-lo?
E faz falta. Adaptando o meu Nobel Lobo Antunes, nem é homem nem é nada quem nunca deu uma boa trancada no monte. Eu já.

P.S. - Hoje, 21 de Março, é  Dia Mundial da Árvore e Dia Internacional da Floresta. É também, entre outros, Dia Nacional para a Eliminação da Discriminação Racial, Dia Internacional da Astrologia, Dia Universal do Teatro, Dia Mundial da Poesia e Dia Mundial da Marioneta. Realmente um dia sumamente positivo, como diria o Tomás.

Traz uma árvore também

Era uma localidade um bocadinho estranha, porém exuberantemente moderna e cosmopolita. Nas suas principais entradas, a autarquia colocara frondosas tabuletas que avisavam os forasteiros: "Se quiser sombra, traga a sua própria árvore".

Branca de Neve, o Capuchinho e os Porquinhos

Branca de Neve brincava às casinhas com a casa dos sete anões. Com os anões brincava aos médicos, há quem diga. E a casa era na floresta.
Capuchinho Vermelho ia levar o merendeiro à Avozinha, mas apareceu-lhe o Lobo Mau que a queria comer a ela, Capuchinho. E a casa da Avozinha era no meio da floresta.
Se alguém souber dizer onde eram as casas dos Três Porquinhos, não me admiraria que fossem na floresta. E, já agora, "porquinhos" porquê?...

Descobri a árvore do meu avô

Foto Hernâni Von Doellinger

O meu avô da Bomba jurava que nunca pôs nem nunca na vida poria pé na praia. Que era muito sol ao desamparo, areia demais para a sua camioneta. Queixava-se: a água estava constantemente molhada e, ainda por cima, salgada. O meu querido avô era "uma pessoa muito doente" e precatada quanto ao sal. Portanto, o sol e o sal. "Se ainda ao menos houvesse a sombrinha de uma árvore", dizia, molageiro, aí que contassem com ele nem que fosse só para a soneca da tarde. Mas o meu avô era um exagerado, um mentirosinho sem tenção de ofensa - e aquela jura eu sabia que era a mangar...
Para o avô da Bomba, como para todo o fafense que então se prezasse, a palavra praia queria dizer Póvoa de Varzim. Exactamente. Ir à praia e ou ir para a praia (conceitos que importa diferençar), era ir à Póvoa ou ir para a Póvoa, via Famalicão. E no entanto o meu avô conhecia também satisfatoriamente os longínquos areais de Ofir, da Figueira da Foz e da Nazaré, o que já não era brincadeira! E de onde é que lhe vinha esta extraordinária mundivivência, este cosmopolitismo fafense tão antes do tempo? Pois bem: o meu avô organizava excursões - dois dias ao Alto Minho, com pernoita em Viana do Castelo, dentro do autocarro, no Largo da Agonia a esbordar de camionetas e parolos como nós, e umas senhoras cá fora a fazerem café de cafeteira em máquinas a petróleo, à luz do petromax até que o sol nascesse; três dias a Fátima. Ano sim, ano não. Partida e chegada no quartel dos Bombeiros, sempre, então na Rua José Cardoso Vieira de Castro, ao lado da garagem do Zé Bastos e entre os dois palacetes. Com as estradas que tinha, Portugal era naquele tempo um país imenso. Ir de Fafe aos Arcos de Valdevez, por aquela altura, era como embarcar por engano numa expedição ao fim do mundo...

