segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016
Sodoma e Gomorra (ou há moralidade ou...)
Os sodomitas, habitantes de Sodoma, ficaram com a pior parte da fama. Os gomorritas safaram-se, vá-se lá saber porquê, e nem constam nos dicionários. A História às vezes é muito injusta.
Agá
Tenho uma pessoa da família que agora me chama Agá. E eu gosto. Gosto de palavras, gosto do falar antigo, gosto de nomes, gosto de brincar com nomes. Gosto de me rir. E às vezes rio-me com os nomes que me vêm à cabeça, por exemplo Al Mirante, Sam Dwich, Sara Pinto, Rick Ardo, Poly Ban, Bica Bornato, Herr Nesto, Sade Miranda, Rui Barbo, Bib Alves, Ono Mástico ou Tony Truante. Rio-me do meu apelido, doellinger, que não levo a sério e só me arranja confusões. Silva, para mim, já estaria bem. Sabem que mais? Quem se leva a sério é tolo.
A pessoa da minha família chama-me Agá porque é assim que eu assino. Mas assino agá pequenino ponto, h., sei muito bem o meu lugar e o meu tamanho no mundo. É: agá, de hernâni, e pronto.
O meu sonho, um dos meus mais de mil sonhos, era, porém, chamar-me e poder assinar H. Ramos. Quero dizer, agá ramos.
Melhores cumprimentos,
h.
domingo, 28 de fevereiro de 2016
O extremoso e o ex-tremoço
Ainda acontece. Há quem confunda o filho extremoso com o filho ex-tremoço. E são muito diferentes um do outro. Distinguem-se evidentemente derivado ao prefixo com hífen, mas sobretudo por causa da casca.
sábado, 27 de fevereiro de 2016
Eu, crente, me confesso (revisto e aumentado)
Sou crente e não me sinto afrontado pelo cartaz
do Bloco de Esquerda com a imagem de Cristo, do Sagrado Coração de
Jesus, festejando a adopção por casais homossexuais. O padre Manuel
Barbosa, porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, não me perguntou
a minha opinião e, portanto, não está autorizado a falar por mim, que
sou tão crente, pelo menos, quanto ele.
Sou crente e não gosto do Bloco de Esquerda (embora já tivesse gostado menos). Sou crente e sou pela adopção por casais homossexuais. Sou crente e o cartaz do Bloco - posto que ignorante, infantil e bacoco, Bacoco de Esquerda - nem me afronta nem me desafronta. Fosse o caso, e tomaria bicarbonato. Cuidava era que a Igreja tivesse mais que fazer...
(Foi ontem. Acrescento, às 14h32 de sábado, dia 27 de Fevereiro de 2016: tomei devida nota dos piedosos afrontamentos do ex-ministro Pedro Mota Soares, do CDS, e do pantomineiro Carlos Abreu Amorim, deputado do PSD. Vê-se que são pessoas que vão todos os dias à missa e rezam o terço antes do deitar. São, agora, 14h33. Lá fora o céu desaba em saraiva e a borrasca passa tão depressa como apareceu. Será que Deus nos quer dizer alguma coisa?)
Sou crente e não gosto do Bloco de Esquerda (embora já tivesse gostado menos). Sou crente e sou pela adopção por casais homossexuais. Sou crente e o cartaz do Bloco - posto que ignorante, infantil e bacoco, Bacoco de Esquerda - nem me afronta nem me desafronta. Fosse o caso, e tomaria bicarbonato. Cuidava era que a Igreja tivesse mais que fazer...
(Foi ontem. Acrescento, às 14h32 de sábado, dia 27 de Fevereiro de 2016: tomei devida nota dos piedosos afrontamentos do ex-ministro Pedro Mota Soares, do CDS, e do pantomineiro Carlos Abreu Amorim, deputado do PSD. Vê-se que são pessoas que vão todos os dias à missa e rezam o terço antes do deitar. São, agora, 14h33. Lá fora o céu desaba em saraiva e a borrasca passa tão depressa como apareceu. Será que Deus nos quer dizer alguma coisa?)
Ruy Belo 3
A mão no arado
Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará
Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua
É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solidário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente
Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente
"O Problema da Habitação", Ruy Belo
(Ruy Belo nasceu no dia 27 de Fevereiro de 1933. Morreu em 1978.)
Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará
Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua
É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solidário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente
Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente
"O Problema da Habitação", Ruy Belo
(Ruy Belo nasceu no dia 27 de Fevereiro de 1933. Morreu em 1978.)
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016
Eu, crente, me confesso
Sou crente e não me sinto afrontado pelo cartaz do Bloco de Esquerda com a imagem de Cristo, do Sagrado Coração de Jesus, festejando a adopção por casais homossexuais. O padre Manuel Barbosa, porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, não me perguntou a minha opinião e, portanto, não está autorizado a falar por mim, que sou tão crente, pelo menos, quanto ele.
Sou crente e não gosto do Bloco de Esquerda (embora já tivesse gostado menos). Sou crente e sou pela adopção por casais homossexuais. Sou crente e o cartaz do Bloco - posto que ignorante, infantil e bacoco, Bacoco de Esquerda - nem me afronta nem me desafronta. Fosse o caso, e tomaria bicarbonato. Cuidava era que a Igreja tivesse mais que fazer...
(Acrescento, às 14h32 de sábado, dia 27 de Fevereiro de 2016: tomei devida nota dos piedosos afrontamentos do ex-ministro Pedro Mota Soares, do CDS, e do pantomineiro Carlos Abreu Amorim, deputado do PSD. Vê-se que são pessoas que vão todos os dias à missa e rezam o terço antes do deitar. São, agora, 14h33. Lá fora o céu desaba em saraiva e a borrasca passa tão depressa como apareceu. Será que Deus nos quer dizer alguma coisa?)
Sou crente e não gosto do Bloco de Esquerda (embora já tivesse gostado menos). Sou crente e sou pela adopção por casais homossexuais. Sou crente e o cartaz do Bloco - posto que ignorante, infantil e bacoco, Bacoco de Esquerda - nem me afronta nem me desafronta. Fosse o caso, e tomaria bicarbonato. Cuidava era que a Igreja tivesse mais que fazer...
(Acrescento, às 14h32 de sábado, dia 27 de Fevereiro de 2016: tomei devida nota dos piedosos afrontamentos do ex-ministro Pedro Mota Soares, do CDS, e do pantomineiro Carlos Abreu Amorim, deputado do PSD. Vê-se que são pessoas que vão todos os dias à missa e rezam o terço antes do deitar. São, agora, 14h33. Lá fora o céu desaba em saraiva e a borrasca passa tão depressa como apareceu. Será que Deus nos quer dizer alguma coisa?)
Errare humanum est
Em alta competição os erros pagam-se caros. Em baixa competição são ao preço da uva mijona.
José Mauro de Vasconcelos 3
De repente, não existia mais escuro nos meus olhos. O meu coração de onze anos se agitou no peito amedrontado.
- Meu São Jesus do carneirinho nas costas, ajudai-me! A luz crescia mais. E mais. E quanto mais crescia, o medo aumentava a tal ponto que, se eu quisesse gritar, não conseguiria.
Todo mundo dormia calmamente. Todos os quartos fechados respiravam o silêncio.
Sentei-me na cama apoiando minhas costas à parede. Meus olhos arregalavam-se, quase saltando das órbitas.
Queria rezar, invocar todos os meus santos protetores, mas nem sequer o nome de Nossa Senhora de Lourdes escapava dos meus lábios. Devia ser o diabo. O diabo com que me amedrontavam tanto. Mas, se fosse ele, a luz não seria na cor da lâmpada, e sim de fogo e sangue, e haveria por certo o cheiro de enxofre. Nem sequer poderia chamar em socorro o Irmão Feliciano, o Fayolle querido. Fayolle nessa hora deveria estar no terceiro sono, roncando bondade e paz, lá no Colégio Marista.
Uma voz soou macia e humilde:
- Não se assuste, meu filho. Só vim para ajudá-lo.
