Vida de cão, vida de cão!
"Portugueses já gastam mais com cães do que com bebés", dizia a capa do semanário Expresso, em Outubro de 2011.
Meados de Agosto de 2015. "Cão deixado no lixo dentro de um saco gera onda de solidariedade em Vila Real", anunciava o jornal Público, em título fim-de-semaneiro. E acrescentava: "Plataforma Proanimal alerta que nesta altura do ano há mais animais abandonados e menos pessoas disponíveis para os acolher."
Verdade como punho, ontem como hoje. Embora não gere nenhuma "onda de solidariedade", está curiosamente a acontecer o mesmo com os velhos e com os recém-nascidos, por assim dizer, humanos - cada vez mais abandonados, às vezes no lixo, e com cada vez menos pessoas disponíveis para os acolher. É. Vivemos realmente uma "altura do ano" filhadaputa. Mas os cãezinhos, Senhor...
Ser pobre é deveras incomodativo
Ser pobre é fodido. Mas, para quem não sabe o que é a pobreza, "pobre" é
apenas título de jornal, cinco caracteres sem pessoas dentro. Pessoas
de pele e osso. O jornal Público anunciava no tempo da troika e de Pedro
Passos Coelho: os "pobres passam a ter acesso a refeições take away
em 950 cantinas em todo o país". Vejam bem o que se escrevia e escreve
em Portugal e já vamos no século vinte e um, o tal que nem deveria
existir se houvesse respeito pelas profecias: os "pobres" têm outra vez
direito à senhazinha da sopa dos ditos. Se os pobres morrerem de fome é
porque não deram o nome. Ou então porque não sabem o que quer dizer take away. Problema deles. Os pobres não são leitores do Público.
Havia o clero, havia a nobreza e havia o povo. E isto estava muito bem
percebido. Depois apareceu a burguesia, que meteu um bocado de nojo,
amantizando-se com o clero, com a nobreza e com o povo, consoante,
porque a burguesia é muito dada a certas e determinadas promiscuidades. E
a seguir, mas isto já foi um a seguir que demorou muito tempo e ainda
está a doer, veio o proletariado, lá do fundo do fundo do clero, da
nobreza, do povo e da burguesia que estava distraída a chá e torradas. E
do sarro dos pés do proletariado, tipo cogumelos, renasceram os
pobres, que aqui atrasado eram uns desgraçados que em dias certos
batiam à porta da nossa casa, em Fafe, a pedirem "uma esmolinha por
alma de quem lá tem". Porque nós éramos pobres, mas menos pobres do que
eles.
Sei muito bem como tudo isto já funcionou em
Portugal. Antes do 25 de Abril de 1974, lembram-se? E era desde os
bancos da escola - da Escola Primária - que se aprendia, na carne, e com
a crueldade própria daquela idade, a diferença entre ricos e pobres. A
diferença entre os que tinham tudo e os que não tinham nada. A diferença
entre a pasta de cabedal e a sacola de pano. A diferença entre os que
escreviam em cadernos e os que ainda usavam a lousa. A diferença entre
os meninos ricos que nunca apanhavam do professor e os miúdos pobres que
levavam pancada de criar bicho. A diferença entre o sapatinho de verniz
e as chancas ou o pé descalço. A diferença entre os que traziam
lanchinho com pãezinhos com manteiga e marmelada e os que pediam a senha
para ir comer uma sopinha. Pediam.
Exactamente:
a sopa e a senha. Naquele tempo - no tempo em que os rapazes não se
misturavam com as raparigas e os ricos também não se misturavam com os
pobres -, as escolas não tinham cantina e havia muita fome. Havia uma
espécie de cozinha, às vezes num edifício anexo ou próximo, e ali
servia-se uma sopa. Assim era na minha Escola Conde Ferreira, em Fafe.
Para
terem direito à sopa, os miúdos pobres pediam todos os dias uma senha,
que era um pequeno quadrado de papel com um carimbo e um sarrabisco
feito pelo professor armado em médico. Aqui há anos sugeri que o Governo
de Passos Coelho copiasse tão peregrina ideia para o seu tempo: um
carimbo na
testa de todos os pobres, dos pobres pobres, para que o aparelho do
Estado saiba imediata e inequivocamente quem pode comer a sopa.