O meu avô era um videirinho, já aqui contei. Tinha casa e salário de quarteleiro dos Bombeiros, não sei se era muito ou pouco, mas não perdia oportunidade de fazer dinheiro extra no que lhe estivesse mais à mão: o tasquinho na cave do quartel, os tremoços, os bolinhos de bacalhau e o vinho na Festa da Bomba, a aguardente e o vinho, sempre o vinho, nas sessões nocturnas do cinema ao ar livre na parada das traseiras, muito antes de a sétima arte descer ao campo de futebol, a banca de sapateiro por baixo das escadas que subiam para o salão de festas, umas refeições especiais encomendadas por um certo grupo de amigos, respeitosos admiradores das mãos de ouro da minha avó para a cozinha. Uma vez há cinquenta anos o papa Paulo VI veio a Fátima e pouca gente tinha televisão em casa. No salão dos Bombeiros foram montados um projector e uma tela para a transmissão em directo e em "ecrã gigante", com entradas a pagar. A sala encheu, o dinheiro da receita revertia naturalmente para a Associação Humanitária, mas de certeza que o avô também conseguiu sacar dali algum, nem que fosse a vender rebuçados para a tosse ou cascas de amendoins...
Ora é aqui que encaixam as excursões, que os candidatos a excursionistas pagavam em suaves prestações semanais desarriscadas nuns cartõezinhos que o meu avô mandava fazer na tipografia. Isto para aí durante um ano. O avô da Bomba fazia a cobrança aos sábados ou domingos de manhã, não sei precisar. Ia de motorizada e às vezes levava-me, primeiro numa Florett e depois na Lambreta, uma Vespa azul, antes e depois de haver sentidos proibidos nas ruas de Fafe. Para o meu avô nunca houve, o caminho foi sempre o mesmo e tinha sempre razão quando lhe apitavam ou gritavam para não ir por ali. Eu, nem pio...

(A Florett tem muito que se lhe diga em Fafe, era um veículo de pecado, mas por ser verdade aqui declaro que o meu avô nunca foi dado a essas actividades por assim dizer extracurriculares. A Florett calhou-lhe, e só isso...)

Mas as excursões. Eram viagens épicas, cheias de cheirinho bom a merendeiro e muitas paragens para "mudar a água às azeitonas", enjoos e borracheiras de caixão à cova. Cheiravam também a gomitado, a  naftalina, a sapatos novos, a botas ensebadas de fresco, a chulé, a urina, a tabaco, a suor, a desodorizante Lander, a perfume barato, a brilhantina, a laca, a mundo. A coberto da noite soltavam-se uns traques enfeitados com risinhos solertes que ajudavam à festa. A camioneta avariava, pessoas perdiam-se. Cantava-se o "Treze de Maio", o "Queremos Deus" e "O carrapito da Dona Aurora". Rezava-se o terço ao passar a Ponte de Fão, sobre o rio Cávado, porque constava que a estrutura estava a cair de podre. Morreríamos todos muito bem. Na Póvoa as mulheres arregaçavam as saias, os homens arregaçavam as calças e os miúdos ficavam em cuecas ou em pelote, consoante a idade, e todos se agarravam com quanta força tinham à grossa corda que ligava o mar ao areal, brincando aos sustinhos e trambolhões de felicidade histérica ali no sítio onde o mar enrola na areia, que também se cantava.
Sei disto tudo porque estive lá. Que me lembre, fui uma vez a Fátima e outra ao Alto Minho, esta ainda com o meu pai. O meu irmão Lando ainda não tinha nascido. Eu, o Nelo e a Nanda queríamos ir sempre, mas não podia ser. O meu avô não dava borlas, nem aos netos. (Na verdade, o meu avô não dava nada a ninguém. Isto é: dava os bons-dias mas pedia recibo.) Ia portante só um, e no colo da mãe, mais do que isso seria prejuízo...
O meu pai, que gostava de fazer rir a minha mãe, dizia aos dois que ficavam: "Não é preciso chorar, vós também ides. Na sombra..."

Tanto relambório para chegar aqui: herdei do meu avô o horror à praia em dias de sol e gente, mas tenho a árvore que ele reclamava. Encontrei-a em Matosinhos, mesmo ao pé da porta, encostada à esplanada do Lais de Guia. Passo por lá todos os dias e vejo o avô à sombrinha, com os pés mansamente enfiados na areia morna. Gosto de o ver assim, peço-lhe a bênção e beijo-lhe a mão. Sossego as saudades. O avô da Bomba era molageiro e videirinho, forreta do piorio, mas é meu.

P.S. - Publicado originalmente no dia 12 de Maio de 2017. E repetido quando que me apetece.

Havia um pessegueiro na ilha

E era manifestamente pouco.

Imponderabilidade

Foto Hernâni Von Doellinger

Dinis Machado 9

II Soneto para Cesário

Se te encontrasse, agora, na paisagem
Nocturna dos fantasmas da cidade
Contava-te dos nossos pobres versos
No teu rasto de sombra e claridade.