O coração batia agora contra a parede e a voz saiu fina e medrosa como o canto primeiro de um galinho.
- Quem é você? Alma do outro mundo?
- Não, tolinho.
E uma risada bondosa repercutiu pelo quarto.
- Vou fazer mais luz, mas não se assuste que nada de mal poderá acontecer.
Disse um sim indeciso, mas fechei os olhos.
- Assim não vale, amigo. Pode abri-los.
Arrisquei um, depois o outro. O quarto tinha adquirido uma luz branca tão bonita que pensei ter morrido e me encontrar no paraíso. Mas isso era impossível. Todo mundo em casa dizia que o céu não era para o meu bico. Gente como eu ia direitinho pras caldeiras do inferno virar espetinho.
- Olhe pra mim. Sou feio, mas meus olhos só inspiram confiança e bondade.
- Onde?
- Aqui, ao pé da cama.
Fui-me aproximando da beira e criei coragem para olhar. O que vi me encheu de pânico. Fiquei tão horrorizado que um frio perpassou-me a alma inteira como se fosse um zíper. Retornei tremendo à posição anterior.
- Meu São Jesus do carneirinho nas costas, ajudai-me! A luz crescia mais. E mais. E quanto mais crescia, o medo aumentava a tal ponto que, se eu quisesse gritar, não conseguiria.
Todo mundo dormia calmamente. Todos os quartos fechados respiravam o silêncio.
Sentei-me na cama apoiando minhas costas à parede. Meus olhos arregalavam-se, quase saltando das órbitas.
Queria rezar, invocar todos os meus santos protetores, mas nem sequer o nome de Nossa Senhora de Lourdes escapava dos meus lábios. Devia ser o diabo. O diabo com que me amedrontavam tanto. Mas, se fosse ele, a luz não seria na cor da lâmpada, e sim de fogo e sangue, e haveria por certo o cheiro de enxofre. Nem sequer poderia chamar em socorro o Irmão Feliciano, o Fayolle querido. Fayolle nessa hora deveria estar no terceiro sono, roncando bondade e paz, lá no Colégio Marista.
Uma voz soou macia e humilde:
- Não se assuste, meu filho. Só vim para ajudá-lo.
O coração batia agora contra a parede e a voz saiu fina e medrosa como o canto primeiro de um galinho.
- Quem é você? Alma do outro mundo?
- Não, tolinho.
E uma risada bondosa repercutiu pelo quarto.
- Vou fazer mais luz, mas não se assuste que nada de mal poderá acontecer.
Disse um sim indeciso, mas fechei os olhos.
- Assim não vale, amigo. Pode abri-los.
Arrisquei um, depois o outro. O quarto tinha adquirido uma luz branca tão bonita que pensei ter morrido e me encontrar no paraíso. Mas isso era impossível. Todo mundo em casa dizia que o céu não era para o meu bico. Gente como eu ia direitinho pras caldeiras do inferno virar espetinho.
- Olhe pra mim. Sou feio, mas meus olhos só inspiram confiança e bondade.
- Onde?
- Aqui, ao pé da cama.
Fui-me aproximando da beira e criei coragem para olhar. O que vi me encheu de pânico. Fiquei tão horrorizado que um frio perpassou-me a alma inteira como se fosse um zíper. Retornei tremendo à posição anterior.
- Assim não, meu filho. Eu sei que sou muito feio. Mas, se você tem tanto pavor, vou-me embora sem ajudar.
Sua voz se transmudara numa súplica que resolvi conter-me. Mas foi com bastante vagar que me arrastei para o seu lado.
- Por que esse medo todo?
- Mas você é um sapo?
- E daí? Sou.
"Vamos Aquecer o Sol", José Mauro de Vasconcelos
(José Mauro de Vasconcelos nasceu no dia 26 de Fevereiro de 1920. Morreu em 1980.)
Sua voz se transmudara numa súplica que resolvi conter-me. Mas foi com bastante vagar que me arrastei para o seu lado.
- Por que esse medo todo?
- Mas você é um sapo?
- E daí? Sou.
"Vamos Aquecer o Sol", José Mauro de Vasconcelos
(José Mauro de Vasconcelos nasceu no dia 26 de Fevereiro de 1920. Morreu em 1980.)
Etiquetas:
cultura,
José Mauro de Vasconcelos,
literatura,
livros,
O Meu Pé de Laranja Lima,
romance,
série Escritores,
Vamos Aquecer o Sol
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016
Quantas pranas tem uma rana?
Foto Hernâni Von Doellinger |
O meu avô Bernardino Neques, que nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria, tinha o seu lado musical. Desunhava-se satisfatoriamente com a concertina e o acordeão, e já velhinho veio-lhe a mania do violão, lembro-me que com alguma falta de jeito, Deus me perdoe se estou a ser injusto. Esqueçamos, porém, o violão, o acordeão e a concertina, que foram só para meter conversa. Tornemos aos bombos, à caixaria.
O Neques do meu avô Bernardino não era de baptismo. O verdadeiro nome do meu avô de Basto era Amigo Pereira - assim lhe chamava toda a gente, e suponho que não é preciso dizer mais nada para que se perceba de que marca era o homem. A alcunha que ficou famosa veio-lhe do tempo de moço, contava-se, quando rufava a bom rufar na caixa, honesto instrumento por onde começou na arte. E tocava naquele ritmo que ele gostava de explicar como neque-neque-neque, neque-neque, neque-pum. Neques, pois.
O meu avô era apaixonante. Obviamente Revelhe, por causa do meu pai e por bom gosto natural. E o toque de caixa, para o Amigo Pereira, tinha ciência, solfejo. Gostava de perguntar-me, por exemplo, "Quantas pranas tem uma rana?", como se estivéssemos a elaborar sobre fusas e semifusas. Eu dizia que não sabia, que era o que o velho Neques queria ouvir, para logo a seguir me ensinar, matreiro e mais uma vez, "Conta-as, rapaz: rana-catrapana-catrapana-pana-pum; quantas são?"
Já não há bernardinos assim. E faz-me diferença. Pum.
(Texto escrito e publicado originalmente no dia 2 de Abril de 2014. Junto-lhe fotografia, apanhada há bocadinho na Foz.)
Cesário Verde 3
Deslumbramentos
Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.
Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!...
Em si tudo me atrai como um tesouro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de ouro
E o seu nevado e lúcido perfil!
Ah! Como me estonteia e me fascina...
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!...
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.
E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como um brilhante.
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!
"O Livro de Cesário Verde", Cesário Verde
(Cesário Verde nasceu no dia 25 de Fevereiro de 1855. Morreu em 1886.)
Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.
Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!...
Em si tudo me atrai como um tesouro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de ouro
E o seu nevado e lúcido perfil!
Ah! Como me estonteia e me fascina...
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!...
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.
E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como um brilhante.
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!
"O Livro de Cesário Verde", Cesário Verde
(Cesário Verde nasceu no dia 25 de Fevereiro de 1855. Morreu em 1886.)
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016
David Mourão-Ferreira 3
Paraíso
Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.
Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!
Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...
Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.
"Infinito Pessoal", David Mourão-Ferreira
(David Mourão-Ferreira nasceu no dia 24 de Fevereiro de 1927. Morreu em 1996.)
Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.
Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!
Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...
Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.
"Infinito Pessoal", David Mourão-Ferreira
(David Mourão-Ferreira nasceu no dia 24 de Fevereiro de 1927. Morreu em 1996.)
Rosalía de Castro 3
Ca pena ao lombo
¡Cantas frores silvestres nos valados,
que festós e que encaixes
primorosos de musgos e verdura;
que colorido, que follax nos árbores
mentras as brisas mansamente corren,
coma alento dos ánxeles!
Reina na veiga un prácido sosego,
cai a luz nos regueiros en cambiantes,
i o cómaro e cañada soavemente
van querbando o paisaxen,
lixeiramente envolto nos vapores
da misteriosa tarde.
Só se sinte o piar do paxariño,
o marmurar das auguas,
e na cima do monte o cantar triste
dunha muller que pasa,
mentras co sue marmurio o manso rego
naquel ritmo monótono a acompaña.