Claro
que já então - no antes do 25 de Abril de 1974 que de verdade existiu - havia quem tivesse vergonha de ser pobre, quem tivesse
vergonha de ser apontado publicamente como pobre, e preferia passar
fome. Eu sei que não falta por aí quem sustente que fome é um conceito
muito relativo, mas eu acho que é cada vez mais uma realidade
copulativa. E só peço que,
quando chegar a minha vez, quando me vierem entregar a minha misericordiosa dose de
"alimentação, vestuário e medicamentos", façam o favor de me deixar
também os caixotes de cartão. É que as noites estão cada vez mais frescas.
O povo dá muita despesa
São cada vez mais os portugueses que procuram a sobrevivência no fundo
de um contentor do lixo. Sei, porque às vezes ando na rua. Aqui atrasado, de
Matosinhos até à Foz, no Porto, passei por nove pontos de contentores de
lixo: em seis deles estavam pessoas à cata dos nossos melhores restos.
Não eram "drogados", nem "alcoólicos", nem "arrumadores" fora das horas
de expediente - se querem saber. Eram pessoas como nós, certamente com
mais azar na vida do que nós. Vi, por exemplo: uma família inteira, que
podia ser a minha família; uma senhora arranjada e digna, puxando um
carrinho de compras que ia compondo com critério, e podia ser a minha
mãe; um cavalheiro com o velho orgulho alquebrado, que me olhou com
olhos de pedir desculpa por necessitar, e quase posso jurar que ele era
eu.
É. Portugal prepara-se para enfrentar a pandemia e a crise, mas de cernelha. Com StayAway e de máscara, os
portugueses que afocinhem. Que façam pela vida! E depois que morram
como lhes compete, porque isto é um povo que só dá despesa...
Portugal de luxo, Portugal de lixo
Só nos primeiros seis meses de 2019 foram apresentados 166 novos projectos de hotéis
em Portugal, contavam então os jornais e são os números mais actualizados que sei. Cento e sessenta e seis, repito e por
extenso, que a enormidade do número faz por merecer. Dezoito
investimentos em carteira para o Porto e treze para Lisboa. Vila Nova de
Gaia vai ter a maior obra do País e a minha rua, em Matosinhos, já é
ela por ela entre locais e alojamento local.
Nos princípios de 2018 havia 450
mil casas sobrelotadas e 2,5 milhões de casas subaproveitadas. Havia
mais de 735 mil casas vazias, umas caindo de velhas, outras ainda por
estrear. Em Portugal havia - e há - cada vez mais portugueses sem
dinheiro para pagarem ao banco a prestação da casa. Os portugueses
devolvem a casa ao banco, sem ondas e sem suicídios. Em Portugal não há
dinheiro para ajeitar a vida dos portugueses. E há cada vez mais
portugueses morando no olho da rua. É. O País constrói-se para as
visitas.
Portugal de luxo, Portugal de lixo. Um site oficial
do Governo exultava: "A Pousada do Porto, instalada no Palácio do
Freixo, acabou de entrar na prestigiada e exclusiva rede The Leading
Hotels of the World. Só os mais luxuosos, prestigiados e sofisticados
hotéis são admitidos na referida listagem de apenas 430 unidades em
todo o mundo."
Prestigiada e exclusiva, luxuosa, outra vez prestigiada e sofisticada. A Pousada. Um mundo...
Portugal tinha então cinco hotéis na lista dos 100 melhores do mundo, e
em 2012 era português o melhor hotel da Península Ibérica e o melhor
pequeno hotel de luxo da Europa era em Lisboa. Em Portugal havia mais de
40 hotéis de luxo. Hoje em dia devem ser mais que as mães.
E há
também mais de três milhões de pobres, meio milhão de trabalhadores a
salário mínimo, um milhão e meio de desempregados ou mais, entre os
registados e os desarriscados, e milhares e milhares e milhares de
sem-abrigo, ninguém sabe ao certo quantos. E agora a pandemia...
P.S. - Hoje, 20 de Dezembro, é Dia Internacional da Solidariedade Humana. Vem mesmo a calhar: estamos em cima do Natal e precisamos de nos lembrar dos pobrezinhos, coitadinhos...