Contava-te do frio que há em medir
A distância entre as mãos e as estrelas
Com lágrimas de pedra nos sapatos
E um cansaço impossível de escondê-las.

Contava-te - sei lá - desta rotina
De embalarmos a morte nas paredes
De tecermos o destino nas valetas.

De uma história de luas e de esquinas
Com retratos e flores da madrugada
A boiarem na água das sarjetas.

Dinis Machado, no blogue Aspirina B, de José do Carmo Francisco

(Dinis Machado nasceu no dia 21 de Março de 1930. Morreu em 2008.)    

Pinkérrima

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 20 de março de 2021

Dia da Felicidade e assim sucessivamente

Hoje é Dia da Felicidade. E também da Clementina, da Adelaide, da Iracema, da Adosinda, da Felisberta, da Miquelina, da Leocádia, da Emerenciana, da Umbelina, da Hortênsia da Perpétua e assim sucessivamente. Aquele gajo tem uma agenda realmente de fazer inveja...

P.S. - Hoje, 20 de Março, é Dia Internacional da Felicidade, manda a ONU. No Brasil é também Dia da Agricultura.

Eis a (verdadeira) questão

A felicidade é questão de um gajo se habituar.

A felicidade agarra-se pelos tomates

Jasmina era uma mulher feliz. Fazia o que queria do marido. Em casa mandava ela, e mandava nele também. O homem gostava assim. As vizinhas e amigas de Jasmina - à qual, pelas costas, chamavam Felismina - perguntavam-se, roídas de inveja: "Como é que ela consegue, como é que ela consegue?!..."
E um dia Jasmina explicou: "Trago-o bem preso pelos tomates, um bocadinho mais acima..." 

Ao virar da esquina

A Felicidade estava sempre ao virar da esquina. Depois, pumba!, hospital...

O caminho para a Felicidade

É fácil, facilíssimo. Sempre em frente até ao largo da igreja, vira à direita pela rua com árvores, passa pelo campo da bola e pela sede, torna à esquerda e logo na esquina, encostada ao café e depois do funileiro, há uma casa pequenina com porta vermelha e vasinhos floridos na janela: é aí que ela mora. Ela e os dois filhos. Cuidado com o cão!  

Felicidade é coisa pouca e tudo

Vou a Oliveira de Azeméis, por exemplo, e levo uma data de "Ó jovem!", geralmente debitada por pessoas de bandeja na mão e com idade para serem, vá lá, meus netos. Afino! Ai, se soubessem como eu afino!... Por outro lado: vou a Fafe, por exemplo, e as pessoas, algumas com idade para serem, vá lá, meus filhos, chamam-me "Meu rico menino!", e eu gosto. Fico feliz da vida!... Quer-se dizer: todas as terras são por exemplo, mas algumas são mais por exemplo do que outras. E neste particular, deixem-me que vos diga, Fafe é, modéstia à parte, uma terra por exemplíssimo...

Alcançando a Glória

Uma recuperação verdadeiramente sensacional. Alcançou a Arminda, alcançou a Celeste, alcançou a Mariana, alcançou a Odete e até alcançou a Felicidade. Só lhe faltava alcançar a Glória.

E depois diz-me se foi bom

Foto Hernâni Von Doellinger

Reinaldo Ferreira 5

Nasci poeta abstruso

Nasci poeta abstruso.
Amo as palavras que estão
Entre o arcaico e o difuso
No cerne da indecisão.

Prefiro adrede e gomil.
Digo delíquo e fanal.
E só descrevo um funil
Em termos-vaso-de-graal.

Mas nesta minha importância,
Neste sol que me irradia,
Nem Deus preenche a distância
Que vai de mim à Poesia.

"Um Voo Cego a Nada", Reinaldo Ferreira

(Reinaldo Ferreira nasceu no dia 20 de Março de 1922. Morreu em 1959.)