¡Que tristeza tan dose!
¡Que soidá tan prácida!
Mais para un alma en orfandá sumida,
¡que soida tan deserta e tan amarga!
Sin mirar, fixa os ollos
nas brétemas leixanas,
vaporosas e leves
que o sol pinta de grana,
i as mans en cruz, i os ollos
arrasados en bágoas,
marmura saloucando: "¡Quérome ire,
porque agonizo aquí desconsolada!
Millor que acá antre rosas
¡ai!, quero ir a morrer adonde el vaia."
E no fondo do barco
soíña, abandonada,
tras seu amor i a morte, para América,
para morrer de dor, ao mar se lanza.
"Follas Novas", Rosalía de Castro
(Rosalía de Castro nasceu no dia 24 de Fevereiro de 1837. Morreu em 1885.)
¡Cantas frores silvestres nos valados,
que festós e que encaixes
primorosos de musgos e verdura;
que colorido, que follax nos árbores
mentras as brisas mansamente corren,
coma alento dos ánxeles!
Reina na veiga un prácido sosego,
cai a luz nos regueiros en cambiantes,
i o cómaro e cañada soavemente
van querbando o paisaxen,
lixeiramente envolto nos vapores
da misteriosa tarde.
Só se sinte o piar do paxariño,
o marmurar das auguas,
e na cima do monte o cantar triste
dunha muller que pasa,
mentras co sue marmurio o manso rego
naquel ritmo monótono a acompaña.
¡Que tristeza tan dose!
¡Que soidá tan prácida!
Mais para un alma en orfandá sumida,
¡que soida tan deserta e tan amarga!
Sin mirar, fixa os ollos
nas brétemas leixanas,
vaporosas e leves
que o sol pinta de grana,
i as mans en cruz, i os ollos
arrasados en bágoas,
marmura saloucando: "¡Quérome ire,
porque agonizo aquí desconsolada!
Millor que acá antre rosas
¡ai!, quero ir a morrer adonde el vaia."
E no fondo do barco
soíña, abandonada,
tras seu amor i a morte, para América,
para morrer de dor, ao mar se lanza.
"Follas Novas", Rosalía de Castro
(Rosalía de Castro nasceu no dia 24 de Fevereiro de 1837. Morreu em 1885.)
Etiquetas:
As viuvas dos vivos e as viuvas dos mortos,
Ca pena ao lombo,
cultura,
Follas Novas,
livros,
poesia,
poetas,
Rosalía de Castro,
série Escritores
terça-feira, 23 de fevereiro de 2016
O bem-estar não escolhe idades (anúncio)
Pilates para idosos e Herodos para crianças. Anás para Caifás e Caifás para Anás. Pagamento à vista. Trinta dinheiros.
Fernanda Seno
Perenidade
Mesmo depois do Tempo
ficaremos no coração aberto dos
que amamos.
E no grande silêncio que restar,
na ausência dos gestos e do olhar
ainda assim estaremos
e seremos.
Mesmo depois do Tempo
quando formos lembrança evanescente,
seremos outra forma de presença
porque o Amor subsiste
Eternamente.
Fernanda Seno
(Fernanda Seno nasceu no dia 23 de Fevereiro de 1942. Morreu em 1996.)
Mesmo depois do Tempo
ficaremos no coração aberto dos
que amamos.
E no grande silêncio que restar,
na ausência dos gestos e do olhar
ainda assim estaremos
e seremos.
Mesmo depois do Tempo
quando formos lembrança evanescente,
seremos outra forma de presença
porque o Amor subsiste
Eternamente.
Fernanda Seno
(Fernanda Seno nasceu no dia 23 de Fevereiro de 1942. Morreu em 1996.)
Sant'Anna Dionísio
Uma pequena ilha, a quinze milhas, é como um cirro de cinza ou panejamento de veleiro a esfumar-se na distância; a cinquenta (se se admite que possa ser vista), uma vaga sombra a sumir-se na linha do horizonte; - vista dentro dela própria, é do tamanho do mundo.
(No interior da Ilha da Madeira, no caminho de Boliqueime a Vasco Gil, de visita, com dois dinamarqueses, ao enigma geológico do Grande Curral. Do fundo dum vale emerge o sussurro de uma ribeira que desce, torcicolando, rápida, das alturas pirenaicas do Areeiro.)
"Atlânticas", Sant'Anna Dionísio
(Sant'Anna Dionísio nasceu no dia 23 de Fevereiro de 1902. Morreu em 1991.)
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016
Histórias de cemitérios e rosas, senhores
No quintal dos meus sogros há meia dúzia de roseiras razoavelmente
produtivas e formiguentas. As flores vêm cá para casa, as formigas às
vezes também. Cinco das seis roseiras do quintal dos meus sogros dão
rosas vermelhas, mas daquele vermelho sanguíneo, belíssimo, rosas de
livro e de filme, e cheiram a nada, como se fossem de supermercado, de
plástico. A outra roseira, exemplar único, logo à entrada, dá umas rosas
cor-das-mesmas, numa corzinha envergonhada e pálida, maricas, e porém
manda-me cá para fora um perfume que inebria a léguas.
A roseira perfumosa, extraordinária, foi oferecida ao meu sogro, há muitos muitos anos, pelo Gusto Sardão, então coveiro titular do cemitério da então freguesia de Nevogilde, concelho do Porto. Para os registos: Augusto Francisco da Costa Almeida, enterrador de categoria e decilitrador condecorado, creio que uma coisa tem a ver com a outra. O Senhor Augusto - Senhor, para mim, com todo o respeito - tinha a voz mais bagaceira que Deus ao mundo botou, muito mais completa do que a do Bruno de Carvalho do Sporting, parece que ainda o estou a ouvir, o que é tecnicamente impossível. Com efeito, um dia o Senhor Augusto resolveu seguir os passos da clientela, faleceu ele próprio para não empecilhar o negócio, e actualmente confraterniza com os seus antigos ossos do ofício. Isto é: continua ao serviço, mas agora do lado de dentro. Não sei como nem quem lhe paga a féria...
Mas a roseira. A roseira extraordinária, delicada e odorosa, veio exactamente do cemitério, e isso é que eu ainda não tinha contado, e isso é que a torna realmente extraordinária. Do cemitério de Nevogilde, lugar do "santo" Menino Quim, de bruxedos ao portão e de outros espantos. As rosas, por exemplo: que não alcançam a exuberância cardiofálica e escandalosa dos antúrios de ficção do fotógrafo Jorge Tadeu, na telenovela brasileira Pedra Sobre Pedra, mas que, na sua modéstia, se oferecem abertas e feminis, reais, a quem as queira e saiba desfrutar.
Abençoado cemitério que semelhantes rosas dá. Abençoado. Um cemitério assim é uma provocação, um desafio lançado a quem não acredita em nada para além da óbito. Um cemitério como o do coveiro Gusto Sardão dá sentido e utilidade ao pós-morte, mesmo ao pós-vida dos incréus. Deve ser um conforto morrer sabendo que ao menos seremos estrume. E de rosas. Rosas subtis e perfumadas, rosas extraordinárias.
P.S.: Contava o JN que - "Um homem, de 38 anos, apresentou queixa na GNR em Felgueiras contra a ex-companheira, por acreditar que esta realizou uma feitiçaria, com terra de cemitérios, que lhe faz encolher o sexo. Para evitar que o pénis desapareça, o indivíduo envolve-o com fita-cola."
Portanto, terra de cemitério usada para o mal. Na história que aqui vos contei no passado dia 5 de Janeiro de 2016, então com o título "A extraordinária roseira do coveiro Gusto Sardão", a terra de cemitério, de um certo cemitério, tem serventia para o bem. Repito-a hoje aí em cima.
