terça-feira, 20 de setembro de 2016

Herberto Sales 4

Os sacos e os frincheiros são abandonados, e os dois homens se metem pelo lapeiro adentro - Filó com a candeia na mão e Joaquim na frente, repetindo o grito de alarma. As águas, correndo atrás deles, arrastam consigo o resto do cascalho. Através da fumaça da candeia, Filó enxerga os pés do companheiro. Joaquim pensa em Rita Pandeiro, e imagina que não mais se encontrará com ela. Ela vai saber de sua morte pela boca dos outros. Joaquim vê a morte diante dos olhos, e lembra-se de outros garimpeiros que, indo à procura de cascalho dentro das grunas, de lá foram retirados como postas de carne. Nunca mais verá Rita. Vai morrer, Sinhá do Ouro encomendará a alma dele no velório. A última vez que esteve com Rita foi na semana passada; procura reconstituir o que ela lhe disse antes de sair para o rio, com a gamela de pratos na cabeça. Tudo agora vai terminar, porque a água continua a avolumar-se; mas, de certo modo, sente-se contente por se ter desviado de um bico de pedra - não chegara realmente a acreditar que pudesse passar por ali. Neco vai na frente. A enxurrada se arremete no seu encalço. Para espanto seu, até agora não encontrou nenhum dos companheiros que formavam a fieira para a passagem do saco: era como se alguém houvesse determinado que, a partir daquele instante, só ele, Joaquim e Filó deviam ficar dentro da gruna.
Sente-se apanhado irrevogavelmente na armadilha: ia morrer como um bicho - sem vela nem sentinela - e esse pormenor lhe causava uma espécie de decepção.

"Cascalho", Herberto Sales

(Herberto Sales nasceu no dia 21 de Setembro de 1917. Morreu em 1999.)

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