Menotti del Picchia 7

Tarde fazendeira

Tarde cabocla
com banzo de pretos nas sombras,
carícias de escravas mulatas
nas palmas dos longos coqueiros.
Um rouco ribombo de bombo
nos ecos; um trilo de estrídulos grilos
nas moitas; tarde cabocla
com um sol de miçangas, de gangas vermelhas
nos flancos das serras,
com um hálito fresco de folhas pisadas, de verdes pomares
pejados de frutas-de-conde, de mangas maduras,
com aros de lua nascente nos céus e nas águas,
tarde cabocla
com vagas preguiças de redes nas ramas,
com longos bocejos de luz nas encostas,
foi numa tarde como esta
que vieram ao mundo
os mestiços da raça...

Menotti del Picchia

(Menotti del Picchia nasceu no dia 20 de Março de 1892. Morreu em 1988.)

Na minha rua passa o mar 107

Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 19 de março de 2021

Não há pai

"Não há pai para ti, meu rico filho!", dizia-lhe a mãe, cheia de orgulho e vaidade. O rapaz por acaso não apreciava...

Como o mundo é pequeno (e um bocado parvo)

- Perdoar-me-á que o interpele assim sem mais nem menos, sem o conhecer de lado nenhum, mas o caro senhor é um bocado parvo, não é?
- Sou, com efeito, um bocado parvo, mas como é que o caro senhor adivinhou?
- Um pressentimento. É que eu também sou...
- O caro senhor também é um pressentimento?
- Não, não, caro senhor: também sou um bocado parvo.
- Como o mundo é pequeno! Somos então praticamente primos...
- Parentes, pelo menos...
- E, mal que lhe pergunte, o caro amigo é um bocado parvo por parte da senhora sua mãe ou por parte do senhor seu pai?
- Por parte do senhor meu pai.
- Mas isso é extraordinário, caro amigo, porque eu também sou...
- O caro amigo também é um bocado parvo por parte do senhor meu pai?
- Não, não, caro amigo: sou um bocado parvo mas por parte do senhor meu pai.
- Oh, que pena! Quase que éramos irmãos, não é?... 

Fuja, mãe, que o pai vem bêbado

O miúdo enfiou a cabeça na porta do tasco e gritou:
- Ó pai, a mãe manda dizer prò pai vir pra casa!...
- Vai tu...
- Ó pai, a mãe mandar dizer que o comer está pronto!...
- Então vai, antes que arrefeça...
- Ó pai, a mãe manda dizer que, se o pai não vier já, mete-lhe a comida no balde do lixo!...
- E faz muito bem...
- Ó pai, a mãe...
- Moço!... Diz à tua mãe que eu mando dizer que me estou nos tintos...

O dia de amanhã

"Nunca se sabe o dia de amanhã", dizia ele constantemente ao filho. E repetia e repetia e repetia. "Nunca se sabe o dia de amanhã". Cansado de ouvir o pai, o filho ofereceu-lhe um calendário.

Um pinóquio, dois pinóquios, três pinóquios

Uma vez eu fui a Itália e trouxe um Pinóquio ao meu filho. O Kiko cresceu e uma vez foi a Itália e trouxe-me dois Pinóquios. Eu nunca mais fui a Itália e, é claro, sinto-me em dívida...  

Em segurança

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 18 de março de 2021

Roldão na AD Fafe

O antigo guarda-redes Mário Roldão morreu hoje, aos 84 anos. As notícias dizem que Roldão representou Leixões e Vitória de Guimarães e que passou também pelo FC Porto e pelo Vila Real. Esqueceram-se do Fafe, onde Roldão chegou creio que em 1970, vindo de Guimarães com o colega Daniel Barreto, que iniciou a época como jogador-treinador. Os registos poderão ser omissos, mas eu sou testemunha.

Antes pelo contrário

O Clemente era assim mesmo: impiedoso...

Ronaldo Cunha Lima 6

Indução

A dúvida, afinal, esclarecida:
ela jamais se foi da minha vida.
Minha vida, sem ela, é que se foi.

"Breves e Leves Poemas"Ronaldo Cunha Lima

(Ronaldo Cunha Lima nasceu no dia 18 de Março de 1936. Morreu em 2012.)

Siga a marinha

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 17 de março de 2021

A máscara e o cigarro

O uso obrigatório de máscara na rua deverá prolongar-se até pelo menos 5 de Julho. A não ser que se tenha um cigarro na mão - mesmo que apagado, electrónico ou de chocolate. Nesse caso a máscara não é precisa para nada...