A roseira perfumosa, extraordinária, foi oferecida ao meu sogro, há muitos muitos anos, pelo Gusto Sardão, então coveiro titular do cemitério da então freguesia de Nevogilde, concelho do Porto. Para os registos: Augusto Francisco da Costa Almeida, enterrador de categoria e decilitrador condecorado, creio que uma coisa tem a ver com a outra. O Senhor Augusto - Senhor, para mim, com todo o respeito - tinha a voz mais bagaceira que Deus ao mundo botou, muito mais completa do que a do Bruno de Carvalho do Sporting, parece que ainda o estou a ouvir, o que é tecnicamente impossível. Com efeito, um dia o Senhor Augusto resolveu seguir os passos da clientela, faleceu ele próprio para não empecilhar o negócio, e actualmente confraterniza com os seus antigos ossos do ofício. Isto é: continua ao serviço, mas agora do lado de dentro. Não sei como nem quem lhe paga a féria...
Mas a roseira. A roseira extraordinária, delicada e odorosa, veio exactamente do cemitério, e isso é que eu ainda não tinha contado, e isso é que a torna realmente extraordinária. Do cemitério de Nevogilde, lugar do "santo" Menino Quim, de bruxedos ao portão e de outros espantos. As rosas, por exemplo: que não alcançam a exuberância cardiofálica e escandalosa dos antúrios de ficção do fotógrafo Jorge Tadeu, na telenovela brasileira Pedra Sobre Pedra, mas que, na sua modéstia, se oferecem abertas e feminis, reais, a quem as queira e saiba desfrutar.
Abençoado cemitério que semelhantes rosas dá. Abençoado. Um cemitério assim é uma provocação, um desafio lançado a quem não acredita em nada para além da óbito. Um cemitério como o do coveiro Gusto Sardão dá sentido e utilidade ao pós-morte, mesmo ao pós-vida dos incréus. Deve ser um conforto morrer sabendo que ao menos seremos estrume. E de rosas. Rosas subtis e perfumadas, rosas extraordinárias.
P.S.: Contava o JN que - "Um homem, de 38 anos, apresentou queixa na GNR em Felgueiras contra a ex-companheira, por acreditar que esta realizou uma feitiçaria, com terra de cemitérios, que lhe faz encolher o sexo. Para evitar que o pénis desapareça, o indivíduo envolve-o com fita-cola."
Portanto, terra de cemitério usada para o mal. Na história que aqui vos contei no passado dia 5 de Janeiro de 2016, então com o título "A extraordinária roseira do coveiro Gusto Sardão", a terra de cemitério, de um certo cemitério, tem serventia para o bem. Repito-a hoje aí em cima.
domingo, 21 de fevereiro de 2016
Histórias de cemitérios e pilas curtas
Conta o JN que: "Um homem, de 38 anos, apresentou queixa na GNR em Felgueiras contra a ex-companheira, por acreditar que esta realizou uma feitiçaria, com terra de cemitérios, que lhe faz encolher o sexo. Para evitar que o pénis desapareça, o indivíduo envolve-o com fita-cola."
Porque é que nunca me apareceu uma história destas quando eu escrevia notícias? Que raiva! E porque é que nunca me lembrei do truque da fita-cola? Que raiva, que raiva!
Sobre cemitérios e espantos já aqui perorei, no dia 29 de Outubro de 2011, então usando o título de "Bruxedos à moda do Porto". Mas bebamos mais um copo, porque a ocasião merece. E o texto era:
Esta é a sério. Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao portão de um dos cemitérios da cidade do Porto. O bruxedo apareceu ali da noite para o dia, toda a gente se queixou, toda a gente se desviou e ninguém teve coragem de mexer na coisa, de a mandar para o lixo. Nem o padre da igreja ao lado nem os coveiros. Trabalhar com almas e mortos está bem, desafiar maus-olhados é que não.
Passou-se um, passaram-se dois, três, quatro, cinco dias, e o galo ali, possivelmente já com o serviço feito e portanto sem mais poderes, mas nem assim alguém ousou tocar-lhe. O pessoal da Junta de Freguesia foi unânime, cada um passava a encomenda para o que vinha atrás, "Eu não, bruxedos não", até que a vizinhança viva reclamou (ciciando padres-nossos e ave-marias, de terço na mão e muitos sinais da cruz) que já não aguentava com o fedor.
Ora, o fedor, como toda a gente sabe, é problemática que sobe à alçada camarária. Em conformidade, foram requisitados os serviços de limpeza da cidade, que chegaram ao local e resolveram o assunto em três penadas. Isto é: "Eu também não, bruxedos não"...
Perante o impasse, alguém tirou a mola de roupa do nariz e alvitrou que se chamassem os Comandos da Amadora, um pediu a presença da Brigada de Minas e Armadilhas da PSP e outra ainda sugeriu que se mandasse vir o Bruxo de Fafe para fazer marcha-atrás à coisa, tornando seguro o seu manuseamento. Mas a Junta não dispunha de verba orçamentada para pagar a especialistas.
Foi quando um dos da Câmara se lembrou que o Canil Municipal tem um camião com um gancho, uma espécie de braço mandado que podia solucionar mecanicamente, com os homens de longe e sem risco de agoiros, aquele problema bicudo. E ao sexto dia o todo-poderoso veículo veio e levou a coisa, para sossego enfim de todos os moradores, vivos e mortos, amém.
Esta história antiga foi na semana passada.
Porque é que nunca me apareceu uma história destas quando eu escrevia notícias? Que raiva! E porque é que nunca me lembrei do truque da fita-cola? Que raiva, que raiva!
Sobre cemitérios e espantos já aqui perorei, no dia 29 de Outubro de 2011, então usando o título de "Bruxedos à moda do Porto". Mas bebamos mais um copo, porque a ocasião merece. E o texto era:
Esta é a sério. Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao portão de um dos cemitérios da cidade do Porto. O bruxedo apareceu ali da noite para o dia, toda a gente se queixou, toda a gente se desviou e ninguém teve coragem de mexer na coisa, de a mandar para o lixo. Nem o padre da igreja ao lado nem os coveiros. Trabalhar com almas e mortos está bem, desafiar maus-olhados é que não.
Passou-se um, passaram-se dois, três, quatro, cinco dias, e o galo ali, possivelmente já com o serviço feito e portanto sem mais poderes, mas nem assim alguém ousou tocar-lhe. O pessoal da Junta de Freguesia foi unânime, cada um passava a encomenda para o que vinha atrás, "Eu não, bruxedos não", até que a vizinhança viva reclamou (ciciando padres-nossos e ave-marias, de terço na mão e muitos sinais da cruz) que já não aguentava com o fedor.
Ora, o fedor, como toda a gente sabe, é problemática que sobe à alçada camarária. Em conformidade, foram requisitados os serviços de limpeza da cidade, que chegaram ao local e resolveram o assunto em três penadas. Isto é: "Eu também não, bruxedos não"...
Perante o impasse, alguém tirou a mola de roupa do nariz e alvitrou que se chamassem os Comandos da Amadora, um pediu a presença da Brigada de Minas e Armadilhas da PSP e outra ainda sugeriu que se mandasse vir o Bruxo de Fafe para fazer marcha-atrás à coisa, tornando seguro o seu manuseamento. Mas a Junta não dispunha de verba orçamentada para pagar a especialistas.
Foi quando um dos da Câmara se lembrou que o Canil Municipal tem um camião com um gancho, uma espécie de braço mandado que podia solucionar mecanicamente, com os homens de longe e sem risco de agoiros, aquele problema bicudo. E ao sexto dia o todo-poderoso veículo veio e levou a coisa, para sossego enfim de todos os moradores, vivos e mortos, amém.
Esta história antiga foi na semana passada.
Coelho Neto 3
Ser mãe
Ser mãe é desdobrar fibra por fibra
o coração! Ser mãe é ter no alheio
Lábio que suga, o pedestal do seio,
Onde a vida, onde o amor, cantando, vibra.
Ser mãe é ser um anjo que se libra
Sobre um berço dormindo! É ser anseio,
É ser temeridade, é ser receio,
É ser força que os males equilibra!
Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,
Espelho em que se mira afortunada,
Luz que lhe põe nos olhos novo brilho!
Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!