Reescrevendo a história

Passou o João Ratão e disse: - Ó Laurindinha, vem à janela!... 

Multifunções

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 236

Os engolidores
Engolidores, há-os. Como por exemplo engolidores de sapos, metaforicamente falando, engolidores de fogo, que na verdade não engolem mas borrifam, e engolidores de espadas. Engolidores de copas e engolidores de ouros não sei, mas engolidores de paus também há-os.

Quem dera que chova!
O sentido de responsabilidade dos portugueses em relação às normas de confinamento mede-se pela chuva. Chove, e o país inteiro fica em casa, na cama, fazendo de conta que teletrabalha. Faz sol, e toda a gente salta para a rua, aos magotes, autênticos ranchos, sem máscara nem distância. O resto é treta.

Testes em massa
O Governo anuncia testes em massa. Sim, evidentemente testes em massa, estou absolutamente de concordo. Mas testes em arroz? E testes em batatas? Que é deles?... 

Óculos com a bateria em baixo são uma chatice
É desagradável. Pousar os óculos e depois não saber onde. E precisar deles para os procurar. E pegar no telemóvel para lhes ligar, obrigando-os a darem sinal de si. E então lembrar-me de que nunca pus os óculos a carregar.

Guerra das Rosas
A Rosa Maria e a Rosa Beatriz andam sempre à bulha por causa do Anacleto Lingrinhas. Lá no bairro dizem que é a Guerra das Rosas.
 
Reciprocidade
Serviço de esplanada tem de ser pedido ao balcão. Serviço ao balcão tem de ser pedido na esplanada. Obrigado pela compreensão. 

Por trás de uma grande mulher
Por trás de uma grande mulher, o homem geralmente não se vê.

terça-feira, 16 de março de 2021

A Lugo, a Tui, a Vigo e a Santiago de Compostela

Foto Hernâni Von Doellinger

Levantamento das Caldas

O Levantamento das Caldas, tentativa de golpe militar contra o Estado Novo caetanista, ocorreu no dia 16 de Março de 1974 e, apesar de falhado, serviu de rastilho para a Revolução de 25 de Abril. É também chamado Intentona das Caldas, Revolta das Caldas ou Golpe das Caldas - tudo nomes bem menos sugestivos e mais ajuizados. É. Deixem-se de malandrices! Levantamento e Caldas, na mesma expressão, trazem logo à conversa fradinhos malacuecos...

Portugal e o postigo

Foto Hernâni Von Doellinger

As virgens e a bisnaga

Vosselências não andam de transportes públicos, pois não? Se calhar nem vão compreender o meu drama, mas eu vou tentar explicar:
Eu ando de transportes públicos e não sei o que deu agora ao raio do mulherio. Entram no autocarro ou no metro, alapam o traseiro e a primeira coisa que fazem é sacar da bisnaga. E esfregam, esfregam, esfregam. É a nova moda, aproveitar as viagens em transportes públicos para esfregar as mãos com creme amaciador, como se estivessem sentadas na sanita lá de casa. Mais do que uma moda, é uma epidemia: começa uma, aperta a bisnaga, faz aquele ruído viscoso que até lembra pecados velhos, e logo as outras todas lhe imitam o gesto, sacam também da bisnaga e nhanha, nhanha, nhanha. Sinto-me de repente no meio de um bacanal para o qual nem sequer fui convidado. Aquilo mete-me uns nervos!...
E depois estas gajas ainda se armam em virgens ofendidas quando eu me descalço e começo a cortar as unhas dos pés em cima do banco da frente...

P.S. - Publicado originalmente no dia 24 de Junho de 2011. Segundo reza a mitologia greco-romana, hoje, 16 de Março, é o primeiro dia do Bacanal - festival de Dionísio (Baco, para os Romanos), deus do vinho, dos grãos, da fertilidade e da alegria.

Orgia (o princípio)

Alguém disse: temos de ser uns para os outros. E assim começou a orgia.

Ai verdinho, meu verdinho

Dionísio tinha um problema: o fígado.

segunda-feira, 15 de março de 2021

Dos tomates e do decoro. E vice-versa.

Foto Hernâni Von Doellinger
Em Fevereiro de 2020 saiu à rua uma campanha publicitária ao tomate pelado Guloso. Uma desnecessidade para mim, que na cozinha sou utilizador habitual, para não dizer compulsivo, deste produto. Ora bem: há coisa de três anos o tomate pelado Guloso, como quem diz o tomate nudista, começou a aparecer-me cá em casa vestido, isto é, com pele. Seria pudor? Como já aqui contei, aproveitei a última década para passar de bovino come e cala a guerrilheiro da reclamação, e não me tenho dado mal. Dei-me até muito bem num gramático protesto a propósito de uma alheira de caça à qual faltava a cedilha, como mais abaixo se verá.
Que se segue: resolvi contactar o Sr. Guloso ele próprio, perguntando-lhe, preocupado e mais respeitosamente era impossível, se por acaso não estaria o Excelentíssimo passando por alguma crise de escrotal decoro (há que chamar as coisas, neste caso os coisos, pelo nome), e aproveitei para me queixar do cada vez maior verdor e da cada vez maior acidez do produto em questão. O tomate pelado, não esqueçamos.
O meu e-mail teve resposta em quinze dias. Uma resposta profissional, simpática e, pareceu-me descortiná-la, com uma pitada de ironia no estrugido, que foi o que melhor me soube. Fui informado de que os tomates de que eu reclamava tinham sido produzidos "na campanha de 2017, que, por condições extremas do tempo (chuvas em final de Abril e Maio), se traduziu em tomate mais ácido, com menos cor e que se separa da pele com mais dificuldade."
Como forma de "atenuar a imagem menos positiva" que em mim lamentavelmente provocara, o Sr. Guloso revelou a intenção de enviar-me "um cabaz de produtos da marca, incluindo pelado da campanha de 2018, na expetativa de" me "fazer chegar um tomate pelado mais condizente com o nome". Obviamente agradeci e recusei a oferta, hábito antigo do velho ofício.
Agora. Estamos no ano de 2021. O tomate pelado Guloso continua a chegar-me a casa com pele, verde e ácido, rigorosamente como o da famigerada e defeituosa colheita de 2017. Conclusão, das duas uma: em Portugal os anos são todos de "condições extremas do tempo (chuvas em final de Abril e Maio)", pelo menos para os tomates, ou então há quatro anos que todos os anos são 2017. O que é lamentável e vice-versa.

P.S. - Hoje, 15 de Março, é Dia Mundial dos Direitos do Consumidor.

Faltava-lhe a cedilha

Aqui atrasado fui a um supermercado e comprei uma alheira. Como acontece tantas vezes a muito boa gente, trouxe para casa um dois-em-um: a alheira e um grandessíssimo barrete. E reclamei. Reclamei para o fabricante, reclamei para a cadeia de supermercados, reclamei até para o provedor do cliente do grupo económico dono da cadeia de supermercados. Todos me responderam, com mais ou menos demora e as tretas do costume.
O primeiro a bater com a mão no peito até foi o fabricante. Para além de um simpático pedido de desculpas, oferecia-se para me enviar uma nova alheira: imaginei que me mandaria pelo menos meia dúzia, todas elas de qualidade cinco estrelas, mas não aceitei. Eu só queria mesmo reclamar, porque reclamar é bom, desopila.
A quem puder interessar, para futuras demandas, ou, quem sabe, até para fazer jurisprudência, aqui deixo, humildemente, o teor da minha bem sucedida reclamação:

Exm.ºs Senhores,
Comprei ontem na loja do [...], em [...], uma alegada "Alheira de Caça" produzida por V. Ex.ªs e pomposamente apresentada como "produto seleccionado da Terra Fria Transmontana".
A etiqueta prometia uma alheira com, nomeadamente, 40% de carne de caça (pato, perdiz e coelho), 30% de carne de porco e 20% de pão trigo.
Cozinhada e aberta, verifiquei logo, sem precisar de ir ao microscópio, que fora enganado. Carne... de grilo! Assim a olho - e comprovado na boca! - , a alheira era afinal composta por 90% de pão e 10% de gorduras diversas.
Dito de outra forma: a alheira de caça de V. Ex.ªs não trazia cedilha.

Melhores cumprimentos,
h.

Levaram-lhe a casa

Foto Hernâni Von Doellinger