Ser mãe é desdobrar fibra por fibra
o coração! Ser mãe é ter no alheio
Lábio que suga, o pedestal do seio,
Onde a vida, onde o amor, cantando, vibra.
Ser mãe é ser um anjo que se libra
Sobre um berço dormindo! É ser anseio,
É ser temeridade, é ser receio,
É ser força que os males equilibra!
Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,
Espelho em que se mira afortunada,
Luz que lhe põe nos olhos novo brilho!
Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!
Coelho Neto
(Coelho Neto nasceu no dia 21 de Fevereiro de 1864. Morreu em 1934.)
(Coelho Neto nasceu no dia 21 de Fevereiro de 1864. Morreu em 1934.)
sábado, 20 de fevereiro de 2016
Alexandrina
Foto Hernâni Von Doellinger |
Tenho na ideia escrever um livro sobre a minha mãe. E sei que, ao contrário do que é uso, são muito poucas as pessoas que merecem que se lhes escreva um livro sobre. Mas a minha mãe é diferente, justifica, é uma mulher extraordinária, no sentido literal do termo, e não por ser minha mãe. Nesta história, eu sou o menos.
Eu ia agora escrever que a minha mãe teve uma infância muito difícil, mas dei fé a tempo de que estaria a mentir: a minha mãe não teve infância, não foi à escola, a vida mandou-a para criada de servir aos sete anos de idade. A minha mãe ficou viúva e com quatro filhos aos 33 anos. Tempo do fascismo - sim, do fascismo -, da pobreza sufocante e do opróbrio, da reprovação pública, porque a má-língua sobre vizinhos ou conhecidos era o passatempo que havia antes dos reality shows da TVI. Naquele tempo de cinza, ser-se nova e viúva era uma desgraça, mas também, socialmente, um defeito, uma marca na testa. A minha mãe era a Viúva da Bomba. E no entanto, sozinha, fez de nós quatro, à sua imagem e semelhança, as pessoas que somos, vertebrados e honrados, gente digna e séria, respeitadora e respeitada, menos eu, que sou um bocado palhaço.
Como é que a minha mãe conseguiu? Com muito muita canseira, com camisolinhas e casaquinhos de lã feitos para fora, e lágrimas que eu bem as via, com os tostões contados sete vezes ao dia, com os meus irmãos mais velhos - a Nanda e o Nelo - a irem ainda crianças para o trabalho para que eu e o Lando, os mais novos, pudéssemos "estudar e ser alguém na vida". Sermos alguém na vida em nome deles, de todos, porque nós os cinco éramos apenas um, assim é que a nossa mãe nos queria, como os mosqueteiros, ainda nem fazíamos ideia do Intermarché. Evidentemente, só eu dei para o torto.
A minha mãe fazia das tripas coração e da massa com fressura um pitéu. O dinheiro não chegava e então passou a tomar conta de crianças. Isso, a minha mãe tomava conta dos meninos dos outros, era "ama" disputada, metiam-se empenhos para que ela aceitasse as crianças. Lembro-me do Miguel, da Guidinha, do André, da Xaninha, da Susana, do Ginho, do Miguelinho, e esqueço-me indesculpavelmente de outros, e os meninos chamavam à minha mãe, cada qual à sua maneira, "mãe Xandrina", "mãe minha" (haverá forma mais bonita de chamar alguém?) ou simplesmente "bozinha", que os netos também lhe passaram pelas mãos. A querida Guidinha, casada e também mãe, ainda hoje chama "mãe Xandrina" à minha mãe e a mim chama-me "tio". E eu gosto. Na Rua do Assento, na casinha de pedra - minúscula, imensa e mágica -, uma casa que então podia ser a dos sete anões ou a do João do pé de feijão, conforme, a minha mãe chegou a olhar por nove meninos ao mesmo tempo. Olhava por eles para olhar por nós. Era severa e amorosa, dava-lhes, de acordo com a cartilha que lhe corria no sangue, o pão e a educação, tinha ali uma espécie de infantário, restrito e de alta qualidade, e se fosse hoje se calhar ia presa.
Já viram a importância das mães como a minha, que, repito, para além dos seus, tomava conta dos filhos dos outros? Olhem para as últimas notícias, vejam aí os pais que não sabem tomar conta dos próprios filhos...
A minha mãe comeu o pão que o diabo amassou e diz que o 25 de Abril foi o melhor que aconteceu em Portugal. Isso e as vitórias do FC Porto. Dei voltas e voltas à cabeça e finalmente encontrei um título excelentíssimo para o livro que tenho na ideia escrever sobre a minha mãe. Não se deve partir do título para o texto, tomem nota, mas desta vez até calhou bem. "Alexandrina" é o meu título, depois de muito muito trabalhado, e é uma categoria, não é?
Mas a minha mãe é extraordinariamente maior do que a minha habilidade para a escrita. Eu sei que nunca na vida vou saber escrever um livro sobre a minha mãe - na verdade, eu não sei escrever livro nenhum -, portanto, descendo à terra, a partir deste momento (são as 16h21 de sábado, dia 20 de Fevereiro de 2016, e o meu cunhado Álvaro faz hoje anos), mudo o tempo do verbo e falo apenas do livro que tinha na ideia escrever sobre a minha mãe. Tinha. Para os arquivos, ainda assim, faço questão que fique registado o título do livro que eu nunca vou escrever: "Alexandrina", que já diz muito...
sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016
Eu queria ser palhaço, mas palhaço completamente
Quando eu era pequeno queria ser grande. E quando fosse grande queria
ser palhaço, maquinista de comboio, famoso, padre, polícia à paisana,
pianista, advogado, jornalista, actor, bombeiro, jogador de futebol,
tarzan, presidente da república, terrorista, papa, escritor, herói,
cantor, ciclista, santo e piloto de avião de guerra. Já há muito que sou
grande e, francamente, sou tarzan e é um pau.
De tanga. Estou de tanga como a maioria dos portugueses, se bem que os números sejam cada vez mais favoráveis, sobretudo os homólogos. Todos os pequenos almoços eu como números homólogos barrados com psivinte e gosto muito. Os meus pequenos almoços são ao meio-dia, para darem para o dia inteiro. São almoços ma non troppo, e por isso é que se chamam pequenos almoços sem hífen e um copo de água. Da torneira. Do vizinho.
Por outro lado, ainda não procuro o almoço nos contentores do lixo. Portugal está muito melhor, principalmente se comparado como o Portugal homólogo, mas são cada vez mais as pessoas e as famílias que eu vejo nos ecopontos esgadanhando sustento nos restos dos outros. Esta gente não lê os jornais, não vê televisão, não dá valor ao Governo, não ouve o de Belém, não liga aos números, tão favoráveis e tão homólogos. Esta gente gosta de chafurdar.
Eu queria ser palhaço, é verdade. Alguns amigos, lisonjeiros, dizem-me que eu às vezes sou um bocado palhaço. Alguns filhos da puta que não me gramam dizem-me também que eu às vezes sou um bocado palhaço. Palavra de honra: às vezes e um bocado não me chega - eu queria ser palhaço, mas palhaço completamente.
(Texto escrito e publicado no dia 15 de Junho de 2015)
De tanga. Estou de tanga como a maioria dos portugueses, se bem que os números sejam cada vez mais favoráveis, sobretudo os homólogos. Todos os pequenos almoços eu como números homólogos barrados com psivinte e gosto muito. Os meus pequenos almoços são ao meio-dia, para darem para o dia inteiro. São almoços ma non troppo, e por isso é que se chamam pequenos almoços sem hífen e um copo de água. Da torneira. Do vizinho.
Por outro lado, ainda não procuro o almoço nos contentores do lixo. Portugal está muito melhor, principalmente se comparado como o Portugal homólogo, mas são cada vez mais as pessoas e as famílias que eu vejo nos ecopontos esgadanhando sustento nos restos dos outros. Esta gente não lê os jornais, não vê televisão, não dá valor ao Governo, não ouve o de Belém, não liga aos números, tão favoráveis e tão homólogos. Esta gente gosta de chafurdar.
Eu queria ser palhaço, é verdade. Alguns amigos, lisonjeiros, dizem-me que eu às vezes sou um bocado palhaço. Alguns filhos da puta que não me gramam dizem-me também que eu às vezes sou um bocado palhaço. Palavra de honra: às vezes e um bocado não me chega - eu queria ser palhaço, mas palhaço completamente.
(Texto escrito e publicado no dia 15 de Junho de 2015)
Xosé María Díaz Castro 2
A noite é...
Hai homes cheos de sombra,
homes a contralús
que che fan ver a Deus
coma unha mar de lus.
A Noite é necesaria
pra que ti poidas ver
sobre o medo e o mal
as estrelas arder.
"Nimbos", Xosé María Díaz Castro
(Xosé María Díaz Castro nasceu no dia 19 de Fevereiro de 1914. Morreu em 1990.)
Hai homes cheos de sombra,
homes a contralús
que che fan ver a Deus
coma unha mar de lus.
A Noite é necesaria
pra que ti poidas ver
sobre o medo e o mal
as estrelas arder.
"Nimbos", Xosé María Díaz Castro
(Xosé María Díaz Castro nasceu no dia 19 de Fevereiro de 1914. Morreu em 1990.)
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016
António Aleixo 4
Ser doido-alegre, que maior ventura!
Ser doido-alegre, que maior ventura!
Morrer vivendo p'ra além da verdade.
É tão feliz quem goza tal loucura
Que nem na morte crê, que felicidade!
Encara, rindo, a vida que o tortura,
Sem ver na esmola, a falsa caridade,
Que bem no fundo é só vaidade pura,
Se acaso houver pureza na vaidade.
Já que não tenho, tal como preciso,
A felicidade que esse doido tem
De ver no purgatório um paraíso...
Direi, ao contemplar o seu sorriso,
Ai quem me dera ser doido também
P'ra suportar melhor quem tem juízo.
"Este Livro Que Vos Deixo...", António Aleixo
(António Aleixo nasceu no dia 18 de Fevereiro de 1899. Morreu em 1949.)
Ser doido-alegre, que maior ventura!
Morrer vivendo p'ra além da verdade.
É tão feliz quem goza tal loucura
Que nem na morte crê, que felicidade!
Encara, rindo, a vida que o tortura,
Sem ver na esmola, a falsa caridade,
Que bem no fundo é só vaidade pura,
Se acaso houver pureza na vaidade.
Já que não tenho, tal como preciso,
A felicidade que esse doido tem
De ver no purgatório um paraíso...
Direi, ao contemplar o seu sorriso,
Ai quem me dera ser doido também
P'ra suportar melhor quem tem juízo.
"Este Livro Que Vos Deixo...", António Aleixo
(António Aleixo nasceu no dia 18 de Fevereiro de 1899. Morreu em 1949.)
Etiquetas:
António Aleixo,
cultura,
Este Livro Que Vos Deixo,
literatura,
livros,
poesia,
poetas,
Ser doido-alegre que maior ventura,
série Escritores
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016
Múcio Leão
Os países inexistentes
- Queres partir comigo para países muito distantes,
Para países que dormem,
Embalados por oceanos que ninguém conhece?
Oh! Vamos juntos! Vamos partir para esses meus
mundos misteriosos!
Levar-te-ei a planícies brancas, cobertas de neve
como as do Alaska.
Verás que há na altura um sol gelado, envolto na poeira
nívea da neve.
E verás que um vento - um vento que uiva nos montes alvos -
Vem beijar teus cabelos cheirosos.
Levar-te-ei a montanhas encantadas, onde habitam
dragões de olhos de fogo.
Verás que no céu as estrelas se desfazem,
Mandando raios doirados coroarem tua fronte serena.
Levar-te-ei às ilhas paradisíacas,
Que estão dormindo no ritmo das ondas mansas.
Lá as árvores dormindo no ritmo das ondas mansas.
Lá as árvores cheias de sombras são feitas de humanas ternuras
E os pássaros que cantam têm uma voz límpida como violinos.
Levar-te-ei a esses mundos estranhos,
A esses mundos formosos que nunca ninguém viu.
E tu hás de repousar a cabeça no meu peito,
Deslumbrada pelos meus países inexistentes.
Múcio Leão
(Múcio Leão nasceu no dia 17 de Fevereiro de 1898. Morreu em 1969.)
- Queres partir comigo para países muito distantes,
Para países que dormem,
Embalados por oceanos que ninguém conhece?
Oh! Vamos juntos! Vamos partir para esses meus
mundos misteriosos!
Levar-te-ei a planícies brancas, cobertas de neve
como as do Alaska.
Verás que há na altura um sol gelado, envolto na poeira
nívea da neve.
E verás que um vento - um vento que uiva nos montes alvos -
Vem beijar teus cabelos cheirosos.
Levar-te-ei a montanhas encantadas, onde habitam
dragões de olhos de fogo.
Verás que no céu as estrelas se desfazem,
Mandando raios doirados coroarem tua fronte serena.
Levar-te-ei às ilhas paradisíacas,
Que estão dormindo no ritmo das ondas mansas.
Lá as árvores dormindo no ritmo das ondas mansas.
Lá as árvores cheias de sombras são feitas de humanas ternuras
E os pássaros que cantam têm uma voz límpida como violinos.
Levar-te-ei a esses mundos estranhos,
A esses mundos formosos que nunca ninguém viu.
E tu hás de repousar a cabeça no meu peito,
Deslumbrada pelos meus países inexistentes.
Múcio Leão
(Múcio Leão nasceu no dia 17 de Fevereiro de 1898. Morreu em 1969.)
terça-feira, 16 de fevereiro de 2016
O Grosso da Coluna e o Maciço Central
A diferença entre o Grosso da Coluna e o Maciço Central pode resumir-se-se assim: o primeiro é corredor de bicicletas e o segundo joga no eixo da defesa, como agora se diz. E o que têm em comum? Fisicamente falando, pertencem ambos à família dos Armários.
Luísa Dacosta 2
Apelo
Atravessa os campos da noite
e vem.
A minha pele
ainda cálida de sol
te será margem.
Nas fontes, vivas,
do meu corpo
saciarás a tua sede.
Os ramos dos meus braços
serão sombra rumorejante
ao teu sono, exausto.
Atravessa os campos da noite
e vem.
Luísa Dacosta
(Luísa Dacosta nasceu no dia 16 de Fevereiro de 1927. Morreu em 2015.)
Atravessa os campos da noite
e vem.
A minha pele
ainda cálida de sol
te será margem.
Nas fontes, vivas,
do meu corpo
saciarás a tua sede.
Os ramos dos meus braços
serão sombra rumorejante
ao teu sono, exausto.
Atravessa os campos da noite
e vem.
Luísa Dacosta
(Luísa Dacosta nasceu no dia 16 de Fevereiro de 1927. Morreu em 2015.)
Lois Pereiro 2
Que é Galicia?
Galicia... data
Run...
A. Auga. Aire. A Amnesia do vencido, a Atracción do Abismo, a Árbore xunta á Árbore, e a alegría do espazo circundante. A alma é o Atlántico e é o cantil o corpo da súa chamada Atroz.
A. Auga. Aire. A Amnesia do vencido, a Atracción do Abismo, a Árbore xunta á Árbore, e a alegría do espazo circundante. A alma é o Atlántico e é o cantil o corpo da súa chamada Atroz.
B. Barroco: a Beleza usual feita materia en pedra no Bordo do Bosque omnipresente.
C. Calma. Castelao, Curros, Cunqueiro, Cultura, Celebración e Culpa: unha conciencia Céltica do Cosmos.
D. Difícil definir esa Dor, Dobregar o Destino, conseguir que o Desexo nos siga sendo útil. (Diluvia)
E. Espiral no Espazo Esférico. Emigración: Estímulo do noso Exilio interior que nos leva polo leste cara a Europa, polo mar cara ao Éxito e cara á Enfermidade, e sempre cara ao Eterno Extrañamento do Espírito.
F. Fogo de Fogar. Fantasía. Fábricas, Febre e Formas do Futuro, Figuras do pasado. O Fenómeno atmosférico da Felicidade, e todas as Festas do mañá...
G. Gráficas do Granito, auga e silencio, onde transborda a alma da Gulfstream. O xemir das Gaitas, e no carácter esa amable presenza da Graxa.
H. Historia: Herbicida o esquecemento. A Humidade, o "Horror vacui" e a Humildade impídennos converter a Historia en Heroísmo. Nosa Herdade adestrada na fuxida, coa sabedoría das feridas vellas, por nosas propias mans soamente vencidos.
I. Ironía: arte de converter o Inferno nun conto de Inverno.
J. Son oriental. Rotundidade sureña.
K. Kilowatios por terra mergullada.
L. Loito: manchas na paisaxe, bólas negras sobre o tapete verde.
M. Lega Mortos o Misterio da Música, pero o Miño vaise levando ese Misterio ao Mar.
N. Norte. Noite. Néboa. Negro: materia poética nacional.
Ñ. Nh/ gn/ ñ.
O. Oeste: "Galicia atende e obedece á chamada do Oeste" (R. Otero Pedrayo). Tantos séculos de Ofensas e de Esquecemento crean anticorpos no Organismo dun pobo, e esa continua Ofensa da historia xerará no Orgullo deste pobo apracible o destrutivo Osíxeno do Odio, a Obsesión do fracaso e da culpa.
P. Poesía. Patria. Paixón. Perigo de extinción, perdidos en nosa propia Pureza, da necesidade de ser un Pobo. A nosa indiferenza alimentará o Proceso de autoxenocidio que vivimos. Paisaxes dispersas, aliñados entre os Perfís do Pasado, coa Presenza dunha vexetal sensación de eternidade. Paixón e Poses "punk", reflexos Postmodernos e altas horas nos diques urbáns da noite.
Q. Química da dor Quintaesencia do medo. Aí, pegado a min, quen ri?
R. Río: o Rumor da vida, a Relixión das augas. As Risas xorden sempre onde Reina a calma, na quietud profunda de quen coñece o Risco e domínao. Rural: corre sangue Rural por estas veas; e se algunha vez a Razón opón Resistencia, recoñécese o galego na terra, na lenta vitalidade da árbore, na invencible Resignación da herba.
S. O Son da Soidade e o Silencio. O Salvaxe Sarcasmo dos Soños do presente, e a Silente atracción polo Suicidio: o Sil. O Miño é o noso Sangue, o Sil a súa Sombra. Serenos e Sombríos, finalmente transcende o Sorriso astuto.
T. Terra. E o Tempo, e o Trastorno e as súas Tebras. A Tradición dunha triste Tenrura. A Terra é o principio, e todo existe nela e para ela.
U. Utopía: compaxinar o desexo e a necesidade dos nosos soños.
V. Vacas en Vales mollados, e a férrea Vontade dos Vellos encadeados á terra, co Vicio do seu fatalismo escéptico. Verde. Verde e máis Verde sobre outros Verdes, e por detrás: Verde.
W. Whisky: noite urbana. Galicia é Wagneriana, ou é máis ben un Wolfgang Amadeus enfermo de paisaxe, soñando con Sibelius?.
X. 25 de Xullo.
Y. e
Z. Fin
"Poemas 1981-1991", Lois Pereiro
(Lois Pereiro nasceu no dia 16 de Fevereiro de 1958. Morreu em 1996.)
Adelmar Tavares
Serenidade
Nunca de mim se ouviu um só protesto
de maldição, de cólera aturdida,
sequer uma palavra, ou mesmo um gesto
de malquerer a quem mais quis na vida.
Arrasto como a um fardo, a alma ferida,
e a dor que me crucia, manifesto,
sem jamais inculpar de fementida,
aquela que em meu sonho amo, e requesto.
Em perdendo-a, perdi toda a alegria
do coração que em mágoas apunhalo.
Perdi a luz!... Fechou-se o sol que eu via!...
Tudo abateu com a queda desse amor,
tão forte, que ainda sinto o seu abalo,
tão grande, que ainda escuto o seu fragor.
"Noite Cheia de Estrelas", Adelmar Tavares
(Adelmar Tavares nasceu no dia 16 de Fevereiro de 1888. Morreu em 1963.)
Nunca de mim se ouviu um só protesto
de maldição, de cólera aturdida,
sequer uma palavra, ou mesmo um gesto
de malquerer a quem mais quis na vida.
Arrasto como a um fardo, a alma ferida,
e a dor que me crucia, manifesto,
sem jamais inculpar de fementida,
aquela que em meu sonho amo, e requesto.
Em perdendo-a, perdi toda a alegria
do coração que em mágoas apunhalo.
Perdi a luz!... Fechou-se o sol que eu via!...
Tudo abateu com a queda desse amor,
tão forte, que ainda sinto o seu abalo,
tão grande, que ainda escuto o seu fragor.
"Noite Cheia de Estrelas", Adelmar Tavares
(Adelmar Tavares nasceu no dia 16 de Fevereiro de 1888. Morreu em 1963.)
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016
Quando o futebol não era para cátias vanessas
Os nomes interessam-me muito. "Diz-me o teu nome, dir-te-ei quem és" -
acredito neste ancestral provérbio chinês que acabo de inventar, são as
13h38 do dia 26 de Agosto de 2014, e não no outro, bem intencionado e de
autor incerto, "Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és". Millôr
Fernandes explicava melhor do que eu o meu ponto de vista: "Judas andava
com Cristo. E Cristo andava com Judas". Estamos percebidos?
Portanto, dou-me ao trabalho dos nomes. Quando eu era miúdo marcava no jornal os nomes dos jogadores de futebol que me pareciam esquisitos. Ainda não tínhamos chegado à babel que agora é, mas o Marreca, o Camelo, o Cansado, o Repolho, o Chouriça, o Torto, o Maneta, o Sacristão, o Mouco e o Aguardente enchiam-me de alegria as segundas-feiras. Também gostava muito do Araponga, do Alhinho e do Manaca. O Penteado e o Careca já me apareceram fora de tempo, mas isto é tudo nomes só por exemplo.
Com os nomes sublinhados eu fazia equipas que jogavam umas contra as outras, num campeonato de partir a moca, porque eu imaginava os jogadores exactamente conforme o nome, não sei se estão a ver o Marreca a driblar o Sacristão e o Repolho a entrar de pé em riste ao Camelo.
(Não é preciso ir mais longe: sou de Fafe, uma terra que deu ao futebol e ao mundo nomes tão extraordinários como Ricoca, Riga, Piré, Rates, Estafete, Mulato, Zebras, Caganito, Trolas, Feira Velha, Machica, Esparrinhento, Pescoça, Ferradeira ou Mofo. Nomes que são uma primeirinha, do tempo em que o futebol era desporto e jogado por gente como nós. Uns antes, outros depois, estes e mais, foram e ainda são os meus ídolos.)
Sempre apreciei particularmente os jogadores de um nome só. Mas nome de barba rija, se me faço entender. O Freitas, o Gomes, o Antunes, o Meneses, o Martins, o Ferreira, o Oliveira, o Marques, o Almeida, o Lopes, o Carvalho - eram nomes que me punham em sentido. E se os nomes tivessem bigode farfalhudo, inclusive nas sobrancelhas, então ainda melhor. Nomes assim davam-me segurança, transpiravam autoridade, infundiam Respect. O agente Freitas, o chefe Gomes, o comissário Antunes, o nosso cabo Martins, o sargento Almeida, o capitão Carvalho... - estão a acompanhar-me?
Mas já não há nomes assim da boa e velha casca-grossa, e os bigodes de antanho foram de momento substituídos por falsas barbas jihadistas em caras de sobrancelhas depiladas. Temos agora em campo o Rúben Micael, o Emídio Rafael, o Rui Pedro, o Nuno Henrique, o Mário Rui, o Rui Miguel, o João Paulo, o Paulo Jorge, o Cristiano Ronaldo. Enfim, cátias vanessas.
(Texto escrito e publicado no dia 26 de Agosto de 2014. Reencontrámo-nos há bocado e gostei, perdoem-me o narcisismo...)
Portanto, dou-me ao trabalho dos nomes. Quando eu era miúdo marcava no jornal os nomes dos jogadores de futebol que me pareciam esquisitos. Ainda não tínhamos chegado à babel que agora é, mas o Marreca, o Camelo, o Cansado, o Repolho, o Chouriça, o Torto, o Maneta, o Sacristão, o Mouco e o Aguardente enchiam-me de alegria as segundas-feiras. Também gostava muito do Araponga, do Alhinho e do Manaca. O Penteado e o Careca já me apareceram fora de tempo, mas isto é tudo nomes só por exemplo.
Com os nomes sublinhados eu fazia equipas que jogavam umas contra as outras, num campeonato de partir a moca, porque eu imaginava os jogadores exactamente conforme o nome, não sei se estão a ver o Marreca a driblar o Sacristão e o Repolho a entrar de pé em riste ao Camelo.
(Não é preciso ir mais longe: sou de Fafe, uma terra que deu ao futebol e ao mundo nomes tão extraordinários como Ricoca, Riga, Piré, Rates, Estafete, Mulato, Zebras, Caganito, Trolas, Feira Velha, Machica, Esparrinhento, Pescoça, Ferradeira ou Mofo. Nomes que são uma primeirinha, do tempo em que o futebol era desporto e jogado por gente como nós. Uns antes, outros depois, estes e mais, foram e ainda são os meus ídolos.)
Sempre apreciei particularmente os jogadores de um nome só. Mas nome de barba rija, se me faço entender. O Freitas, o Gomes, o Antunes, o Meneses, o Martins, o Ferreira, o Oliveira, o Marques, o Almeida, o Lopes, o Carvalho - eram nomes que me punham em sentido. E se os nomes tivessem bigode farfalhudo, inclusive nas sobrancelhas, então ainda melhor. Nomes assim davam-me segurança, transpiravam autoridade, infundiam Respect. O agente Freitas, o chefe Gomes, o comissário Antunes, o nosso cabo Martins, o sargento Almeida, o capitão Carvalho... - estão a acompanhar-me?
Mas já não há nomes assim da boa e velha casca-grossa, e os bigodes de antanho foram de momento substituídos por falsas barbas jihadistas em caras de sobrancelhas depiladas. Temos agora em campo o Rúben Micael, o Emídio Rafael, o Rui Pedro, o Nuno Henrique, o Mário Rui, o Rui Miguel, o João Paulo, o Paulo Jorge, o Cristiano Ronaldo. Enfim, cátias vanessas.
(Texto escrito e publicado no dia 26 de Agosto de 2014. Reencontrámo-nos há bocado e gostei, perdoem-me o narcisismo...)
Marcial Suárez
Cando o meu pobo morra, mal será que lle falten os auxilios espirituales, porque eu son do parecer do Vicentiño: que non hai no mundo un pobo que teña máis igrexas en proporción ó seu número de habitantes e á súa extensión. Fai anos, Allariz tería unhos tres mil habitantes - hoxe debe ter ben menos, por mor das emigracións -, e a súa extensión será dun quilómetro cuadrado, pouco máis ou menos. Pois, en tan pequeno espacio e para tan pouca xente, o meu pobo contaba coa igrexa de Santiago, a de San Lourenzo, a da Virxe de Vilanova, a de San Esteban, a de San Pedro, a de San Benito, a do Covento de Santa Clara, e duas capelas, a de San Isidro e a de Piñeiro.
O Vicentiño sempre dicía:
- Non hai pobo no mundo que teña máis igrexas por católico cuadrado.
"O Acomodador e Outras Narracións", Marcial Suárez
(Marcial Suárez nasceu no dia 15 de Fevereiro de 1918. Morreu em 1996.)
O Vicentiño sempre dicía:
- Non hai pobo no mundo que teña máis igrexas por católico cuadrado.
"O Acomodador e Outras Narracións", Marcial Suárez
(Marcial Suárez nasceu no dia 15 de Fevereiro de 1918. Morreu em 1996.)
Etiquetas:
cultura,
literatura,
livros,
Marcial Suárez,
O Acomodador e Outras Narracións,
série Escritores,
Un crego como non hai moitos
domingo, 14 de fevereiro de 2016
A guerra do Raul Solnado, versão EUA-Cuba
O Governo cubano devolveu aos Estados Unidos um "míssil americano que lhe foi enviado por engano" em 2014. Se acham que eu estou outra vez no gozo, tirem a coisa a limpo no Público.
P.S.: Eu sei que a rapaziada não sabe o que é a guerra do Solnado. Portanto, é isto, aqui com introdução, parece-me, do Nuno Markl, e esse a rapaziada sabe quem é.
P.S.: Eu sei que a rapaziada não sabe o que é a guerra do Solnado. Portanto, é isto, aqui com introdução, parece-me, do Nuno Markl, e esse a rapaziada sabe quem é.
Corsino Fortes 2
Silêncio
Aflitas estão as sílabas
No oco das palavras
"Sinos de Silêncio: Canções e Haikais", Corsino Fortes
(Corsino Fortes nasceu no dia 14 de Fevereiro de 1933. Morreu em 2015.)
Etiquetas:
Corsino Fortes,
cultura,
literatura,
livros,
poesia,
poetas,
série Escritores,
Silêncio,
Sinos de Silêncio: Canções e Haikais
sábado, 13 de fevereiro de 2016
Naquele tempo o Menino Jesus era português
As coisas em que a gente acredita quando é miúdo! Eu, por exemplo, acreditava piamente que o Menino Jesus era português - morra já aqui se estou a mentir. Eu ia à missa, ouvia com gosto aqueles bocadinhos de Bíblia e fazia a conexão que se impunha: se Nazaré e Belém são nossos, o Menino Jesus também é. Já grande, e catequizado nos trabalhos forçados do seminário, continuei a olhar com um certo carinho e saudade para esta minha crença infantil e patriótica. Depois veio Cavaco Silva, em 2006, e eu deixei finalmente de acreditar. Dedico-me agora à exegese, à hermenêutica, à toponímia e à geografia, sem ofensa para os presentes e apenas às primeiras quartas-feiras de cada mês, de três em três meses, dez minutos antes de me deitar.
Etiquetas:
Belém,
Bíblia,
Braga,
Cavaco Silva,
fé,
Menino Jesus,
Nazaré,
seminário,
série Memórias de Fafe,
série Os melhores anos da minha vida
Agostinho da Silva 3
Sonho
Teria passado a vida
atormentado e sozinho
se os sonhos me não viessem
mostrar qual é o caminho
umas vezes são de noite
outras em pleno de sol
com relâmpagos saltados
ou vagar de caracol
quem os manda não sei eu
se o nada que é tudo à vida
ou se eu os finjo a mim mesmo
para ser sem que decida.
"Poemas", Agostinho da Silva
(Agostinho da Silva nasceu no dia 13 de Fevereiro de 1906. Morreu em 1994.)
Teria passado a vida
atormentado e sozinho
se os sonhos me não viessem
mostrar qual é o caminho
umas vezes são de noite
outras em pleno de sol
com relâmpagos saltados
ou vagar de caracol
quem os manda não sei eu
se o nada que é tudo à vida
ou se eu os finjo a mim mesmo
para ser sem que decida.
"Poemas", Agostinho da Silva
(Agostinho da Silva nasceu no dia 13 de Fevereiro de 1906. Morreu em 1994.)
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016
Cavaco não é muito bom no que faz, diz a Wiki
Era o que dizia a Wikipédia sobre Aníbal António Cavaco Silva, o de Belém, às 13h25 de hoje: "Não é muito bom no que faz". E a Wikipédia, com se sabe, "cita fontes confiáveis e independentes". Em todo o caso, o apêndice malandro já lá não estava pelo menos às 14h21. O excelente trabalho gráfico de destaque é da minha autoria.
Subscrever:
Mensagens (Atom)